{"id":1989,"date":"2013-09-24T10:09:04","date_gmt":"2013-09-24T13:09:04","guid":{"rendered":"http:\/\/www.brasil-economia-governo.org.br\/?p=1989"},"modified":"2013-09-24T10:09:04","modified_gmt":"2013-09-24T13:09:04","slug":"etica-incentivos-o-que-diz-a-teoria-economica-sobre-recompensar-quem-denuncia-a-corrupcao","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/?p=1989","title":{"rendered":"\u00c9tica & Incentivos: o que diz a Teoria Econ\u00f4mica sobre recompensar quem denuncia a corrup\u00e7\u00e3o?"},"content":{"rendered":"

No dia 5 de agosto deste ano foi publicado no Di\u00e1rio Oficial da C\u00e2mara Legislativa do DF projeto de lei aprovado em 27 de julho que \u201cconcede pr\u00eamio \u00e0 pessoa que comunicar \u00e0s autoridades competentes a pr\u00e1tica de crime contra a Administra\u00e7\u00e3o P\u00fablica do Distrito Federal, de que resulte a efetiva recupera\u00e7\u00e3o de valores do Er\u00e1rio.\u201d (Pinheiro, I., 2013).<\/p>\n

A publica\u00e7\u00e3o do PL, que tem por objetivo estimular a sociedade a se envolver com mais afinco no controle da corrup\u00e7\u00e3o, gerou imediata repercuss\u00e3o na m\u00eddia, nem sempre favor\u00e1vel ao projeto.<\/p>\n

O Correio Braziliense (2013), por exemplo, em reportagem de 6\/8\/2013, inicia seu texto afirmando que \u201cNo que depender da C\u00e2mara Legislativa, o Distrito Federal voltar\u00e1 \u00e0 \u00e9poca do Velho Oeste americano\u201d e apresenta argumentos de especialistas contra o PL. Segundo a reportagem, para o cientista pol\u00edtico Leonardo Barreto, \u201cretirar parte do recurso roubado dos cofres p\u00fablicos e entreg\u00e1-lo para um delator \u00e9 desviar o dinheiro duas vezes. Barreto comparou a situa\u00e7\u00e3o a um roubo de caminh\u00e3o de carga, no qual a pessoa que teve conhecimento do crime e entregou os ladr\u00f5es \u00e0s autoridades leve certa quantidade do carregamento para casa, como recompensa pelo ato.\u201d O artigo cita a seguinte frase do cientista pol\u00edtico: \u201cSe quer incentivar um comportamento mais correto, talvez, sim, com uma premia\u00e7\u00e3o, mas nunca com o produto do roubo<\/em>\u201d.<\/p>\n

O Correio Braziliense cita ainda posicionamento do cientista pol\u00edtico Valdir Pucci segundo o qual repartir recursos p\u00fablicos \u201ccom um n\u00famero restrito de pessoas, mesmo que com um bom prop\u00f3sito<\/em>\u201d \u00e9 come\u00e7ar \u201cum jogo de soma zero<\/em>\u201d. \u201cO Estado n\u00e3o ganha, a sociedade n\u00e3o ganha, n\u00e3o tem retorno para ningu\u00e9m<\/em>\u201d. Teria ainda o cientista pol\u00edtico chamado a aten\u00e7\u00e3o para o fato de que \u201cPagar por esse servi\u00e7o pode acender uma onda de denuncismo, que tamb\u00e9m ter\u00e1 preju\u00edzos para o Estado. \u00c9 preciso analisar como essa informa\u00e7\u00e3o ser\u00e1 recebida e tratada, para n\u00e3o virar outro problema, de investiga\u00e7\u00f5es inv\u00e1lidas e conseque<\/em>\u0302<\/em>ncias ruins para pessoas inocentes<\/em>\u201d.<\/p>\n

A reportagem chama ainda a aten\u00e7\u00e3o para a possibilidade do PL ser inconstitucional e acrescenta o posicionamento do fundador e secret\u00e1rio-geral da Organiza\u00e7\u00e3o N\u00e3o-Governamental Contas Abertas, Gil Castelo Branco, que \u201cacredita que a obriga\u00e7\u00e3o de todo cidad\u00e3o \u00e9 agir contra o que \u00e9 errado. Recompensar quem age corretamente, segundo o especialista, n\u00e3o \u00e9 uma atitude \u00e9tica<\/em>\u201d. Teria ainda afirmado o secret\u00e1rio-geral que \u201cA remunera\u00e7\u00e3o vai contra os princ\u00edpios da cidadania. No nosso pa\u00eds, vai ter conluio de quem roubou com quem denunciou<\/em>\u201d.<\/p>\n

Por outro lado, em seu editorial de 9\/8\/2013, a Folha de S\u00e3o Paulo reconhecendo que, em tese, \u201cqualquer pessoa que tome conhecimento de um crime tem o dever moral de denunci\u00e1-lo \u00e0s autoridades competentes<\/em>\u201d, tamb\u00e9m lembra que \u201cNo mundo real, delatar um crime envolve riscos. No m\u00ednimo, de ser tachado de alcaguete. Na pior das hip\u00f3teses, a pr\u00f3pria vida \u00e9 amea\u00e7ada<\/em>.\u201d Por essa raz\u00e3o, o editorial argumenta que \u201ca sociedade precisa reconhecer que, dentro de certos limites, determinadas medidas pragm\u00e1ticas constituem um avan\u00e7o<\/em>.\u201d E conclui com uma vis\u00e3o positiva do PL, afirmando que \u201cSe bem regulamentada, a recompensa pode representar importante ferramenta \u2013 e impulsos morais autom\u00e1ticos n\u00e3o deveriam impedi-la<\/em>.\u201d<\/p>\n

N\u00e3o obstante essa \u00faltima vis\u00e3o favor\u00e1vel, o Governador do Distrito Federal achou por bem vetar o PL em 30\/8\/2013. Segundo reportagem no R7 Not\u00edcias (2013a), \u201cAp\u00f3s avaliar todo o conte\u00fado do projeto, o chefe do Executivo do DF entendeu que a proposta causou pol\u00eamica jur\u00eddica e constitucional e n\u00e3o envolveu a sociedade para debates e amadurecimento da ideia<\/em>.\u201d A reportagem adiciona um posicionamento mais claro do Governador: \u201cAgnelo tamb\u00e9m disse que den\u00fancias envolvendo pol\u00edticos devem ser feitas pelos cidad\u00e3os de bem como obriga\u00e7\u00e3o c\u00edvica e n\u00e3o podem estar vinculadas \u00e0s possibilidades de conseguir vantagens financeiras<\/em>.\u201d Cita ainda as palavras do Governador Agnelo: \u201cO crime \u00e9 nocivo a toda a comunidade. N\u00e3o pode ser causa de lucro para absolutamente ningu\u00e9m, nem mesmo aos que o denunciam<\/em>.\u201d<\/p>\n

A reportagem da R7 Not\u00edcias ainda inclui posicionamento do professor titular da cadeira de Direito P\u00fablico na UnB, prof. Marcelo Neves, que afirma o PL ser \u201cinconstitucional desde a cria\u00e7\u00e3o porque fere o princ\u00edpio da Moralidade Administrativa<\/em>.\u201d Segundo o professor, \u201cO Estado jamais poder\u00e1 vincular pagamento de valores a produtos da corrup\u00e7\u00e3o. Se a lei fosse sancionada, quem fizesse a den\u00fancia se tornaria t\u00e3o criminoso quanto, porque receberia um valor em cima da pr\u00f3pria criminalidade e estaria se beneficiando da pr\u00f3pria corrup\u00e7\u00e3o<\/em>.\u201d<\/p>\n

Os posicionamentos citados acima mostram que o assunto se reveste de grande pol\u00eamica, especialmente ao incorporar argumentos de ordem moral ao debate. Uma an\u00e1lise dos argumentos contra o PL permite classific\u00e1-los em essencialmente duas categorias. Aqueles que afirmam existir um imperativo c\u00edvico que obrigaria o cidad\u00e3o a denunciar corrup\u00e7\u00e3o e aqueles que afirmam ser imoral ou a\u00e9tico remunerar aqueles que, em consequ\u00eancia de suas den\u00fancias, permitam a recupera\u00e7\u00e3o de recursos desviados. Como a discuss\u00e3o envolve recursos p\u00fablicos, surge naturalmente a quest\u00e3o de se a teoria econ\u00f4mica teria alguma contribui\u00e7\u00e3o a oferecer a esse debate. O objetivo deste artigo \u00e9 justamente revisitar os argumentos oferecidos acima com o instrumental te\u00f3rico e pr\u00e1tico da economia da informa\u00e7\u00e3o e dos incentivos.<\/p>\n

Para come\u00e7ar, considere o argumento da cidadania<\/em>: todo cidad\u00e3o tem a \u201cobriga\u00e7\u00e3o c\u00edvica\u201d de denunciar a corrup\u00e7\u00e3o, portanto n\u00e3o h\u00e1 raz\u00e3o para recompensar quem assim o fizer. Aqui a teoria econ\u00f4mica chama a aten\u00e7\u00e3o para a distin\u00e7\u00e3o entre imperativos morais, c\u00edvicos e at\u00e9 legais, e a a\u00e7\u00e3o. De fato, todo agente (econ\u00f4mico) est\u00e1 constantemente buscando tomar boas decis\u00f5es num mundo repleto de limita\u00e7\u00f5es. Essa realidade pode fazer com que ele opte por n\u00e3o seguir seus imperativos c\u00edvicos, optando por uma a\u00e7\u00e3o que, dadas as limita\u00e7\u00f5es existentes, lhe pare\u00e7a melhor. Um exemplo mundano diz respeito ao lixo nas ruas. H\u00e1 obriga\u00e7\u00e3o c\u00edvica mais fundamental do que n\u00e3o sujar nossas cidades? \u00c9 isso, de fato, que observamos, ou seja, os indiv\u00edduos guardando seus entulhos at\u00e9 encontrarem a lata de lixo mais pr\u00f3xima? Apesar de termos feito muito progresso nessa dire\u00e7\u00e3o, parece a este autor que ainda temos um longo caminho a percorrer no nosso pa\u00eds. De forma semelhante, com que frequ\u00eancia ouvimos not\u00edcias de cidad\u00e3os contribuindo no combate \u00e0 corrup\u00e7\u00e3o?<\/p>\n

Mas porque nem todos os brasileiros guardam seu lixo ou denunciam pr\u00e1ticas corruptas? A raz\u00e3o \u00e9 muito simples, e foi muito bem apresentada no editorial da Folha de S\u00e3o Paulo supracitado: custo. \u00c9 desagrad\u00e1vel, custoso, para o transeunte carregar consigo a lata vazia de cerveja por dezenas de metros at\u00e9 encontrar uma lata de lixo. Isso faz com que, na aus\u00eancia de outros incentivos, ele talvez prefira deixar a lata na via. Que outros incentivos poderia ele ter? Naturalmente, se houvesse um benef\u00edcio pecuni\u00e1rio, talvez ele guardasse sua lata para receb\u00ea-lo. Nos Estados Unidos, por exemplo, h\u00e1 esta\u00e7\u00f5es de reciclagem perto de estabelecimentos comerciais em que as pessoas depositam suas latas e, em troca, recebem alguns centavos por isso. H\u00e1 tamb\u00e9m os incentivos negativos. A multa por jogar um toco de cigarro pela janela do carro no estado americano de Washington pode chegar a US$1000, segundo Orlando Sentinel (2011); procedimento similar ao que a Prefeitura do Rio de Janeiro acaba de implantar naquela cidade. J\u00e1 no Jap\u00e3o a vergonha de ser chamado a aten\u00e7\u00e3o nas ruas das cidades por jogar lixo pode representar um \u201ccusto moral\u201d superior \u00e0 multa americana. N\u00e3o \u00e9 de se admirar que nesses pa\u00edses se jogue bem menos lixo nas ruas.<\/p>\n

Em suma, a Teoria dos Incentivos explica que, quando existe um custo em se executar certa tarefa, os agentes necessitam ser de alguma forma motivados para faz\u00ea-lo, seja por meio de incentivos positivos, como remunera\u00e7\u00e3o ou algum tipo de premia\u00e7\u00e3o, seja por meio de incentivos negativos, como puni\u00e7\u00e3o ou recrimina\u00e7\u00e3o. O \u201ccusto\u201d, no caso da lata de cerveja, \u00e9 bem prim\u00e1rio e se reduz a ter que carreg\u00e1-la consigo. Em outros casos, pode ser bem elevado. Suponha que voc\u00ea esteja caminhando na rua e um pedestre ao seu lado \u00e9 assaltado. Talvez concorde comigo que seu dever c\u00edvico \u00e9 agir, atacando o bandido, gritando, chamando a pol\u00edcia. Essas atitudes, no entanto, envolvem o risco de o bandido se voltar contra voc\u00ea, causando-lhe potencialmente grande preju\u00edzo. N\u00e3o \u00e9 sem raz\u00e3o que ouvimos com frequ\u00eancia, especialmente nas grandes cidades, not\u00edcias de assaltos em ambientes p\u00fablicos sem que as pessoas em volta do bandido reajam.<\/p>\n

No caso particular da den\u00fancia \u00e0 corrup\u00e7\u00e3o, existem pelo menos dois tipos de custos muito claros. O primeiro foi ressaltado no editorial da Folha de S\u00e3o Paulo supracitado, bem como pelo pr\u00f3prio autor do PL, o deputado distrital Professor Israel Batista, que diz que a recompensa \u201cexpressa de forma f\u00edsica o reconhecimento de que o denunciante prestou um servi\u00e7o de import\u00e2ncia extremada, ao se arriscar e arriscar a sua fam\u00edlia\u201d1<\/sup>. De fato, existe um risco ao se denunciar um crime de corrup\u00e7\u00e3o. Esse risco j\u00e1 seria suficiente para desestimular muitos, contrabalan\u00e7ando o sentimento de dever c\u00edvico.<\/p>\n

Mas e se n\u00e3o houver risco, como no caso uma den\u00fancia an\u00f4nima? Ser\u00e1 que os cidad\u00e3os, imbu\u00eddos do dever c\u00edvico se dedicar\u00e3o \u00e0 tarefa de descobrir e denunciar os crimes de corrup\u00e7\u00e3o? A pr\u00f3pria exist\u00eancia do PL sugere que n\u00e3o, uma vez os telefones an\u00f4nimos para den\u00fancia est\u00e3o dispon\u00edveis \u00e0 sociedade. O limitado uso desse mecanismo relativamente seguro de den\u00fancia an\u00f4nima est\u00e1 associado ao segundo tipo de custo, qual seja, o custo de oportunidade.<\/p>\n

De fato, j\u00e1 existe literatura econ\u00f4mica sobre a quest\u00e3o da recompensa ao esfor\u00e7o do cidad\u00e3o de denunciar corrup\u00e7\u00e3o. O artigo Bugarin & Vieira (2008) analisa justamente essa quest\u00e3o, ou seja, modela cuidadosamente a decis\u00e3o do cidad\u00e3o quanto a se envolver no esfor\u00e7o social de combate \u00e0 corrup\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

O artigo chama a aten\u00e7\u00e3o para o fato de que o tempo e o esfor\u00e7o dedicados pelo cidad\u00e3o ao controle da corrup\u00e7\u00e3o compete com suas outras atividades, em particular o trabalho, que lhe gera renda, e o lazer, que lhe gera felicidade. Em outras palavras, para dedicar-se ao controle da corrup\u00e7\u00e3o, o cidad\u00e3o deve abrir m\u00e3o ou de tempo de trabalho, reduzindo sua renda, ou do tempo dedicado ao lazer. Sem d\u00favida, ele ser\u00e1 beneficiado direta ou indiretamente por sua a\u00e7\u00e3o, seja pela felicidade pessoal de contribuir para a redu\u00e7\u00e3o da corrup\u00e7\u00e3o (satisfa\u00e7\u00e3o c\u00edvica), seja pelo benef\u00edcio que ser\u00e1 gerado para a sociedade como um todo pelo uso apropriado do recurso p\u00fablico recuperado. No entanto, esse \u00faltimo benef\u00edcio \u00e9 dilu\u00eddo por toda a sociedade, enquanto a perda, seja em termos de horas de trabalho ou de lazer, \u00e9 exclusivamente sua. Por essa raz\u00e3o, Bugarin & Vieira (2008) mostra que o envolvimento social espont\u00e2neo tende a ser muito reduzido, muito aqu\u00e9m do que seria \u00f3timo para a sociedade.<\/p>\n

O artigo acima citado, de fato vai mais al\u00e9m e prop\u00f5e um mecanismo para estimular a dedica\u00e7\u00e3o dos cidad\u00e3os ao esfor\u00e7o oficial de controle da corrup\u00e7\u00e3o via recompensa \u00e0quele que se mostre instrumental na elucida\u00e7\u00e3o e recupera\u00e7\u00e3o dos recursos p\u00fablicos desviados pela corrup\u00e7\u00e3o. Nesse artigo de 2008 \u00e9 proposta a recompensa como um percentual do valor dos recursos recuperados, exatamente o que propunha o PL. Ademais, o artigo mostra que esse mecanismo pode ser calibrado de forma que o governo, o cidad\u00e3o que se dedica e a sociedade como um todo fiquem melhor (em termos esperados) quando o mecanismo de recompensa \u00e9 usado2<\/sup>.<\/p>\n

Considere agora o argumento da moralidade<\/em>, segundo o qual \u00e9 a\u00e9tico ou imoral remunerar o denunciante. O fundamento parece se encontrar no sentimento de que seria moralmente conden\u00e1vel usar-se de recurso previamente desviado para remunerar o denunciante. Transcrevo novamente a cita\u00e7\u00e3o do CB de 6\/8\/2013: \u201cBarreto comparou a situa\u00e7\u00e3o a um roubo de caminh\u00e3o de carga, no qual a pessoa que teve conhecimento do crime e entregou os ladr\u00f5es \u00e0s autoridades leve certa quantidade do carregamento para casa, como recompensa pelo ato.\u201d<\/p>\n

Para discutir essa argumenta\u00e7\u00e3o, pe\u00e7o ao leitor que imagine que um de seus amigos tenha perdido sua carteira contendo R$1000,00. Suponha ainda que um transeunte a tenha encontrado, procurado seu telefone a partir do nome em sua carteira de identidade, tamb\u00e9m perdida na carteira, tenha telefonado e marcado um local para entreg\u00e1-la. Seu amigo ent\u00e3o lhe conta que recebeu a carteira, na qual ainda estavam os R$1000, agradeceu ao cidad\u00e3o pelo seu esfor\u00e7o e dele se despediu sem lhe oferecer qualquer recompensa. Suponha agora uma situa\u00e7\u00e3o mais radical em que seu amigo \u00e9 v\u00edtima de um ladr\u00e3o de carteirinha na rua. Um transeunte, ao perceber o ato criminoso, persegue o ladr\u00e3o aos gritos e gestos que chamam a aten\u00e7\u00e3o da pol\u00edcia que, por sua vez, prende o ladr\u00e3o, de forma que sua carteira \u00e9 recuperada. Seu amigo, estimando que \u00e9 dever c\u00edvico do cidad\u00e3o lutar contra esse ato criminoso, agradece sua contribui\u00e7\u00e3o sem recompens\u00e1-lo pelo risco envolvido na persegui\u00e7\u00e3o do bandido.<\/p>\n

O que voc\u00ea pensaria de seu amigo? Que diferen\u00e7a existe entre o exemplo hipot\u00e9tico citado por Barreto e este exemplo?<\/p>\n

Passando para situa\u00e7\u00f5es reais, in\u00fameros s\u00e3o os mecanismos institucionais de recompensa. Por exemplo, a Receita americana (Internal Revenue System) recompensa os cidad\u00e3os que prov\u00eam informa\u00e7\u00e3o relevante sobre evas\u00e3o fiscal, dando a eles um percentual normalmente correspondendo a 10% do valor recuperado, curiosamente o mesmo percentual proposto no PL3<\/sup>. Existe no Brasil desde 2000, e em muitos outros pa\u00edses h\u00e1 mais tempo, os programas de leni\u00eancia4<\/sup> que permitem a uma empresa envolvida em conluio ilegal negociar com o governo uma redu\u00e7\u00e3o ou at\u00e9 mesmo a elimina\u00e7\u00e3o total de sua puni\u00e7\u00e3o caso ajude as autoridades nas investiga\u00e7\u00f5es sobre o comportamento ilegal de carteliza\u00e7\u00e3o. Os auditores-fiscais no pa\u00eds recebem uma gratifica\u00e7\u00e3o denominada Gratifica\u00e7\u00e3o de Incremento da Fiscaliza\u00e7\u00e3o e da Arrecada\u00e7\u00e3o-GIFA que \u00e9 computada em fun\u00e7\u00e3o de cumprimento de metas de arrecada\u00e7\u00e3o. Portanto, se os auditores descobrirem irregularidades tribut\u00e1rias de empresas e, com isso, conseguem aumentar a arrecada\u00e7\u00e3o federal, obter\u00e3o recompensa. Outro exemplo recente, curiosamente aprovado exatamente na mesma sess\u00e3o da C\u00e2mara Legislativa do DF que aprovou o PL em quest\u00e3o, o projeto de lei no. 1.447\/20135<\/sup>, de iniciativa do Governador do Distrito Federal, institui a gratifica\u00e7\u00e3o a policiais, que varia de R$400 a R$1200, por apreens\u00e3o de arma de fogo no DF.<\/p>\n

Uma poss\u00edvel diferen\u00e7a entre os exemplos institucionais acima apresentados e aquele proposto pelo PL, que parece ter gerado grande rea\u00e7\u00e3o negativa, \u00e9 o fato de que a remunera\u00e7\u00e3o prevista corresponde a um percentual do montante desviado, dando a impress\u00e3o de \u201cduplo desvio\u201d: \u201cretirar parte do recurso roubado dos cofres p\u00fablicos e entreg\u00e1-lo para um delator \u00e9 desviar o dinheiro duas vezes\u201d, teria afirmado<\/p>\n

o cientista pol\u00edtico Barreto. Essa distin\u00e7\u00e3o da origem do dinheiro, no entanto, \u00e9 essencialmente ilus\u00f3ria. Suponha, por exemplo, que o PL fosse reapresentado conforme descrevo a seguir. Inicialmente, cria-se um \u201cFundo de Combate \u00e0 Corrup\u00e7\u00e3o\u201d, no qual se aloca quantia consider\u00e1vel de recursos or\u00e7ament\u00e1rios. Em seguida, se determina que o Fundo ser\u00e1 usado da seguinte forma. Toda vez que uma den\u00fancia acarrete recupera\u00e7\u00e3o de recurso p\u00fablico desviado por corrup\u00e7\u00e3o, o denunciante \u00e9 pago com recursos do Fundo em valor correspondente a 10% do valor recuperado. Neste caso, formalmente o denunciante estar\u00e1 recebendo um pagamento oriundo dos recursos or\u00e7ament\u00e1rios e o recurso recuperado volta integralmente aos cofres p\u00fablicos. O argumento do duplo desvio deixa de existir. O funcionamento do mecanismo, no entanto, \u00e9 exatamente o mesmo e, portanto, os incentivos por ele gerados s\u00e3o id\u00eanticos.<\/p>\n

\u00c0 guisa de conclus\u00e3o, a teoria econ\u00f4mica ressalta a diferen\u00e7a que existe entre princ\u00edpios morais, por um lado, e as decis\u00f5es tomadas pelos cidad\u00e3os, por outro, chamando a aten\u00e7\u00e3o para o fato de que um cidad\u00e3o pode decidir n\u00e3o cumprir com suas obriga\u00e7\u00f5es c\u00edvicas se os custos ou riscos envolvidos no cumprimento dessas obriga\u00e7\u00f5es forem elevados. Nesse caso, incentivos tanto positivos quanto negativos podem e devem ser usados de forma a estimular o comportamento desejado do cidad\u00e3o. Ignorar esse fato levar\u00e1 simplesmente \u00e0 manuten\u00e7\u00e3o do status quo<\/em> de pouco envolvimento espont\u00e2neo da sociedade civil no esfor\u00e7o de controle da corrup\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

Ademais, a teoria econ\u00f4mica chama a aten\u00e7\u00e3o para a poss\u00edvel cria\u00e7\u00e3o de conflitos inexistentes devido \u00e0 simples forma de se descrever um mecanismo. Segundo o Correio Braziliense, o cientista pol\u00edtico Barreto, cr\u00edtico do PL, teria dito: \u201cSe quer incentivar um comportamento mais correto, talvez, sim, com uma premia\u00e7\u00e3o, mas nunca com o produto do roubo<\/em>\u201d. Com o supramencionado Fundo de Combate \u00e0 Corrup\u00e7\u00e3o se teria exatamente o efeito de apresentar a recompensa como uma premia\u00e7\u00e3o e n\u00e3o um fruto do \u201cproduto do roubo\u201d, sem que isso alterasse a ess\u00eancia do mecanismo proposto pelo PL.<\/p>\n

Finalmente, a teoria econ\u00f4mica ajuda a identificar semelhan\u00e7as entre diferentes mecanismos, mostrando, por exemplo, a similaridade entre o mecanismo de gratifica\u00e7\u00e3o a policiais por apreens\u00e3o de armas e o mecanismo gratifica\u00e7\u00e3o ao cidad\u00e3o por \u201capreens\u00e3o de corrupto\u201d, sendo que o primeiro mecanismo foi proposto pelo Executivo Distrital enquanto o segundo foi vetado pelo mesmo Executivo.<\/p>\n

Resta, por fim, a constata\u00e7\u00e3o de que o Distrito Federal talvez tenha perdido uma oportunidade de se posicionar na vanguarda do pa\u00eds no que diz respeito aos mecanismos institucionais de incentivo ao envolvimento da sociedade na \u00e1rdua tarefa de controle da corrup\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

(Trabalho preparado para apresenta\u00e7\u00e3o no Primeiro Encontro Anual do Economics and Politics Research Group, UnB, 21\/9\/2013.)<\/em><\/p>\n

____________<\/p>\n

1<\/sup> EBC, 2013.
\n2<\/sup> Detalhes da modelagem utilizada podem ser consultados em: http:\/\/bugarinmauricio.files.wordpress.com\/2012\/12\/quaeco419.pdf<\/a>
\n3<\/sup> Cooter e Garoupa (2001).
\n4<\/sup> Veja Considera, Correa e Guanais (2001) para o caso brasileiro e Paul (2000) para o caso americano.
\n5<\/sup> R7 Not\u00edcias, 2013b.<\/p>\n

Refer\u00eancias:<\/strong><\/p>\n

Batista, I. (2013). Projeto de Lei 857\/2012, dispon\u00edvel em http:\/\/profisrael.com.br\/wp-content\/uploads\/2012\/07\/RDI-PL-00857-2012.pdf<\/a><\/p>\n

Bugarin, M. e Vieira, L. (2008). \u201cBenefit Sharing: An Incentive Mechanism for Social Control of Government Expenditure\u201d. Quarterly Review of Economics and Finance<\/em>, 48: 673-690.<\/p>\n

Considera, C., Correa, P. e Guanais, F. (2001). Building a leniency and amnesty policy: The Brazilian experience. Global Competition Review<\/em>, 44\u201346.<\/p>\n

Cooter, R. e Garoupa, N. (2001). The virtuous circle of distrust: A mechanism to deter bribes and other cooperative crimes. The Berkeley Law & Economics Working Papers<\/em>, Vol. 2000, Issue 2, Article 13.<\/p>\n

Correio Braziliense (2013). \u201cLei aprovada no Distrito Federal recompensa quem denunciar corruptos\u201d, 6\/8\/2013, dispon\u00edvel em http:\/\/www.correiobraziliense.com.br\/app\/noticia\/cidades\/2013\/08\/06\/interna_cidadesdf,380868\/projeto-de-lei-preve-recompensa-em-dinheiro-a-quem-denunciar-corruptos.shtml<\/a><\/p>\n

EBC (2013). \u201cLei do DF prev\u00ea pr\u00eamio para quem denunciar casos de corrup\u00e7\u00e3o\u201d, 6\/8\/2013, dispon\u00edvel em: http:\/\/www.ebc.com.br\/print\/66131<\/a><\/p>\n

Folha de S\u00e3o Paulo (2013). Editorial, 9\/8\/2013, editorial, dispon\u00edvel em http:\/\/www1.folha.uol.com.br\/opiniao\/2013\/08\/1323819-editorial-delacao-mais-premiada.shtml<\/a><\/p>\n

Orlando Sentinel (2011). \u201cIf a cop sees you litter, it’ll cost you\u201d, 28\/3\/2011, dispon\u00edvel em http:\/\/articles.orlandosentinel.com\/2011-03-28\/news\/os-law-and-you-litter-20110328_1_litter-cigarette-butts-trash-cans<\/a><\/p>\n

Paul, R. (2000). International Cartels in Crosshairs. New York Law Journal<\/em>.<\/p>\n

R7 Not\u00edcias (2013a). \u201cGovernador do DF veta projeto de lei que prev\u00ea recompensa a quem denunciar pol\u00edticos corruptos\u201d, 30\/8\/2013, dispon\u00edvel em http:\/\/noticias.r7.com\/distrito-federal\/governador-do-df-veta-projeto-de-lei-que-preve-recompensa-a-quem-denunciar-politicos-corruptos-30082013<\/a><\/p>\n

R7 Not\u00edcias (2013b). \u201cComiss\u00e3o da C\u00e2mara Legislativa aprova recompensa a policiais que aprenderem armas de fogo\u201d, 7\/5\/2013, dispon\u00edvel em http:\/\/noticias.r7.com\/distrito-federal\/noticias\/camara-legislativa-aprova-a-recompensa-a-policiais-que-aprenderem-armas-de-fogo-20130507.html<\/a><\/p>\n

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Download:<\/em><\/strong><\/p>\n