transporte – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Mon, 29 Mar 2021 17:14:18 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 O “BR do Mar” ruma para o desenvolvimento da cabotagem https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3427&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-br-do-mar-ruma-para-o-desenvolvimento-da-cabotagem https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3427#comments Sun, 28 Mar 2021 14:54:41 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3427 O “BR do Mar” ruma para o desenvolvimento da cabotagem

Por Diogo Piloni e Silva*, Dino Antunes Dias Batista** e Cléber Martinez***

A navegação marítima é, desde sua origem, considerada uma aventura. Se nos primórdios era a natureza que representava os grandes desafios, hoje são as ondas do mercado que podem afundar empresas e empreendedores. Com efeito, a volatilidade dos custos e fretes marítimos internacionais é mar revolto, que deve ser considerado quando na elaboração de políticas públicas que busquem o desenvolvimento deste modo de transporte. Por outro lado, sabe-se que mar calmo nunca fez um bom marinheiro. Assim, a política deve também trazer novos incentivos, que ampliem a contestabilidade do mercado da cabotagem brasileira.

O BR do Mar é um programa que busca desenvolver a navegação marítima de cabotagem, ampliando a concorrência, mas considerando a necessidade de mitigação dos efeitos negativos da abertura para o mercado internacional. O BR do Mar será implementado com base no Projeto de Lei nº 4.199/2020 que já foi aprovado na Câmara dos Deputados e que se encontra em discussão no Senado Federal.

Existem muitas controvérsias relacionadas ao transporte marítimo. Entretanto, pairam poucas dúvidas quanto a sua relação direta com o desenvolvimento econômico da grande maioria dos países, entendimento corroborado por estudo realizado entre os países membros da OCDE¹. O caráter estratégico que é dado ao transporte aquaviário está relacionado com diversos fatores, como: menores custos de transporte; menores índices de acidentes; menores níveis de emissões de poluentes; e menor dependência de recursos públicos para seu desenvolvimento. Tais fatores correspondem a externalidades positivas proporcionadas pela navegação para toda a sociedade.

Tais externalidades já justificariam políticas públicas voltadas ao setor, como a adoção, pela maioria dos países mais desenvolvidos, de regramentos específicos para o transporte marítimo, em especial para a cabotagem. Entretanto, para uma completa e precisa avaliação é fundamental compreender que, até o momento, não se chegou a um entendimento no âmbito da OMC² para que as práticas concorrenciais deste mercado pudessem ser analisadas pela organização.

Entre os diversos e importantes desdobramentos da desregulamentação das questões concorrenciais para o transporte marítimo internacional, estariam práticas que resultam na já citada volatilidade em termos de disponibilidade de navios e valores de frete, que caracterizam o ciclo econômico específico para o transporte marítimo.

Tal ambiente traz diversos riscos para usuários, impactados diretamente pelas incertezas dos valores de frete, e para os armadores, principalmente na tomada de decisão de investir na constituição de frota, em razão do elevado montante de capital exigido e os longos prazos para amortização. Este contexto leva grandes embarcadores a constituírem frota própria ou, quando possível, firmarem contratos de longo prazo, assegurando previsibilidade de embarque e condições de frete.

Já os pequenos e médios embarcadores, que não possuem demanda suficiente para mobilizar um navio completo, são direcionados para o mercado de contêiner. Esta dinâmica demonstra a relevância deste segmento do mercado para determinadas atividades e justificam o seu histórico de crescimento.

O transporte marítimo de contêineres é tão relevante para o desenvolvimento econômico que muitos países estabelecem regras concorrenciais específicas para o setor. Denominadas imunidades concorrenciais, tais regras possibilitam que empresas do setor atuem de forma coordenada. Entre as razões apontadas para essa tratativa diferenciada estaria a redução dos valores de frete e melhora da qualidade dos serviços, conforme justificado pela Comissão Europeia³ para estender a imunidade concorrencial até 2024.

Por outro lado, a possibilidade de atuação em conjunto das empresas de transporte marítimo de contêiner no mercado internacional estaria relacionada diretamente com a tendência de concentração do mercado, distribuídos atualmente em 3 grandes grupos operacionais, e valores de frete spot que dobram ou triplicam em curto espaço de tempo. A esse respeito, o mercado nacional foi particularmente impactado pelos efeitos da pandemia, sendo que os fretes da China para o Brasil passaram de US$ 2.500/TEU no início de 2020, para quase US$ 10.000/TEU no fim do ano.

Negligenciar estas características pode trazer relevantes consequências negativas, como depreende-se da experiência australiana de flexibilização da cabotagem. No final da década de 90, o governo australiano permitiu a atuação de navios estrangeiros por meio de concessão de licenças de operação, buscando o desenvolvimento da cabotagem. Sem alcançar os objetivos almejados, as restrições para a navegação costeira foram reimplementados em 2012, em uma tentativa de restabelecer o ambiente necessário para o desenvolvimento de frota nacional. O retorno à situação pré-abertura não ocorreu até o momento.

De forma geral, os argumentos relativos à manutenção de solução logística adequada justificam a resistência da maioria dos países em flexibilizar o acesso de embarcações estrangeiras aos seus mercados de cabotagem. Tais resistências permanecem mesmo com os potenciais benefícios econômicos identificados por diversas entidades e estudos, dentre os quais mencionamos o  Rethinking Maritime Cabotage for Improved Connectivity⁴.

O referenciado estudo apresentou experiências de liberalização da navegação, dentre as quais a liberalização da cabotagem entre os países da União Europeia, com a edição do Regulamento nº 3.577/1992, e a liberalização da carga incidental para o mercado de contêineres na Nova Zelândia, que é a possibilidade de reposicionamento de contêineres vazios por navios que atuam no trade internacional. Ressalta-se que o regulamento europeu possibilitou a maior integração marítima entre os países do bloco, mas não evitou a consolidação entre as empresas do setor.

O mesmo estudo apresenta algumas considerações a respeito da cabotagem brasileira, indicando que a regulamentação nacional é comparável à grande maioria dos países avaliados, sendo responsável pela estruturação de serviços de transporte regionais que atenderiam a outros países da região. Cabe destaque sobre a iniciativa de flexibilização da cabotagem chinesa, que passou a permitir que navios de bandeira estrangeira, controlados por empresas chinesas, pudessem operar na cabotagem.

A experiência chinesa corrobora a tendência de internacionalização das frotas, entretanto permanecendo sob controle das empresas sediadas nos países desenvolvidos, conforme demonstrado por publicação da ITF-OCDE/2019⁵.

O referido estudo relata a redução de aproximadamente 50% da frota de navios registrados nos países desenvolvidos, apesar de todas as políticas de subsídios e incentivos tributários existentes. Entretanto, as empresas sediadas nos países desenvolvidos continuam controlando a maior parte da frota mundial, mesmo arvorando a bandeira de outros países.

Diante de toda a complexidade inerente ao mercado de transporte marítimo, agravado pela impossibilidade de implementação de medidas de incentivo utilizadas por outros países, o governo federal estruturou medidas que potencializarão o desenvolvimento da cabotagem, consolidadas no programa BR do Mar. Este objetivo se mostra extremamente desafiador se considerados os dados históricos de redução dos valores de frete da cabotagem, divulgados pela EPL⁶, e de crescimento das atividades publicados pela ANTAQ⁷, neste caso merecendo destaque o crescimento superior a dois dígitos na cabotagem de contêineres nos últimos 10 anos.

Como coração da proposta está um novo regramento para afretamento de embarcações estrangeiras que, se por um lado flexibiliza a navegação de cabotagem brasileira para a utilização de embarcações estrangeiras, reduzindo custos de operação e barreiras a novos competidores no mercado, por outro mantém uma estrutura de incentivos à formação de frota pelas empresas brasileiras de navegação.

Merece destaque, portanto, a possibilidade de navios estrangeiros, com menores custos operacionais, afretados por empresas brasileiras de navegação de uma subsidiaria integral no exterior, operarem na cabotagem brasileira. Esta estruturação pode parecer complexa à primeira vista, mas é uma prática de mercado, conforme apontado pelos estudos da UNCTAD e da ITF/OCDE, supracitados.

O grande diferencial desta proposta é que os navios estrangeiros operados por empresas brasileiras de navegação estariam comprometidos com o atendimento do mercado nacional, “isolados” da dinâmica de volatilidade do mercado externo, e sob regras brasileiras que não permitem as práticas concorrenciais percebidas no mercado internacional, conforme apresentado por estudo publicado pelo CADE⁸.

A operação de navios com menores custos operacionais seria permitida em determinadas operações, ou para empresas que mantenham investimento em frota própria no país, demonstrando vínculo de longo prazo. Assim, busca-se assegurar o ambiente para o investimento em frota e perenidade da disponibilidade das operações de transporte. E mais do que isso: a regularidade de custos de frete, sendo esta a maior demanda apontada pelos usuários do serviço.

Também foi contemplada medida voltada para mitigar as barreiras de entrada no setor, relacionadas aos investimentos necessários para constituição de frota, sendo permitido que empresas de navegação possam iniciar suas operações somente com embarcações afretadas e registradas no Brasil.

Outras medidas que merecem destaque são aquelas voltadas para proporcionar maior efetividade para o uso do AFRMM, assim como a instituição da figura da empresa brasileira de investimento na navegação. Esta atuará de forma semelhante ao que ocorre em outros setores da infraestrutura no Brasil, bem como no mercado de navegação em outros países, viabilizando o investimento em ativos no setor de navegação por instituições gestoras de capital.

A necessidade de simplificação das questões burocráticas é outro ponto de consenso destacado durante as discussões que precederam a estruturação do programa. Neste sentido, a possibilidade de comprovação eletrônica do recebimento de mercadoria é uma importante medida de desburocratização que integra o projeto de lei original. Além disso, a dispensa da livre prática da ANVISA para a navegação doméstica traz mais racionalidade e competitividade para a cabotagem frente a alternativa concorrente, que é o transporte rodoviário, onde não há este tipo de exigência.

A maturidade e equilíbrio das propostas contidas no BR do Mar, implementado pelo Projeto de Lei nº 4.199/2020, foi demonstrada pelo texto aprovado pela Câmara dos Deputados, que contou com diversos aprimoramentos, mas manteve a integridade da estrutura do programa que tramita agora no Senado Federal. E a expectativa é grande para que entre em vigência este novo marco para a navegação entre portos do país, parte relevante de uma revolução em curso na matriz logística brasileira, conduzida pelo Ministério de Infraestrutura.

 

¹The Impacts of Globalisation on International Maritime Transport Activity. Disponível em: https://www.oecd.org/greengrowth/greening-transport/41380820.pdf.

²Decision on Maritime Transport Services S/L/24 (WTO/1996). Disponível em: https://docs.wto.org/dol2fe/Pages/SS/directdoc.aspx?filename=q:/S/L/24.pdf.

³Antitrust: Commission prolongs the validity of block exemption for liner shipping consortia. Disponível em: https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/pt/ip_20_518.

Rethinking Maritime Cabotage for Improved Connectivity. Disponível em: <https://unctad.org/en/pages/PublicationWebflyer.aspx?publicationid=1965>. 

Maritime Subsidies Do They Provide Value for Money? Disponível em: https://www.itf-oecd.org/sites/default/files/docs/maritime-subsidies-value-for-money.pdf.

⁶Boletim de Logística 1° Semestre 2019. Disponível em: https://ontl.epl.gov.br/wp-content/uploads/2020/09/boletim-logistico-1semestre2019.pdf.

⁷Estatístico Aquaviário. Disponível em: < http://web.antaq.gov.br/anuario/.

⁸Cadernos do Cade: Mercado de transporte marítimo de contêineres. Disponível em: http://antigo.cade.gov.br/acesso-a-informacao/publicacoes-institucionais/publicacoes-dee/caderno-mercado-de-transporte-maritimo-de-conteineres-versao-final.pdf.

 

*Diogo Piloni e Silva é especialista em Engenharia e Gestão Portuária e secretário da Secretaria Nacional de Portos e Transporte Aquaviário (Ministério de Infraestrutura).

**Dino Antunes Dias Batista é mestre em Transportes e diretor do Departamento de Navegação e Hidrovias (Ministério de Infraestrutura).

***Cléber Martinez tem MBA em Administração e Finanças e coordenador no Departamento de Navegação e Hidrovias (Ministério da Infraestrutura).

 

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A regra de transição de 30 anos das linhas de ônibus interestaduais https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3394&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-regra-de-transicao-de-30-anos-das-linhas-de-onibus-interestaduais Tue, 19 Jan 2021 15:08:50 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3394 Por Liliane Galvão e Rodrigo Novaes

“Se quisermos que tudo continue como está,

é preciso que tudo mude”.

Giuseppi Tomasi de Lampedusa

O Transporte Rodoviário Interestadual e Internacional de Passageiros (TRIIP), a partir da promulgação da Lei nº 12.996, de 18 de junho de 2014, passou a ser outorgado por autorização. A Lei alterou dispositivos da Lei nº 10.233, de 5 de junho de 2001, que trata das competências da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), reguladora do setor.

A autorização como forma de outorga do TRIIP é estabelecida pelo  art. 43, inciso II, dessa Lei, e tem as seguintes características:

  1. a) independe de licitação;
  2. b) é exercida em liberdade de preços dos serviços, tarifas e fretes, e em ambiente de livre e aberta competição;
  3. c) não prevê prazo de vigência ou termo final, extinguindo-se pela sua plena eficácia, por renúncia, anulação ou cassação.

O modelo de autorizações para o TRIIP tem sido alvo de ataques tanto no Poder Judiciário – por meio de duas ações diretas de inconstitucionalidade que tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF) –, como no Poder Legislativo – por meio do Projeto de Lei (PL) n° 3.819, de 2020.

O objetivo dessas investidas parece ser a permanência da situação atual de um mercado fechado e sem concorrência – ou seja, manter os atuais incumbentes com liberdade de praticar os preços que entenderem adequados aos seus interesses sem serem ameaçados por novos entrantes.

O Poder Executivo, por meio do Decreto nº 10.157, de 4 de dezembro de 2019, buscou, justamente, equacionar essas questões, regulamentando o comando atual da Lei nº 10.233, de 2001. Espera-se com isso beneficiar a população, proporcionando um sistema de preços livres, em um ambiente competitivo e sem exclusividade de linhas, o que deve levar à queda de preços e ao aumento de oferta.

Na contramão desta iniciativa, no último dia 22 de dezembro, o Senado Federal remeteu à Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei (PL) nº 3.819, de 2020, que altera a Lei nº 10.233, de 5 de junho de 2001, para – novamente – alterar os critérios para a outorga de autorização da operação do TRIIP.

Apesar de o projeto ter sido aprovado na forma de um substitutivo, que manteve a possibilidade da operação do TRIP no regime de autorização, o texto proposto para o art. 47-B da Lei nº 10.233, de 2001, estabelece um conceito de “inviabilidade técnica, operacional e econômica” para limitar o número de autorizações e obrigar a realização de um processo seletivo público para escolha das empresas autorizatárias. Os critérios para a caracterização desta “inviabilidade” serão definidos pelo Poder Executivo; as regras do processo seletivo, pela ANTT.

Na prática, a depender das regras a serem criadas pelo Poder Executivo, poderá ser exigida a realização de processo de seleção, cujas regras da competição, como mostra a história recente do TRIIP, tendem a ser bastante restritivas. Além disso, regulamentos deixados a cargo do Poder Executivo podem ser alterados ao sabor das conveniências do momento, como se vê em todos os setores regulados.

Nesse contexto, o objetivo deste artigo é contribuir para a avaliação do modelo legal vigente para o mercado do TRIIP. Iniciaremos com a apresentação de um relato cronológico da regulamentação do TRIIP. Em seguida, argumentaremos sobre a adequação do marco regulatório vigente para a operação do TRIIP.

Relato cronológico da regulamentação do TRIIP

Ao longo da história, o transporte rodoviário de passageiros no Brasil sempre foi prestado por meio de autorizações outorgadas pela União a particulares, em caráter precário e sem licitação.

Com o advento da Constituição de 1988, que previa licitação para outorga de concessão ou permissão de serviços públicos (art. 175, parágrafo único e incisos), foi editado o Decreto nº 99.072, de 8 de março de 1990, para alterar o regulamento dos serviços públicos rodoviários de transporte coletivo de passageiros, e exigir licitação, na modalidade de concorrência, para a exploração dos “serviços públicos rodoviários de transporte coletivo de passageiros, interestaduais e internacionais, quando não prestados diretamente”.

Como as linhas existentes não haviam sido licitadas, foi estabelecido por decreto que elas somente poderiam ser exploradas até outubro de 2008 – tempo mais do que suficiente para amortizar os investimentos em ônibus, cuja depreciação se dá, em média, entre sete e dez anos. Mesmo contando com prazo tão extenso, as licitações que regularizariam as linhas do TRIIP jamais foram realizadas. Assim, as autorizações vigentes foram sucessivamente prorrogadas com a justificativa de que os serviços de transporte não poderiam sofrer descontinuidade.

Quando, finalmente, foi publicada a licitação das linhas, em 29 de agosto de 2013, o edital foi questionado por um sindicato de empresas de transportes do estado de São Paulo. A licitação foi suspensa por decisão judicial, e, posteriormente, cancelada em razão da entrada em vigor da Lei nº 12.996, de 18 de junho de 2014, que estabeleceu a autorização como modalidade de outorga do TRIIP, fosse ele regular ou especial.

Embora a nova lei preveja, em seu art. 5º, que as autorizações especiais deveriam ter sido extintas no período de um ano contado de sua publicação, também consta nela que tal prazo poderia ser prorrogado a critério do então ministro de Estado dos Transportes, mediante proposta da ANTT. Somente um ano após a alteração do marco legal do setor é que a Agência editou a Resolução nº 4.770, de 25 de junho de 2015, para disciplinar o novo regime de outorgas.

Essa norma criou um regime de transição para que a ANTT promovesse “estudos de avaliação dos mercados, com o objetivo de detalhar e estabelecer os parâmetros de avaliação dos casos enquadrados como inviabilidade operacional”. Nesse período, o número de autorizatárias por mercado (ligação entre pares de cidades) ficou limitado (i) à quantidade de autorizatárias existentes por mercado e (ii) a duas transportadoras em cada mercado novo.

Ao impor o número de vagas por mercado e conferir preferência aos transportadores nele estabelecidos, a ANTT criou, sem previsão legal, barreiras à entrada de novas transportadoras, em favorecimento às incumbentes.

Assim, pela via regulatória, a ANTT manteve o mercado em completo desacordo com as características do modelo de autorização que, conforme o art. 43, inciso II, da Lei nº 10.233, de 2001, “é exercida em liberdade de preços dos serviços, tarifas e fretes, e em ambiente de livre e aberta competição”.

Somente em 18 de junho de 2019, em decorrência do que previa o art. 4º da Lei nº 12.996, de 2014, que estabeleceu prazo de cinco anos para o controle de preços máximos e mínimos no TRIIP, o mercado passou a atuar em regime de liberdade de preços. As transportadoras, porém, continuam, em sua grande maioria, prestando os serviços em caráter precário, usufruindo do regime de autorização especial que lhes fora anteriormente concedido.

Na prática, a situação atual, então, é a de um mercado fechado, sem concorrência, em que os incumbentes, paradoxalmente, têm liberdade de preços. Não há elementos que indiquem que essa situação atenda ao interesse público de forma satisfatória, já que o estabelecimento tanto de monopólios quanto de oligopólios em que haja um líder claro de mercado produz a chamada “perda de peso morto”. Em suma, o monopolista (ou o líder do oligopólio) estabelece um preço acima do que seria possível com competição eficiente, abrindo mão da parte da demanda que poderia pagar esse preço menor, para extrair mais lucro dos consumidores dispostos a desembolsar o preço cobrado.

Com a edição do Decreto nº 10.157, de 4 de dezembro de 2019, que “institui a Política Federal de Estímulo ao Transporte Rodoviário Coletivo Interestadual e Internacional de Passageiros”, esperava-se que, finalmente, fosse possível fazer valer o regime de liberdade tarifária, em ambiente competitivo e sem exclusividade das linhas, nos termos previstos pela Lei nº 12.996, de 2014. Isso, porém, ainda não ocorreu, visto que tanto o Decreto quanto a Lei que o fundamenta são alvos de enormes embates jurídicos, que têm como objetivo claro a permanência do regime de transição que dura até os dias atuais.

E assim, o mercado de TRIIP, passados mais de trinta anos da promulgação da Constituição, ainda vive em uma situação que poderia ser descrita como o “jeitinho brasileiro”, sob o eterno pretexto da necessidade de continuidade dos serviços.

A adequação da operação do TRIIP no regime de autorizações

As autorizações trazem benefícios ao interesse público na grande maioria dos casos, pois se destinam a reduzir, de forma bastante significativa, os custos para entrada no mercado. Ao acabar com critérios de escolha discricionários, já que, sendo ato vinculado, a autorização deve ser dada a todos os que preenchem os critérios estabelecidos em Lei, amplia-se a competição no mercado, que atualmente é inexistente ou ineficaz.

Não vemos boa razão para essa proteção do mercado do TRIIP. O argumento principal é que o regime de competição pode deixar localidades desatendidas. Porém, em primeiro lugar, não há razão econômica para que as empresas incumbentes façam grandes desinvestimentos em linhas superavitárias. Mesmo que isso ocorra pontualmente – por exemplo, para atendimento a uma rota potencialmente mais lucrativa em um mercado próximo – deve-se considerar que, sendo livre a entrada de qualquer empresa, de qualquer porte, em pouco tempo outro operador reestabelecerá o serviço. Não havendo exigências excessivas de frequência mínima e de idade da frota, o investimento necessário é bastante pequeno. Considerando uma região com cidades com distância de 400 km entre elas, um único ônibus consegue distribuir passageiros de um ponto central a, no mínimo, sete outras localidades, com frequência semanal, restando ainda tempo suficiente para sua manutenção.

O transporte de longa distância, como é o caso do transporte interestadual, não tem a característica pendular que marca o transporte semiurbano, em que a disponibilidade de determinados horários é extremamente importante, já que o passageiro não compra a viagem com antecedência. Nos serviços de longa distância, os passageiros simplesmente se programarão para viajar nos dias e horários disponíveis, e o mercado pode se ajustar sem grandes dificuldades.

Portanto, não consideramos que haja prejuízo à qualidade do transporte com as autorizações.

Também não deverá haver prejuízo ao acesso ao transporte pela descontinuidade de rotas de menor demanda. A grande maioria das rotas deve ser superavitária, já que as empresas que as operam estão no mercado há décadas. As rotas que sejam deficitárias, inclusive as que estejam nessa condição após a pandemia da covid-19, podem sofrer ajustes de preços de modo a refletir seu real custo. De fato, com a redução das barreiras, o número de rotas ofertadas deve ser maior do que seria com a regulação anterior nas mesmas condições de mercado, seja porque rotas antes inviáveis passam a fazer sentido econômico, seja porque operadores que antes trabalhavam na clandestinidade podem se regularizar, formando empresas ou cooperativas autorizadas.

A linha de argumentação de redução de acessibilidade parte do pressuposto de que há linhas cronicamente deficitárias no sistema, e que essas linhas são de interesse social. Se esse for o caso, no entanto, devemos no perguntar: será que, de fato, é essencial o acesso frequente de passageiros de pequenas localidades a centros maiores em uma unidade da federação diferente daquela em que residem? Caso a resposta seja positiva, prosseguimos: quem deve pagar por esse acesso? Dificilmente há algum sentido econômico ou mesmo social em fazer com que o passageiro de ônibus da cidade vizinha pague essa conta, que é o que aconteceria em um modelo de operação em linhas superavitárias e deficitárias. Nesse caso, deveria haver a definição de uma rede de interesse social e de uma fonte de recursos pública para subsidiar essa operação.

Outra alegação bastante presente na argumentação contrária ao regime de autorizações é o “problema” do excesso de oferta em rotas superavitárias.

Parte da suposta injustiça causada por essa situação se explicaria pela utilização das receitas obtidas na operação dessas linhas para subsidiar linhas deficitárias, argumento que não deve prosperar, pelo motivo que acabamos de expor.

Outra parte é, simplesmente, a busca de compensação por uma posição de antiguidade no mercado, comportamento observado em diversos setores diante de potenciais mudanças de regras. Contudo, a história demonstra que os reguladores devem evitar encampar esse tipo de ideia, já que, cedo ou tarde, tecnologias disruptivas destroem o excedente de arrecadação proveniente de uma posição inicialmente vantajosa – como aconteceu com a entrada das linhas aéreas de baixo custo, ou com a concorrência dos aplicativos de transporte com os táxis.

Além do mais, onde é permitida a exploração de posições de mercado privilegiadas, seja por antiguidade ou por monopólio natural, o correto é que ao menos parte dos recursos arrecadados seja destinada ao poder público, para reinvestimento em outros setores, mediante o pagamento de outorga. Ainda que o modelo outorgado do TRIIP contivesse linhas deficitárias, se a soma dos lucros econômicos esperados é positiva, o pagamento ao Estado pela continuidade da operação das linhas seria devido, como mostram as concessões de aeroportos em blocos. No entanto, no caso do TRIIP, nada é repassado ao poder público em razão do usufruto do direito de explorar linhas de ônibus antigas, apenas se paga uma taxa de fiscalização à ANTT, de valor irrisório.

Ainda nesse quesito, há uma ressalva importante a fazer: o que se chama muitas vezes de “concorrência predatória” é a entrada de uma empresa mais eficiente no mercado, em relação à incumbente. Essa empresa consegue vender a preços menores porque produz a preços menores, não porque tenha uma estratégia de criação de monopólio. Certamente, é uma situação muito difícil para a incumbente, que precisa cortar custos ou ganhar escala de produção para sobreviver. Esse movimento, porém, é considerado parte das regras do jogo no sistema capitalista, já que se entende que a redução de ineficiências é, em geral, positiva para a sociedade. É verdade que a empresa mais eficiente pode aumentar seus preços após a falência da incumbente original. Porém, em um mercado contestável, há uma margem bastante pequena para esse tipo de comportamento, já que ele atrairia novos entrantes. De toda forma, socialmente, o aumento de excedente do produtor ainda é mais positivo do que a perda por ineficiência, já que pode estimular a inovação e a entrada em outros mercados, fomentando a competição.

Quanto aos questionamentos de lisura nos processos de autorização, embora seja possível que agentes corruptos retardem alguns processos e favoreçam outros, esse é um problema de polícia, que não pode ser resolvido por uma lei ou decreto. Ora, naturalmente, em uma rota que não estivesse sendo operada, não haveria nenhum mal em conceder autorização a quem quer que fosse para que se pudesse testar a viabilidade de uma entrada. O que está em jogo realmente é se o “sistema que funciona hoje” – com uma ou duas empresas, muitas vezes pertencentes ao mesmo grupo atuando em cada mercado – deve ser protegido da entrada de novos autorizados, sob o pretexto de que pode haver algum tipo de falha de governo nessa transição. Acreditamos que os potenciais benefícios da opção por uma menor regulação sejam muito superiores a esses prejuízos, que, de todo modo, sempre podem ser objeto de correção de rumo por parte da Agência Reguladora.

Também é improcedente argumentar que as autorizações prejudicarão o usuário, já que não há qualquer diferença nas regras de gratuidade, de segurança, e de regularidade e constituição de pessoa jurídica entre uma empresa autorizada e outra – e as atuais operadoras devem, de toda forma, se enquadrar no novo regime, já que a situação delas é, como vimos, bastante problemática.

A autorização não passa pelo processo de “concorrência pelo mercado” (licitação) justamente porque ela está livremente disponível para qualquer empresa que atenda aos critérios preestabelecidos e publicados de participação no mercado, e que tenha interesse comercial na operação. Ou seja, a concorrência se dá diretamente no mercado, onde as empresas têm capacidade de demonstrar diretamente suas boas práticas e sua eficiência. Ao contrário, a concorrência pelo mercado privilegia empresas de maior porte, bem estabelecidas e, muitas vezes, com conexões políticas na Agência Reguladora.

Quanto a possíveis alegações de que o modelo de autorização facilitaria conluios ou a concorrência predatória, esses são crimes contra a ordem econômica, tipificados pela Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990 (art 4º, I e II).

Não se deve, em nossa opinião, questionar o novo modelo pelo potencial de produzir atos criminosos, já que existe o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência para lidar justamente com esses casos. E, ainda que fôssemos por esse caminho, é muito mais fácil fazer acordos para divisão de licitação entre poucas empresas do que uma ação coordenada com todas as empresas do mercado para evitar entradas em um ambiente livre.

Neste momento em que a ANTT busca colocar em prática novas regras, acreditamos que o melhor caminho seria observar o comportamento do mercado e promover as correções necessárias – seja em nível infralegal ou legal – com base nas falhas que surgirem. Alterar mais uma vez o marco regulatório quando se está prestes a resolver o problema do mercado terminará por estender a situação transitória, o que contribuirá para perpetuar o privilégio das empresas incumbentes, que exploram os serviços sem nem mesmo oferecer qualquer contrapartida à União.

Conclusão

O setor de transporte rodoviário internacional e interestadual de passageiros vem operando por mais de vinte e cinco anos sem licitação, por meio de autorizações precárias.

A configuração atual do mercado é péssima para o interesse público e extremamente benéfica para os operadores incumbentes, que se encontram, neste momento, no melhor de dois mundos: possuem ao mesmo tempo a liberdade de preços de um sistema competitivo e a proteção de mercado de um sistema concedido.

O que nos parece o mais adequado à realidade tanto do mercado quanto da capacidade regulatória da ANTT é a efetivação, na prática, do modelo de autorizações proposto desde 2014, pois nada indica que o resultado de um eventual esforço de realização de alguma forma de processo seletivo para entrada no mercado será diferente do ocorrido na última tentativa de licitação das linhas, em que foi travada uma guerra na Justiça para procrastinar o andamento da licitação. Mantido o comportamento histórico dos agentes do setor, a situação atual de privilégio dos operadores incumbentes prosseguirá por mais alguns anos, quiçá décadas.

Embora tenha havido tentativas de regularizar a situação das empresas que se encontram no mercado, ao que tudo indica, muitas dessas próprias empresas se dispõem a lutar para que a situação atual permaneça, adotando o caminho ilustrado na obra O Leopardo, de Giuseppi Tomasi de Lampedusa: “se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”.

Liliane Galvão e Rodrigo Novaes são consultores do Senado Federal.

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Transporte público pode ser transporte privado? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3186&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=transporte-publico-pode-ser-transporte-privado Thu, 28 Jun 2018 20:48:01 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3186 São comuns os entendimentos de que o mercado privado é ineficiente no provimento de bens públicos e que o Estado tem o dever de prover transporte público não somente a fim de maximizar suas as externalidades positivas na economia, mas também garantir a maior inclusão social dos segmentos que não possuem meios próprios de locomoção1. Embora verdadeiras as premissas, elas não conduzem à conclusão de que apenas o Estado deve prover o transporte público, muito pelo contrário.

Inicialmente é preciso reconhecer que transporte público não é necessariamente um bem público. Bem público é aquele que tem de ser fornecido na mesma quantidade para todos os consumidores envolvidos. Uma vez ofertado um bem público, não é possível restringir o consumo, nem o consumir em diferentes quantidades. Exemplos clássicos de bens públicos são o meio ambiente e a defesa nacional. Não é possível a um determinado cidadão obter mais ou menos defesa nacional. Independentemente de sua propensão a pagar mais ou menos tributos para evitar uma invasão estrangeira, todo cidadão recebe a mesma quantidade de defesa nacional. Da mesma forma, o ar puro, o mar limpo são bens que não podem ser consumidos de forma individualizada, independentemente da utilidade que os consumidores precificam esses bens2,3.

Algumas infraestruturas de transportes como calçadas, ruas, estradas e rodovias podem ter comportamento de bens públicos. Entretanto, há exceções. Quando a demanda é muito maior que a oferta ou quando os sistemas são fechados desaparece o comportamento de bens públicos em sistemas de transportes. Estradas congestionadas e sistemas metroferroviários, em geral, não têm comportamento de bens públicos. Essas infraestruturas são aptas a serem providas pelo mercado privado, pois têm efeito carona negligenciável. Aliás, esse é um fenômeno econômico antigo que vem se tornando cada vez mais contemporâneo nos países desenvolvidos.

A Inglaterra foi a nação precursora dos investimentos privados na provisão de infraestrutura de transportes terrestres. Em 1695, o mercado obteve segurança jurídica para investir na construção e manutenção de estradas pavimentadas, por meio de Acts of Parliament, que autorizavam a cobrança privada de tarifas sobre o tráfego ao longo de certa extensão das estradas. No século XVIII, os Turnpike Acts, do Parlamento inglês, revolucionaram a provisão de infraestrutura rodoviária. Naquele século, cresceu a malha e reduziram-se, substancialmente, os tempos de viagem, pois o interesse econômico era predominante na definição dos traçados das novas estradas pavimentadas4.

A partir dos anos 1820, com o desenvolvimento da ferrovia e da locomotiva a vapor, diversas firmas privadas prosperaram na provisão de infraestruturas ferroviárias de transportes, tanto no transporte de cargas – que até hoje vigora nos Estados Unidos da América –, quanto no transporte de passageiros. Em 1933, seis firmas privadas distintas operavam em Londres no que hoje é conhecido como Underground ou Tube.

Naquela época – e ainda hoje – o transporte ferroviário privado se viabilizava em função de dois motivos: a alternativa mais econômica para o usuário e a alternativa mais rentável para o investidor.

O primeiro motivo vem do fato de o usuário em geral pagar o preço mais barato pelo transporte. Em São Paulo, por exemplo, o transporte de café por ferrovias privadas poderia ser seis vezes mais barato que o transporte convencional por estradas carroçáveis no fim do século XIX5. Nos EUA, a ausência de barreiras a entradas e vantajosidade da ferrovia em relação as alternativas fomentaram a construção de uma rede de mais de 400 mil km de trilhos. A rede ferroviária américa reduziu-se ao longo dos últimos cem anos, paulatinamente, à medida que o preço do frete ferroviário foi se tornando mais caro que sua alternativa: o aquaviário a partir de 1914, com a abertura do canal do Panamá; o rodoviário a partir dos anos 1930, com a construção de rodovias pavimentadas pelo poder público; e o aéreo a partir dos anos 1950, com a entrada da aviação civil comercial. Mesmo assim, ainda hoje, as firmas ferroviárias privadas que exploram mais de 200 mil km de trilhos sobrevivem sem subsídios no competitivo mercado de transporte americano porque têm o preço mais barato na longa distância no interior do país.

O segundo motivo tem relação com a primeira lição de Manheim em seu clássico Fundamentals of Transportation Systems Analysis (1979). “O sistema de transporte de uma região interage com o sistema socioeconômico alterando a demanda de origens, destinos, rotas, volumes de bens e de pessoas transportadas no sistema”6. Sempre que a firma de transporte pode se aproveitar dos ganhos econômicos dessa interação acumulando receitas não apenas de tarifas de transportes, mas de atividades socioeconômicas afetadas pelo transporte que provê, então são criados fortes incentivos para que o sistema de transporte se expanda naturalmente. Este foi exatamente o caso das ferrovias americanas e inglesas que promoveram os primeiros metrôs em Nova Iorque e em Londres. As firmas agiram nesses territórios como firmas de desenvolvimento urbanístico, comprando terras a preços mais baixos na periferia, provendo infraestruturas de transportes a partir do centro, e depois revendendo e alugando imóveis a preços competitivos, suficientes para gerar lucros, e, ainda assim, a preços menores que os praticados nos centros da cidade. Um negócio em que todos ganham.

O mesmo expediente ainda hoje é praticado na Ásia. No Japão, somente no entorno de Tóquio cerca de 50 firmas privadas construíram e operam trens de passageiros, além de, também, hotéis, residenciais, escritórios e shopping centers. Na Ásia, as empresas metroferroviárias arrecadam aproximadamente entre 30% e 60% de seu faturamento das receitas advindas das atividades socioeconômicas afetadas pelo transporte que oferecem7.

Aliás, essa prática foi recentemente retomada nos EUA, especificamente na Flórida, onde um grupo privado de exploração imobiliária8 construiu e está operando desde maio deste ano um trem de média velocidade, entre Miami, Fort Lauderdale e West Palm Beach, ao custo de U$ 20 (vinte dólares americanos) por pessoa, por uma viagem de cerca de 112 km em um tempo de 1h e 15min. Novamente, o negócio se viabiliza para o usuário pelo custo de oportunidade, mais conveniente que as alternativas, e, para o investidor, pelos ganhos com receitas assessórias vinculadas ao negócio de transportes, como os imóveis de escritório, lojas e residenciais sobre a estação central em Miami e no entorno nas demais estações em Fort Lauderdale e West Palm Beach.

O caso da Brightline9 é um exemplo concreto e atual de que o transporte público pode ser integralmente idealizado, financiado, construído e operado pelo mercado privado, sem a necessidade de subsídios, burocracia, ou despesas do contribuinte. Ao custo de U$ 3,6 bi esse projeto não foi planejado em Washington-DC, nem licitado pela agência reguladora, nem teve o preço das tarifas fixado pelo poder público. É integralmente privado10.

Se as barreiras jurídicas a entradas e saídas no mercado de transportes são baixas, firmas privadas terão interesse em investir por diferentes abordagens, desde aquelas com baixa criação de infraestruturas, como, por exemplo, o Uber, 99, Cabify, até aquelas com intensiva criação de infraestruturas e custos afundados, como Brightline, Keio11, MTR12.

Todas essas firmas atuam onde a demanda, a rentabilidade e os riscos são compatíveis com seus modelos de negócio. A diferença entre elas está nos efeitos socioeconômicos que provocam nas cidades. Enquanto as primeiras contribuem para a diminuição da demanda pelo transporte coletivo e de forma indireta fomentam o espraiamento do tecido urbano, as últimas contribuem para o aumento da demanda pelo transporte coletivo e de forma direta fomentam a densificação do tecido urbano, pois, são remuneradas não apenas pelo preço da viagem, mas pelas receitas assessórias do maior fluxo de passageiros que transitam a pé pelo entorno das estações, frequentando suas lojas, escritórios e residenciais.

Com a introdução das firmas metroferroviárias privadas no mercado, o Estado ganha de três maneiras: arrecada mais tributos, deixa de gastar com a provisão direta dos serviços, e, além disso, também economiza na provisão otimizada de bens públicos, como vias, escolas, delegacias, prontos-socorros, etc que podem ser localizados em posições mais eficientes do tecido urbano.

Toda essa economia pública poderá ser aplicada em transporte de cunho social, aquele em que o mercado não tem interesse de prover por ser antieconômico, mas que o Estado tem dever de garantir aos mais pobres. Novamente, todos ganham.

A discussão sobre o modelo de ferrovias privadas autorizadas é necessária não apenas no transporte de passageiros, mas também no mercado de cargas, em complementação ao atual modelo brasileiro de concessões. Nos Estados Unidos o modelo de ferrovias autorizadas tem sido bastante exitoso. Lá, por exemplo, existem 546 ferrovias locais (short lines) administrando uma rede de 52.800 km, i.e., com extensão média de 96,7 km por ferrovia.13 Somente essas ferrovias locais têm uma extensão superior a toda malha ferroviária brasileira de 29.075 km de ferrovias em concessão.

Essa discussão é crucial para o futuro do desenvolvimento econômico e social do Brasil, não apenas porque a realidade fiscal do Estado não permitirá a concretização dos investimentos públicos necessários em transportes, mas porque em países desenvolvidos não se discute mais se a iniciativa privada pode ou não pode prover infraestruturas de transportes, o que se discute lá é qual será a tecnologia que a iniciativa privada irá construir e operar, se a tradicional ferrovia ou a disruptiva tecnologia hyperloop.

Hyperloop é uma modalidade conceitual de transporte em que pessoas ou cargas são transportadas em um tubo de baixa pressão impulsionadas por um trilho eletromagnético. Devido à redução do atrito com o ar rarefeito dentro do tubo o veículo poderia, em teoria, alcançar velocidades de cruzeiro superiores a 1.000km/h, tornando-se mais competitivo que o transporte aéreo. Atualmente diversas firmas privadas competem internacionalmente no desenvolvimento dessa nova tecnologia já tendo sido autorizadas a prospectar soluções em Chicago14, Pittsburg15, Dubai16, entre outras.

Firmas privadas sempre realizaram transporte aberto ao público. Entretanto, no Brasil, o transporte mormente o ferroviário é de forma equivocada compreendido pela legislação ordinária como um serviço público, outorgado apenas pelo Estado, após morosos processos de licitação, que às vezes sequer ocorrem, às vezes resultam desertos, como foi o já esquecido trem-bala entre o Rio de Janeiro e Campinas.

As evidências da história, no entanto, ensinam que não existe razão econômica suficiente a recomendar que todos os ovos do transporte sejam colocados exclusivamente na cesta do Estado, muito pelo contrário. Quanto mais aberto o País e as cidades estiverem para o livre interesse do mercado em construir por sua conta e risco infraestruturas de transportes, melhor para a sociedade, para os contribuintes, e, principalmente, para os mais pobres.

____________

1 Justificação PEC nº 74, de 2013 (Emenda Constitucional nº90, de 2015)

2 VARIAN, H. (1947) Microeconomia: conceitos básicos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006 – 6ª reimpressão.

3 FELIX, M. K. R (2018) Exploração de infraestrutura ferroviária: lições de extremos para o Brasil.

4 BLANNING, T. C. (2007) The pursuit of glory: Europe, 1648-1815. Penguin.

5 SILVA, C. P. (1904). Política e Legislação de Estradas de Ferro. Volume I. São Paulo. Typ. Laemmert & Comp.

6 Tradução livre.

7 SUZUKI, H., MURAKAMI, J., HONG, Y. H., & TAMAYOSE, B. (2015) Financing transit–oriented development with land values: Adapting land value capture in developing countries. World Bank Publications

8 Florida East Coast Industries. http://www.feci.com/companies.html

9 https://gobrightline.com/

10 KENTON, M. M., & GIFFORD, J. (2015). Comparing Financing Models for US Intercity Passenger Rail Development. http://malcolmkenton.info/wp–content/uploads/2017/08/Kenton_PUBP–714_TermPaper.pdf

11 https://www.keio.co.jp/english/

12 http://www.mtr.com.hk/en/customer/tourist/index.php

13 Federal Railroad Administration (2014) Summary of Class II and Class III Railroad Capital Needs and Funding Sources.

14 https://www.bloomberg.com/news/articles/2018-06-14/how-musk-s-hyperloop-became-just-a-loop-in-chicago-quicktake

15 https://www.daytondailynews.com/news/hyperloop-ohio-two-firms-study-feasibility/BlZkziMTFoZsZ4cySOxxWJ/

16 https://www.economist.com/special-report/2018/06/23/how-dubai-became-a-model-for-free-trade-openness-and-ambition

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Quem ganha com a proibição dos aplicativos de transporte? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3050&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=quem-ganha-com-a-proibicao-dos-aplicativos-de-transporte https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3050#comments Fri, 29 Sep 2017 13:57:38 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3050 Economistas que defendem o mercado costumam argumentar que o mesmo é capaz de maximizar o bem-estar quando este é dito competitivo. Todavia, para que se atinja tal objetivo é necessário que o mercado possua algumas características que nem sempre são encontradas na realidade. A primeira característica é que devem existir um número grande de consumidores e produtores tal que estes não sejam capazes de influenciar sozinhos o preço do produto. A segunda é que o produto deva ser homogêneo de forma que seja impossível distinguir o produto de um produtor ou outro. E por último, mas, não menos importante, deve haver livre entrada de consumidores e produtores. Poucos mercados conseguem satisfazer estas três condições, no entanto, a tecnologia e suas plataformas com dois lados estão nos aproximando do que chamamos de um verdadeiro mercado competitivo. Este é o caso dos aplicativos de transporte por veículos.

Durante muito tempo para ter acesso a um serviço de transporte seguro foi necessário a intervenção estatal selecionando veículos e motoristas aptos a prestar o serviço de transporte que convencionamos chamar de táxi. A chancela estatal era a garantia de que o serviço era prestado com segurança e por um preço capaz de garantir a sustentabilidade econômica do serviço, ou seja, capaz de atender a todas exigências impostas pela regulação do serviço e ainda capaz de remunerar o motorista de forma satisfatória. Entretanto, na prática o que se observou é que este modelo apresenta vários problemas. Em primeiro lugar, a remuneração satisfatória foi garantida através de restrições à entrada de novos veículos. Isto fez com que surgisse um mercado de licenças e os “empresários ” do setor, isto porque estas licenças passaram a valer fortunas de forma que seus proprietários não mais precisassem trabalhar no transporte de passageiros. Os ganhos com o aluguel da licença eram o suficiente para garantir um negócio rentável. Em segundo lugar, como as licenças e a determinação de preços são um monopólio estatal que determina a lucratividade do setor e a existência dos tais empresários, se abriu a possibilidade de haver ganhos por parte do próprio regulador que passaram a ser cooptados. O resultado deste jogo de interesses é de conhecimento de todos: um serviço caro e insatisfatório para consumidores.

Até bem pouco tempo atrás pouco podia ser feito para mudar este cenário, uma vez que, a alternativa era um serviço desregulado cujos resultados são tão ou mais insatisfatórios do que o modelo regulado. Eis que surgiram os aplicativos de transporte como uma alternativa aos até então únicos modelos possíveis. Se engana quem acredita que os aplicativos sejam substitutos ao serviço de táxi. Na verdade, estes são os substitutos da regulação estatal e por esta razão não deveriam ser regulados, pois a sua regulação implica na eliminação das razões para a sua existência. A regulação proposta pelos aplicativos tem pelo menos duas vantagens evidentes com relação ao modelo de regulação estatal vigente.

A primeira vantagem é seu critério para entrada, muitas vezes criticado. Embora se diga que qualquer um possa ser um motorista e que isto pode gerar risco para passageiros, este argumento ignora o fato de que a entrada é o menos importante, pois na verdade o que importa é quem fica. E neste ponto os aplicativos mostram ser muito superiores a regulação estatal, uma vez que, o julgamento de quem irá permanecer oferecendo o serviço pelo aplicativo é feita pelos próprios consumidores, que atribuem notas a cada serviço prestado. Motoristas com notas persistentemente ruins são excluídos. Isto cria incentivos para que o serviço seja prestado com o maior esmero por parte dos motoristas. No modelo estatal, esta decisão é tomada por um burocrata que muito provavelmente nem utiliza o serviço e cuja ação depende de denúncias feitas por consumidores. Denúncias estas que não são feitas sem custos. É necessário saber a quem encaminhar uma reclamação. Não é necessário ir muito adiante neste argumento para mostra que o modelo estatal é completamente ineficiente este ponto. Basta imaginar como seria a situação de um estrangeiro cujo motorista de táxi resolveu estender a sua corrida por mais alguns quilômetros. Desta forma, motoristas amparados em uma quase inabalável estabilidade, não tem qualquer incentivo a prestar um bom serviço.

A segunda vantagem se dá na forma como os preços dos serviços são estabelecidos. No modelo estatal, os preços são estabelecidos de forma a acomodar os interesses dos grupos organizados (donos de licenças e reguladores) em detrimento aos não organizados (consumidores). Por sua vez, os aplicativos são capazes de estabelecer preços dinâmicos capazes de manter equilibrados a oferta e a demanda pelo serviço. Os preços devem ser satisfatórios tanto para motoristas quanto para consumidores. Eis aqui um ponto que merece um comentário. Motoristas de aplicativos costumam reclamar dos baixos valores recebidos por corridas, todavia estes ignoram os efeitos que um aumento de preços tem na entrada de novos motoristas. Preços mais altos implicam em mais motoristas dispostos a ofertar o serviço que implicam em menos corridas por motorista o que pode implicar em rendimentos totais menores para os motoristas. Ganhos maiores somente estariam garantidos com um número fixo de motoristas.

Estas duas características, livre entrada e saída de motoristas e consumidores e preços dinâmicos, somadas a um serviço homogêneo  (em que o veículo e o motoristas prestam um serviço com poucas diferenças observáveis) e a concorrência entre os próprios aplicativos  geram um mercado próximo ao mercado competitivo teórico proposto pelos economistas em que os aplicativos substituem a famosa mão invisível proposta por Adam Smith (mediante um custo, é claro), enquanto o modelo atual se aproxima a um monopólio regulado. Nesse sentido, o Projeto de Lei 28/2017 que deve ser votado nesta semana representa um retrocesso. O projeto estabelece a responsabilidade exclusiva os municípios de regulamentar e fiscalizar o serviço de transporte de passageiros e estabelece diretrizes para a habilitação de veículos e motoristas. De forma que retira o poder de fiscalização dos consumidores e retira a capacidade dos aplicativos selecionar motoristas de acordo com seus critérios. Ou seja, o projeto inviabiliza os aplicativos e estabelece diretrizes que restringem ainda mais a entrada de novos veículos e motoristas.

Em princípio poderia se imaginar que tal Lei protegerá os consumidores e garantirá os ganhos dos motoristas de táxi.  No entanto, isto não é verdade. Isto porque as evidencias empíricas disponíveis mostram que atualmente estes trabalham com consumidores e fatias de mercados distintas. Os táxis fornecem serviços para consumidores com maior renda e tem sua participação no mercado garantida pelos pontos de táxi, tais como, saídas de aeroportos, rodoviárias, etc… Enquanto os aplicativos trabalham com consumidores de menor renda, que substituem os outros tipos de transporte público, tais como trens e ônibus.  Portanto, ambos podem coexistir sem que haja prejuízo mutuo. Quem ganha com isto é o consumidor, que possui um poder de escolha.

Enfim, considerando os argumentos expostos é possível concluir que os aplicativos de transporte não podem ser regulados porque qualquer tentativa de cercear a liberdade dos mesmos em escolher seus motoristas e seus preços nos afasta do mercado competitivo e nos aproxima do monopólio que sempre existiu no setor, o que implica em perdas significativas de bem estar, tanto de consumidores, em especial os que possuem menor renda, quanto de potenciais motoristas, que perdem esta oportunidade de trabalho em um momento que a economia brasileira não fornece muitas opções. Todos perdem com a aprovação desta Lei, com a exceção dos fornecedores de licenças, fiscais e donos de licenças, que podem extrair rendas através de privilégios.

 

Textos recomendados:

OLIVEIRA, C. MACHADO, G. C. O impacto da entrada da Uber no mercado de trabalho de motoristas de taxi no Brasil: evidências a partir de dados longitudinais. Working paper, Junho de 2017.

 

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