STF – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Wed, 13 Dec 2017 19:36:28 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Princípio da vedação de retrocesso social: o caso da vinculação de recursos para a saúde https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3135&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=principio-da-vedacao-de-retrocesso-social-o-caso-da-vinculacao-de-recursos-para-a-saude https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3135#comments Wed, 13 Dec 2017 14:58:59 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3135 A judicialização da política e a consequente politização da justiça são fenômenos conhecidos da opinião pública, cujas causas são geralmente procuradas nas disfunções do sistema político ou na cultura compartilhada por juízes e promotores. A essência do problema encontra-se, no entanto, na própria teoria jurídica, que desenvolveu uma série de justificações para a atuação do Poder Judiciário em matérias anteriormente consideradas de competência exclusiva dos Poderes Legislativo e Executivo.

1. O princípio da vedação de retrocesso

Um exemplo desse tipo de justificação é o chamado “princípio da vedação do retrocesso social”, segundo o qual os patamares já alcançados na provisão de direitos sociais não poderiam ser posteriormente reduzidos, mas apenas mantidos ou ampliados. Tal argumento tem sido sistematicamente empregado contra todo tipo de legislação tida por seus defensores como “neoliberal”, por supostamente reduzir algum direito social “conquistado” no passado. Alega-se, por exemplo, que a reforma trabalhista e o Código Florestal seriam inconstitucionais por representarem um “retrocesso” na defesa dos direitos dos trabalhadores e na defesa do meio ambiente.

Uma versão mais atenuada do princípio considera que o retrocesso, por si só, não é necessariamente inconstitucional; apenas cria uma presunção de inconstitucionalidade, que pode ser superada mediante demonstração de que a medida é necessária ao atingimento de outro valor constitucional ou direito fundamental e que a redução operada não foi excessiva1. Admite-se levar em consideração o contexto econômico e político por que passa o país, assim como a chamada “reserva do possível”, ou seja, a disponibilidade de recursos. Tal modulação é excluída, no entanto, do chamado “núcleo essencial” do direito fundamental “atacado”, que, no caso dos direitos sociais, traduz-se em um “mínimo existencial”, que deve prevalecer, inclusive, sobre a “reserva do possível”. Ou seja, admite-se o “retrocesso” apenas no que exceder ao “mínimo existencial” e desde que demonstrada sua necessidade e proporcionalidade com relação a outro valor constitucional.

Em Portugal, um importante marco no reconhecimento do princípio foi o Acórdão 39/84 do Tribunal Constitucional, que considerou inconstitucional a revogação de dispositivos legais instituidores do Serviço Nacional de Saúde. No Brasil, os precedentes mais relevantes são o voto minoritário do Ministro Celso de Melo na ADI 3105/DF, contrário à contribuição previdenciária para inativos e pensionistas instituída pela Emenda Constitucional 41/2003, e o acórdão da Segunda Turma do STF no ARE 639337, relatado pelo mesmo Ministro, relativo à matrícula de crianças em creches próximas a sua residência. Na América Latina, há registro de emprego do princípio também em outros países, podendo ser citada a Sentença T-1318/2015 da Corte Constitucional da Colômbia, relativa a contrato celebrado no âmbito da política habitacional.

Não há na Constituição brasileira qualquer menção expressa ao princípio da vedação de retrocesso. Seus defensores indicam como fundamento os arts. 1º, III, e 3º, III, da Carta Magna, que consagram a dignidade da pessoa humana como fundamento e a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades regionais e sociais como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.

2. O princípio da vedação de retrocesso na ADI 5595

Encontra-se na pauta do Plenário do STF a ADI 5595, proposta pela Procuradoria Geral da República, que pede a declaração de inconstitucionalidade de dispositivos da Emenda Constitucional nº 86, de 2015, por violação do “princípio da vedação de retrocesso social”, decorrente da redução dos recursos vinculados à saúde. O relator do caso, Ministro Lewandowski, concedeu liminar acatando o pedido na íntegra.

A ADI 5595 pode ser considerada a mais radical formulação do princípio da vedação de retrocesso já submetida à apreciação do STF. Nela, a PGR pede ao Tribunal que declare a inconstitucionalidade dos arts. 2º e 3º da Emenda Constitucional nº 86, de 2015, que estabeleceram normas sobre a vinculação de recursos da União à política de saúde.

A Constituição de 1988, em sua redação original, não vinculava recursos para a saúde, mas para a seguridade social, conceito mais amplo, que abrange também a previdência e a assistência.

A Emenda Constitucional nº 29, de 2000, instituiu vinculação de recursos para “ações e serviços públicos de saúde” em todos os entes da Federação. No caso da União, atribuiu à lei complementar a fixação dos recursos mínimos a serem aplicados (CF, art. 198, § 2º, I, e § 3º, IV), o que acabou por ser feito pela Lei Complementar nº 141, de 2012. O art. 5º dessa Lei estabeleceu como piso de aplicação o montante empenhado no ano anterior, acrescido do crescimento do PIB, caso este tenha sido positivo. Posteriormente, a Lei nº 13.858, de 2013, destinou à saúde, em acréscimo a esse piso, 25% dos royalties e da participação especial da União oriundos da concessão de campos de petróleo na região do pré-sal (art. 2º, § 3º, e art. 4º).

A Emenda Constitucional nº 86, de 2015, substituiu a remissão à lei complementar pela fixação de um piso de aplicação de recursos na própria Constituição, correspondente a 15% da receita corrente líquida (CF, art. 198, § 2º, I). Estabeleceu, ainda, uma transição de cinco anos para o atingimento desse patamar, partindo de um percentual de 13,2%, e incluiu os recursos dos royalties do petróleo nesse piso (arts. 2º e 3º).

Essa transição foi subsequentemente revogada pela Emenda Constitucional nº 95, de 2016, que instituiu o Novo Regime Fiscal. O patamar de 15% foi antecipado para 2017, passando o valor resultante a ser rejustado pela inflação nos vinte anos seguintes.

A ADI 5595 insurge-se contra a transição instituída pela EC 86/2015 e a inclusão dos royalties do petróleo no piso de aplicação de recursos em saúde, sob o argumento de que o novo critério resultaria em patamar inferior de despesa, o que violaria o princípio da vedação de retrocesso. Alega-se, em síntese, que o direito à saúde é um direito fundamental garantido pela vinculação de recursos e protegido por cláusula pétrea (CF, art. 60, § 4º, IV). Embora o quadro de recessão econômica seja explicitamente reconhecido, alega-se que esse fato seria irrelevante diante da essencialidade da política de saúde.

3. Os equívocos da ADI 5595

O eventual provimento da ADI 5595 constituiria um precedente de grande impacto, que consagraria definitivamente o princípio da vedação de retrocesso, em sua versão mais radical, no direito constitucional brasileiro. O ineditismo da tese é múltiplo: contesta-se uma Emenda Constitucional em face de uma lei complementar e uma lei ordinária; o critério de aferição do “retrocesso” é puramente financeiro; a versão do princípio defendida é absoluta; e a abrangência da cláusula pétrea relativa aos direitos e garantias individuais (CF, art. 60, § 4º, IV) é estendida não apenas aos direitos sociais, mas aos recursos orçamentários a eles vinculados. Sua aceitação pelo STF representaria um enorme impulso à judicialização das políticas públicas e colocaria em risco não apenas a responsabilidade fiscal, mas o próprio direito à saúde. Sua repercussão não se limitaria a um maior aporte de recursos federais para a saúde, mas se estenderia a todas as eventuais realocações de recursos orçamentários, em todas as esferas da Federação.

3.1. Comprometimento da responsabilidade fiscal

A promoção dos direitos econômicos, sociais e culturais depende da condição econômica de cada país. Daí porque os documentos internacionais que os consagram se referem sempre aos “recursos disponíveis”2. A progressividade de seu atendimento decorre da expectativa de que o desenvolvimento econômico elevaria as condições de vida da população e a receita dos governos. Ocorre que o desenvolvimento não é linear. Diversos fatores podem levar os países à recessão ou mesmo à depressão econômica: guerras, catástrofes naturais, crises políticas, má gestão da política econômica, etc. Além disso, a economia de mercado apresenta ciclos de crescimento e recessão que atingem mesmo os países desenvolvidos.

A manutenção do patamar de despesas na fase descendente do ciclo econômico, quando há uma redução das receitas, somente pode ser feita mediante endividamento. No atual contexto brasileiro, contudo, a dívida pública já é muito elevada e cresce aceleradamente, em função dos elevados déficits nominais e primários verificados a partir de 2014. Um congelamento de despesas inviabilizaria qualquer tipo de ajuste fiscal capaz de recompor o equilíbrio das contas públicas. No limite, o governo seria obrigado a dar um calote nos credores, fornecedores e servidores públicos, o que comprometeria a continuidade dos serviços públicos e causaria um retrocesso de proporções catastróficas para as políticas sociais, a exemplo do que já ocorre no estado do Rio de Janeiro.

3.2. Prejuízo para os demais direitos sociais e para o próprio direito à saúde

A vinculação de recursos para uma política se dá sempre em prejuízo das demais políticas. O direito à saúde não se limita, no entanto, ao atendimento pelo SUS; abrange também as “políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos” (CF, art. 196). No mesmo sentido, o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais inclui entre as medidas de promoção do direito à saúde a redução da mortalidade infantil, a higiene do trabalho e do meio ambiente e a prevenção de doenças3. Ocorre que a Lei Complementar nº 141, de 2012, explicitamente exclui essas medidas da aplicação dos recursos vinculados à saúde (art. 4º).

Nesse contexto, o ajuste fiscal recairá desproporcionalmente sobre outras políticas igualmente necessárias à promoção da saúde, o que pode, no limite, inviabilizá-las por completo. Haverá recursos para o tratamento de doenças e o atendimento de acidentados ou vítimas da violência, mas não para o saneamento básico, a segurança alimentar, a fiscalização do trânsito e a segurança pública, políticas capazes atacar os problemas que estão na origem da demanda pelos serviços de saúde.

3.3. Violação da separação dos poderes

As vinculações de recursos são uma exceção à regra geral de livre alocação da receita de impostos pela Lei Orçamentária (CF, art. 167, IV). Ao impedir o Congresso Nacional de revê-las, a ADI 5595 “petrifica” o “congelamento” do orçamento, substituindo o juízo de 3/5 dos deputados e 3/5 dos senadores (quórum de aprovação das Emendas Constitucionais) pelo de 6 ministros do STF (quórum de julgamento das ADI) ou apenas do relator do caso (no caso de liminar).

Nesse contexto, a única alternativa disponível para o atendimento das políticas não vinculadas será a reclassificação de suas despesas, de modo que elas sejam enquadradas no âmbito das vinculadas. Isso obrigará, em um segundo momento, o Tribunal a se pronunciar sobre o que é ou não “saúde”, ou seja, a adentrar cada vez mais o universo da legislação ordinária.

4. Comprometimento da autodeterminação das futuras gerações

Os conceitos de “progresso” e “retrocesso” em matéria de legislação e políticas públicas é bastante subjetivo. O que é progresso para uns pode ser considerado um retrocesso para outros. Além disso, havendo trade-offs entre objetivos legítimos, faz-se necessário estabelecer prioridades, atividade eminentemente política.

É próprio da democracia o conceito de alternância no poder. Quem perdeu as eleições hoje pode vencê-las amanhã e vice-versa. A imposição da vontade do grupo político atual sobre as futuras gerações equivale a uma ditadura cujo dirigente recursa-se a sair do poder quando derrotado nas eleições.

A vedação de retrocesso congela, no entanto, a alocação de recursos feita em algum momento do passado e impede sua revisão pelas gerações subsequentes.

5. Conclusão

A aplicação do princípio da vedação de retrocesso, tal como proposta na ADI 5595, seria catastrófica. É certo que se trata de uma versão extrema do princípio, que desconsidera por completo o contexto econômico do país. Mesmo uma versão atenuada seria, no entanto, igualmente questionável, na medida em que levaria o Tribunal a revisar decisões alocativas de recursos financeiros próprias dos Poderes Executivo e Legislativo, que foram eleitos para isso.

Em realidade, o princípio da vedação de retrocesso, enquanto tal, parece-nos inadmissível, pois pretende impor à administração pública uma concepção linear de progresso, incompatível com a realidade econômica e com o direito das gerações futuras de eleger suas próprias prioridades4.

______________

1 Nesse sentido, SARLET, Ingo Wolfgang, Notas sobre a assim designada proibição de retrocesso social no constitucionalismo latino-americano. Rev. TST, Brasília, vol. 75, nº 3, jul/set 2009.

2 O artigo 2º do Pacto Internacional sobre Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, por exemplo, assim dispõe: “Cada Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas”. A mesma abordagem foi adotada nos demais documentos internacionais de proteção dos direitos humanos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção Americana de Direitos Humanos e seu Protocolo Adicional em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

3 “Art. 12. 1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental. 2. As medidas que os Estados Partes do presente Pacto deverão adotar com o fim de assegurar o pleno exercício desse direito incluirão as medidas que se façam necessárias para assegurar: a) A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como o desenvolvimento das crianças; b) A melhoria de todos os aspectos de higiene do trabalho e do meio ambiente; c) A prevenção e o tratamento das doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras, bem como a luta contra essas doenças; d) A criação de condições que assegurem a todos assistência médica e serviços médicos em caso de enfermidade.

4 Vale registra que, em seus escritos mais recentes, Canotilho, um dos principais defensores do princípio, revisou seu entendimento e considerou a vedação de retrocesso insustentável em face na realidade econômica. No mesmo sentido, o Tribunal Constitucional de Portugal deixou de aplicá-lo no julgamento de diversas medidas de ajuste fiscal adotadas naquele país.

 

Download

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=3135 3
Como decide um Ministro do STF? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2515&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=como-decide-um-ministro-do-stf https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2515#comments Mon, 18 May 2015 12:33:19 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2515 1. Introdução

O que influencia a decisão de um juiz em julgamento? Várias teorias buscam responder a questão e definir os determinantes do comportamento judicial. Nos Estados Unidos, uma farta literatura empírica – de autoria de juristas, cientistas políticos e economistas – analisa a tomada decisão dos juízes da Suprema Corte do país. As decisões são determinadas pelo texto da lei? Ou os juízes são orientados pela ideologia ao julgar? Que objetivos eles perseguem, e como perseguem esses objetivos? Essas são todas questões fundamentais da literatura de comportamento judicial.

Três teorias de comportamento judicial se destacam: o jurídico, o atitudinal e o estratégico. A primeira se relaciona com uma abordagem normativa e argumenta que o comportamento judicial está restringido pela lei e pelo direito. Essa restrição não existe para os “atitudinalistas”, que sustentam que os juízes votam de acordo com as suas preferências pessoais em um caso, inclusive ideológicas. Por seu turno, na teoria estratégica, um juiz vai adotar estratégias para chegar aos seus objetivos, dado que podem existir várias restrições ao seu comportamento. Por essa visão, que é um desdobramento da teoria de escolha racional (rational choice theory), um juiz consideraria a reação de todos os agentes, dentro ou fora da Corte (ex: Poder Executivo), e adotaria uma conduta estratégica para atingir seus objetivos.

A  proxy de ideologia mais usada nos estudos atitudinais é o partido político do Presidente que indicou o juiz. Os autores que usam essa proxy partem do pressuposto de que um Presidente indica um juiz por afinidade ideológica e, por isso, o partido do Presidente se relaciona com a própria ideologia do indicado.  Exemplo eminente da força da teoria atitudinal é o julgamento recente mais notório da Suprema Corte americana: Bush v Gore. No controverso desdobramento do impasse na recontagem dos votos do estado da Flórida nas eleições presidenciais de 2000, a decisão da corte foi tomada por cinco votos a quatro: os cinco votos vencedores eram de indicados por Presidentes republicanos, e os dois únicos indicados por democratas no tribunal ficaram do lado vencido.

2. Literatura para o STF

Jaloretto e Mueller (2011) testam empiricamente a hipótese de as indicações presidenciais influenciarem as decisões do Supremo Tribunal Federal do Brasil, concluindo que não há evidência empírica de que as decisões do STF sejam influenciadas pelo método de escolha de seus ministros.  Leoni e Ramos (2006) aplicam uma técnica de estimação bayesiana (ideal point estimation) e também concluem que o Supremo é independente, apesar de uma tendência de apoiar cada vez mais o Executivo nos últimos anos estudados. Para eles, os ministros não são representantes dos presidentes que os indicaram. Oliveira (2008) usa uma regressão logística para chegar a um resultado consoante com o de Jaloretto e Mueller. O trabalho não encontra muita evidência para o papel de fatores políticos, e, ao observar um alto de grau de consenso nas votações, atribui um papel fundamental nas decisões para o “profissionalismo”. A autora avalia que este resultado dá “credibilidade e legitimidade” ao Supremo Tribunal Federal.

 3. Um modelo espacial para os votos do STF

De maneira a testar empiricamente a hipótese de que o voto de um ministro se correlaciona com o Presidente que o indicou, é oportuna a utilização de um modelo espacial de votação (NOMINATE). Este é um método de escala multidimensional (multidimensional scaling) para projetar preferências em um espaço. Cada objeto recebe uma localização (coordenada) nesse espaço, de acordo com a similaridade que os objetos possuírem, ficando os menos semelhantes entre si mais distantes nesse espaço. Na aplicação aqui proposta, os objetos são os ministros, as similaridades são observadas através de seus votos e as localizações indicariam possíveis  posicionamentos ideológicos.

Através do padrão que emerge de uma quantidade de votações, o modelo concede coordenadas em um espaço para os votantes. Essas coordenadas dependem da maneira que os votos se correlacionam. Votantes que agem de forma parecida recebem coordenadas de maneira a ficarem espacialmente próximos. Da mesma forma, votantes que agem de forma diversa recebem coordenadas de maneira a ficarem espacialmente distantes.

Dentre as infinitas possibilidades de coordenadas para os votantes em N dimensões, o modelo escolherá, por um estimador de máxima verossimilhança, os posicionamentos mais prováveis, de acordo com os dados.

Foram estimados pontos ideais para os ministros usando os dados dos votos que eles deram nos julgamentos das 756 ações diretas de Inconstitucionalidade entre 2002 e 2012, abrangendo o final do governo FHC, os dois mandatos de Lula e o início do governo Dilma. Como a formação do tribunal não foi uniforme entre junho de 2002 e março de 2012, os pontos foram estimados para diferentes períodos, respeitando as nove composições diferentes que o Supremo teve.

Também foram estimados pontos ideais para o Advogado-Geral da União (AGU) e para o Procurador-Geral da República (PGR). Ambos devem se posicionar em todas as ações diretas de inconstitucionalidade, e a comparação dos seus pontos estimados com os dos ministros enriquece a análise das teorias de comportamento judicial.

Apesar de o artigo 131 da Constituição atribuir ao AGU a função de representar e assessorar a União, a mesma Constituição lhe reserva, no artigo 103, outro papel nas ADI: o de advogado de defesa. Assim, ele é, em tese, obrigado a se manifestar em todos os processos defendendo a norma que é alvo da ação. No entanto,  desde a ADI 1616, julgada em 2001, o AGU ficou desobrigado a defender normas em processos em que a jurisprudência do STF aponte para a inconstitucionalidade. Essa possibilidade tornou a atuação do Advogado-Geral da União mais interessante, porque ele passou a ter maior discricionariedade.

Já o PGR deve apresentar um parecer, que pode ser tanto favorável quanto contrário à ação, atuando como custos legis, o fiscal da lei.  Tal qual acontece com a manifestação do AGU, o parecer do PGR não vincula o voto dos ministros: eles podem seguir ou não seguir esse parecer.

Assim, é possível discutir a validade das principais teorias de comportamento judicial (atitudinal, estratégica e jurídica) com os gráficos estimados, apresentados a seguir. Na apresentação dos pontos ideais, os ministros estão classificados em subgrupos, de acordo com o Presidente que os indicou, conforme legenda no canto direito superior.

Os eixos dos gráficos não representam necessariamente uma divisão esquerda-direita ou liberal-conservador. Como os pontos são estimados de acordo com o padrão de votos dos ministros, a interpretação dos eixos depende de uma análise “subjetiva” das divisões ocorridas nas votações.

Figura 1 – 1º período: 20/06/2002 a 24/06/2003.

img_2515_1

Figura 2 – 2º período: 25/06/2003 a 29/06/2004.

img_2515_2

Figura 3 – 3º período 30/06/2004 a 15/03/2006.

img_2515_3

Figura 4 – 4º e 5º períodos: 16/03/2006 a 20/06/2006, 21/06/2006 a 04/09/2007.

img_2515_4

Figura 5 – 6º período: 05/09/2007 a 22/10/2009.

img_2515_5

Figura 6 – 7º, 8º e 9º períodos: 23/10/2009 a 02/03/2011, 03/03/2011 a 18/12/2011, 19/12/2011 a 08/03/2012.

img_2515_6

Pelo modelo atitudinal, na forma que a proxy de ideologia leva em conta o Presidente responsável pela indicação, era de se esperar que os pontos nos gráficos estivessem dispersos de acordo com as cores (já que a cor de cada ministro foi colocada de acordo com o Presidente que o indicou). Não é isso que acontece: pontos vermelhos (indicações de Lula) estão dispersos pelos gráficos, e pontos de outras cores (indicações de outros Presidentes) também não se dividem dessa forma.

Também em relação ao modelo estratégico é possível fazer algumas considerações a partir dos gráficos. A ideia então de que o Supremo não seria completamente independente por temer contrariar o Executivo perde força quando se compara a posição dos ministros com a do AGU, que representaria o governo federal.

Por fim, como salienta a literatura de comportamento judicial, é muito difícil provar objetivamente que um voto é estratégico ou que é sincero (como no modelo jurídico). É a presença do PGR nos gráficos estimados que permite discutir a validade do modelo jurídico. Se, por hipótese, ele de fato segue o seu papel constitucional de custos legis (“fiscal da lei”) e produz pareceres independentes com objetivos estritamente jurídicos, não perseguindo estratégias, a análise da sua localização em relação aos ministros indicaria a validade do modelo para o STF.

Não é possível concluir, portanto, que algum dos três modelos analisados é mais pertinente do que outro para explicar o comportamento judicial no STF. A aplicação do modelo de votação espacial vai ao encontro de outros trabalhos empíricos para o STF: de que o voto de um ministro pouco se correlacionaria com a ideologia do Presidente que o indicou, contrariamente ao que parte da opinião pública pensa sobre a questão. Uma explicação plausível para isso é que, a partir de sua nomeação, o ministro não depende mais do que Presidente que o indicou: não há qualquer mecanismo de recondução, devido à vitaliciedade do cargo.

4. Considerações finais: breve análise do mensalão

A possibilidade deste “comportamento determinístico” do Ministro de acordo com o Presidente que o indicou, conforme o caso Bush v Gore, encontrou respaldo na atuação de parte dos ministros na Ação Penal 470 (mensalão), conforme a Figura seguinte.

Figura 7 – Pontos ideais estimados – Mensalão

img_2515_7

Sem a pretensão de analisar exaustivamente esse julgamento, as coordenadas na dimensão horizontal (esquerda-direita) se relacionam com uma maior ou menor incidência de votos pró-réu, conforme comparação com o ponto estimado do PGR (que em uma ação penal tem o papel de acusador – neste tipo de processo não há participação do AGU).

Embora ministros indicados por Lula estejam dispersos pelo gráfico, na verdade, a divisão esquerda-direita do gráfico parece opor ministros mais novos na corte (indicados depois da divulgação do escândalo) de ministros mais antigos, à exceção de Fux. Essa divisão, por exemplo, seria consoante com o modelo atitudinal, conforme a percepção da opinião pública, dando ensejo à alteração no processo de escolha dos ministros.

 

Este texto é baseado no paper  “How Judges Think in the Brazilian Supreme Court: Estimating ideal points and identifying dimensionse na dissertaçãoComo Decidem os Ministros do STF: Pontos Ideais e Dimensões de Preferências”.

 

Leituras recomendadas:

Teorias de comportamento judicial:

EPSTEIN, L.; KNIGHT, J., The Choices Justices Make. Washington: CQ Press, 1998. 186 p.

EPSTEIN, L.; KNIGHT, J.; MARTIN, A. The Supreme Court as a Strategic National Policymaker. Emory Law Journal, v. 50, p. 583-612, 2001.

POSNER, R How judges think. Cambrige: Harvard University Press, 2008. 400 p.
SEGAL, J.; SPAETH, H. The Supreme Court and the Attitudinal Model. New York: Cambridge University Press, 1992.

 

Modelo espacial de votação (NOMINATE):

EVERSON, P.; VALLELY, R.; WISEMAN, J. NOMINATE and American Political History: A Primer. VoteView Working Paper, 2009.

POOLE, K.; ROSENTHAL, H. A Spatial Model for Legislative Roll Call Analysis. GSIA Working Paper #5-83-84, 1983.

 

Literatura empírica para o STF:

JALORETTO, M.; MUELLER, B. O Procedimento de Escolha dos Ministros do Supremo Tribunal Federal – Uma Análise Empírica. Economic Analysis of Law Review, v. 2, p. 170-187, 2011.

LANNES, O.; DESPOSATO, S.; INGRAM, M. Judicial Behavior in Civil Law Systems: Changing Patterns on the Brazilian Supremo Tribunal Federal. In: CICLO 2012 DO PROGRAMA DE SEMINÁRIOS CIEF-CERME-LAPCIPP-MESP, 2, Brasília, 14. nov 2012.

LEONI, E.; RAMOS, A. Judicial Preferences and Judicial Independence in New Democracies: the Case of the Brazilian Supreme Court. Disponível em: http://eduardoleoni.com/workingpapers/>. Acesso em: 14 out. 2012.

RIBEIRO, R. Política e Economia na Jurisdição Constitucional Abstrata (1999-2004). Revista Direito GV, v. 8, p. 87-108, 2012.

Download:

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2515 2
Por que o julgamento do STF sobre desaposentadoria é importante? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2328&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-o-julgamento-do-stf-sobre-desaposentadoria-e-importante https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2328#comments Tue, 04 Nov 2014 14:20:31 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2328 Introdução à desaposentadoria (desaposentação)

 A “desaposentadoria” (ou “desaposentação”) é tema que vem ganhando cada vez mais destaque, no Judiciário e no Legislativo1: o direito é pleiteado por centenas de milhares de aposentados e tem custos estimados em dezenas de bilhões de reais pelo governo. No Supremo Tribunal Federal, caminha para ser “o julgamento do ano”: o Plenário da Corte começou em outubro a analisar o Recurso Extraordinário nº 661.256, que tem repercussão geral – o que significa que a decisão deve ser estendida aos casos idênticos em todas as instâncias inferiores.

O julgamento começou com voto do ministro relator Roberto Barroso favorável à desaposentadoria, e também o ministro Marco Aurélio já votou também de maneira favorável em outra ação. Existem mais de cem mil ações no Judiciário pedindo a desaposentadoria, segundo a Advocacia-Geral da União (AGU). O governo ainda estima em meio milhão a quantidade de aposentados que continuam trabalhando e contribuindo para a Previdência, mas o número de afetados pode ser bem maior, considerando que a decisão favorável à desaposentadoria – pelo Congresso ou pelo STF – deve levar muitos trabalhadores que já são elegíveis a se aposentar; muitos aposentados que não trabalham a voltar ao mercado de trabalho formal; e muitos segurados a buscar judicialmente compensações por terem seguido as regras vigentes (tendo eles já se aposentado ou não).

Mas o que é a desaposentadoria? Conforme o texto publicado em junho (O que é desaposentadoria e qual o seu impacto?), simplificadamente, trata-se do direito ao recálculo do valor da aposentadoria para aqueles que continuaram trabalhando depois de se aposentar, de modo que seja incorporado ao benefício o valor das contribuições feitas à Previdência depois que se aposentaram (a contribuição previdenciária é devida por todos aqueles que trabalham).

Assim, a desaposentadoria guarda semelhança com o instituto da “reversão”, que permite, sob certas condições, que servidores públicos inativos voltem à atividade. Entretanto, os institutos são marcadamente diferentes: ao contrário do que a expressão “desaposentadoria” pode indicar, não se pleiteia meramente a possibilidade de se deixar de ser aposentado e voltar ao mercado de trabalho (como na reversão), mas de acumular trabalho e aposentadoria, pedindo, por uma segunda vez – quando de fato se para de trabalhar -, que as contribuições feitas se revertam em benefício. Nesse sentido, a expressão “reaposentadoria” ilustraria melhor o direito do que o termo “desaposentadoria”, já que não se trata da mera renúncia à aposentadoria acompanhada do retorno ao trabalho.

 

O fator previdenciário

 A desaposentadoria está intimamente ligada ao descontentamento com o “fator previdenciário”, e também com o fato de ele ser mal compreendido. Entendido como um “desconto” no valor que seria considerado justo para as aposentadorias, o fator, na verdade, busca contornar a ausência de idade mínima para aposentadoria no Regime Geral de Previdência Social (RGPS) – característica que faz do Brasil uma exceção entre os sistemas de seguridade existentes no mundo. Em geral, as aposentadorias no País se dão de maneira muito precoce quando comparadas a outros países, sejam eles países desenvolvidos ou mesmo países em desenvolvimento.

Para tornar o sistema mais equilibrado e sustentável, o fator previdenciário faz com que os benefícios dos que se aposentam mais cedo sejam menores do que os daqueles que escolhem se aposentar mais tarde. Assim, para dois segurados que começaram a trabalhar exatamente no mesmo dia, com a mesma idade e que receberam sempre os mesmos salários, a aposentadoria daquele que se aposentar, por exemplo, aos 55 anos, será menor do que a daquele que se aposentar cinco anos depois, aos 60 anos. O fator considera que o que se aposentou com 55 anos contribuirá por menos tempo e receberá por mais tempo o benefício do que aquele que se aposentou com 60, e por isso este último receberá um valor maior2.

Assim, o fator previdenciário deveria induzir os segurados a apenas começar a receber a aposentadoria em idades mais próximas daquelas praticadas mundo afora, remendando o problema da ausência de idade mínima para aposentadoria no RGPS. Isso, em parte, não aconteceu: as aposentadorias continuam se dando em idades baixas3. Estando aposentado em idade ainda jovem, o trabalhador tem plenas condições de voltar ao mercado de trabalho. Muitos destes trabalhadores se sentem injustiçados pelo fator, e buscam, administrativa ou judicialmente, o recálculo do benefício. Tal recálculo levaria em conta não apenas as contribuições adicionais feitas pelo indivíduo no novo emprego, após à aposentadoria, como também a sua idade mais avançada (que reduz o desconto aplicado pelo fator previdenciário).

O desequilíbrio prejudicial à previdência decorrente desse recálculo vem do fato de que entre o momento da aposentadoria e o momento do recálculo o indivíduo recebeu pagamentos a título de aposentadoria. Se ele deseja anular a aposentadoria anterior e recalculá-la com sua nova idade e tempo de contribuição, deveria, então, devolver todos os recursos que recebeu a título de aposentadoria. Tudo se passaria como se ele não tivesse se aposentado antes e estivesse pedindo aposentadoria agora. Recalcular o valor a receber, sem devolver o que recebeu até então, significa óbvio ônus ao erário.

 

O que apenas Brasil, Irã, Iraque e Equador têm em comum?

 Ainda pouco se fala no Brasil que somos um dos poucos países do mundo que permitem a aposentadoria por tempo de contribuição (anteriormente aposentadoria por tempo de serviço) – sem uma idade mínima. Juntam-se à exceção brasileira apenas o Irã, o Iraque e o Equador, sendo que este último exige um mínimo de 40 anos de contribuições. Não apenas o Brasil está acompanhado nesse quesito por economias nada modernas, mas, dentre elas, pode ser considerado o mais generoso nas condições de elegibilidade para concessão do benefício: Irã, Iraque e Equador só concedem a aposentadoria caso o segurado efetivamente pare de trabalhar.

Na verdade, a maioria dos países trata a aposentadoria de fato como um “seguro”. A noção por trás da aposentadoria é justamente que o segurado contribui para o sistema e, quando se encontra incapacitado de trabalhar (o equivalente a um sinistro em outros tipos de seguro), recebe um benefício para se manter.  É por isso que quase todos os países possuem uma idade mínima para a aposentadoria, já que seria a idade avançada que inviabilizaria o trabalho. Outro exemplo de ocorrência de “sinistro” seria a aposentadoria por invalidez, em que o segurado perde as condições de trabalhar normalmente, ainda que jovem, e recebe um benefício da seguridade social por isso, ou ainda o auxílio-doença.

As aposentadorias estão longe de ser entendidas como um “seguro” pela sociedade brasileira, seja no RGPS (Regime Geral de Previdência Social, o regime administrado pelo Instituto Nacional do Seguro Social – INSS) ou no serviço público (Regime Próprio de Previdência Social – RPPS), e são entendidas como uma renda que o trabalhador tem direito a receber como recompensa por décadas de trabalho, sendo considerado natural que ele ainda esteja em condições de trabalhar quando se aposenta. De acordo com o art. 194 da Constituição da República, integram o nosso sistema de seguridade social não apenas a previdência, mas também a assistência social e a saúde – esta última é financiada pelos segurados via tributos: na ocorrência de um “sinistro” (um problema de saúde), o segurado tem direito a ser tratado na rede pública de saúde.

Ressalta-se mais uma vez que a idade mínima para aposentadoria é a regra mesmo em países em desenvolvimento. Essa idade mínima, em geral, vai de pelo menos 60 anos para homens até um mínimo de 66, em Portugal, e 67, na Grécia e em países de renda alta (como os escandinavos). Como apresentado no texto anterior, entre os nossos vizinhos, México, Colômbia, Argentina, Chile e Peru têm, por exemplo, idade mínima de 65 anos.

O caso brasileiro é ainda mais discrepante quando se considera a expectativa de sobrevida da população idosa. Apesar de a expectativa de vida ao nascer no Brasil ainda estar abaixo da de outros países (74,6 anos em 2013, segundo o IBGE), ao contrário do que se pensa, não é esse o dado relevante para a seguridade social, e sim a expectativa de vida condicionada a idades mais avançadas4 (ou expectativa de sobrevida). A expectativa de vida daqueles com 65 anos no Brasil é próxima da de países desenvolvidos (83 anos em 2012, de acordo com o IBGE) e a OCDE estima que no futuro ela deve superar ligeiramente até a dos Estados Unidos e a da Dinamarca, chegando a quase 90 anos (24,6 anos de expectativa de sobrevida aos 65)5.

A falta de compreensão dessa realidade e do mecanismo que buscou corrigi-la (o fator previdenciário) está diretamente relacionada aos pleitos de desaposentadoria e à sua aceitação por parte da classe política e do Judiciário. Contudo, o instituto da desaposentadoria não parece consoante com a nossa Constituição, como veremos a seguir.

 

Sobre constitucionalidade: (des)equilíbrio atuarial, diferenciação dos segurados, majoração de benefícios sem fonte de custeio e a escolha do constituinte pelo modelo de repartição  

A preocupação com o equilíbrio da Previdência Social não é recente e não é apenas do governo ou dos economistas: está explícita no texto constitucional. No julgamento do STF, naturalmente é sob a luz da Constituição que a desaposentadoria é analisada.   No art. 201 consta que a organização da Previdência observará critérios de preservação do equilíbrio financeiro e do equilíbrio atuarial. Esses não são termos abstratos ou sem significado, apesar de o debate sobre a desaposentadoria por vezes parecer ignorar a presença do “equilíbrio financeiro e atuarial” na Constituição.

O Ministério da Previdência Social (MPS) define de maneira objetiva o equilíbrio financeiro como a equivalência entre receitas e obrigações em cada exercício financeiro, o que já não ocorre, apesar de ainda sermos um país com população jovem: o deficit estimado para 2014 é de R$ 55 bilhões. Já o equilíbrio atuarial seria a “equivalência, a valor presente, entre fluxo de receitas estimadas e obrigações projetadas, apuradas atuarialmente, a longo prazo”6. Ou seja, de maneira simplificada, o equilíbrio atuarial existe quando o valor esperado da diferença entre receitas e despesas futuras é zero: a arrecadação equivaleria às despesas e não haveria desequilíbrio.

A desaposentadoria vai de encontro com o equilíbrio atuarial. Isso porque desconsidera as variáveis atuariais usadas no cálculo do benefício e presentes no fator previdenciário. O fundamental é que o cálculo do valor da “primeira” aposentadoria não considera que o benefício será aumentado anos depois (como na desaposentadoria), e sim que o beneficiário permanecerá recebendo como provento aquele valor (em termos reais) que foi concedido, residindo justamente aí a fonte do desequilíbrio.

Naturalmente, o valor do benefício guarda relação com o valor da contribuição, mas também, entre outros fatores, com o tempo esperado de usufruto. Como o tempo esperado de usufruto é o mesmo com a desaposentadoria (logicamente a expectativa de sobrevida não diminui), o aumento do benefício gera o desequilíbrio: não há equivalência entre o valor esperado que o segurado receberá e o que ele contribuiu. A “premissa” dos pleitos de desaposentadoria é que seria justo que o beneficiário receba mais porque contribui mais quando continuou trabalhando, mas com a desaposentadoria o que de fato temos é o desequilíbrio do ponto de vista atuarial. Em outras palavras, como o trabalhador se aposenta cedo e tem longa expectativa de vida, mesmo com a aplicação do fator previdenciário, as contribuições que ele pagou não são suficientes para cobrir os benefícios que receberá. Tampouco “cobrem o buraco” as contribuições que ele paga quando volta à ativa, após à aposentadoria. Assim, o aumento do benefício via desaposentadoria apenas agrava o desequilíbrio atuarial.

Tal desequilíbrio atuarial seria minorado se o beneficiário devolvesse os valores recebidos entre o primeiro pedido de aposentadoria e o segundo pedido (desaposentadoria), mas não é esse o tratamento que tem sido dado à questão, caracterizando possível ofensa ao texto constitucional7.

O desequilíbrio é facilmente percebido quando se compara a situação dos “desaposentados” com a daqueles que, em vez de pedir a aposentadoria quando ficaram elegíveis, esperaram anos para pedir a aposentadoria definitiva, seguindo as regras vigentes e a lógica do fator previdenciário (que faz com que o valor do benefício seja maior quanto mais se espera para pleitear a aposentadoria). Com a desaposentadoria, os trabalhadores que esperaram (ou esperam) vão fazer jus a benefícios com o mesmo valor dos desaposentados, sem que tenham recebido os milhares de reais que os desaposentados receberam entre o primeiro e o segundo pedido de aposentadoria.

A situação, além de ser sobremaneira injusta e ilógica, ilustra o desequilíbrio atuarial que acompanha a desaposentadoria: segurados que contribuíram durante um mesmo período de tempo e sobre um mesmo salário vão receber da Previdência quantias muito diferentes, sendo que aqueles que seguiram as regras receberão muito menos do que os que pleitearam a desaposentadoria. Ou seja, mesmo que os valores de variáveis atuariais como idade e expectativa de sobrevida sejam idênticos, os montantes recebidos serão bastante diferentes.

Ainda, essa distorção pode ser interpretada como um afronta ao § 1º do art. 201 da Constituição, que veda a ação de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria no RGPS8.

Com efeito, a revisão dos benefícios que ocorre com a desaposentadoria majora as aposentadorias, o que confrontaria também o § 5º do inciso IV do art. 195 da Constituição. Tal dispositivo condiciona a criação, majoração ou extensão de benefícios ou serviços da seguridade social à existência de uma fonte de custeio total específica. A desaposentadoria aumentaria as despesas da seguridade sem especificar de onde viriam os recursos para custeá-las, especialmente caso seja reconhecida por decisão do Judiciário.

No entanto, os possíveis conflitos com o texto constitucional não se resumem somente à ausência do equilíbrio atuarial, à diferenciação dos segurados ou à majoração de benefícios sem a fonte dos recursos. A escolha do constituinte para o regime de custeio da Previdência foi o de “repartição”, como em geral os países escolhem para a previdência pública, e não o de “capitalização”, o regime de custeio usado na previdência privada.

No regime de repartição, os trabalhadores ativos financiam as aposentadorias dos inativos. Já no regime de capitalização, as contribuições do trabalhador ativo, quando está em atividade, são investidas individualmente e revertidas futuramente no valor da aposentadoria. A escolha pelo regime de repartição está expressa no art. 195, em que se estabelece que a seguridade social será financiada por toda a sociedade. A revisão dos benefícios, pleiteada na desaposentadoria, se apoia na ideia de que as contribuições do segurado devem ser revertidas em benefício, mesmo que feitas depois que ele já se aposentou. Ideia semelhante motiva os pedidos para que as contribuições deixem de ser cobradas quando o segurado acumula trabalho e aposentadoria.

Evidentemente esses argumentos fazem sentido apenas no regime de capitalização, como em uma previdência privada, mas não no caso dos benefícios do INSS. Se o nosso regime é, para todos os outros fins, o de repartição, não há que se considerar que os valores das novas contribuições sejam transformados em benefícios, porque, conforme a interpretação feita do art. 195, o benefício do segurado seria financiado por toda a sociedade, e não por sua contribuição individual.

Naturalmente existe uma confusão, já que a aposentadoria precoce (por conta da ausência de idade mínima), concedida sem estar condicionada à efetiva interrupção do trabalho, faz com que o trabalhador possa estar na peculiar condição de ativo e inativo simultaneamente – e isso ocorre ou ocorreu com milhões de trabalhadores.

Cabe observar que o fato de termos apontado aqui controvérsias em relação a pontos explícitos (como o equilíbrio atuarial) e implícitos (como a escolha pelo regime de repartição) no texto constitucional não implica que os segurados que pedem a desaposentadoria ajam de má-fé. O que parece ocorrer, como ressaltado anteriormente, é uma incompreensão sobre a realidade da ausência de idade mínima e da solução do fator previdenciário. Ainda, esses segurados certamente consideram o valor dos benefícios insatisfatórios, mas isso decorre da própria situação econômica do país, que ainda está longe de ser considerado um país com renda média alta. Em geral, a renda desses beneficiários já não podia ser considerada satisfatória quando estavam na ativa, e o valor da aposentadoria reflete esse quadro.

 

Ausência de omissão legislativa: as Leis nº 9.876, de 1999; nº 9.032, de 1995; nº 9.528, de 1997; e nº 8.870, de 1994.         

 Um dos argumentos usados para que o Judiciário reconheça a desaposentadoria é que existe omissão legislativa em relação à matéria – questão destacada inclusive no STF. No entanto, um conjunto de leis aprovadas pelo Congresso Nacional nos anos 90 gerou arcabouço bastante claro em relação às regras de concessão de benefício, sem previsão de desaposentadoria (além dos pontos já citados em relação à Constituição). Essas normas alteraram a Lei Orgânica da Seguridade Social e o Plano de Benefícios da Previdência Social9.

Essas leis são claras, respectivamente, em relação ao cálculo do valor dos benefícios (Lei nº 9.876/199910), à obrigatoriedade da contribuição pelo aposentado que continua trabalhando (Lei nº 9.032/1995, art. 12, § 4º 11), e à inexistência de benefício decorrente dessa contribuição (Lei nº 9.528/1997, art 2º 12). Dessa forma, não há que se falar em “omissão legislativa” em relação à desaposentadoria. O mero fato de a legislação ir de encontro com a desaposentadoria não deve ser considerado omissão do legislador.

A legislação anterior previa instituto próximo da desaposentadoria: o pecúlio, que consistia na devolução dos valores contribuídos pelo aposentado que continuava trabalhando. Entretanto, a Lei nº 8.870, de 15 de abril de 1994, acabou com essa possibilidade13.

 

Riscos fiscais e insegurança jurídica

 A desaposentadoria naturalmente se apresenta como um grande desafio para as finanças públicas do País e para a sustentabilidade da Previdência. Porém, além disso, destaca-se ainda que uma decisão favorável do Legislativo ou do Judiciário em relação a esse instituto pode trazer insegurança jurídica e riscos fiscais no futuro, ao abrir precedentes para que outros segurados invistam em ter pleitos atendidos baseados na lógica da desaposentadoria, notadamente os “não desaposentados” e os servidores inativos do RPPS, como se mostra adiante.

O MPS estima, de forma conservadora, em R$ 70 bilhões os custos da desaposentadoria a longo prazo14. A cifra é considerada subestimada (pelo próprio órgão) porque levou em conta apenas os custos advindos da revisão do valor das aposentadorias por tempo de contribuição que estavam ativas em 2010, se referindo, portanto, a apenas uma primeira dimensão dos custos. Mesmo essa “subestimativa” impressiona quando é analisada conjuntamente com as realidades das contas públicas no Brasil e as previsões para o futuro da seguridade.

Com a carga tributária situando-se ao redor de 37,5% do PIB (inviabilizando aumentos de tributos) e uma população cobrando maior qualidade dos serviços públicos (trazendo pressão constante pelo aumento de gasto), parece difícil incluir a variável desaposentadoria na equação de receitas e despesas do país. A situação é agravada pela perspectiva de rebaixamento da nota de crédito das contas públicas brasileiras pelas agências de risco internacionais. Nesse contexto, só se pode prever que uma decisão favorável à desaposentadoria terá impactos significativos.

No que tange à sustentabilidade do sistema, a desaposentadoria aparece como um delicado movimento de contrarreforma, anulando, pelo menos parcialmente, os ganhos da primeira (1998) e da segunda (2003) reformas da Previdência. É essencial salientar que mesmo essas reformas não foram suficientes para alterar o preocupante futuro que as contas da Previdência desenham para o país. Se hoje o Brasil, jovem, tem para 2014 um déficit previdenciário estimado em R$ 55 bilhões, para o futuro – na ausência de novas reformas – a situação da seguridade deve ser gravíssima e essa percepção já hoje afeta a economia brasileira (por exemplo, através de pouco investimento privado de longo prazo no país). Segundo o MPS, em 2010 havia nove pessoas em idade ativa (com capacidade para trabalhar), para cada idoso15. Já em 2050 serão apenas três para cada idosos, em uma Previdência custeada pelo regime de repartição (em que as contribuições dos ativos financiam os benefícios dos inativos), como ressaltado anteriormente.

Se o cenário já era preocupante sem a desaposentadoria, é importante explicitar outros riscos fiscais que uma decisão favorável apresentará. Os riscos fiscais são entendidos como gastos que o governo pode ter que incorrer no futuro, mas que são imprevisíveis no momento. A estimativa direta do custo da desaposentadoria pode ser calculada, como mostrado nos parágrafos anteriores (R$ 70 bilhões), mas nesse caso os riscos fiscais residiriam em “custos indiretos”, em consequências menos óbvias da desaposentadoria.

Se a estimativa de R$ 70 bilhões considerava apenas o estoque de aposentadorias em 2010, é de se imaginar que os gastos serão muito maiores ao longo do tempo, na ausência de novas mudanças de regras. Em primeiro lugar, somando-se a este estoque de 2010, há todo ano um fluxo contínuo de novas aposentadorias por tempo de contribuição, que não integram a estimativa de R$ 70 bilhões e encarecerão a conta. Em segundo lugar, além do fluxo “normal” de aposentadorias por tempo de contribuição, deve-se observar um aumento no número de segurados que optarão por esse benefício nos próximos anos: com a desaposentadoria reconhecida, o esperado é que os segurados negligenciem o fator previdenciário, se aposentem o mais cedo possível, continuem trabalhando e peçam a revisão dos benefícios. Este custo também não faz parte da estimativa de R$ 70 bilhões.

Em terceiro lugar, será natural que ocorra uma “corrida à aposentadoria” assim que a desaposentadoria for aprovada, por parte daqueles que já são elegíveis e esperavam para pedir um benefício maior no futuro: o racional é que se aposentem imediatamente e continuem trabalhando, para pedir futuramente a desaposentadoria visando a um benefício maior. Por último, também deve haver uma corrida, ainda que bem menor, de volta ao mercado de trabalho por parte dos aposentados que acreditavam que não compensava voltar a trabalhar: com a perspectiva de que o retorno à atividade possa elevar seus proventos futuramente, muitos devem se sentir encorajados. Esses últimos dois movimentos também devem aumentar sobremaneira os custos da Previdência futuramente, mas também não fazem parte da estimativa de R$ 70 bilhões.

A conta, talvez, não se feche aí. Existem ainda riscos fiscais porque um entendimento favorável à desaposentadoria deve incentivar outros segurados a buscarem direitos que incorram em mais gastos para Previdência. Um caso é o dos “não desaposentados”, aqueles trabalhadores e aposentados que não pediram de imediato a aposentadoria por tempo de contribuição, esperando anos, em atividade, para conseguir um benefício de valor maior, de acordo com a fórmula do fator previdenciário.

A situação desses segurados já foi citada anteriormente: eles receberiam daqui em diante benefício igual ao dos desaposentados (que fizeram o pedido de revisão da aposentadoria), sem terem recebido por anos as aposentadorias que os desaposentados receberam entre o primeiro e o segundo pedido de aposentadoria. Diante dessa enorme frustração por terem seguido às regras vigentes, parece natural que eles busquem reparação, já que um desaposentado e um “não desaposentado” receberão quantias muito diferentes ainda que tenham, rigorosamente, trabalhado e contribuído pelo mesmo período de tempo e com os mesmos valores, com a única distinção sendo a escolha por tentar a revisão do beneficio ou se conformar em seguir a legislação.

Outro risco fiscal que surge com a desaposentadoria, menos intuitivo, decorre da contribuição feita pelos servidores públicos inativos. Se a lógica da desaposentadoria for aplicada a esse caso, a contribuição pode acabar, ter seus valores devolvidos ou justificar o aumento da aposentadoria de milhares de servidores públicos. Desde a Emenda à Constituição nº 41, de 19 de dezembro de 2003, – segunda reforma da Previdência – os aposentados e pensionistas do serviço público (RPPS) devem pagar a contribuição previdenciária, ao contrário do que ocorre com os aposentados do INSS (RGPS)16.

A controvérsia em relação a essa contribuição não é nova, mas, caso o Judiciário seja favorável à desaposentadoria, estará entendendo que a contribuição de um inativo deve ser posteriormente revertida em benefício, abrindo margem para um novo entendimento em relação à contribuição dos servidores públicos inativos que veio com a última reforma da previdência. O STF decidiu, dez anos atrás, no julgamento das ADIs 3105 e 3128, que a contribuição era constitucional, com o voto contrário de quatro ministros e parecer contrário da Procuradoria-Geral da República.

A controvérsia pode ser ressuscitada, já que há uma pressão forte e contínua por parte dos inativos e pensionistas atingidos, visível no grande apoio que recebeu a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 555, de 2006, que acaba com a cobrança e tramita atualmente na Câmara dos Deputados. À época das ADIs, o entendimento do STF foi de que a implantação da contribuição obedecia “aos princípios da solidariedade e do equilíbrio financeiro e atuarial, (…) aos objetivos constitucionais de universalidade, equidade na forma de participação no custeio e diversidade da base de financiamento”.

Embora o valor médio dos benefícios do RGPS seja muito inferior ao do RPPS, e embora a Constituição trate o RGPS e o RPPS de maneira separada, – com o princípio da solidariedade estando explícito para o RPPS e não para o RGPS – a referida lógica da desaposentadoria no RGPS poderia dar embalo ao persistente movimento de contrarreforma no RPPS, que também defende que deve haver uma relação entre o benefício e a contribuição de um inativo.

Tanto o possível fim da contribuição dos inativos do RPPS como a “reparação”17 que os “não desaposentados” podem conseguir constituem riscos fiscais substanciais, ou seja, o custo da desaposentadoria pode ser bem superior a R$ 70 bilhões.

 

Considerações finais: o “custo de oportunidade” da desaposentadoria

 Economistas são constantemente acusados de se preocupar apenas com “custo financeiro” e não “com as pessoas”. O custo da desaposentadoria (e tantos outros custos) não se refere meramente a uma cifra que poderia ser economizada, um valor sem significado. Deve-se concebê-la como um “custo de oportunidade”, conceito básico da economia que pode ser entendido, simplificadamente, como o melhor uso que se pode fazer de um recurso – dentre várias possibilidades a serem escolhidas.

Pelos custos que trará e pelos riscos fiscais, caso uma decisão favorável do Judiciário saia em breve, ela constituirá verdadeira “herança maldita” para o governo 2015-2018, ainda que seus efeitos sejam modulados. Pela ótica do “custo de oportunidade”, a desaposentadoria sugará recursos valiosos que poderiam ser usados em outras políticas públicas, como as que objetivam a erradicação da pobreza, a redução da desigualdade e o crescimento econômico – além de tirar espaço fiscal de áreas como a educação e a saúde.

Frisa-se que, muito embora a maioria dos segurados beneficiários do RGPS não considere a sua renda satisfatória, o instituto da desaposentadoria é considerado de caráter regressivo pelo próprio MPS18. Isso implica que ele acentua, e não reduz a desigualdade de renda. Segundo o MPS, os “aposentados contribuintes” (candidatos à desaposentadoria, ainda em atividade) estão em melhor situação que a dos aposentados que não trabalham e em melhor situação que a dos trabalhadores não cobertos pela Previdência. Dentre esses candidatos à desaposentadoria, 96% estaria na metade mais rica da população do País, e 52% estaria entre o grupo dos 10% de brasileiros mais ricos. Ainda, a média do valor das aposentadorias por tempo de contribuição (a relacionada à desaposentadoria) corresponde ao dobro da média do valor das aposentadorias por idade e a mais de 50% da média do valor das aposentadorias por invalidez19.

Quando se manifesta a preocupação com o custo da desaposentadoria ou com a sustentabilidade do sistema como um todo, devem ser vislumbrados também os custos de oportunidade que existirão futuramente, com grandes quantias de recursos públicos sendo destinadas à Previdência – trazendo um impacto não apenas nas contas públicas, mas em toda a economia. Nossas escolhas hoje, criando um gigantesco déficit previdenciário nos próximos anos, afetarão não apenas a próxima geração de aposentados, mas também toda uma geração de trabalhadores – e a sociedade brasileira como um todo.

Portanto, parece essencial que as regras do sistema previdenciário sejam mais claras e melhor entendidas, a fim de se criar um sistema mais sustentável. Ao não impormos regras que acompanhem as práticas internacionais, acaba se fazendo necessária a invenção de remendos no sistema, que terminam incompreendidos e contestados, como acontece com o fator previdenciário ou a contribuição dos servidores inativos.

Outra possível consequência da escolha pela desaposentadoria, devido aos seus grandes impactos, é a precipitação de uma reforma que finalmente imponha a idade mínima, como já existe no RPPS, e que acabou não sendo aprovada junto com a Emenda à Constituição nº 20, de 1998. Ou seja, pode ser que, mais de dezesseis anos depois de o problema ter sido diagnosticado e de mudanças terem sido propostas, a desaposentadoria dê ímpeto ao estabelecimento da idade mínima no RGPS (com uma regra de transição justa que respeite os planos dos segurados). Por fim, no caso de uma decisão pela desaposentadoria vinda do Judiciário, se os ministros acompanharem o relator, o Legislativo ainda teria seis meses para vedá-la – prazo dado no voto do relator para que a decisão do STF começasse a valer.

 

(Este texto é baseado no trabalho “A DECISÃO DE R$ 70 bilhões: sobre constitucionalidade, ausência de omissão legislativa e riscos fiscais da desaposentadoria”. O estudo integral consta do Boletim do Legislativo nº 15 do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado, disponível no seguinte link: http://www.senado.gov.br/estudos)

__________________

1 É objeto dos Projetos de Lei do Senado (PLS) nº 214, de 2007, e nº 91, de 2010, ambos de autoria do Senador Paulo Paim. Com objetos diferentes, mas motivação semelhante, também tramitam na Casa os PLS nºs 464, de 2003; 56, de 2009; e 188, de 2011.

2 O fator previdenciário é regido pela Lei nº 9.876, de 26 de novembro de 1999.

3 A idade média de aposentadoria por tempo de contribuição dos brasileiros é de apenas 55 anos no caso dos homens e de 52 anos nos casos das mulheres. O número impressiona: em se tratando de uma média, o valor sintetiza a ocorrência de muitas aposentadorias em idades bastante precoces.

4 Essa expectativa não é afetada, por exemplo, pela mortalidade infantil ou por causas de morte comuns em faixas etárias menores, como a violência ou doenças cardíacas.

5 Pensions at Glance – 2013: OECD and G20 indicators. Disponível em: http://www.oecd.org/els/public-pensions/

6 Portaria do MPS nº 403, de 10 de dezembro de 2008.

7 Outras opções para corrigir o desequilíbrio atuarial, pouco factíveis, seriam a incorporação, pelo fator previdenciário – já no primeiro pedido –, da possibilidade de desaposentadoria (o que seria injusto com quem de fato pretende se aposentar cedo), ou a contabilização das contribuições feitas depois do primeiro pedido para uma nova aposentadoria, mas conforme as regras já existentes para concessão do benefício (como os 35 anos de contribuição, para homens).

8 Salvo casos definidos em lei complementar em relação a condições que prejudiquem a saúde ou a integridade física e o caso dos portadores de deficiência.

9 Respectivamente a Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, e a  Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991.

10 A Lei, que instituiu o fator previdenciário, prevê a possibilidade de o segurado optar por ter benefício em que não incida o fator. Ela garante, em seu art. 7º, “a opção pela não aplicação do fator previdenciário”, caso a opção seja pela aposentadoria por idade (que, em geral, se dá mais tarde do que à por tempo de contribuição). Cabe observar ainda que essa norma é bastante clara em relação à fórmula de cálculo do valor dos benefícios.

11 Prevê que o aposentado pelo RGPS que exercer atividade abrangida pelo Regime Geral será segurado obrigatório em relação a tal atividade, estando sujeito à contribuição previdenciária, “para fins de custeio da Seguridade Social”.

12 Estipula que o aposentado pelo RGPS que continua em atividade abrangida pelo regime “não fará jus a prestação alguma da Previdência Social em decorrência do exercício dessa atividade”.

13 Determinando que fosse feito pagamento em parcela única para aqueles aposentados que estavam contribuindo até à vigência dessa nova lei (art. 24, Parágrafo único).

14 CONSTANZI, R. N. “Evolução e Situação Atual das Aposentadorias por Tempo de Contribuição”. Informe da Previdência Social, vol. 23, nº 8. Ministério da Previdência Social, 2011.

15 BARBIERI, C. V. “Cuidados de Longa Duração no Brasil: As Possibilidades do Seguro-Dependência”.  Informe da Previdência Social, vol. 25, nº 4. Ministério da Previdência Social, 2013

16 Essa contribuição, de 11%, incide apenas sobre os benefícios de servidores civis com valores acima do teto do INSS (R$ 4.390,24 em 2014).

17 Os escritórios especializados em direito previdenciário ainda não deram um nome para esse possível tipo de ação. Chama a atenção que, no julgamento do STF, que tem como partes o INSS e um segurado, participa como amicus curiae o Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP), defendendo a desaposentadoria. Trata-se de entidade sem fins lucrativos, mas que tem a diretoria composta por vários advogados sócios de escritórios que atuam de maneira explícita em ações pró-desaposentadoria.

18 CONSTANZI, R. N.  Obra citada, pág. 7

19 Segundo o Boletim Estatístico da Previdência Social de Agosto/2014, o valor médio das aposentadorias concedidas naquele mês foi de R$ 1.740,01 (tempo de contribuição), R$ 1.149,31 (invalidez) e R$ 863,60 (idade).

 

Download:

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2328 13