setor público – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Tue, 21 Nov 2017 13:54:56 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Monteiro Lobato e a diferença salarial público-privada https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3099&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=monteiro-lobato-e-a-diferenca-salarial-publico-privada https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3099#comments Tue, 21 Nov 2017 13:54:56 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3099 “Os povos denunciam sua mocidade nas ideias, na alegria da vida, na dionisíaca vontade de poder. É moço o povo americano, como é moço o povo alemão. O brasileiro é velhíssimo. Onde está o entusiasmo criador, o ímpeto para formas só suas, o rush de avalanche para um über alles qualquer? Dê-me um rapazola, seu patrício, que não pense com cérebro de 70 anos, e que ao sair de uma escola superior não aspire a entrar na vida “já aposentado”, isto é, que não aspire a colocar-se num dos quadros do monstruoso parasitismo burocrático que aqui rói, como piolheira, o trabalho dos que ainda trabalham.” – Mr. Slang, personagem de Monteiro Lobato

 

José Bento Renato Monteiro Lobato, ou simplesmente Monteiro Lobato, ficou conhecido não apenas por suas obras infanto-juvenis, como Sítio do picapau amareloHistórias de Tia Nastácia, estas que constituem cerca de metade de toda a sua produção literária, mas também por suas ideias e opiniões fora do senso comum, materializadas em artigos, crônicas, cartas, contos e afins. Monteiro Lobato tornou-se ícone da literatura brasileira por contar histórias divertidas, curiosas e espantosas da gente simples com quem conviveu, que tinham apelo e identificação junto ao grande público.

Monteiro Lobato também era ávido crítico do parasitismo brasileiro, preocupando-se em reformar o Brasil política e economicamente, transformando a mentalidade popular. Em sua obra Mr. Slang e o Brasil, originalmente publicada em “O Jornal” de Assis Chateaubriand, o autor narra histórias de conversas que teve com John Irving Slang, uma espécie curiosa de amigo imaginário, natural de Hull, na Inglaterra. As opiniões do amigo inglês expressam, na verdade, críticas de Monteiro ao status quo, e constituem um retrato da vida brasileira na década de 20 do século passado. Em certo diálogo, ao se deparar com uma já desgastada caixa d’água, Mr. Slang teria dito:

Sempre que a vejo, tenho a sensação física dos orçamentos do Brasil. O orçamento do Brasil compõe-se de uma torneira como aquela, a Receita, e de uma infinidade de “ladrões” por onde a água escapa. Sabe o que é um “ladrão” em técnica hidráulica?

O leitor sabe bem que o Estado brasileiro passa por uma grave crise fiscal. Com déficits primários recordes e dívida pública explodindo, o governo se viu obrigado a aprovar a chamada “PEC do teto de gastos”, amarrando-se numa camisa de força para controlar seu ímpeto gastador.

Naturalmente, surgem todo tipo de propostas de como resolver o problema: desde ideias fantasiosas, como calotes (ou, como alguns têm chamado: “auditoria cidadã”), até algumas que, de fato, atacam o problema, como a reforma da Previdência. Alguns preferem falar sobre as mordomias de que gozam os membros do Judiciário e políticos (e não me confunda o leitor: de fato, tais mordomias existem e precisam ser combatidas); poucos, infelizmente, comentam sobre a sobre-remuneração da maior parte dos servidos públicos “comuns”, fora das manchetes de jornais ou capas de revistas.

Sugestão elaborada por Fernando Schuler, Sandro Cabral e Sergio Lazzarini propõe a criação de uma “Lei de Responsabilidade Gerencial” do setor público brasileiro. Os autores criticam a letargia do serviço público, bem como a ineficiência que, invariavelmente, vem associada ao elevado custo. Advogam, como solução, a introdução de metas e objetivos, aliadas à análise independente de desempenho, bem como remuneração por mérito dos servidores.

Trata-se de um passo na direção certa, mas ainda insuficiente. Uma investigação pelas torneiras por entre as quais flui o gasto público brasileiro pede que se traga ao centro do debate a política salarial do funcionalismo público. A maior eficiência do Estado brasileiro passa, inexoravelmente, por remunerações mais condizentes com a realidade do restante da sociedade que o sustenta. Afinal, é sabido que os servidores ativos da União, por exemplo, custaram, em 2016, incríveis R$147 bilhões, ou 2,3% do PIB nacional.

Quanto, de fato, os servidores públicos têm de vantagem?

Estudo conduzido por este autor junto ao professor Naercio Menezes, do Insper, quantifica e qualifica o chamado “prêmio salarial” público e analisa sua evolução no período que compreende as duas décadas entre 1995 e 2015. Fato interessante desse estudo é que não comparamos simplesmente os salários entre servidores públicos e trabalhadores da iniciativa privada; lembre o leitor, afinal, que não necessariamente os grupos têm características iguais: funcionários públicos, por exemplo, têm um nível médio de instrução mais elevado, além de serem mais velhos e terem maior experiência no emprego. Logo, a simples comparação de salários médios não seria justa; é preciso algo mais sofisticado, e foi isso que fizemos (a metodologia, caso o leitor se interesse, está bem explicada no paper).

Para que o leitor possa compreender melhor, comecemos definindo alguns termos: chamemos de “diferença explicada” aquela diferença que pode ser atribuída às diferenças nas características (como idade, educação, experiência e afins): faz sentido pensarmos que pessoas mais instruídas e experientes ganhem salários maiores. Logo, a “diferença inexplicada” será definida como toda a diferença que não se pode atribuir às diferenças nas características; em termos mais técnicas, a “diferença inexplicada” corresponde às diferenças na remuneração das características, não nelas per se. Tal diferença (inexplicada) será chamada simplesmente de “prêmio”, “vantagem” (“desvantagem”, caso negativa) ou palavras correlatas.

Vamos analisar o setor público dividido em suas três esferas (federal, estadual e municipal) e, por fim, analisá-lo de maneira agregada. Para tornar a análise mais interessante, vamos dividir cada grupo em três outros níveis de instrução, a saber: baixa instrução (0 a 8 anos completos de estudo), média instrução (9 a 12 anos de estudo), e alta instrução (mais de 12 anos de estudo).

Federal

O gráfico abaixo traz a diferença total entre o salário por hora médio recebido pelos servidores federais e pelos trabalhadores do setor privado, de 1995 a 2015.

O gráfico nos mostra que o prêmio salarial cresceu de 1995 até os anos mais recentes, saindo de cerca de 50% (em relação ao salário-horário médio do setor privado) para algo perto de 93%. Interessante, ainda, notar como a diferença total (explicada + inexplicada) manteve-se relativamente constante ao longo dessas duas décadas. Abaixo, o prêmio em 2015 decomposto por nível de instrução:

É possível perceber que, pelo menos para 2015, os prêmios são elevados para todos os níveis de instrução, mas relativamente maiores entre os mais instruídos. Enquanto o prêmio médio no grupo de menor instrução é de aproximadamente 71%, tal vantagem cai para cerca de 59% no grupo de 9 a 12 anos completos de estudo, e se eleva para algo próximo de 94% no grupo de maior educação.

Estadual

O comportamento do prêmio público estadual é levemente diverso de seu análogo federal. No começo do período, a vantagem era, na verdade, a favor do setor privado: em 1996, o “prêmio” público chegou a -3,1%. Contudo, ao longo dos anos a vantagem tornou-se a favor dos servidores, chegando, em 2015, a perto de 28%. A diferença total, ainda, subiu de 97,4% para 124,8%.

Quando analisamos o prêmio do ano de 2015 por nível de educação, observamos tendência curiosa: a vantagem é maior entre aqueles de menor instrução (31,5%), caindo para aproximadamente 29% no grupo de média instrução e chegando a cerca de 19% entre aqueles com mais de 12 anos completos de estudo.

Municipal

Um dos maiores desse esforço de catalogar a diferença salarial público-privada talvez seja referente ao setor público municipal. Em 1995, segundo as estimativas, os servidores municipais tinham uma desvantagem de cerca de 20% em relação ao setor privado. Ao longo do tempo, essa desvantagem aproximou-se de 0, mas hoje ainda é de aproximadamente 2,5%. Mais ainda: em 1995, os trabalhadores do serviço público municipal ganhavam menos no total (isto é, somando a parte explicada e a parcela inexplicada, que compõem a remuneração total) que os trabalhadores do setor privado. Em 2015, porém, a diferença total constituía valor em torno de 32,3%.

Ao quebrarmos nossa avaliação por nível de instrução, mais uma curiosidade emerge: os servidores municipais menos instruídos têm vantagem sobre os trabalhadores do setor privado (por volta de 6,2%); já aqueles no nível médio de instrução têm um prêmio de rigorosamente zero; por fim, no grupo de mais elevada instrução é que está a desvantagem: aproximadamente -11,2%.

Setor público

Finalmente, analisando o setor público de maneira agregada, encontramos que até 1997 os servidores públicos, na média, tinham desvantagem em relação aos trabalhadores da iniciativa privada, sendo que o ápice desse “prêmio negativo” foi no ano de 1996: -2,8%. Vinte anos mais tarde, contudo, o prêmio tornou-se fortemente positivo, em torno de 17,2%. A diferença total, por sua vez, saiu de algo como 69,9%, em 1995, para um total de 80,4%, em 2015.

Em termos de diferença por nível de instrução, o comportamento é muito peculiar: um prêmio de aproximadamente 12,5% tanto para o nível baixo, quanto para o nível médio de instrução, chegando a algo em torno de 15,4% no grupo de maior instrução.

Conclusão

Mesmo que não estivéssemos em plena crise fiscal, ainda seria necessário revisitar a remuneração dos servidores públicos, especialmente da esfera federal, a fim de melhor compatibilizá-la ao que se observa na iniciativa privada. A restrição orçamentária, embora muitos duvidem, também se aplica ao Estado e, num país onde quase 100 milhões de pessoas não têm acesso a saneamento básico, não parece muito justo, adequado ou prudente sobre-remunerar servidores públicos – que, é sempre bom lembrar, contam com a vantagem da estabilidade no emprego, benefício do qual não gozam os trabalhadores da iniciativa privada.

Em termos de desigualdade, a elevada vantagem salarial pública deixa um legado de injustiça social numa sociedade onde o Estado peca, justamente, em não conseguir prover os mais básicos serviços que se espera dele. Uma estrutura remuneratória mais racional seria capaz de reduzir a elevada desigualdade brasileira e economizar dezenas de bilhões de reais para o erário, ficando à sociedade a incumbência de decidir onde melhor alocar esses recursos – podendo optar, inclusive, por cortar impostos e diminuir o fardo tributário.

O mais importante, porém, é explicitar aos contribuintes e à sociedade os custos e benefícios do arranjo hoje vigente. Só com pleno conhecimento da conjuntura atual é que será possível um debate mais produtivo e que, ao fim e ao cabo, melhor reflita os interesses da maioria invisível que, apesar de tudo custear, não tem coluna nos jornais, tempo na TV ou quem a represente.

Este texto foi originalmente publicado no site do Instituto Mercado Popular, em 14 de novembro de 2017, sob o título “Funcionários públicos ganham mais do que trabalhadores do setor privado?”

 

Nota: as opiniões aqui expressas não representam aquelas do professor Naercio Menezes, coautor no estudo que embasou este artigo.

 

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Injusto, ineficiente e caro https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2716&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=injusto-ineficiente-e-caro https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2716#comments Mon, 01 Feb 2016 11:56:08 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2716 A cidade de Dois Irmãos das Missões (RS) tem 2,2 mil habitantes e recebe do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) R$ 2,9 mil per capita. Como é uma cidade pequena, não tem escala para oferecer serviços públicos diversificados: são poucos os adolescentes para que se abra uma escola de ensino médio, não há doentes graves em quantidade que justifique um hospital para casos complexos. Por isso, boa parte do dinheiro do FPM é gasto com a burocracia. Só a Câmara de vereadores consome 10% da receita corrente.

Águas Lindas de Goiás (GO) tem 182 mil habitantes. Fica na periferia de Brasília. Sua população cresceu 22% nos últimos dez anos. Há forte necessidade de urbanização, muitas crianças em idade escolar, violência e pobreza. Mas o FPM, que coloca muito dinheiro em dois mil municípios pequenos,  destina apenas R$ 334 per capita para Águas Lindas.

Isso é injusto: o dinheiro não vai para onde é mais necessário. É ineficiente, pois há desperdícionos municípios pequenos, além de estimular os municípios grandes a se dividirem. É caro: o FPM transferido aos municípios com menos de dez mil habitantes somou R$ 14 bilhões em 2014.

Xavier é eletricista. Trabalha como autônomo e está registrado como Microempreendedor Individual. Para uma renda mensal de R$ 3 mil, desembolsa R$ 44,40 em tributos. Joaquim realiza o mesmo trabalho e tem a mesma renda de Xavier. Em vez de autônomo, trabalha em uma empresa formal de reparos domésticos. A carga de tributos que incide sobre eleé mais de sete vezes superior à paga por Xavier: R$330,00.

A empresa em que Joaquim trabalha tem muitos clientes, o que aumenta a escala de produção, reduz o peso dos custos fixos e permite otimizar o uso do tempo e a distribuição  geográfica dos profissionais. Além disso, promove treinamentos regulares, introduz novos métodos de trabalho, tem equipamentos modernos, realiza tarefas complexas em equipe.

Já o autônomo Xavier passa o dia com um celular no bolso e sua malinha de ferramentas. Não se atualiza, não tem equipe e, volta e meia, fica sem serviço,porque não conta com um pool de clientes como o da empresa onde trabalha Joaquim.

Logo, o trabalho de Joaquim é mais eficiente que o de Xavier. Mas o peso dos tributos faz com que a renda líquida de Xavier seja 10,7% maior que a de Joaquim. Isso é injusto e ineficiente. E também é caro: a renúncia de receita dos regimes especiais de tributação (Simples e MEI) somou R$ 62,4 bilhões em 2014.

Sebastião e Antônio trabalham em empregos que pagam salário mínimo. Sebastião contribui mensalmente para o INSS, o que vai lhe garantir uma aposentadoria, no valor de um salário mínimo, a partir dos 65 anos de idade. Antônio não contribui com um centavo para o INSS ao longo de toda sua vida profissional. Porém, aos 65 anos poderá receber um Benefício de Prestação Continuada (BPC), também no valor de um salário mínimo. Isso é injusto: os benefícios assistenciais são importantes para amparar os mais necessitados, mas não podem ter o mesmo valor do que se paga a quem contribuiu. É ineficiente, pois desestimula a formação de poupança previdenciária. É caro: a despesa com BPC para idosos em 2014 foi de R$  17 bilhões.

Jandira recebe uma aposentadoria mensal de R$ 10 mil. Deveria pagar R$ 1,9 mil de Imposto de Renda. Porém está isenta de tal pagamento, porque tem uma doença cardíaca. A Lei nº 7.713/1988 concede isenção de IR às aposentadorias e pensões dos portadores de cardiopatia grave e outras 15  enfermidades, bem como a moléstias de origem profissional. No Congresso tramitam 51 projetos para agregar novas doenças à lista atual.

Com o dinheiro que não gastou com Imposto de Renda, Jandira decidiu comprar um carro novo. E vai ser beneficiada de novo, porque a isenção se reproduz nas legislações de IPI, ICMS e IPVA sobre veículos, abarcando 37 doenças, que vão de “formigamento”a “autismo”.

Não é simples conseguir a isenção. Afinal, o Estado quer se prevenir contra aproveitadores, e exige vários atestados. Aí entra em cena o despachante Odair, cujo trabalho é “agilizar” a concessão do benefício. Diversos funcionários públicos são alocados para conferir os documentos.

Palmira é pobre e tem doença de chagas. Sua renda está fora da faixa de pagamento de Imposto de Renda, e ela jamais terá dinheiro para comprar um carro zero. Palmira e seu coração inchado vão de ônibus para a fila do SUS.

Isso é injusto, porque o Imposto de Renda incide sobre os 10% mais ricos da sociedade. Qualquer isenção ou dedução beneficia apenas os mais ricos. É caro: as isenções e deduções do IR (todas, não só as relativas a doenças) representam perda de arrecadação de R$ 34,3 bilhões. É ineficiente, porque Odair e os servidores alocados para cuidar da papelada poderiam usar seu tempo em atividade mais útil.

Há muito que reformar nos programas públicos para torná-los mais justos, eficientes e baratos. É um erro deixar de fazê-lo por temer prejudicar os mais pobres. Os beneficiários de cada um dos programas tortos aproveitam-se dessa falácia para bloquear o desmonte de seus privilégios. A função primordial do Estado brasileiro não tem sido prestar serviços públicos ou socorrer os mais pobres, mas sim garantir benefícios obtidos por alguns grupos às expensas do resto da sociedade e das gerações futuras. Ganha quem tem o lobby mais organizado. Isso trava o crescimento da economia e prejudica a todos. Apenas umas gotas desse oceano de benefícios respingam para os mais pobres. E esses ainda pagam parte da conta sob a forma de inflação e impostos altos, baixa criação de empregos e juros elevados. A alternativa às reformas é a estagnação econômica e a consolidação da desigualdade extrema que sempre caracterizou o Brasil.

 

Texto originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo no dia 22/1/2016.

 

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Uma fábula de improdutividade https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2609&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=uma-fabula-de-improdutividade https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2609#comments Tue, 22 Sep 2015 16:09:24 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2609 João é inteligente e nasceu em uma família de classe alta. Estudou em boas escolas e entrou para uma universidade pública gratuita de engenharia. Formado, viu que os melhores salários iniciais de engenheiros estavam em R$ 5 mil. Fez concurso para um cargo de nível médio em um tribunal: salário de R$ 9 mil mais gratificações, aposentadoria integral, estabilidade, expediente de seis horas. O contribuinte custeou a formação de um engenheiro, e recebeu um arquivador de processos sobrerremunerado. Amanhã João estará em frente ao Congresso, com seus colegas, todos em greve por aumento salarial. Não terá o dia de trabalho descontado, nem se sente remotamente ameaçado de demissão.

Pedro não tem muito talento intelectual. Mas sua família pôde pagar uma boa escola, o que lhe garantiu uma vaga em um curso não muito concorrido em universidade pública. Carente de habilidades acadêmicas, Pedro não se adaptou e mudou de curso duas vezes, deixando para trás centenas de horas-aula desperdiçadas e duas vagas que poderiam ter sido ocupadas por outros estudantes que jamais terão acesso àquela universidade. Foi fácil desistir dos cursos, pois Pedro nada pagou por eles.

Após oito anos na universidade, Pedro finalmente se formou em biologia. Sonha em ter um emprego igual ao de João. Entrou em um cursinho preparatório para concursos públicos. Lá conheceu centenas de jovens formados em universidades públicas  que, em vez de irem para o mercado de trabalho aplicar seus conhecimentos, estão em sala de aula, decorando apostilas para conseguir um emprego público.

Jorge, o dono do cursinho, é um brilhante advogado, que poderia contribuir para a sociedade redigindo contratos empresariais. Mas descobriu que ganha mais dinheiro preparando candidatos ao serviço público.

Um dos professores do cursinho de Jorge é Manuel, que também abandonou sua formação universitária e mudou de ramo. Ao perceber que jamais exercerá a profissão original, ele pediu desfiliação do respectivo conselho profissional. Mas não consegue, porque Márcia, funcionária daquele conselho, tem como missão criar todo tipo de dificuldade às desfiliações e manter em dia a arrecadação compulsória. Manuel desistiu e vai pagar a contribuição pelo resto de sua vida profissional, ainda que não se beneficie em nada, e pouca satisfação seja dada pelo conselho profissional acerca do uso desse dinheiro.

As limitações acadêmicas de Pedro o impedem de ser aprovado em concurso público. Ele vai ser um medíocre professor, em uma escola de ensino fundamental de segunda linha (pública ou privada),  oferecendo ensino de baixa qualidade às novas gerações das famílias que não podem pagar por uma escola melhor. Pedro só conseguiu essa vaga porque há uma reserva de mercado: por lei, as escolas de ensino fundamental só podem contratar professores com diploma de nível superior. Fosse permitido contratar universitários, diversos graduandos em biologia mais talentosos e motivados que o diplomado Pedro estariam em sala de aula, oferecendo boas aulas às crianças.

Antônio é tão brilhante quanto João. Daria um excelente engenheiro, mas nasceu em família pobre e estudou em escola pública. Teve professores limitados, no padrão de  Pedro, e a desorganização administrativa da escola piorava as coisas: muitas vezes não havia professores em sala. Falta com atestado médico não dá demissão.

Antônio até conseguiu passar no vestibular de engenharia em universidade pública, pelo sistema de cotas, mas sua formação deficiente em matemática foi uma barreira intransponível. Abandou ou curso, deixando mais horas-aula perdidas e mais uma vaga ociosa na conta dos contribuintes.

Antônio, porém, é empreendedor. Não se abalou com o insucesso universitário, aprendeu a consertar eletrônicos através de vídeos no Youtube. Montou um pequeno negócio de manutenção de smartphones e computadores. Seu talento poderia torná-lo um grande empresário. Mas para crescer, ele precisa transferir sua empresa do regime de tributação SIMPLES para a tributação normal, pagando impostos muito mais altos, porque o governo precisa de muito dinheiro para pagar altos salários, para custear a universidade gratuita que desperdiça vagas e para sustentar escolas públicas que não dão aula, entre outras despesas. Mesmo assim, o governo permanece em déficit, e toma empréstimo para se financiar, aumentando a taxa de juros. Com impostos altos e crédito caro, Antônio prefere manter seu negócio pequeno. A grande empresa e seus empregos morreram antes de nascer.

Chico é um líder  talentoso. Dirige uma central sindical que congrega os sindicatos dos companheiros do judiciário e dos professores, entre outras categorias. Chico está em frente ao Congresso, apoiando a greve de Pedro por melhores salários. Faz um discurso contra os neoliberais, que só pensam em cortar gastos públicos e arrochar os trabalhadores. Chico não tem muito do que reclamar (embora, como líder sindical, a sua especialidade seja, justamente, reclamar): além da remuneração paga pelo sindicato (e custeada pelo imposto sindical, cobrado obrigatoriamente dos contribuintes), ele está aposentado pelo INSS desde os 52 anos de idade. Até o final da sua vida receberá muito mais do que contribuiu para a previdência.

Nenhum dos personagens citados tem comportamento ilegal. Eles jogam o jogo de acordo com as regras que estão postas. O erro está nas regras. Mudá-las requer superar as dificuldades das decisões coletivas. Não mudá-las implica continuar com talentos profissionais e dinheiro público mal alocados, empregos improdutivos, potenciais inexplorados, gasto público excessivo, oportunidades perdidas, incentivos errados. Uma fábula de improdutividade.

 

Este artigo foi publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, edição de 10/9/2015.

 

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