trem-bala – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Fri, 28 Jun 2013 12:02:53 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Quanto custa um estádio de futebol? Ou: ainda temos tempo de economizar 42 Maracanãs https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1883&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=quanto-custa-um-estadio-de-futebol-ou-ainda-temos-tempo-de-economizar-42-maracanas https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1883#comments Wed, 26 Jun 2013 15:56:09 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1883 Apesar do caráter difuso dos protestos populares que tomaram conta do país neste mês de junho de 2013, um ponto parece claro: a população está indignada com as prioridades adotadas pelos governantes. Tomou-se consciência de que os governos federal, estaduais e municipais preferiram construir estádios de futebol a investir na superação dos nossos crônicos problemas de transporte urbano ou na melhoria da oferta de serviços de saúde e educação.

A indignação não é apenas com a inversão de prioridades, mas também com os custos totais dos estádios, que levantam suspeitas acerca de superfaturamento e corrupção.

Será que os estádios brasileiros realmente custaram caro, quando comparados com outros construídos para copas do mundo anteriores? Essa comparação pode ser feita consultando-se a base de dados da ONG Play the Game (www.playthegame.org), uma entidade com sede na Dinamarca, cujo objetivo é fortalecer a ética no esporte. O critério básico de custo utilizado por essa entidade é o custo total dos estádios dividido pela sua capacidade (custo por assento).

A Tabela 1 compara o custo médio por assento dos seis estádios brasileiros já concluídos e dos estádios utilizados nas Copas de Japão/Coréia do Sul, Alemanha e África do Sul. Observa-se que o custo por assento da Copa brasileira ficou 10% acima do observado na Copa da África do Sul e 14% superior ao da Copa de Japão e Coréia do Sul. Há grande diferença em relação à Alemanha, cujo custo de estádios foi quase 40% menor que o brasileiro.

Ainda que diferenças no poder de compra das moedas possa afetar essa comparação, é surpreendente que o Brasil não tenha gasto muito mais que Japão e Coréia do Sul, que são países muito mais produtivos e com processo de engenharia mais avançado que o Brasil. Todos aqueles que conhecem o Brasil esperariam preços muito acima da média internacional, não só devido a uma percepção de alta corrupção e ineficiência, como também pelo fato de que o custo de investir no Brasil é elevado1.

A grande diferença entre a Alemanha e as outras sedes de Copas se deve ao fato de que aquele país já dispunha, antes de sua Copa, de diversos estádios que atendiam ao padrão da FIFA, e que necessitavam de apenas alguns ajustes. Isso reduziu fortemente os custos de reforma e construção. Para a Copa brasileira todos os 12 estádios foram construídos do zero ou fortemente reformados. Um exemplo oposto ao do Brasil foi o da Copa dos EUA, para a qual não foi preciso construir um estádio sequer, pois bastou adaptar os já existentes campos de futebol americano.

Paira a dúvida se todos os estádios brasileiros realmente precisavam ser totalmente reconstruídos, ou se faltou capacidade de negociação de nossas autoridades junto à FIFA, no sentido de flexibilizar exigências. Principalmente no caso do Maracanã, que passou por ampla reforma há poucos anos.

Tabela 1 – Custo Médio dos Estádios das Últimas Quatro Copas do Mundo (US$ por assentos)

Fontes:www.playthegame.org (estádios internacionais) e Portal da Transparência da Copa 2014. Elaborado pelos autores.
(*) Seis estádios já concluídos em junho de 2013 e utilizados na Copa das Confederações.
(**) Os valores dos estádios internacionais foram corrigidos de US$ de 2010 para US$ de 2013 pela taxa de inflação ao consumidor dos EUA. Os valores dos estádios brasileiros foram convertidos para dólar pela taxa média do período janeiro de 2012 – maio de 2013 (R$ 1,97).


A Tabela 2, abaixo, apresenta estádios dos outros países que foram inteiramente construídos ou sofreram grandes reformas, para tornar a comparação mais equilibrada com as arenas brasileiras, que, como afirmado acima, estão todas na categoria de nova construção/grande reforma. Para tanto, utilizamos os estádios de maior custo porque o relatório da Play the Game não especifica quais foram os estádios das três copas passadas que estão na categoria construção/grandes reformas2.

Tabela 2 – Custo por Assento de Estádios Construídos ou Submetidos a Grandes Reformas para as Últimas Quatro Copas do Mundo (US$ por assentos)

Fontes: Fontes:www.playthegame.org (estádios internacionais) e Portal da Transparência da Copa. Elaborado pelos autores.
(*) Valor inclui despesas a realizar relativas à infraestrutura no entorno dos estádios
(**) Todos os estádios brasileiros incluem custos de infraestrutura no entorno, tais como acesso viário e estações de metrô.
(***) Os valores dos estádios internacionais foram corrigidos de US$ de 2010 para US$ de 2013 pela taxa de inflação ao consumidor dos EUA. Os valores dos estádios brasileiros foram convertidos para dólar pela taxa média do período janeiro de 2012 – maio de 2013 (R$ 1,97).


Nessa comparação os estádios brasileiros não parecem estar fora do padrão de preço internacional. Apenas o Mané Garrincha, em Brasília, e o Maracanã estão entre os mais caros, mas há na experiência internacional estádios que custaram ainda mais caro. Quatro dos seis estádios brasileiros representados na amostra estão abaixo da média da amostra. É verdade que estamos comparando com os estádios mais caros de cada um dos demais países, mas o retrato mostrado na Tabela 2 não parece ser o de um “desastre” generalizado de custos unitários. O que as Tabelas 1 e 2 estão mostrando é que estádio de futebol custa muito caro: aqui e no exterior.

A Tabela 3, por sua vez, compara o custo projetado para cada um dos estádios em 2010 com a despesa efetivamente verificada. Existem três casos distintos. O Maracanã e o Mané Garrincha sofreram claros estouros de orçamento, o que os levou a serem os dois estádios mais caros.

O Mineirão também estourou o orçamento, porém devido a uma mudança de planos no meio da execução da obra. Após a demolição resolveu-se alterar o projeto. Pelos custos estimados para o novo projeto, no momento da sua reformulação, praticamente não houve estouro de orçamento. Porém, a necessidade de alterar o projeto durante a execução da obra revela fragilidade técnica e/ou excesso de otimismo inicial.

Por fim, há os três estádios da Região Nordeste, que foram executados dentro da expectativa e, em dois casos, custaram menos que previsto.

Tabela 3 – Diferença entre o custo final da obra e a estimativa inicial de custo (%)

Fontes: Matriz de responsabilidade da Copa 2010 e Tabelas 1 e 2. Elaborado pelos autores.


O que diferencia o Maracanã e o Mané Garrincha dos demais estádios é que ambos foram reformados pelos respectivos governos estaduais, por meio de contratação de empreiteiras. Nos demais casos a execução da obra foi pela modalidade de PPP, em que as empresas que construíram as arenas serão responsáveis por sua gestão, contando com uma subvenção estatal. Tais empresas tinham, portanto, incentivos para reduzir os custos, pois quanto maiores fossem seus custos, menor o retorno que elas obteriam com a gestão do estádio. Já no caso do Maracanã e do Mané Garrincha esse incentivo não existia, pois as empreiteiras envolvidas na construção não iriam gerir os estádios posteriormente; estavam apenas recebendo pelo serviço de construção.

A história que parece ser contada pelas Tabelas 1 a 3 não é simplesmente de superfaturamento e corrupção na construção de estádios. Isto pode ter ocorrido, em especial nos estádios que tiveram maior custo por assento. Mas há outros fatores envolvidos.

Em pelo menos três casos (Maracanã, Mané Garrincha e Mineirão) o custo inicialmente apresentado era muito otimista, quando comparado com a experiência internacional e com a obra que efetivamente se executou.

Além disso, mesmo nos estádios em que não houve otimismo na estimativa de custos, houve superestimação dos benefícios a serem proporcionados pela Copa: investimentos complementares nas infraestruturas urbanas, estímulo à economia pelo aumento do turismo, melhoria da imagem internacional do país.

Com alguns estádios tendo seu custo subestimado e o evento como um todo tendo benefícios superestimados, a diferença entre benefícios e custos tornou-se douradamente positiva.

Igualmente otimista foi o argumento adicional de que parte substancial dos investimentos seria feita pela iniciativa privada, não onerando o erário. Na prática, mesmo nos projetos contratados sob a forma de PPP, há significativos recursos públicos envolvidos, seja na participação direta dos governos estaduais no financiamento das obras, seja no financiamento subsidiado concedido pelo BNDES, que, em última instância, obtém seus recursos por meio de receitas tributárias federais e de transferências do Tesouro Federal.

Superestimou-se, também, a capacidade de planejamento e execução do setor público brasileiro. Acreditou-se que seria possível fazer não só estádios, mas também ampla reformulação da infraestrutura urbana. Na prática, o esforço financeiro, de logística e organização para a construção dos estádios subtraiu recursos, capacidade de planejamento e tempo de trabalho que se pretendia investir na ampliação da infraestrutura urbana. Em vez de mais e melhores meios de transportes e equipamentos urbanos, a Copa deixará como legado um conjunto de estádios que implicarão custos de manutenção. Mesmo os que estão contratados sob a forma de PPP requererão participação pública em sua manutenção.

Muitos estádios não gerarão receita suficiente para cobrir tais custos. Compare-se, por exemplo, o Mané Garrincha com o Saporo Dome, do Japão. Este é o estádio mais caro entre os elencados na Tabela 2. No entanto, de acordo com o já citado relatório da Play the Game, o estádio japonês é intensamente utilizado e lucrativo, recebendo eventos tão distintos quanto competições de esqui, jogos de baseball e de futebol. Já o Mané Garrincha tem poucas possibilidades de utilização após a Copa, dada a fragilidade da liga brasiliense de futebol e a baixa flexibilidade do estádio para receber outros tipos de eventos.

O excesso de otimismo em projetos de engenharia e a consequente apresentação de relação benefício-custo superestimada é um fenômeno muito comum em todo o mundo sendo, inclusive, objeto de estudos acadêmicos. Bent Flyvbjerg3, por exemplo, afirma que:

A psicologia e a economia política explicam a imprecisão das estimativas. A psicologia explica a imprecisão em termos de viés de otimismo, ou seja, uma predisposição cognitiva, encontrada na maioria das pessoas, para julgar os eventos futuros em uma perspectiva mais positiva do que aquela oferecida pela experiência passada. A economia política, por sua vez, explica a imprecisão em termos de deturpação estratégica. Nesse caso, os planejadores deliberadamente superestimam os benefícios e subestimam os custos para aumentar a probabilidade de que os seus projetos, e não os projetos rivais, recebam aprovação e financiamento. (…)Embora os dois tipos de explicação sejam diferentes, o resultado é o mesmo: estimativas imprecisas e relação benefício-custo inflada. (tradução livre – grifo nosso)

Com relação aos estádios brasileiros, o leite está derramado ou, como gostam de dizer os economistas, o custo dos estádios está “afundado”. Não há como recuperá-lo. Mas ainda há como a população brasileira tirar proveito da experiência e obter um legado efetivamente positivo. As instituições públicas e privadas, tais como o TCU, o Ministério Público, as comissões temáticas do legislativo, as associações de classe, a imprensa e as ONGs precisam tomar consciência da existência do viés de otimismo e da deturpação estratégica. Cada vez que um planejador público apresentar um projeto de alto custo, é preciso questionar as estimativas de custos e benefícios que são apresentadas.

Outra lição fundamental a ser aprendida pelos brasileiros é de que é fundamental elencar os investimentos por ordem de prioridade. Não é possível fazer tudo ao mesmo tempo, ainda mais com a restrição fiscal e a baixa capacidade de planejamento/execução do nosso setor público. O governo, ainda que conte com a participação da iniciativa privada, não consegue, ao mesmo tempo, construir estádios, ampliar metrôs, redesenhar corredores de ônibus, ampliar o saneamento básico, construir hospitais ou aperfeiçoar a educação. É imperioso ter uma lista de prioridades.

Há atualmente no Brasil um projeto de engenharia que tem “toda pinta” de, assim como os estádios da Copa, ser um caso clássico de baixa prioridade associada à  superestimativa de retorno econômico-social. Trata-se do chamado trem-bala, que ligará o Rio a São Paulo.

O projeto não é prioritário porque será um meio de transporte de luxo, com passagens caras, destinado a transportar pessoas de renda alta entre Rio e São Paulo. O nó urbano em que vivemos evidentemente indica que o prioritário é fazer São Paulo, Rio e demais cidades saírem do engarrafamento permanente que existe dentro de cada cidade, em vez de investir em transporte rápido, acessível a poucos, entre as cidades.

Quando questionado sobre quão prioritário seria o trem-bala em relação a outros projetos de infraestrutura, uma autoridade governamental diretamente encarregada de desenvolver o projeto deu clara demonstração de não estar preocupada com o adequado ordenamento de prioridades:

o que temos que entender no Brasil é que esse falso dilema de prioridades levou o País a parar. Quer dizer, vai lá no Pará e no Amazonas e vê se a Transamazônica não tem nenhuma funcionalidade lá hoje, se ela não gerou nenhuma transformação naquela região.

Quer dizer, a gente tem que perceber que temos que olhar este País no que ele precisa e buscar fazer o que ele precisa. Vamos supor: vamos abandonar o trem de alta velocidade, vamos puxar um projeto e colocá-lo em pé. E qual será o projeto?4 (grifo nosso)

Fazer uma lista de prioridades é, para essa autoridade, um “falso dilema”, ou seja, uma perda de tempo. Não importa buscar o projeto de maior retorno econômico e social: escolha-se qualquer um e toque-se em frente. É esse mesmo raciocínio que coloca estádios de futebol à frente de saneamento básico, transporte urbano e outras prioridades gritantes da realidade urbana brasileira.

Os sinais de subestimativa de custos e superestimativa de benefícios no projeto do trem-bala estão por toda a parte. O leitor que se interessar pode vê-los em outro artigo neste site (Vale a pena construir o trem-bala?5).

O enredo da novela é muito parecido com o dos estádios da Copa. Inicialmente, as autoridades afirmavam que não haveria um centavo de dinheiro público no projeto. Na formatação atual o governo já admite forte envolvimento de recursos públicos e subsídios do Tesouro via financiamento do BNDES, bem como está disposto a dar todo tipo de garantias e a absorver riscos.

Mesmo antes do início das obras, a estimativa de custo já pulou de R$ 18 bilhões para R$ 35,6 bilhões. Este é o valor atualmente apresentado pelas autoridades, mas com a ressalva de que está a preços de 20086. Corrigindo-se tal custo pelo índice de preços da construção civil (INCC) chegamos a R$ 50 bilhões! Essa é a estimativa oficial, provavelmente subestimada, como analisado nos estudos acima citados, que apontam indícios de viés de otimismo e deturpação estratégica no projeto do trem de alta velocidade.

R$ 50 bilhões são nada menos que 42 Maracanãs! Se a experiência negativa da sociedade brasileira com os estádios da Copa servir para que possamos definitivamente interromper o projeto do trem-bala, recanalizando os recursos para prioridades mais urgentes, isso valerá mais que um hexacampeonato.

*Agradecemos a Gustavo Mendes que contribuiu para o levantamento estatístico usado neste texto.

________________

1 Sobre esse ponto ver, por exemplo, http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/2013/05/24/preco-do-investimento-no-brasil/

2 Relatório completo sobre os estádios das Copas Coréia/Japão, Alemanha e África do Sul está disponível em http://www.playthegame.org/knowledge-bank/theme-pages/world-stadium-index.html

3 Flyvbjerg,B.  Curbing Optimism Bias and Strategic Misrepresentation in Planning: Reference Class Forecasting in Practice, European Planning Studies, v. 16, n. 1, p. 3-21, 2008.

4 Transcrição do depoimento de Bernardo Figueiredo, então presidente da ANTT, atual presidente da Empresa de Planejamento e Logística (EPL) à Comissão de Infraestrutura do Senado, em debate sobre o trem-bala, em 12/4/2011.

5 Análises mais detalhadas estão publicadas nos seguintes textos para discussão Trem de Alta Velocidade: caso típico de problema de gestão de investimento e Trem de Alta Velocidade: novas informações para debater o projeto

6 Fonte: http://www.epl.gov.br/tav

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Vale a pena construir o Trem Bala? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=454&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=vale-a-pena-construir-o-trem-bala https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=454#comments Wed, 13 Apr 2011 03:01:29 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=454 Está em andamento um projeto para construir um trem de alta velocidade (TAV), popularmente conhecido como “trem-bala” entre Rio e Campinas, passando por São Paulo. É um trem de passageiros (sem possibilidade de uso para transporte de cargas, a não ser pequenas encomendas), com possíveis estações intermediárias em São José dos Campos, Aparecida do Norte, Resende, Volta Redonda e Barra Mansa. Os aeroportos de Viracopos (Campinas), Guarulhos (São Paulo) e Galeão (Rio de Janeiro) também seriam servidos por estações. A distância total a ser percorrida é de 511 km, sendo que o trecho principal (Rio – São Paulo) teria 412 km. O tempo mínimo de viagem entre Rio e São Paulo seria de 1 hora e 33 minutos, caso venha a ser possível atingir velocidade máxima de 300 km por hora e sem paradas. A viagem do Rio a Campinas, com paradas, levaria 2 horas e 27 minutos.

No atual estágio de desenvolvimento da infraestrutura no Brasil, este não parece ser um investimento que valha a pena. A razão é simples: ele vai consumir um volume elevado de recursos públicos (entre R$ 15 bilhões e R$ 36 bilhões)[1], fora o montante adicional a ser aportado por investidores privados (o custo total da obra está orçado oficialmente em R$ 34,6 bilhões, mas pode chegar facilmente aos R$ 50 bilhões, devido a subestimativas de custos no projeto de viabilidade).

Para que se tenha uma idéia de como o projeto é caro, a tabela abaixo compara o orçamento oficial do TAV com outras obras. Colocar entre R$ 15 bilhões e R$ 36 bilhões de dinheiro do Tesouro em um único projeto, significa gastar mais do que tudo o que foi investido em ferrovias entre 1999 e 2008. Trata-se, portanto, de um gasto de vulto que vai drenar dinheiro que poderia ser aplicado em outros investimentos públicos.

Custo total estimado para construção do TAV Rio de Janeiro – Campinas, para outros projetos de infraestrutura de grande vulto e despesa efetivamente realizada em infraestrutura ferroviária e aeroportuária

R$ bilhões

TAV 1 34,6
Usina Hidrelétrica de Belo Monte 2 19,0
Usina Hidrelétrica de Santo Antônio 3 8,8
Usina Hidrelétrica de Jirau 4 8,7
Ferrovia Norte-Sul 5 6,5
Ferrovia Transnordestina 6 5,4
Transposição do Rio São Francisco 7 4,5
   
Invest. público e privado em ferrovias de 1999 a 2008 8 16,6
Invest. público em aeroportos de 1999 a 2008 9 3,1

Elaborado pelo autor. Fontes: ver http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/NOVOS%20TEXTOS/TD%2082%20-%20Marcos%20Mendes.pdf

Sem dúvida que a idéia de viajar do Rio a São Paulo em um transporte moderno, sem correr o risco de aeroportos fechados ou congestionados, é atrativa. Porém, sempre que se pretende colocar dinheiro público em um empreendimento, a primeira pergunta a ser feita é: existe aplicação melhor para esse dinheiro? E no caso do TAV, parece haver muitos outros investimentos de retorno econômico e social mais elevados, que deveriam ser considerados prioritariamente.

O PROJETO NÃO É PRIORITÁRIO

O principal serviço a ser prestado pelo TAV é o transporte de pessoas de alta renda no eixo Rio – São Paulo – Campinas. Trata-se de um serviço que já é prestado (ainda que com alguns problemas) pela ponte aérea e pelas rodovias, sem necessidade de subsídio público. Em um país com grandes carências na área de infraestrutura, o TAV não passa de um bem de luxo.

Apenas para citar um exemplo, no Brasil apenas 59% dos domicílios particulares permanentes são atendidos por rede coletora de esgoto ou fossa séptica ligada à rede coletora e 84% são atendidos por rede geral de abastecimento de água; enquanto países do leste asiático e da OCDE já universalizaram esse atendimento.

O que será que geraria maior benefício à população brasileira: um transporte rápido entre Rio e São Paulo, ou um investimento maciço na direção da universalização do acesso á água e esgoto? Estudo coordenado pelo economista Marcelo Neri mostra que a disponibilidade de água filtrada e acesso à rede de esgoto diminuem em 24% a probabilidade de uma mulher ter algum filho nascido morto. Mostra também que as crianças pobres, do sexo masculino, entre 1 e 6 anos são as principais vítimas da falta de saneamento[2]. Estudo da Agência Nacional de Águas (ANA) indica que até 2015, 55% dos municípios brasileiros (3.059 cidades) poderão ter problemas com abastecimento de água. Com R$ 9,6 bilhões seria possível solucionar o problema nas 256 maiores cidades, que concentram quase a metade da população do país[3].

Ser desenvolvido é viabilizar transporte em trem-bala para a população de alta renda ou é garantir o abastecimento de água e reduzir a mortalidade infantil decorrente da falta de saneamento? Os países que se dão ao luxo de investir nesse trem ultrarápido há muito já resolveram suas carências básicas em infraestrutura.

Para colocar a comparação no campo da infraestrutura de transportes, podemos perguntar se não seria mais interessante investir no transporte público urbano, para reduzir os congestionamentos e aumentar a qualidade do serviço prestado à população (majoritariamente de baixa renda) que dele necessita nos deslocamentos cotidianos. Enquanto o estudo de viabilidade do TAV prevê a realização de 35 milhões de passageiros por ano, o metrô de São Paulo transporta 3,4 milhões de passageiros por dia, o que equivale a 1,24 bilhão de passageiros por ano. O impacto da ampliação da rede de metrô e sua integração com outros transportes públicos sobre a qualidade de vida e a produtividade dos grandes centros urbanos possivelmente seria muito superior ao impacto do TAV.

Não é preciso ser especialista em infraestrutura para saber que outras áreas também estão muito atrasadas no Brasil: estradas necessitam de recuperação e duplicação; há grande concentração de habitações em áreas de risco que precisam ser removidas; os aeroportos são acanhados e estão congestionados; os portos são ineficientes e insuficientes; há déficit na geração e distribuição de energia elétrica, há inúmeros projetos de ferrovias de carga por desenvolver e as já existentes necessitam de investimentos para aumentar sua produtividade.

O PROJETO CONFLITA COM A POLÍTICA MACROECONÔMICA

Mas o problema do TAV não está apenas no fato de não ser um investimento prioritário. Outro problema é que o projeto conflita com as diretrizes de política econômica do governo. Sabe-se que um dos principais problemas macroeconômicos do País é a valorização do real frente ao dólar, que encarece as exportações brasileiras e reduz a competitividade dos produtos nacionais no exterior. Para enfrentar essa dificuldade, nada melhor que investir na redução dos custos incorridos pelos exportadores (o famoso “Custo Brasil”). Na área de infraestrutura, a melhor maneira de fazê-lo parece ser por meio de investimentos no transporte ferroviário de carga e na modernização dos portos. Investir em transporte ferroviário de passageiros em nada ajuda nesse processo.

Outra forma de enfrentar a desvalorização do dólar é por meio de um ajuste fiscal, que reduza a despesa pública como proporção do PIB. Expandir a despesa pública com a construção do TAV não apenas vai contra essa necessidade, como também torna ainda mais restrita a disponibilidade de recursos para outros investimentos de maior prioridade.

O TESOURO ASSUME RISCO FINANCEIRO EXCESSIVO

Outro problema grave está no mecanismo financeiro criado para financiar o investimento. O risco é suportado inteiramente pelo Tesouro Nacional. Isso ocorre porque o BNDES concederá um investimento de R$ 20 bilhões ao consórcio escolhido para fazer a obra. O Tesouro será o garantidor do empréstimo: se o consórcio não pagar, o Tesouro paga ao BNDES. Para tanto, o Tesouro receberá contragarantias da parte do consórcio. Se tiver que honrar o empréstimo, o Tesouro acionará tais contragarantias para ser ressarcido. O problema é que tais contragarantias são muito frágeis. Ficou estabelecido que elas serão representadas pelas ações do consórcio e pela sua receita operacional. Ora, se o TAV enfrentar dificuldades financeiras, as ações vão valer pouco (ações de empresas com problemas se desvalorizam) e a receita operacional será baixa. Logo, as contragarantias não serão suficientes para ressarcir o Tesouro.

E mesmo que o Tesouro receba as ações do consórcio para se ressarcir, isso significará uma estatização do TAV. E o que o governo vai fazer: passar a operar o trem com uma empresa estatal, engordando a administração pública com uma atividade não-típica de governo, e com incentivos à ineficiência? A outra opção seria leiloar novamente a concessão, mas um novo concessionário fará grandes exigências financeiras para assumir o negócio, tendo em vista que as perspectivas de ganho já se mostraram restritas, a ponto de o primeiro concessionário não ter conseguido pagar a dívida do empreendimento.

Frente à ameaça de ter que estatizar o TAV, o resultado provável é que o governo fique refém do consórcio operador do trem, concedendo-lhe mais e mais subsídios fiscais e creditícios ao longo do tempo.

O ESTUDO DE VIABILIDADE É VAGO QUANTO AOS POSSÍVEIS BENEFÍCIOS

Há que se questionar, também, quais seriam os benefícios trazidos pelo TAV. Nesse ponto, o que chama atenção é a superficialidade dos estudos técnicos[4]. Não há qualquer análise oficial que detalhe ou quantifique os benefícios a serem gerados pelo TAV. São apresentadas apenas referências genéricas a potenciais ganhos. Muitos desses alegados benefícios poderão ser, na prática, reduzidos por efeitos colaterais não levados em conta pelo estudo de viabilidade, que deveria não só considerá-los, mas, também, quantificá-los na medida do possível.

O primeiro argumento é o de que a ligação Rio – São Paulo está saturada, e que é fundamental um novo modal de transportes de passageiros além do rodoviário e do aéreo. Mas o próprio estudo de viabilidade mostra que pelo menos 60% do tráfego estimado de passageiros será no eixo São Paulo – Campinas – São José dos Campos. O trecho Rio – São Paulo ficaria com apenas 18% das viagens. Ora, nesse caso, seria muito mais interessante pensar em um sistema de trens que ligasse, inicialmente, apenas as três cidades paulistas, deixando para uma segunda etapa a extensão até o Rio de Janeiro (que, diga-se de passagem, representa o trecho da obra com maiores desafios de engenharia, devido à necessidade de lidar com o declive da Serra das Araras). Já existe, no âmbito do Governo do Estado de São Paulo, projetos de ferrovias que atenderiam bastante bem, a custo muito menor, a demanda por transporte ferroviário de passageiros entre as cidades paulistas. A ligação Rio – São Paulo poderia ser atendida por meio de ampliação de aeroportos ou construção de novos aeroportos, que serviriam não apenas essa ligação, mas todos os demais destinos nacionais e internacionais.

Alega-se que o TAV irá reduzir o tráfego de automóveis e ônibus nas estradas, minimizando congestionamentos, elevando a segurança dos viajantes e gerando impacto ambiental positivo, pela substituição do consumo de combustíveis fósseis pela energia elétrica renovável a ser usada na propulsão dos trens.

Há que se considerar, porém, que a construção do TAV irá drenar significativos recursos financeiros e impedirá a realização de investimentos no transporte ferroviário de carga em todo o País. A consequência será a expansão do número de caminhões trafegando nas estradas de todo o país (que poderiam ser substituídos por trens de carga), queimando óleo diesel, aumentando o tráfego e os riscos de acidentes.

A respeito desse efeito, é interessante citar a comparação feita por O´Toole (2008, p.12-13) entre o transporte de cargas nos EUA (que não têm TAV) e a Europa (onde há ampla rede de TAV): “a ênfase da Europa no uso de trens para o transporte de passageiros teve profundo efeito na movimentação de cargas. Nos EUA, um pouco mais de um quarto das cargas são transportadas por estradas e mais de um terço por trens. Na Europa quase ¾ seguem pela estrada (…). A baixa capacidade de transporte de carga das ferrovias da Europa e do Japão indicam que um país ou região pode usar seu sistema ferroviário para passageiros ou carga, mas não para os dois.  Gastar US$ 100 bilhões por ano em transporte ferroviário de passageiros pode tirar uma pequena porcentagem de carros das estradas, mas uma possível consequência é um grande aumento no número de caminhões nas estradas” – tradução livre.

O’Toole (2008, p. 6 e 8) também contesta idéia de que o TAV é capaz de promover significativo desafogamento de rodovias. Afirma que, no caso do projeto em estudo na Flórida – EUA, “os planejadores estimaram que a linha de trem removeria apenas 2% dos carros de um segmento não-saturado da rodovia I-4, e parcelas ainda menores de outros segmentos(…)[Na Califórnia] o trem de alta velocidade tiraria, em média, 3,8% dos carros das rodovias paralelas às linhas férreas” – tradução livre.

O benefício ambiental decorrente da substituição da queima de combustíveis fósseis por energia elétrica renovável também pode vir a ser eliminado pelo impacto ambiental causado pela construção do TAV: uma grande quantidade de carbono será liberada durante o longo processo de construção, lembrando que o projeto brasileiro atravessará ampla área de mata atlântica e nascentes. O estudo de viabilidade deveria mostrar esses dados e fazer as devidas comparações. Mas simplesmente silencia a respeito.

Outro argumento apresentado pelos defensores do trem bala consiste no fato de que o investimento no TAV reduziria os investimentos necessários na reforma e ampliação de aeroportos. Tal idéia só se aplica aos aeroportos de Santos Dumont e Congonhas, que atualmente operam a ponte aérea, e aos do Galeão e de Guarulhos, que estão na rota do TAV. O outro aeroporto inserido no trajeto – Viracopos, Campinas – teria seu tráfego ampliado, ao se tornar uma opção atraente de acesso à cidade de São Paulo, exigindo mais investimentos. Além disso, a realização de grandes eventos esportivos nos próximos anos e o atraso histórico na capacidade e eficiência dos aeroportos brasileiros exigirão grandes investimentos em aeroportos, independentemente de se construir ou não o TAV.

Há, também, o argumento de que o TAV utilizaria faixa de terreno mais estreita que as rodovias, o que propiciaria economia em termos de uso do solo. Tal argumento parece ser válido apenas para os trechos não urbanos, pois as rodovias acabam na entrada da cidade e, a partir dali, utilizam-se as pistas já existentes. No caso do trem será preciso desapropriar solo urbano (em geral mais caro que o não urbano) para uso exclusivo da linha férrea, que entra na cidade para chegar até a estação. Há que se considerar, ainda, os custos gerados pelo seccionamento das cidades pela linha férrea. No caso do TAV, que não admite o cruzamento da linha por carros ou pedestres, e que fica isolado por altas grades e muretas, será preciso criar túneis, pontes ou trechos subterrâneos de modo a não bloquear a livre circulação da população no interior das cidades por onde passar.

E o que dizer do argumento de desenvolvimento regional? De fato o TAV tende a gerar prosperidade para as cidades que, incluídas em seu trajeto, são contempladas com estações. Ahlfeldt e Feddersen (2010) mostram evidências estatísticas de progresso econômico em cidades do interior da Alemanha que se tornaram mais acessíveis aos grandes centros de Colônia e Frankfurt. Mas esse benefício tem como contrapartida os custos impostos às cidades onde o trem passa, mas não pára: essas cidades sofrem os efeitos negativos (poluição sonora e visual, seccionamento do seu território, demolição de equipamentos públicos preexistentes, etc.), sem ter o benefício de serem servidas pelo trem. Ademais, o TAV irá circular sobre a região mais desenvolvida do País. Do ponto de vista de impacto regional, e lembrando que haverá gastos do governo federal para viabilizá-lo, o TAV representa, assim, uma transferência de renda das regiões mais pobres do País para o eixo Rio – São Paulo – Campinas.

Há, também, que se comparar os benefícios das cidades contempladas com estações aos custos pagos pelos contribuintes de todo o país, muitos dos quais jamais utilizarão o trem nem tampouco receberão benefícios indiretos gerados por esse equipamento.

A assertiva de que a construção do TAV permitirá a absorção de tecnologia pelo país suscita a seguinte dúvida: tal tecnologia tem aplicação em outras áreas da indústria ou se limita à construção de trens velozes? Se não tiver externalidades para outro segmento será inútil absorvê-la, pois não parece haver outros trechos com possível viabilidade para construção de TAV no país.

Alega-se que os trens de alta velocidade de outros países geram redução do tempo total de viagem em relação ao avião, pois não exigem gasto de tempo com check in, além de terem estações mais próximas aos centros das cidades que os aeroportos, que costumam se situar fora da área urbana. No caso brasileiro esse último argumento não se aplica, pois os aeroportos Santos Dumont e Congonhas, que servem a ponte aérea entre Rio e São Paulo, têm localização mais privilegiada que aquelas planejadas para as estações do TAV, fato que é reconhecido pelo estudo de viabilidade. Além disso, inovações tecnológicas, como o check-in prévio, via web, e o check-in eletrônico disponível no próprio aeroporto reduzem esse diferencial de tempo sem a necessidade de grandes investimentos.

Em suma, se o Governo pretende lançar dinheiro público em um projeto arriscado, que pode custar entre R$ 14 e R$ 36 bilhões ao contribuinte, é preciso muito mais do que simplesmente apresentar uma lista de possíveis benefícios. É essencial que se façam estudos aprofundados e detalhados desses alegados benefícios, para verificar se, de fato, eles se materializarão, com que intensidade, e quais os possíveis efeitos colaterais que reduzirão o ganho líquido estimado. Além disso, esses benefícios precisam ser superiores aos gerados por outros investimentos de infraestrutura.

Referências bibliográficas

Ahlfeldt e Feddersen (2010) From periphery to the core: economic adjustments to high speed rail. Disponível em http://www.ieb.ub.edu/aplicacio/fitxers/WS10Ahlfeldt.pdf

O’Toole, Randal (2008) High-speed rail: the wrong road for America. Policy Analysis, nº 625. CATO Institute. Disponível em http://www.cato.org/pubs/pas/pa-625.pdf

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Para ler mais sobre o tema:

Mendes, Marcos (2010) Trem de alta velocidade: caso típico de problema de gestão de investimentos. Centro de Estudos da Consultoria do Senado. Texto para Discussão nº 77. Disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/NOVOS%20TEXTOS/Texto%2077%20-%20Marcos%20Mendes%20-%20TAV.pdf

Mendes, Marcos (2010) Trem de alta velocidade: novas informações para debater o projeto. Centro de Estudos da Consultoria do Senado. Texto para Discussão nº 82. Disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/NOVOS%20TEXTOS/TD%2082%20-%20Marcos%20Mendes.pdf


[1] Estas estimativas foram feitas em artigo do autor sobre o tema, disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/NOVOS%20TEXTOS/TD%2082%20-%20Marcos%20Mendes.pdf

[2] http://www3.fgv.br/ibrecps/CPS_infra/sumario.pdf

[3] Fonte: Valor Econômico, edição de 22 de março de 2011.

[4] Tais estudos estão disponíveis em www.tavbrasil.gov.br

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