superávit – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Thu, 30 Mar 2017 17:23:57 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Aprenda a criar um superávit na Previdência https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2981&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=aprenda-a-criar-um-superavit-na-previdencia https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2981#comments Thu, 30 Mar 2017 15:54:41 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2981 A Previdência é uma gigantesca máquina de redistribuição de renda – nem sempre para os mais pobres – transferindo recursos entre gerações, regiões, categorias profissionais e gêneros. É, portanto, natural que uma reforma desta máquina de redistribuição gere resistências.

***

É difícil questionar a rápida transição demográfica por qual passa o país. Entretanto, se você precisa se opor de maneira contundente a mudanças na Previdência, tem como opção alegar que não existe necessidade de mudanças porque nela sobra dinheiro, ou dizer que “a Previdência tem superávit”. Este pode ser o seu caso se você representa em uma associação uma carreira de servidores públicos com privilégios ameaçados pelo discurso de reforma, ou se você representa advogados cujos honorários dependem de decisões judiciais contra o INSS.  

Este texto ensina quatro manobras contábeis para criar um superávit na Previdência, subsidiando a retórica de que a Previdência não precisa de reforma.

 

1. Pegue o dinheiro da saúde e incorpore à Previdência, dizendo que “a Seguridade Social precisa ser analisada como um todo”.

Quando se diz que a Previdência não tem déficit porque a Seguridade Social é superavitária, a lógica implícita é que as outras áreas da Seguridade devem financiar a Previdência: são elas a assistência social e, principalmente, a saúde.1 

Evidentemente essa lógica não pode ficar clara.

Por isso, use termos complicados para se referir a este dinheiro, como Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, ou de preferência siglas, como CSLL ou Cofins.

Além de siglas, você pode também usar um argumento pretensamente legalista, dizendo que essa manobra era na verdade o desejo do “constituinte originário”.

Porém, você tem um problema: esta conta também apresenta déficit, de cerca de R$ 250 bilhões. Vá para a manobra (2).

 

2. Pegue o dinheiro da educação e incorpore à Previdência, dizendo que “o governo desvincula receitas da Seguridade”.

Quando se diz que a Desvinculação de Receitas da União (DRU) retira recursos da Previdência, ignora-se que a DRU não incide sobre a receita de contribuições previdenciárias, apenas sobre contribuições sociais.

Mesmo no caso dessas contribuições, é preciso lembrar que a DRU na verdade foi criada como instrumento para evitar que o governo federal dividisse sua arrecadação com Estados e Municípios, o que é uma obrigação no caso de impostos, mas não no caso de contribuições sociais (que por sua vez, só poderiam ser usadas na Seguridade).  Desvinculá-las da Seguridade foi a solução, permitindo o aumento de alíquotas e da base de tributação, mas ampliando a arrecadação somente do governo federal.

Simplificadamente, isso quer dizer que, ainda que a DRU não tenha a importância que teve no passado, encerrá-la retiraria uma flexibilidade que prejudicaria ao longo do ano a execução de políticas e investimentos da União em áreas como educação, ciência & tecnologia, cultura, defesa nacional, energia, meio ambiente, habitação, saneamento, segurança pública, transportes, etc.

Evidentemente essa lógica também não pode ficar clara.

Por isso, omita as consequências de acabar com a DRU. Outra opção, mais desonesta, é dizer que a DRU paga juros da dívida pública, ainda que isso seja não seja verdade.2

Infelizmente, você ainda tem um problema: mesmo que você considere a DRU como uma receita da Seguridade, o déficit teima em existir, e é de cerca de R$ 165 bilhões. Passe para a manobra (3)

 

3. Suma com as aposentadorias e pensões de servidores públicos, dizendo que não fazer isso é inconstitucional.

Agora retire do Orçamento da Seguridade Social o Plano de Seguridade Social do servidor, isto é, as aposentadorias e pensões dos funcionários públicos. Este sistema arrecada bem menos do que gasta, e por isso excluir ele da Seguridade vai afetar pouco a receita, mas vai diminuir bastante a despesa.

Além de provocar um superávit, essa exclusão evita questionamentos sobre vantagens deste sistema que ainda existem em relação ao Regime Geral, como o direito à paridade (o direito de receber do contribuinte um aumento acima da inflação que ele mesmo jamais vai receber) e o direito à integralidade (o direito de receber o maior salário da carreira sem ter contribuído para isso).

Essas vantagens podem ser percebidas como privilégios, afinal trata-se, dentre os grandes grupos de despesa da União, do que mais concentra renda. Portanto, é estratégico que essas despesas não se misturem com as despesas dos mais pobres da Seguridade. Não diga nada sobre como financiar estes benefícios.

Você pode apelar novamente ao “constituinte originário”, alegando que ele não queria que esta despesa fosse considerada da Seguridade porque a Constituição trata de servidores públicos no capítulo “Da Administração Pública” e não no capítulo “Da Seguridade Social”.

A lógica é frágil: a aposentadoria de um auditor fiscal de uma prefeitura que não possua regime próprio é feita pelo INSS e entra na conta da Seguridade, mas a aposentadoria de um auditor fiscal da Receita Federal não entraria. Já o regime de previdência complementar pertence na Constituição ao capítulo “Da Seguridade Social” e, nessa lógica, a aposentadoria de um fundo privado deveria entrar na conta.

Releve: a quem questionar este argumento topográfico, diga que não fazer esta manobra é in-cons-ti-tu-ci-o-nal.

Seu problema foi resolvido: foi criado o superávit. Pode preparar um vídeo para espalhar no Whatsapp.

Entretanto, há um pequeno complicador. As três manobras resultam em superávit apenas até 2015. Mesmo com os procedimentos aqui elencados, o teimoso déficit surge em 2016. Vá para o passo (4).

 

4. Esconda o resultado desta conta para 2016 e para os próximos anos.

Não importa que estejamos em 2017 e que a reforma da Previdência trate do futuro do país, especialmente das próximas décadas, e não do passado. É somente com dados desatualizados que você pode dizer que existe superávit.

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Ironias à parte, o debate sobre financiamento da Seguridade Social poderia ser pertinente e saudável. O déficit é um indicador sujeito a reflexões, como é o PIB de um país (que diz pouco sobre sua qualidade de vida), o peso de uma pessoa (que diz pouco sobre as condições de suas artérias) e o número de gols em uma partida de futebol (que não revela necessariamente quem jogou melhor).

O déficit financeiro da Previdência diz pouco sobre seu equilíbrio ou desequilíbrio atuarial. Em especial, o déficit financeiro, isoladamente, é alheio ao debate sobre qual deve ser a participação do Estado de um país tão desigual em financiar grupos que são subsidiados na Previdência (como vem sendo discutido neste blog).

Todavia, infelizmente esta bem-vinda discussão deu lugar a uma rudimentar teoria da conspiração de que sucessivos governos enganam a sociedade e desviam recursos da Previdência, negando a necessidade de mudanças em uma questão estratégica para o país. Esta retórica alimenta a desinformação no debate nacional, a indignação das famílias brasileiras e provocou recentemente até mesmo uma antológica decisão judicial censurando os dados previdenciários do país3.

Os motivos das entidades que difundem esta tese permanecem pouco claros. O incômodo silêncio sobre o resultado de sua metodologia para 2016, negativo em R$ 39 bilhões pela estimativa da Instituição Fiscal Independente ou R$ 46 bilhões pela estimativa do governo, sugere que o objetivo desses grupos de interesse pode não ser exatamente o de contribuir para a discussão.  O argumento de que a Previdência não tem déficit, cujo corolário é de que a Previdência tem superávit, é sustentado por premissas questionáveis que não são expostas de maneira transparente à sociedade (ou que não aparecem nos vídeos do Whatsapp). Com um pouco de bom humor, foram essas premissas que buscamos discutir neste texto.

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1 Cuja essência não são despesas de caráter continuado, como benefícios previdenciários e assistenciais.
2 Este discurso é remanescente da época em que a União produzia superávits primários, isto é, usava a arrecadação de tributos para pagar a dívida pública. O último ano em que isso aconteceu foi 2013 [supondo que o superávit primário oficial não foi maquiado), podendo acontecer de novo ao redor de 2020 – especialmente caso uma reforma da Previdência seja aprovada.
3 http://portal.trf1.jus.br/sjdf/comunicacao-social/imprensa/noticias/justica-federal-defere-em-parte-liminar-da-fenajufe-para-que-a-uniao-comprove-dados-sobre-deficit-na-previdencia-social.htm.

 

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Morte severina e mitos sobre a reforma da Previdência https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2917&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=morte-severina-e-mitos-sobre-a-reforma-da-previdencia https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2917#comments Mon, 28 Nov 2016 14:40:33 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2917 “Morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia”. A morte severina do poema de João Cabral de Melo Neto se reflete na expectativa de vida ao nascer. Este indicador é afetado por mazelas nacionais como a mortalidade infantil e a morte de jovens por causas externas (homicídios, trânsito). Grosso modo, a expectativa de vida ao nascer está relacionada com a idade média com que as pessoas falecem no país.

Este dado vem sendo equivocadamente usado para justificar que uma reforma da Previdência faria as pessoas “trabalharem até morrer”. Seria injusto estabelecer uma idade mínima, por exemplo, de 65 anos, se em alguns Estados a expectativa de vida é de 66, 68 anos.

Na verdade, o indicador relevante nesta discussão não é a expectativa de vida no nascimento, mas a expectativa de sobrevida na idade de aposentadoria. É por conta dela que se diz que estamos vivendo muito mais, o que pressionaria a Previdência. A expectativa de sobrevida em idades mais altas não é afetada pela morte severina.

Nas idades médias em que se dão a aposentadoria por tempo de contribuição no Brasil, 55 anos para homens e 52 anos para mulheres, a expectativa de sobrevida é respectivamente de 24 e 30 anos. Assim, a expectativa de vida é de 79 anos para homens e 82 anos para mulheres, bem acima da expectativa de vida ao nascer (72 para eles, 79 para elas), e dos 66 anos do meme “trabalhar até morrer” que circula nas redes.

Figura 1 – “Trabalhar até morrer”

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De fato, mesmo com ganhos expressivos na redução da mortalidade infantil, a expectativa de vida dos homens ao nascer cresceu nas últimas décadas menos da metade do que cresceu a expectativa de sobrevida dos mais velhos. Junto com a veloz redução da taxa de natalidade no país, é isso que pressiona a Previdência e seu desequilíbrio atuarial (medido em trilhões).

A expectativa de sobrevida em idades mais altas não é perfeitamente correlacionada com a renda de um país. Parte da falência da previdência na Grécia se explica pela alta expectativa de vida dos idosos: uma das maiores da União Europeia, apesar de o país ser o patinho feio do grupo. No mesmo sentido, a OCDE estima que nas próximas décadas a sobrevida das brasileiras será maior do que as das americanas ou dinamarquesas, que moram em países muito mais ricos.

O uso da expectativa de vida ao nascer no debate previdenciário, além de incorreto, é incômodo: usa-se a mortalidade infantil para justificar transferências para grupos de faixas etárias mais avançadas.  Esta não é uma questão trivial, já que a pobreza no Brasil está desproporcionalmente concentrada nas crianças.

A discussão da distribuição de renda se relaciona também a outro mito da reforma da Previdência: o de que uma idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição prejudica os mais pobres, que ingressam cedo no mercado de trabalho. Diversos estudos tem mostrado que os trabalhadores mais pobres não usufruem da aposentadoria por tempo de contribuição. (tema discutido anteriormente no blog)

A exigência de 35/30 anos de tempo de contribuição desta modalidade de aposentadoria não pode ser cumprida por uma ampla parcela da população, que tem uma inserção precária no mercado de trabalho, alternando em sua vida períodos de desemprego, informalidade e carteira assinada. Na verdade, a maioria da população recorre a outro tipo de aposentadoria, a por idade, que requer 15 anos de carteira assinada, mas idade mínima de 65 anos para homens e 60 para mulheres.

Outra parcela da população, com menos de 15 anos de contribuição, só pode recorrer a um benefício assistencial de um salário mínimo, com idade mínima de 65 anos até para mulheres. Assim, a idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição não pode prejudicar os mais pobres se para eles a idade mínima sempre existiu.

Não só a idade mínima para esta modalidade de aposentadoria afeta mais os com maior escolaridade como as regiões mais industrializadas do país. No Norte e no Nordeste, onde se trabalharia “até morrer”, a quantidade de aposentadorias por tempo de contribuição representa apenas 7% e 9% do total de benefícios pagos (metade do que é no Sudeste, 19%).

Para várias regiões e ocupações do país, outros pagamentos são mais relevantes, como a aposentadoria rural. É neste e em outros benefícios associados ao salário mínimo que deveria se concentrar a preocupação acerca dos efeitos da reforma da Previdência na desigualdade de renda.

Outro tema que merece ser visto com ceticismo é a tese de que a Previdência é superavitária, e de que seu déficit seria uma farsa. Há várias questões legítimas no debate sobre o que deve ser receita ou despesa do INSS, mas dizer que nosso problema previdenciário é resolvido com mudanças na contabilidade seria mito, ou para usar o termo do momento, algo que se aproxima de uma “pós-verdade”. O problema concreto é o crescimento da despesa, que decorre de um problema físico, demográfico.

Disputas em torno da contabilidade do sistema são naturais e ocorreram em outros países, mas não podem tirar o foco da questão principal. Ilustrativamente, até os militares não aceitam a contabilidade do seu regime, defendendo que o déficit deles é de metade do que vinha sendo entendido. Por sua vez, o TCU não aceita a tese de superávit no INSS.

Do lado da receita, deve ser lembrado que a Desvinculação de Receitas da União (DRU) historicamente teve como perdedores Estados e Municípios, não a Previdência. A União precisava de dinheiro: se aumentasse impostos, deveria dividi-los com os entes. O jeitinho, de sucessivos governos, foi aumentar contribuições e desvinculá-las via DRU. Este histórico destoa da “teoria da conspiração” de que o governo desvia recursos da Previdência para forjar um déficit e corte de direitos. Também precisa ficar claro que trazer recursos da DRU para expandir a Previdência significa retirá-los de despesas que já serão significativamente comprimidas com o crescimento da despesa previdenciária diante do teto de gastos a vigorar com uma eventual aprovação da PEC nº 55, de 2016, ora em tramitação no Senado.

Do lado da despesa, deve ser esclarecido que mesmo a clientela urbana do INSS apresentou déficits até 2009, com previsão de voltar a apresentá-los de 2016 em diante1. Este é um ponto importante para os que defendem que, sem os rurais, a Previdência é sempre superavitária.

Nos próximos meses o Brasil passará por um amplo debate sobre sua Previdência. Pelo seu tamanho, ela é uma grande conquista e um grande desafio. Discutiremos se financiá-la nos moldes atuais é insustentável ou se mudar suas regras é retroceder em direitos conquistados: o ideal é partir para este debate livre de crenças equivocadas.

Versão resumida deste texto foi publicada no jornal O Estado de São Paulo, edição de 08/11//2016.

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1 O superávit temporariamente registrado teve relação com maior formalização da economia no período, e não com um equilíbrio atuarial estrutural do regime de previdência.

 

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O déficit da Previdência é uma farsa? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2886&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-deficit-da-previdencia-e-uma-farsa https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2886#comments Mon, 10 Oct 2016 11:55:20 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2886 Enquanto o país se prepara para o futuro ao discutir uma nova e ampla reforma da Previdência, ganha popularidade o argumento de que o déficit da Previdência é na verdade uma falácia (ou ainda uma farsa, um mito). Entender este argumento, e a sua fragilidade, é essencial para este debate.

A tese de que a Previdência é superavitária sempre foi propagada por sindicatos, advogados previdenciários e políticos. Seu respaldo “empírico” vem de publicações de dados de uma entidade corporativa, a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita (que defende que o problema da Previdência se deve à sonegação) e, mais recentemente, ganhou ares mais científicos com a difusão da tese de doutorado da professora Denise Gentil, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O estudo é sobre o período 1990-2005, mas o argumento vem colecionando dezenas de milhares de “curtidas” nas redes sociais nos últimos meses.

O raciocínio varia de acordo com o interlocutor, mas tem um eixo principal: a contabilidade do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) deveria excluir despesas com grupos que contribuem menos e incluir como receitas contribuições que cobrem o déficit, além de levar em conta também receitas perdidas com desonerações ou sonegação.

O debate sobre a contabilidade do sistema é natural, pois reflete em parte a disputa entre os subgrupos que compõem a Previdência. É legítimo, por exemplo, que representantes dos trabalhadores urbanos busquem evitar novas regras que julguem prejudiciais a eles apontando o dedo para a menor contribuição dos trabalhadores do campo, e, portanto, para a contabilidade do sistema. Em verdade, reformas previdenciárias também modificaram a forma das contas em países como França, Itália, Reino Unido, Espanha e Suíça, e há até quem defenda que este tipo de alteração deva ser usada na negociação política como moeda de troca com os opositores da reforma (como sindicatos)1.

Entretanto, a discussão sobre as contas da Previdência não pode virar uma cortina de fumaça, deslocando tempo e energia do verdadeiro debate: como adereçar o inexorável processo de transição demográfica. Também não pode resultar em contabilidade criativa que funcione como um anti-aging para o envelhecimento da população, ou em “negacionismo” de uma verdade inconveniente: a sustentabilidade da Previdência exigirá mudanças profundas e impopulares, e decorre de um problema físico, e não contábil.

Antes de conhecer os argumentos da “falácia do déficit previdenciário”, cabe apresentar uma introdução sobre a contabilidade atual do RGPS. As principais receitas do regime operado pelo INSS são a contribuição patronal sobre a folha de pagamento (20%) e a contribuição do trabalhador (8 a 11%). As despesas são aquelas com aposentadorias, pensões e auxílios da clientela urbana e rural. Contrariamente ao que algumas fontes veiculam, não são consideradas como despesas os gastos com benefícios assistenciais (como o Benefício de Prestação Continuada ao idoso pobre ou Bolsa Família), trabalhistas (como seguro-desemprego) e nem com a Previdência dos servidores públicos (que é deficitária por si) ou de políticos.

Esta conta deve fechar com um déficit de cerca de R$ 150 bilhões em 2016, podendo a chegar a R$ 200 bilhões em 2017. Qualquer déficit é coberto pelo Tesouro: o INSS não tem obrigação de fechar suas contas sozinho e nem teria poder para mudar regras a fim de cortar benefícios ou aumentar alíquotas das contribuições, o que compete ao Congresso. Tal fato torna ainda mais inusitada essa celeuma: seja o RGPS superavitário ou deficitário, os benefícios sempre serão pagos. Cabe observar também que essa apresentação de contas já foi sucessivamente referendada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que não valida o argumento da Previdência superavitária.

Um primeiro questionamento deste argumento pede a exclusão dos trabalhadores rurais, porque a Previdência urbana seria “sempre” superavitária2. A lógica é que os benefícios do campo exigem menor contrapartida contributiva, arrecadando pouco e despendendo muito,  e assim deveriam ser custeados diretamente pelo governo (como um benefício assistencial).

De fato, a chamada Previdência urbana foi superavitária nos últimos anos, mas principalmente pelo excepcional momento do mercado de trabalho formal. Na realidade, ela também apresentou déficits até 2009, e deve voltar a apresentar um em 2016, já de cerca de R$ 30 bilhões. Em que se pese a conjuntura de desemprego que piora a arrecadação, o envelhecimento da população por si só deve fazer com que os déficits pré-2009 voltem a ser a regra.

A crítica levanta, porém, aspectos da Previdência rural que de fato devem ser discutidos na próxima reforma. Existem problemas com a comprovação de efetivo trabalho no campo, sonegação e excessiva judicialização, e não havia disposição política no governo anterior para enfrentar a questão. Ainda assim, há preocupações dos representantes rurais de que a exclusão desse trabalhador da Previdência, com os benefícios sendo tratados como assistenciais, possam no futuro gerar cortes adicionais. De todo modo, com ou sem os rurais na contabilidade do INSS, os benefícios vão continuar sendo pagos e a mudança na prática é apenas como trocar o dinheiro dos bolsos de uma mesma calça (o Tesouro).

Todavia, o questionamento principal do argumento da “farsa do déficit” é do lado da receita, que deveria incorporar a arrecadação de contribuições sociais como a Cofins e a CSLL. Hoje essas contribuições já podem ser usadas para cobrir o “déficit”, mas defende-se que elas integrem a contabilidade antes da apuração do resultado. O argumento é especialmente contrário à Desvinculação de Receitas da União (DRU), que permite que 30% das contribuições sociais sejam usadas livremente pelo governo, o que é entendido como um “desvio” de dinheiro da Previdência para outros fins, inclusive o pagamento da dívida pública, não se podendo falar, portanto, em déficit.

Em verdade, historicamente, os grandes perdedores da DRU sempre foram os Estados e Municípios, e não a Previdência. Desde os anos 90, inicialmente como Fundo Social de Emergência (FSE) e Fundo de Estabilização Fiscal (FEF), a DRU foi instrumento para o governo federal ampliar a sua arrecadação sem aumentar impostos, que são obrigatoriamente divididos com os entes subnacionais. A saída foi aumentar as contribuições sociais, desobrigando que essa arrecadação fosse usada somente na Seguridade Social, permitindo na prática que o governo aumentasse tributos para pagar suas despesas em qualquer área. A partir daí, com a DRU renovada por sucessivos governos, a União aumentou alíquotas e expandiu a base das contribuições sociais.

No argumento do déficit, esses recursos são vistos como sendo da Previdência, e desviados para outras finalidades. No entanto, o histórico do mecanismo deixa claro que sem a DRU as contribuições não arrecadariam  tanto quanto hoje e que ela funcionou como instrumento para não compartilhar recursos com os Estados e Municípios, não com a Previdência.

Há ainda uma visão de que a DRU seria “inconstitucional”, por não respeitar o texto original da Constituição de 1988. Este é um argumento mais frágil, já que as modificações sempre foram feitas por emendas constitucionais e já que o Congresso Nacional de fato tem poder para modificar a Constituição (“poder constituinte derivado”), respeitado o devido trâmite e preservadas as cláusulas pétreas. Ou nas palavras de Paulo Tafner, um dos maiores especialistas brasileiros em Previdência, o texto original de 1988 não deve ser tido como “uma verdade revelada” por Deus3.

Também precisa ficar claro que a DRU apenas desvincula as receitas, mas não as vincula novamente para nenhum fim. Assim, não existe impeditivo para elas voltarem para a própria Seguridade, cobrindo o déficit da Previdência. Também deve ficar claro que a DRU não é necessariamente usada para pagar “juros da dívida”, até porque, com o agravamento da crise fiscal, nenhuma receita de tributos tem sido usada para pagar qualquer despesa com a dívida (pelo contrário, estamos nos endividando cada vez mais). No argumento da “farsa do déficit”, falta ainda coragem para especificar que despesas devem parar de ser financiadas pela DRU (educação? investimento público? Bolsa Família?).

Outro ponto a ser esclarecido neste burocrático debate sobre DRU e contribuições da Seguridade é que esta não é sinônimo de Previdência. A Previdência é apenas um dos três pilares da Seguridade, que abrange ainda a Saúde e a Assistência Social. Supondo que todo o dinheiro da DRU fosse agora ser vertido para a Seguridade, a sociedade ainda teria que escolher como dividir os recursos entre essas áreas carentes.

Isso também deve ficar claro quando se diz que não existe déficit na Previdência porque “a Seguridade deve ser analisada como um todo”. O que parece uma platitude na verdade esconde uma lógica mais séria: mais recursos da Seguridade para a Previdência necessariamente implica menos recursos para a Saúde ou para Assistência, áreas certamente carentes. Adicionalmente, mesmo a noção de superávit na Seguridade foi rejeitada no relatório final do Fórum de Debates sobre Políticas de Emprego, Trabalho e Renda e de Previdência ainda no governo Dilma Rousseff.

Por fim, a ideia de uma Previdência superavitária também passa por algumas bandeiras inquestionavelmente justas: a recuperação da dívida ativa, o combate à sonegação e a redução de desonerações e isenções. Todas são medidas importantes e louváveis, mas certamente insuficientes perante o acentuado processo de envelhecimento da população. A promessa de soluções fáceis nessas áreas deve ser vista com algum ceticismo, especialmente porque com frequência são apresentadas por entidades corporativas, que legitimamente estão defendendo a relevância das competências de suas carreiras.

De toda esta discussão, deve ser absorvida a motivação de corrigir distorções, mas não se deve desviar o foco da discussão que mais importa para o país: o processo de transição demográfica, seu agressivo papel no aumento da despesa pública e, consequentemente, seu efeito nos nossos objetivos constitucionais de garantir o desenvolvimento nacional e reduzir desigualdades. Fugir deste debate sob o pretexto de que mudando a contabilidade a Previdência passa a ser superavitária é uma lógica digna de Donald Trump, ou nos termos de Fabio Giambiagi, dos que dizem que “Elvis não morreu”4.

Como conseguiremos crescer com juros reais tão altos sufocando empreendimentos, pressionados pela percepção de risco de insolvência ligado ao envelhecimento da população?  Como a economia poderá se dinamizar com a necessidade de custear a Previdência e criar cada mais vez impostos sobre uma carga tributária já tão distorciva?

Como os governos, federais e subnacionais, arranjarão espaço fiscal para os investimentos em infraestrutura e educação necessários para o país se desenvolver, se essas despesas discricionárias vão ser cada vez mais comprimidas pela obrigatória e ascendente despesa com o pagamento de benefícios5? Como o Estado terá capacidade financeira para dar mais oportunidades aos mais pobres, se os gastos que os beneficiam, como de saneamento básico, saúde pública e programas assistenciais, serão comprimidos por um componente que hoje já é responsável por mais da metade dos gastos da União e que cresce sem parar?

Construímos com nossa Previdência o que seria a segunda maior folha de pagamento do mundo, maior do que a de qualquer multinacional, governo ou exército6. Mais de 90% das famílias brasileiras estão direta ou indiretamente cobertas por ela. É por isso que a Previdência é uma conquista da sociedade brasileira e é por isso também que se impõe como um desafio.

Distorções em seu desenho nunca vão tornar ninguém milionário, mas amplificadas pelo seu gigantesco tamanho, podem colocar restrições severas ao desenvolvimento de um país que está longe de ser rico. Mal temos uma das 80 maiores rendas per capita do planeta: neste campeonato estamos na 4ª divisão, perigando cair para a 5ª ao fim desta década. Este é um problema de ação coletiva, muito diferente dos embates com soluções fáceis em que existem vilões para culpar, como sonegadores, corruptos, rentistas ou entreguistas responsáveis pelos males nacionais.  A ausência de um vilão para apontar o dedo não deve ser substituída pelo mero negacionismo que ignore esse problema inconveniente. O elefante na sala não é uma farsa.

 

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1 No Brasil, também os militares defendem mudanças na contabilidade da sua previdência, que reduzem significativamente o déficit da forma como foi historicamente entendido.

2  No entanto, este ponto não é defendido pela tese da professora Gentil.

3 TAFNER, P.; BOTELHO, C.; ERBISTI, R. (Org.). Reforma da Previdência: A Visita da Velha Senhora. Brasília: Gestão Pública, 2015.

4 http://noblat.oglobo.globo.com/geral/noticia/2016/08/sobre-canarinhos.html

5 Especialmente se for a aprovada a “PEC do teto dos gastos”.

6 Em tese, perdemos apenas para o  “INSS americano”, a Social Security Administration (SSA).

 

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É possível controlar o gasto do Governo apenas enxugando os desperdícios? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=220&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=e-possivel-controlar-o-gasto-do-governo-apenas-enxugando-os-desperdicios https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=220#comments Thu, 24 Feb 2011 01:48:47 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=220 É muito comum o argumento de que o governo é “perdulário” e que ações visando o enxugamento de desperdícios seriam suficientes para conter a expansão do gasto público. Sendo válido esse argumento, a política de controle de gastos deveria se concentrar nas chamadas “despesas de custeio” da máquina governamental: diárias e passagens, material de consumo, serviços terceirizados (limpeza, vigilância, etc.), consultorias prestadas por empresas privadas, etc.

O que se demonstra nesse texto é que, embora seja desejável a redução de eventuais desperdícios no custeio, esse tipo de controle de gasto nem de longe resolveria o desequilíbrio das contas do Governo Federal.

Em valores de 2010, um ajuste fiscal significativo estaria na ordem de R$ 40 a R$ 50 bilhões. O que se poderia obter com um corte radical no custeio não passaria de R$ 19 bilhões.

Tomando-se os dados da execução orçamentária do Governo Federal, temos que os “gastos de custeio” são aqueles classificados como “outras despesas correntes”. Mostra-se, a seguir, que a efetiva e significativa redução das “outras despesas correntes” depende de mudanças de fôlego na legislação e nas políticas públicas, tais como: alteração nos requisitos para concessão de aposentadorias e pensões, revisão da política de valorização real do salário mínimo e reavaliação da indexação do gasto com saúde ao crescimento do PIB nominal.

São, portanto, medidas muito mais profundas do que a restrição ao gasto com passagens aéreas ou com compra de material de consumo.

A Tabela 1 abre as “outras despesas correntes” em grandes itens de despesa. Olhando o valor da despesa total (R$ 594 bilhões) parece fácil fazer o ajuste fiscal. Se precisamos cortar R$50 bilhões para zerar o déficit nominal do Governo, então estamos falando de um ajuste de menos de 10% no custeio da máquina pública: nada que um “aperto de cintos” não pudesse resolver.

Mas essa impressão é ilusória. As outras linhas da Tabela 1 desagregam a despesa total, apresentando os itens em que ela é rígida, seja por determinação legal, seja por se tratar de política pública prioritária.

O primeiro item refere-se à “distribuição obrigatória de receitas”: Fundos de Participação dos Estados e dos Municípios, Fundo Constitucional do DF, royalties de petróleo, etc. O Governo Federal, por determinação constitucional ou de diversas leis, é obrigado a compartilhar sua arrecadação com estados. Trata-se, portanto, de despesa obrigatória e incomprimível[1].

O segundo item de despesa é aquele referente à Saúde. De acordo com a Emenda Constitucional nº 29, de 2000, o Governo Federal é obrigado a gastar com saúde o valor efetivamente gasto no exercício anterior acrescido da variação nominal do PIB. Portanto, tudo o que se gasta em saúde em um ano converte-se em despesa obrigatória para o ano seguinte, reajustado pela variação do PIB. Não só não há possibilidade de cortes, como há obrigatoriedade de crescimento real desse gasto ano após ano.

Tabela 1 – Outras despesas correntes do Governo Central (orçamentos fiscal e da seguridade social): 2010

Despesa R$ Bilhões % do Total
OUTRAS DESPESAS CORRENTES (TOTAL) (A) 593,8 100%
1 – DISTRIBUIÇÃO OBRIGATÓRIA DE RECEITAS 137,0 23%
2 – SAÚDE 50,9 9%
3 – ASSOCIADA A PESSOAL E ENCARGOS (EXCETO SAÚDE) 3,8 1%
4 – SENT. JUDIC., EXERC ANT. E COMPR. FINANC.(EXCETO SAUDE) 16,5 3%
5 – BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS E ASSISTENCIAIS (EXCETO SAUDE) 246,5 42%
6 – SEGURO DESEMPREGO E PIS PASEP 29,2 5%
7 – BENEFÍCIO MENSAL AO DEFICIENTE E AO IDOSO 22,2 4%
9 – EDUCAÇÃO 22,0 4%
10 – Bolsa Família 13,5 2%
SOMATÓRIO DAS DESPESAS RÍGIDAS (1+2+…+8) (B) 541,7 91%
OUTRAS DESPESAS CORRENTES NÃO RÍGIDAS (C)=(A)-(B) 52,1 9%
Memo: Despesas vinculadas ao salário mínimo, ao PIB ou à inflação: 2+5+6+7 348,8 59%

Fonte: SIAFI – Sistema “Siga Brasil”. Elaborado pelo autor.

(*) Conceito de “despesa liquidada”.

O terceiro grupo de despesas é aquele associado aos gastos com pessoal. Os pagamentos de remunerações de servidores públicos não são classificados como “outras despesas correntes”. São classificados como “pessoal e encargos sociais”. Não fazem parte, portanto, do “custeio” analisado nesse texto. Porém, existem despesas classificadas como “outras despesas correntes” intimamente ligadas à despesa de pessoal, tais como: auxílio alimentação, auxílio transporte, salário família, etc. Todas essas despesas decorrem de obrigações legais da União na condição de empregadora. Logo, o seu valor é determinado a reboque das despesas com pessoal e encargos sociais. Sua redução dependeria, portanto, da redução nos gastos de pessoal. Mas os gastos de pessoal também são rígidos, devido a fatores como estabilidade no cargo e irredutibilidade de vencimentos[2].

O quarto item da Tabela 1 representa despesas geradas no passado e que não podem ser cortadas no presente. É o caso, por exemplo, de sentenças judiciais, indenizações e restituições que a União é obrigada a pagar. A única forma de cortar dispêndio nesse item seria desobedecer ao Judiciário ou ficar inadimplente junto a credores. Certamente essa não é uma forma consistente de se fazer ajuste fiscal[3].

O item 5 representa as aposentadorias, pensões e outros benefícios previdenciários pagos pelo INSS. Obviamente essa é uma despesa devida a todos aqueles que preenchem os requisitos legais para requerer uma aposentadoria, uma pensão, um auxílio doença ou qualquer outro benefício pago pelo INSS. Não há como fazer redução dessa despesa negando-se a concessão de benefícios para os quais os requerentes tenham direito.

Ademais, por decisão governamental, o salário mínimo (que é a base de referência para aproximadamente 2/3 dos benefícios previdenciários) tem subido acima da inflação. Nos últimos anos o seu reajuste tem sido feito com base no crescimento do PIB. Os benefícios previdenciários superiores a um salário mínimo são reajustados pela inflação passada.

Por isso, as únicas formas de redução desse tipo de dispêndio são a reforma na legislação previdenciária ou a desvinculação do valor dos benefícios básicos do valor do salário mínimo[4].

Os itens 6 e 7 são similares ao anterior. Referem-se a benefícios que são pagos a todos os requerentes que cumpram os requisitos legais. A Lei Orgânica da Assistência Social define a obrigatoriedade do pagamento de benefícios aos deficientes físicos e idosos de baixa renda. Tais benefícios são indexados ao salário mínimo. O PIS-PASEP e o seguro desemprego pagam abonos e remuneram temporariamente os desempregados. Embora esse benefício não esteja formalmente vinculado ao salário mínimo, parte substancial dos beneficiários está nessa faixa de renda, de modo que os reajustes reais do mínimo também impactam essa categoria de despesa.

O item 8 contém as “outras despesas correntes” em educação. Na educação há um complexo sistema de vinculação de impostos aos gastos com “manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE)”[5]: 18% da arrecadação de impostos do Governo Federal devem ser destinados a essa finalidade. Além disso, há a obrigatoriedade de se fazer aportes de recursos federais, a título de complementação, ao Fundo de Desenvolvimento e Manutenção da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB)[6].

Tais obrigações legais não chegam a ser uma fonte importante de rigidez nas “outras despesas correntes” em educação, pois o gasto obrigatório recai quase que totalmente no item “despesa de pessoal e encargos sociais”. No entanto, esse é um setor prioritário da gestão pública. Ainda que possa haver desperdícios no custeio da educação, a economia eventualmente feita com o corte desses desperdícios tenderia a ser reaplicada em outros programas (mais eficientes) dentro da própria área da educação. No limite, fazendo uma hipótese heróica, poderíamos imaginar que um corte radical no custeio da educação representaria uma economia de 10 a 20%. Ou seja, no máximo R$ 4,4 bilhões.

O último item diz respeito ao Programa Bolsa Família. De acordo com a Lei nº 10.836, de 2004, que rege o programa, é o Governo que define o valor e a quantidade de bolsas a serem concedidas. A rigor, se desejasse cortar o programa, não seria necessário revogar a lei. Bastaria definir um valor irrisório para a bolsa (cujo valor não está indexado ao salário mínimo ou a qualquer outro indicador) ou reduzir drasticamente o número de beneficiários.

Obviamente, o grande peso político desse programa, aliado aos seus resultados positivos na mitigação da miséria, e possíveis contestações judiciais à redução do valor do benefício, tornam tal procedimento bastante improvável.

Ao deduzir todos esses itens rígidos das “outras despesas de custeio” sobram apenas R$ 52 bilhões de despesas flexíveis: 9% da despesa total. Como fazer um ajuste fiscal da ordem de R$ 50 bilhões (necessários para zerar o déficit nominal) se o conjunto de despesas a ser submetida a enxugamento é de R$ 52 bilhões? Seria preciso interromper todos os programas de governo que não tenham sido listados na tabela 1: saneamento básico, ciência e tecnologia, defesa, urbanização, agricultura, meio-ambiente, etc.

Outro indicador da dificuldade de se cortar o custeio está na última linha da Tabela 1: nada menos que 59% das “outras despesas correntes” são reajustados, automaticamente, pela variação do PIB ou pela inflação do ano anterior.

Um corte forte nas “outras despesas correntes” não rígidas, da ordem de 20%, levaria a uma economia de R$ 10,4 bilhões. Somando-se a isso a economia na área da educação, acima calculada em R$ 4,4 bilhões, teríamos um corte de R$ 14,8 bilhões, obtido mediante forte comprometimento da gestão governamental. E mesmo esse grande esforço não nos colocaria nem perto do necessário ajuste de R$ 50 bilhões.

Ademais, seriam altas as chances de que esses cortes fossem revertidos em exercícios posteriores, mediante pressões para a retomada de política públicas por eles prejudicadas.

Fica claro que não há opções de ajuste fiscal permanente, consistente e com efeito a longo prazo que se baseie apenas no “enxugamento de desperdícios nas despesas de custeio”. Embora seja salutar e desejável que se busque cortar desperdícios, o ajuste necessário vai além e requer reorientação da ação do Governo em políticas relevantes. É preciso, inclusive, tomar medidas que ajustem a despesa em itens que não foram aqui analisados, como a despesa de pessoal, investimentos e inversões financeiras.

Um roteiro para um ajuste da despesa pública passa pelos seguintes pontos:

a)        racionalização da política de pessoal, voltada para a qualidade na contratação, o estímulo ao bom desempenho e o controle da folha de pagamento;

b)        forte esforço de avaliação dos investimentos públicos prioritários, com o cancelamento de investimentos desnecessários ou questionáveis;

c)        dinamização dos procedimentos de concessões e demais modalidades de participação da iniciativa privada nos investimentos de infraestrutura (inclusive a melhoria na regulação e na capacidade de atuação das agências reguladoras), com vistas a se acelerar os investimentos nessa área, com o envolvimento de menos recursos públicos e com maior eficiência;

d)       revisão da política de reajuste do salário mínimo, para reduzir a velocidade de crescimento das despesas a ele indexadas;

e)        complementação da reforma da previdência social;

f)         revisão da regra de despesa mínima em saúde, vinculando-se a expansão da verba a melhorias na gestão e a indicadores de qualidade;

g)        revisão das políticas industrial e de incentivos regionais, visando à redução dos recursos aplicados em financiamentos subsidiados a programas de baixo retorno social ou à gradual retirada do Governo Federal do mercado de financiamento de longo prazo ao setor privado.

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Para ler mais sobre o tema:

Mendes, Marcos (2011). Desembrulhando o ajuste fiscal: há espaço para ajuste fiscal no Governo Federal sem reformas legais ou revisão de políticas públicas? Texto para Discussão nº 86. Centro de Estudos da Consultoria do Senado. Disponível em: http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao.htm


[1] Note-se que não foi considerado nesse total o montante de transferências emergenciais, feitas aos estados e municípios em 2009 e 2010, a título de compensação por perdas de receitas decorrentes da crise econômica internacional. Esta seria uma despesa não-obrigatória.

[2] Não se considera nesse item as “outras despesas correntes” associadas ao gasto com pessoal na função saúde, pois já foram incluídas no item anterior.

[3] Mais uma vez, não se incluem nesse item as despesas realizadas no âmbito da função saúde, já consideradas no item 2.

[4] Sempre há a necessidade de manter vigilância em relação às fraudes contra a previdência. No passado recente, por exemplo, um maior rigor na concessão de auxílio doença provocou uma forte desaceleração no crescimento dessa despesa. Mas esse tipo de providência gerencial não é capaz de fazer a despesa da previdência diminuir de forma significativa.

[5] Vide art. 212 da Constituição Federal.

[6] Lei nº 11.494, de 2007.

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