SUS – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Wed, 03 Feb 2021 15:51:16 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Por que não vacinas para a Covid-19 fora do SUS? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3400&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-nao-vacinas-para-a-covid-19-fora-do-sus Wed, 03 Feb 2021 15:50:43 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3400 Por que não vacinas para a Covid-19 fora do SUS?

Por César Mattos[1]e Cleveland Prates[2]

“Um comerciante é um homem que  …não dá nem toma o imerecido”

Ayn Rand – A Virtude do Egoísmo

 

  1. Introdução

Com a aprovação de duas vacinas no Brasil, Astrazeneca e Coronavac, entrou definitivamente no debate nacional a oferta privada de vacinas contra a Covid-19, como uma complementação à aquisição realizada pelo Estado via SUS.

No entanto, já apareceram reações negativas, até mesmo de onde não se esperava. O pPresidente médico do Hospital Albert Einstein de São Paulo, por exemplo, declarou que “Não acho correto vender vacina no setor privado enquanto estiver faltando na rede pública. Estamos vivendo uma pandemia, não podemos privilegiar quem pode pagar pela vacina.”[3].

Em matéria no Nexo, Bortoni afirmou que “a possibilidade de que empresas comprem vacinas e imunizem seus funcionários é vista por alguns especialistas como imoral, pois pessoas saudáveis estariam passando na frente das que mais necessitam[4]. Na mesma matéria, é citado o professor de bioética Alcino Eduardo Bonella, da Universidade Federal de Uberlândia, que “disse ser condenável do ponto de vista ético que clínicas privadas pudessem vender os imunizantes “sem que exista no setor público a vacina disponibilizada para todo mundo”. Gonzalo Vecina Neto, ex-presidente da ANVISA também se manifestou dizendo que a “compra de vacina contra o coronavírus pelo setor privado não é proibida, mas é antiética”.[5]

Em entrevista a Renata Lo Prete no G1, o médico sanitarista Adriano Massuda, pesquisador do Centro de Estudos em Planejamento e Gestão de Saúde da FGV, por sua vez, até reconhece que a vacina fornecida pelo setor privado, com fins comerciais, pode ter um “efeito coletivo”, mas que não justificaria o “efeito negativo sobre a inequidade” do acesso às vacinas, o que se constituiria em um problema moral e ético[6].

Mesmo o economista Armínio Fraga se posicionou contrariamente à provisão privada de vacinas pois não seria “justo alguém entrar num leilão [de vacinas] para algo que é um bem público”[7]. Ademais, o economista seria contrário “devido ao temor de que ela pudesse inflacionar o mercado (já que as empresas pagariam muito mais pelas doses)”, o que acreditamos que seria a única motivação plausível, mas neste caso equivocada.

Nosso objetivo aqui é expor porque estas reservas em relação à provisão privada e comercial da vacina não fazem sentido e mostrar a razão da utilização de mecanismos de mercado se constituir em uma ação complementar fundamental na estratégia de vacinação.

Do ponto de vista econômico, há de fato sentido no Estado entrar e até mesmo assumir a liderança na distribuição de vacinas, especialmente em uma pandemia como a da Covid-19, dado que, como veremos mais à frente, estamos tratando de um caso clássico de geração de externalidades positivas. Não obstante, esta conclusão não autoria afirmar que o setor privado deva ser excluído deste processo. Ao contrário, ele poder ser fundamental na elevação da oferta no país e agilizar o fim da pandemia.

Visando dar maior clareza à linha de argumentação aqui desenvolvida, decidimos segmentar em oito tópicos os principais aspectos desta discussão, conforme pontuado ao longo da continuação do texto.

  1. Vacina como uma forma de gerar externalidades positivas

Vacinas são um exemplo clássico de um bem que gera o que se denomina em economia, de externalidade positiva. Mais precisamente, qualquer um que se vacina se torna um canal de transmissão a menos do vírus, o que beneficia todo o resto da sociedade. Em outras palavras, o ato de se vacinar afeta positivamente todos os demais indivíduos (gera externalidades positivas), mesmo àqueles que ainda não se vacinaram. Entretanto, o benefício gerado (a externalidade) não é internalizada por todo mundo, o que até poderia criar um incentivo para que algumas pessoas não se vacinem, caso tenham que pagar por isso. Portanto, há sentido que o Estado corrija esta “falha do mecanismo de mercado” induzindo a esta “internalização”, por cada pessoa, dos benefícios coletivos gerados pela imunização.

Em outras palavras, o mecanismo de mercado, de forma isolada, geraria uma quantidade de vacinação inferior ao socialmente desejável. Isso, no entanto, não quer dizer que a alternativa ao mercado seja uma imunização exclusiva pelo Estado. Ao contrário, o argumento da externalidade positiva não internalizada apenas aponta que o mecanismo de mercado sozinho não é suficiente, mas não implica que ele não seja útil e nem relevante na estratégia global de vacinação.

Tomando por base esta discussão inicial, a conclusão óbvia é que quanto mais vacinas conseguirmos trazer para o país, mais rapidamente ampliaremos o número de pessoas vacinadas e mais a coletividade se beneficiará do aumento marginal da quantidade de pessoas vacinadas.

  1. Vacina é um bem privado sob o ponto de vista econômico

Algumas pessoas têm usado o argumento de que as vacinas seriam bens públicos e que, portanto, deveriam ser fornecidas exclusivamente pelo Estado. A definição clássica e econômica de bem público pressupõe dois critérios: (i) não rivalidade no consumo; e (ii) não exclusão. A não rivalidade no consumo implica afirmar que o consumo de um bem ou serviço por uma pessoa não impede que outra pessoa também consuma o mesmo produto. Já o critério de “não exclusão” indica que qualquer um que crie um determinado produto não tem condições de impedir que terceiros também façam uso dele. Neste sentido, se alguém, por exemplo, tiver intenção de investir no desenvolvimento de um dado bem ou serviço, não terá como impedir que outros “peguem carona” no seu investimento. O grande dilema que se forma, portanto, é que todos gostariam de ter disponível este produto ou serviço, mas ninguém individualmente estaria disposto a investir na sua consecução, uma vez que teriam como impedir que outros usufruíssem dele sem pagar para assim recuperar o investimento realizado. Neste sentido, só o Estado teria condições de prover ou coordenar o provimento deste serviço. São exemplos clássicos, iluminação pública, exército e justiça.

Note-se, entretanto que as vacinas não preenchem os dois critérios aqui descritos. Em primeiro lugar porque o consumo de uma dose por uma pessoa compromete o consumo da mesma dose por outra pessoa, ou seja, a vacina é um bem que envolve “rivalidade no consumo”. No mesmo sentido a vacina não atende ao critério da “não-excludabilidade”. Se o detentor do produto desejar excluir quem não pagar no consumo, ele pode fazê-lo sem qualquer dificuldade.

Em realidade, as vacinas assumem interesse público pelo efeito sobre um bem vital, que é a saúde da população, e mais ainda pela questão da externalidade positiva acima apontada. Mas a vacina não é um “bem público”.

A questão que resta, portanto, é se a vacina privada e paga por meio do mecanismo denominado “mercado” reduziria a quantidade de vacina disponível para a rede pública dentro do mecanismo “fila” ou se ela se tornaria mais uma opção para a população brasileira, contemplando, inclusive, as preferências dos vários grupos da sociedade.

  1. Há heterogeneidade do produto pelo lado da demanda e da oferta

Nas discussões públicas apontadas até o momento passou despercebido o fato de que há diferenças consideráveis tanto pelo lado da demanda quanto pelo lado da oferta.

Visto pelo lado da demanda, as pessoas têm preferências próprias ou temores específicos com relação ao processo de vacinação. Existem grupos que simplesmente não pretendem se vacinar (os negacionistas). Há outros cuja opção por vacinar pode ser deixada de lado ao longo do tempo, principalmente sabendo-se que o benefício marginal pode se reduzir na medida em que mais gente vacinada pode reduzir o número de contaminados e tornar-se algo menos preocupante para alguns. Há ainda outros que mesmo pretendendo vacinar, têm medo de ter alguma reação adversa com um tipo ou outro da vacina disponibilizada. Em outras palavras, a preferência individual de cada pessoa pode não coincidir com as escolhas do governo, sendo que algumas delas podem estar dispostas a pagar para ter acesso a algo que o Estado não fornecerá.

A preferência do consumidor pode ainda estar associada à urgência que gostaria de tomar a vacina. Pessoas que não necessariamente estão em algum grupo de risco ou aquelas que estão, mas em um lugar na fila pública mais atrás, podem estar dispostas a tomar a vacina antes por qualquer razão que seja. Uma delas, e bastante razoável inclusive sob o ponto de vista público, é o caso de pessoas que têm que sair par trabalhar todos os dias e tem maior probabilidade de contrair a doença, seja no caminho do trabalho, seja no próprio ambiente de trabalho. Como é de conhecimento público, não há como se prever, com certeza absoluta, a reação de cada pessoa à doença e pessoas mais avessas ao risco podem estar dispostas a pagar para não ter que passar por isso.

Neste aspecto, é interessante perceber que o Estado, ao arbitrar a construção da fila, se preocupou com pessoas de mais idade (plenamente justificável pelo risco do agravamento), mas deixou de lado o risco de que profissionais que trabalhem em setores de maior risco (vide o caso dos frigoríficos em Santa Catarina[8]) possam contrair a doença e morrer, deixando desamparadas crianças cujo sustento e futuro possa se comprometer substancialmente por essa perda familiar. A questão posta é: será que esta fila arbitrada como está representa de fato as preferências individuais e principalmente da sociedade como um todo?

Podemos ainda estender este argumento para o caso no qual os demandantes sejam empresas que pretendam comprar a vacina para proteger seus funcionários. Algumas delas podem entender (por ter um conhecimento mais claro do seu negócio) que o risco de manter as pessoas no ambiente de trabalho é elevado e/ou que mantê-las em casa implique perda de produtividade elevada com impacto sobre seus resultados. Quanto mais isso for verdade, mais dispostas essas empresas estarão em pagar pela vacina e reduzir as perdas incorridas, que envolve não só a questão financeira, como também a vida de seus funcionários.

O que parece que também não está sendo visto nesta discussão é que a redução da atividade econômica associada à pandemia e à falta de vacinação implica perdas de emprego e elevação da pobreza, que traz consigo outras doenças e também perdas de vidas. Fato é que o Estado não tem condições de gerenciar e arbitrar todos os casos que podem ser encontrados em nossa sociedade, por se tratar de uma situação de “preferência revelada” (preferência dos consumidores), que só pode ser resolvida pelos mecanismos de mercado via ajuste de preços.

Este aspecto se soma ainda à heterogeneidade pelo lado da oferta. É fato que estamos tratando de um mercado oligopolístico com diferenciação de produtos. As vacinas têm, muitas vezes, processos de produção diferentes, com nível distinto de eficácia e efeitos adversos, além de preços variando de laboratório para laboratório. E tudo isso nos dias de hoje é claramente entendido pela sociedade, sendo que muitas pessoas poderiam se sentir mais confortáveis em tomar uma vacina de um laboratório e não de outro. Se lembrarmos que as compras do governo brasileiro estão concentradas em apenas duas vacinas (a Coronavac e a da Astrazeneca), a possibilidade do setor privado trazer novos tipos de vacina, longe de atrapalhar as compras governamentais, será uma forma de atender às diferentes preferências das pessoas e acelerar o processo de vacinação.

  1. A entrada do setor privado não restringirá a oferta do setor público brasileiro

Principal argumento para não permitir que o setor privado compre vacinas neste momento é o de que há uma forte restrição de oferta neste momento e que isso traria uma questão ética no sentido de quem o Estado brasileiro teria menos condições de elevar a oferta e que as pessoas que teriam dinheiro se vacinariam antes. Em nosso entender esta é uma não discussão pelos condicionantes observados neste mercado.

Em primeiro lugar, há que se destacar que os laboratórios que estão desenvolvendo as vacinas não têm uma “quota” fixa por país. O número de vacinas disponível para os setores público e privado conjuntamente no Brasil, portanto, não pode ser tomado como constante. Ou seja, não é um “jogo soma zero” entre vacinas SUS e vacinas setor privado, ainda que reconhecendo haver uma restrição global momentânea de oferta.

Astrazeneca e Pfizer recentemente anunciaram que ainda não iriam disponibilizar vacinas para o setor privado neste momento da pandemia. Mas isso não implica que elas sempre recusariam ou recusarão o “cliente” no setor privado, mas sim que já fizeram acordos com vários “clientes governos” pelo mundo afora. Ademais, só há muito pouco tempo as vacinas começaram a ser liberadas pelos respectivos órgãos reguladores, o que constitui um risco próprio de Estado, dado requerer ação de governo.

Mas será que o setor privado estaria disputando com o setor público brasileiro neste momento de escassez global de oferta de vacinas? Não há dúvida de que, considerando o mercado mundial como um todo, no presente momento, já existe uma disputa ocorrendo. Mas ela não é entre setor público e privado de cada país, mas sim entre países (incorporando a soma de setor público e privado para cada país), mas apenas em relação ao que ainda não foi contratado pelos vários governos dos vários países. Ou seja, pela oferta futura ainda não contratada.

A grande parte dos países desenvolvidos já contrataram até mais do que precisavam para imunizar toda a sua população. Para esta parcela já contratada não há mais disputa entre setor público e privado nem no plano global.

Reforce-se, o que existe hoje é uma disputa entre países. A Astrazeneca há pouco tempo, por exemplo, avisou que não iria cumprir o cronograma de liberação das vacinas e a presidente da Comissão Europeia (CE), Ursula von der Leyen, afirmou em 26/01/21[9] no Fórum de Davos, que os laboratórios devem honrar os compromissos assumidos pela Europa, que investiu “bilhões para desenvolver as primeiras vacinas contra a Covid-19”.

A Presidente da CE chegou a ponderar que “a aliança Covax, a UE, junto com 186 Estados, garantirá milhões de doses para países de baixa renda”. No entanto, deixou também claro que o mecanismo “fila” priorizará naturalmente, em primeiríssimo lugar, os cidadãos europeus. Não à toa, Von der Leyen asseverou que “por isso, vamos montar um mecanismo de transparência nas exportações de vacinas”, visando a identificar as entregas fora da UE de doses produzidas na Europa[10]. Ou seja, nada diferente de mais uma aplicação do “farinha pouca, meu pirão primeiro”.

Assim, a disputa “estado x estado” é, muito de longe, a restrição relevante para definir a restrição de oferta de vacina que o Brasil enfrentará; principalmente se compararmos a uma eventual disputa com o setor privado brasileiro ou estrangeiro, que por um acaso deseje ofertar comercialmente a vacina aqui dentro do país.

De qualquer forma, a população mundial hoje é de 7,8 bilhões de pessoas, com a população brasileira representando cerca de 2,7% deste total. Ou seja, o Brasil representa menos de 3% da demanda global pela vacina em um mercado que é mundial. Não há qualquer sentido em se afirmar que é a demanda do setor privado brasileiro que fará faltar o produto “vacina para covid-19” para o setor público brasileiro, mas sim a pressão dos outros mais de 97% de demanda que ocorre agora no mundo, e tudo isso fortemente concentrado nos clientes “governos”. Mesmo para aqueles que argumentam que preço se elevaria para o governo, a entrada do setor privado brasileiro seria muito residual para encarecer o produto; sem falar que os preços já foram previamente definidos pela, respectivas indústrias farmacêuticas.

  1. A irrazoabilidade dos argumentos apontando sobre a falta de ética

Há especialistas da área de saúde fazendo alegações de que a entrada do setor privado representaria um problema de ordem ética. O médico Adriano Massuda, por exemplo, chegou a fazer o paralelo da fila da vacina contra o covid-19 com a fila de transplantes de órgãos em que a alocação é regida exclusivamente pelo mecanismo “fila”, respeitando as compatibilidades entre doador e recebedor[11]. Em sua visão, o processo de vacinação deveria seguir o mesmo rito.

Nada mais falacioso. A oferta de órgãos não ocorre pela decisão voluntária de um empresário produzir, mas sim pelo acaso da morte de alguém, o que não pode ser comparado com o mercado mundial da vacina da covid-19, mesmo sob um ambiente de restrição de oferta.

Há pouco tempo houve revolta na mídia acerca da requisição do Supremo Tribunal Federal (STF) para a Fiocruz em priorizar os funcionários do Tribunal. Começavam ali as tentativas de “fura-fila”. A Fiocruz felizmente recusou esta priorização e o próprio STF voltou atrás, inclusive com punição do servidor requisitante, que nunca ficou claro se agiu sozinho ou com a “benção” de cima.

A resposta da Fiocruz se baseou na ordem de prioridade estabelecida pelo Ministério da Saúde. Como o objetivo principal da estratégia de vacinação é minimizar o número de pessoas que pegam a doença e, principalmente, o número de mortes, o Ministério da Saúde concentrou a sua estratégia em vacinar “profissionais de saúde da linha de frente” (que têm naturalmente maior chance de serem contaminados e de transmitirem a doença para seus pacientes), “idosos com mais de 75 anos ou institucionalizados”, com mais chances de efeitos severos e morte na população[12], indígenas e quilombolas[13].

De fato, é eticamente questionável que um grupo qualquer passe na frente dos outros quando há um mecanismo de “fila” com priorização definida por “chance de pegar” e “morbidade” adotado pelo Ministério da Saúde em um contexto momentâneo de restrição de oferta. Mas aqui, repita-se, estamos falando do mecanismo “fila”, e não do mecanismo “mercado”. Daí que cabe indagar se o mesmo argumento utilizado para negar aos servidores do STF a vacina gratuita intermediada pelo SUS poderia ser utilizado para negar a vacina a quem pode e deseja pagar pela vacina paga e intermediada pelo setor privado?

Aqui, novamente, há que se entender que não está se verificando disputa neste momento entre setor público e privado brasileiros. A importação do setor privado para comercialização não ocorrerá se não for permitido o “mecanismo mercado”, o que infelizmente poderá implicar perda de oportunidade para o setor público (que poderia até economizar neste processo) e de bem-estar para a população.  Isto porque, por exemplo, cidadãos brasileiros mais ao final da fila, mas dispostos a pagar, simplesmente vão perder a oportunidade de se vacinar mais rapidamente, sem que isso afete aqueles cidadãos brasileiros que estão no início da fila do Estado e continuarão a ser igualmente vacinados.

Ficam piores também os próprios cidadãos que foram considerados prioritários, que têm mais risco de se contaminar ou morrer, porque eles podem ser contaminados por aqueles que foram impedidos de pagar para se vacinar. Ou seja, é o Estado impedindo o setor privado de, além de vacinar mais pessoas, acelera o processo de geração de externalidades positivas da vacina, inclusive para os que considera prioritários.

Daí se tem o argumento pretensamente ético da “iniquidade” que distingue “quem pode pagar” de “quem mais precisa”. Qualquer mecanismo via mercado, fora da fila, seria “injusto”, “antiético” e “egoísta”? Ora, por que pagar por uma vacina no setor privado, que não diminuirá a oferta disponível para o setor público, apresenta tais adjetivos?

  1. Eficiência pública e privada e questões de ordem prática

Em economia, é conhecido o critério de bem-estar de Pareto: Se você pode melhorar alguém, sem piorar outrem, por que não fazê-lo? É precisamente o mesmo caso aqui. Mais do que isso, se alguém está em 5º na fila e opta por não esperar e pagar para vacinar, ele sai da fila e a vacina chega mais rápido para todos na fila do 6º em diante.

Ademais, o Estado gasta menos com a mesma política pública. É o mesmo que temos hoje entre a população que paga um plano de saúde e não entra nas filas do (ou recorre bem menos ao) SUS. Resolve o seu problema mais rápido e desafoga o sistema para os mais pobres. Será que há um problema ético também em se pagar um “plano de saúde” para si mesmo e sua família?

E isto é completamente distinto de agentes públicos aproveitarem sua posição para conseguir a vacina de graça ou mesmo por um preço menor do que seria no mercado, além de passar na frente de todos dentro da “fila”. O fato de se estar disposto a pagar o que o mercado está pedindo e de isso não reduzir a quantidade de vacina para a “fila” do setor público afasta plenamente o argumento de “injustiça”, falta de ética ou o que for.

Resta aos defensores da tese da “iniquidade” o mesmo argumento que Margaret Thatcher chamava à atenção no parlamento britânico quando um membro do partido trabalhista a questionou sobre o “aumento da desigualdade”, ainda que reconhecendo os efeitos positivos da política econômica sobre o crescimento econômico e redução da pobreza: “As pessoas em todos os níveis de renda estão melhores do que estavam em 1979”. O honorável cavalheiro está dizendo que ele preferiria que os pobres estivessem mais pobres, desde que os ricos estivessem menos ricos. Dessa forma, nunca seria gerada riqueza para melhores serviços sociais como nós temos hoje. Que política?”[14]

Mas a situação está bem pior na prática. Um conjunto de 72 empresas estavam negociando aquisição da vacina da Astrazeneca com o objetivo de conseguir 33 milhões de doses, sendo que 50% seriam doadas ao SUS e 50% ficariam com as empresas participantes, que poderiam imunizar seus empregados. Com a resistência assinalada acima que também resultou em divergências quanto ao percentual a ser doado ao SUS, várias empresas parecem estar dispostas a sair da iniciativa[15]. Ou seja, se já seria um absurdo impedir que empresas privadas comprem vacinas já autorizadas pela Anvisa para imunizar seus empregados e a quem mais desejassem, imagine-se havendo qualquer percentual de doações para o mecanismo “fila” do próprio Estado!?

Outro ponto relevante da hesitação do setor privado em fechar negócios com os laboratórios estrangeiros nas novas vacinas, pelo menos no caso brasileiro, é que, tal como ocorreu com equipamentos para tratamento da pandemia como respiradores, agulhas e seringas, havia (como ainda há) grande probabilidade de expropriação pelos governos nos três níveis da federação. Se o próprio governo federal cogitou fazer isso com as vacinas em relação ao governo paulista (com atitude bem bloqueada pelo STF), mais provável seria isso ocorrer com as empresas privadas. Ou seja, qualquer iniciativa do setor privado em ofertar vacinas tem que ser muito conversada com os governos antes, para evitar que haja este tipo de expropriação.

De outro lado, a Associação Brasileira das Clínicas de Vacina (ABCVAC) e a importadora Precisa Medicamentos fecharam cinco  milhões de doses da vacina Covaxin, desenvolvida pelo laboratório indiano Bharat Biotech contra a Covid-19, a serem destinadas às clínicas privadas no Brasil. Esta vacina, no entanto, ainda está realizando testes na fase 3 e precisa passar pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que têm demandado testes em brasileiros, o que já tem atrasado desnecessariamente a aprovação da Pfizer e Sputinik Russa[16].

  1. Considerações finais

Conforme apontamos ao longo deste texto, parece haver um equívoco consolidado na opinião pública de que a provisão de vacina pelo setor privado implicaria uma competição indesejável com o setor público. Em nossa visão, este equívoco está associado a uma intepretação equivocada, principalmente de profissionais da área saúde, de que o Estado é a única forma de prover um bem que eles consideram “público” em um ambiente de restrição de oferta.

O que procuramos demonstrar aqui foi que apesar de estarmos tratando de uma questão pública de saúde, a vacina, em si mesma, não deve ser entendida como um bem público no sentido clássico econômico. Reforçamos que ela pode e deve ser ofertada pelo Estado não só por uma questão de imunização individual, mas também e principalmente pela externalidade positiva que gera, na medida em que cada indivíduo a mais vacinado reduz o risco dos demais de contrair a doença.

Não obstante, a entrada do setor privado brasileiro, conforme apontamos ao longo do texto, longe de competir com o setor público nacional, só elevará a quantidade de vacina disponível no Brasil e acelerará o processo em curso. Isto porque a competição na realidade já vem ocorrendo entre países e não entre setor público e privado. Vale destacar ainda que muito da demanda dos países desenvolvidos já foi contratada e que estamos tratando de uma oferta futura ainda não disponibilizada e negociada.

A possibilidade de que novas vacinas de outros laboratórios sejam também trazidas para o país é um argumento a mais a favor da atuação do setor privado, na medida em que a diversificação (além da ampliação) da oferta poderá contemplar demandas específicas.

Desta forma, consideramos que neste momento de escassez, em que urge uma rápida resposta de incremento de oferta interna, os mecanismos “fila” e de “mercado” devem caminhar juntos. Renegar o mecanismo de mercado terá seu custo medido em mais vidas desnecessariamente perdidas.

 

[1] Doutor e em Economia e consultor da Câmara dos Deputados.

[2] Economista especializado em regulação, defesa da concorrência e áreas correlatas. Atualmente é sócio-diretor da Microanalysis Consultoria Econômica, coordenador do curso de regulação da Fipe e professor de economia da FGV-Law/SP.

[3]https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/01/27/nao-podemos-privilegiar-quem-pode-pagar.ghtml.

[4]https://www.nexojornal.com.br/expresso/2021/01/26/A-corrida-por-fora-de-empres%C3%A1rios-pela-vacina-contra-a-covid-19.

[5] https://www.fm.usp.br/fmusp/noticias/compra-de-vacina-contra-coronavirus-pelo-setor-privado-nao-e-proibida-mas-e-antietica.

[6] https://g1.globo.com/podcast/o-assunto/noticia/2021/01/27/o-assunto-377-publico-x-privado-fila-paralela-da-vacina.ghtml.

[7]https://valor.globo.com/live/noticia/2021/01/28/busca-de-vacinas-pelo-setor-privado-e-compreensivel-mas-nao-acho-boa-ideia-diz-arminio.ghtml.

[8]https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/bbc/2020/07/22/covid-19-se-alastra-em-frigorificos-e-poe-brasileiros-e-imigrantes.htm.

[9]https://veja.abril.com.br/mundo/uniao-europeia-cobra-que-pfizer-e-astrazeneca-entreguem-vacinas-sem-atraso/

[10] Von der Leyen inclusive encrencou com as vacinas a serem destinadas ao Reino Unido. Ver https://veja.abril.com.br/blog/mundialista/fiasco-total-a-chefona-da-europa-queima-largada-na-guerra-das-vacinas/

[11] O que não implica que não se poderia melhor otimizar o mecanismo “fila”, introduzindo-se princípios de mercado sem que seja requerida qualquer transação financeira. O prêmio Nobel Alvin Roth explica no capítulo 3 “Trocas que salvam Vidas” em seu livro “Como funcionam os mercados: a nova economia das combinações e do desenho de mercado” Porfolio Penguin, 2016 como as filas de transplantes podem ser aprimoradas para ampliar a oferta de órgãos para pacientes à espera de transplantes.

[12]Em reportagem de 19/12/20, o Poder360 (https://www.poder360.com.br/coronavirus/pandemia-volta-a-ter-mais-mortes-mas-faixa-etaria-da-letalidade-se-mantem/#:~:text=A%20maior%20propor%C3%A7%C3%A3o%20de%20v%C3%ADtimas,13%2C6%25%20da%20popula%C3%A7%C3%A3o) mostra que as pessoas com mais de 60 anos representavam 74% do total de mortos pela pandemia, mesmo sendo apenas 13,6% da população.

[13] Dependendo da localização, estes dois grupos podem ter, de fato, mais ou menos acesso aos recursos do SUS. A depender do grau de integração de aldeias e comunidades com pessoas de fora, também têm menos contato com pessoas contaminadas, reduzindo sua vulnerabilidade. Também não encontramos evidência de que tais grupos seriam realmente mais vulneráveis que outros grupos de cidadãos pobres, especialmente nos aglomerados urbanos das grandes cidades brasileiras. Particularmente as pessoas que utilizam transporte coletivo nas cidades devem ter uma chance de pegar e de transmitir maior (e sua vacinação gerar mais externalidades positivas) que estes grupos teoricamente mais isolados.

[14] https://blog.acton.org/archives/53033-what-margaret-thatcher-understood-about-income-inequality.html

[15] https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/01/28/empresas-reveem-posicao-sobre-negociacao-para-compra-de-vacina.ghtml

[16] https://oglobo.globo.com/sociedade/vacina/covid-19-clinicas-privadas-fecham-acordo-por-5-milhoes-de-doses-de-vacinas-da-india-diz-valor-24857066

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Seu Jorge e a Previdência https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3044&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=seu-jorge-e-a-previdencia https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3044#comments Tue, 12 Sep 2017 14:31:13 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3044 Aos 77 anos, Giorgos não imaginava passar por aquela situação. Após trabalhar por anos na mina de carvão e na fundição, ele saíra naquela manhã de verão para sacar a aposentadoria da mulher. Sensibilizou-se com os pedintes que viu pelo caminho. Lembrou-se dos suicídios: não suportava mais ver o seu país assim. Tentou o saque da aposentadoria em uma agência, não conseguiu. Depois foi a mais um banco, nada. Insistiu em fazer o saque em mais outro, mas novamente sem sucesso. Na quarta vez que não conseguiu receber o benefício, Seu Giorgos não aguentou. Sentou no meio da calçada e chorou.

Um ano depois, talvez tivesse algum conhecido seu entre os que manifestavam contra o 15º corte no valor das aposentadorias, que ocorria mesmo após um ano da posse do primeiro-ministro Tsipras, do partido que chegara ao poder com discurso antiausteridade. Naquela ocasião, os manifestantes de cabelos brancos toparam com um ônibus da polícia no meio de sua passeata. Juntaram-se para tentar retirá-lo do caminho. A polícia respondeu à investida dos idosos. Com spray de pimenta.

Irresponsabilidade fiscal e contabilidade criativa foram alguns dos causadores da complicada crise da Grécia. Em um dos países mais envelhecidos da Europa, a crise levou a cortes de aposentadorias e até a feriados bancários, como o que Seu Giorgos Chatzifotiadis enfrentou. A foto do seu pesadelo, “O homem que chora”, correu o mundo.

***

Em alguns anos, Seu Giorgos pode ser Seu Jorge. Um idoso de mesmo nome que acreditou na mesma promessa de seu país de pagar a ele uma aposentadoria como pagou a de outros. Seu Jorge está desesperado com a sua aposentadoria cortada. A idade avançada não lhe permite mais trabalhar, e ele não consegue tratar suas doenças crônicas no SUS, cada dia mais sem dinheiro. É arrimo de família, uma vez que seus parentes jovens estão desempregados. Seu país vive uma crise grega, só que com sua renda per capita de Turquemenistão. Antes dos cortes, Seu Jorge já ganhava a metade do que ganhava Seu Giorgos.

Não acredita no que acontece. Vários anos antes ouviu de novo aquela ladainha de reforma da Previdência, mas recebeu no Whatsapp o vídeo explicando que tudo era mentira: a Previdência não tinha déficit, sobrava dinheiro que o governo desviava pra alguma coisa que Seu Jorge não entendeu muito bem o que era.

Seu Jorge não sabia que o vídeo fora criado por Nelson. Nelson ganhava bem mais que Seu Jorge, tinha direito a uma aposentadoria muito maior e com aumentos mais generosos, custeados não por suas próprias contribuições, mas pelas de pessoas como Seu Jorge. Nelson perderia esses direitos se o governo fizesse uma reforma.

Nelson era um orgulhoso servidor público, membro  da associação que representava a sua carreira. Seu Jorge confiou na informação do vídeo que recebeu porque tinha o selo de uma associação nacional de auditores. É coisa de doutor, pensou. Seu Jorge não sabia que cabia a associação de Nelson representar a carreira de elite com maior número de aposentados e pensionistas da União, 20 mil.

Entre as pautas da associação de Nelson, publicamente apresentadas em seu site em 2017, estavam o direito aos aumentos generosos, o fim da contribuição de servidores aposentados e até o direito desses aposentados receberem bônus de produtividade – de acordo com o aumento da arrecadação de impostos. No momento em que Seu Jorge recebeu o vídeo, este bônus era inclusive negociado pela associação de Nelson com o governo no meio de uma medida provisória. Insatisfeita com a proposta, a associação de Nelson contratou até um ex-presidente do Supremo Tribunal Federal para levar o pleito à Justiça. A associação também mobilizava seus recursos em 2017 para a campanha mostrando que não existia déficit na Previdência ou na Seguridade Social.

Nelson tinha um ponto de vista claro sobre como devem ser apresentadas as contas da Seguridade, mas Seu Jorge não tinha a mesma clareza. No vídeo que produziu, Nelson omitiu que a contabilidade de sua associação exclui as despesas com as aposentadorias e pensões dos próprios servidores públicos, e também não achou necessário mostrar que ainda assim havia um déficit já para o ano de 2016.

Seu Jorge não dava bola para o papo de crise na Previdência. Além do vídeo, ficou tranquilo ao ler no jornal que uma importante entidade da sociedade civil alertava que a reforma do governo era baseada em premissas equivocadas. Não entendia do assunto, mas novamente quem estava afirmando era doutor.

Seu Jorge também não percebia que cabia a esta outra entidade defender advogados como Miguel. O escritório de Miguel lucra ao conseguir benefícios do INSS para seus clientes, retendo em honorários uma parte do pagamento de aposentadorias rurais, aposentadorias especiais e aposentadorias por invalidez. Preocupado não só com seus clientes, mas também com seu negócio, Miguel, como outros advogados, acionou a entidade a que pertence e ela se manifestou contra a reforma da Previdência, pelos seus abusos sociais.

Em uma tarde daquele 2017, Seu Jorge perdeu tempo no trânsito com uma passeata. Porém, ficou resignado e a apoiou, porque se solidarizou com a causa dos trabalhadores do campo prejudicados pela reforma da Previdência. O protesto foi organizado por José. Como Miguel, José também ficou preocupado com as mudanças na aposentadoria rural. José é presidente de um sindicato rural cuja maior parte do filiados só se registrou para conseguir uma declaração atestando anos de trabalho no campo. Essa declaração é essencial para que recebam a aposentadoria rural.

Após a filiação para receber a aposentadoria, parte desses filiados terá mensalmente, e para sempre, descontos nos benefícios para financiar a atividade sindical, conforme autorizaram.  José não é o único presidente de sindicato rural preocupado com a reforma: ao todo, são cerca de 4 mil. Apesar da urbanização das décadas anteriores, existiam no Brasil em 2017 mais sindicatos de trabalhadores do campo do que sindicatos urbanos filiados à CUT e à Força Sindical, juntas. Caso fosse aprovada a reforma do governo, a comprovação de trabalho rural para aposentadoria seria feita com contribuições ao INSS ao longo da vida do trabalhador, e não apenas no momento de pedir da aposentadoria com intermédio de um sindicato como o de José ou de um advogado como Miguel.

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Prosperando a mobilização de entidades com interesses como os de Miguel e José, sob a desinformação disseminada por entidades como a de Nelson, nenhuma reforma da Previdência será feita. Apesar das aposentadorias serem extremamente protegidas em nosso sistema jurídico, o absurdo cenário de relativização do direito adquirido e corte de benefícios pode aparecer no horizonte. Ele ocorrerá depois da redução em despesas não obrigatórias (mas não desimportantes) e do aumento de impostos, bem como do aumento do endividamento público que reprimirá a economia com juros altos. A outra saída é a hiperinflação.

Tem sido assim no Rio de Janeiro e foi assim em países europeus, como a Grécia de Seu Giorgos, o outro Seu Jorge. O duro corte de aposentadorias nesses países foi de tal forma imperativo que terminou validado pela Corte Europeia de Direitos Humanos. O tribunal foi provocado pela servidora pública portuguesa Maria Alfredina, que não aceitava o desconto da ‘contribuição extraordinária de solidariedade’, que é como se diz corte de aposentadorias em português de Portugal.

O córtex pré-frontal ventromedial é uma região de nossos cérebros que fica ativada quanto pensamos em nós próprios. Estudos mostram que quando pensamos em nós no futuro, porém, a região não se ativa: nossa incapacidade de pensar em nosso amanhã seria tal que é como se o cérebro estivesse pensando em outra pessoa. Enquanto país, talvez enfrentemos dificuldade semelhante. Encaramos uma reforma da Previdência como desnecessária e sequer questionamos a atividade dos grupos de interesse que atuam no debate. Fazer reforma da Previdência é ruim. A questão que devemos nos indagar é se não fazê-la é ainda pior, dando a Seu Jorge o destino de Seu Giorgos. Vamos deixá-lo chorando na calçada?

 

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