servidor público – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Mon, 06 Jun 2016 13:05:46 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.8.1 Farinha pouca, meu pirão primeiro: por que algumas carreiras são mais privilegiadas que outras no setor público? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2786&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=farinha-pouca-meu-pirao-primeiro-por-que-algumas-carreiras-sao-mais-privilegiadas-que-outras-no-setor-publico https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2786#comments Mon, 06 Jun 2016 13:05:46 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2786 A aprovação do aumento para diversas carreiras do funcionalismo na Câmara dos Deputados revela como o presidencialismo de coalizão brasileiro torna-se refém dos grupos de interesses. “Esse aumento já está precificado no Orçamento, então, optamos por dar logo e tirar esse assunto da frente. Quanto mais demora, mais chance o governo estará dando para os servidores se mobilizarem por novo reajuste” — disse um interlocutor palaciano.

Na semana passada, a Câmara dos Deputados aprovou 14 projetos de lei reajustando as remunerações de diversas carreiras do funcionalismo federal dos três Poderes e mais o Ministério Público (“o quarto poder”) – a íntegra deles pode ser consultada aqui.

Além do impacto bilionário num contexto em que o país enfrenta grave crise fiscal – seriam R$ 64 bilhões até 2019 –, essa medida expõe a forma pela qual o sistema político brasileiro torna-se refém de grupos de interesses – como algumas carreiras de servidores públicos.

A literatura especializada sobre o presidencialismo de coalizão brasileiro considera que nosso país encontrou uma maneira razoavelmente estável de funcionar politicamente: atribuindo grandes poderes ao Executivo (medidas provisórias, controle sobre o orçamento, milhares de cargos em comissão, centenas de estatais) e aos líderes partidários no Congresso, a maioria dos Presidentes conseguiu aprovar seus projetos de maneira previsível e com alta disciplina partidária (a referência básica de leitura aqui são os textos de Fernando Limongi e Argelina Cheibub).

Quando esse sistema não funcionou, os Presidentes (Collor e Dilma) sucumbiram ao jogo político e caíram via impeachment. Embora esse modelo seja muito convincente para analisar a governabilidade no Brasil, meu argumento é que o presidencialismo de coalizão brasileiro facilita a ação dos grupos de interesses, e o futuro aumento dos rendimentos dessas carreiras ilustra bem como isso funciona.

Nos idos de 1965, o cientista político e economista Mancur Olson publicou um clássico que revolucionou a análise dos grupos sociais na condição de atores políticos. Simplificando radicalmente as várias conclusões do seu livro “A Lógica da Ação Coletiva”, grupos com interesses econômicos bem definidos, com grande capacidade de organização e relativamente poucos membros têm mais chances de garantir vantagens do Estado à custa daqueles que não conseguem se organizar para evitá-las (e a razão para isso vem do famoso problema do carona: “se eu não vou ganhar quase nada diretamente com isso, vou me envolver pra quê?”).

No caso do reajuste do funcionalismo, temos claramente essa situação: sindicatos de algumas carreiras com maior poder de mobilização e membros de Poderes com grande poder de pressão (em tempos de Lava Jato, não é recomendável desagradar juízes e procuradores) estão em vias de conseguir reajustes que vão deteriorar ainda mais a situação fiscal do país. E essas benesses serão custeadas por toda a sociedade, por meio de cortes em outros programas governamentais, aumento de impostos, inflação, aumento de juros (quando o lado fiscal não ajuda, a dose do remédio monetário tem que ser mais forte e mais amarga) ou “tudo isto ao mesmo tempo agora”.

Olson não chegou a viver em tempos de popularização da internet e das redes sociais (ele faleceu em 1998), mas sua prescrição continua atual: o máximo de reação que essa injustiça terá da coletividade dos brasileiros será algumas reportagens na imprensa e alguns posts indignados no facebook e no twitter, e o reajuste será sacramentado pelo Senado nos próximos dias e sancionado pelo novo Presidente da República.

A ação de grupos de interesses no Brasil – de servidores públicos a grandes empresas, de ruralistas a igrejas evangélicas – é facilitada pela forma como nosso presidencialismo de coalizão funciona. Num sistema político em que o Presidente depende de uma base muito ampla e heterogênea de partidos com fraquíssima identidade ideológica e parlamentares escolhidos em eleições em que se depende sobremaneira de doações de campanha e/ou exposição na mídia ou a grupos específicos (sindicatos, igrejas, movimentos sociais, etc.), as medidas de interesse do governo são geralmente aprovadas, como preveem os modelos da Ciência Política brasileira, mas a um custo muito alto. E neste preço são incluídos os privilégios a quem consegue ter acesso aos canais certos – ao próprio Presidente da República ou a seus Ministros, aos líderes partidários, aos presidentes de comissões, aos relatores dos projetos, etc.

A frase que abre este texto ilustra bem como esses assuntos são tratados. O aumento dos servidores é visto pelas autoridades simplesmente como um empecilho a ser retirado da pauta para o Presidente da República aprovar as principais medidas de seu programa de governo: mesmo que esse reajuste custe bilhões aos contribuintes, mesmo que ele afete a vida de milhões que sofrerão com cortes em programas ou projetos sociais, mesmo que ele sinalize para o mercado que o governo não se preocupa com a sustentabilidade fiscal.

As carreiras a serem beneficiadas pelos aumentos valem-se de seu acesso privilegiado ao Poder para pressionar por benefícios mesmo sem, muitas vezes, fazer por merecê-los (a partir desta parte eu estou correndo o sério risco de me indispor com vários amigos e a jogar contra o meu próprio interesse particular, uma vez que faço parte de uma das carreiras a serem beneficiadas pelo aumento).

Os Ministros do Supremo Tribunal Federal argumentam que o aumento de seus subsídios para R$ 39.293,32 a partir de 01/01/2017 não cobre a inflação dos últimos anos. Eles têm razão: desde 01/01/2005 a inflação foi de 93%, enquanto seus rendimentos subirão “apenas” 82,75%. Mas é preciso tratar a questão com um pouco mais de cuidado.

É claro que os onze Ministros do STF, por serem a cúpula do sistema judiciário brasileiro, têm uma elevadíssima responsabilidade, e devem receber muito bem. Por isso, não questiono que recebam quase R$ 40 mil mensais. O problema é que o estabelecimento dessa remuneração como teto para o funcionalismo instigou diversas carreiras a pressionar para serem incluídas nesse sistema e, assim, conseguir reajustes automáticos a reboque.

Atualmente, o reajuste dos subsídios dos ministros do STF se espraia para todos os membros do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública – além de outros agentes públicos eleitos. Mas todo sindicado de carreiras tem como uma de suas plataformas políticas principais incluir suas atividades no rol daquelas “funções essenciais” da Constituição e, assim, cristalizar seus ganhos como uma percentagem (90,25% é o número mágico!) dos pagamentos feitos aos Ministros do STF.

Nesse cenário, mesmo que essas carreiras do funcionalismo com maior poder de organização e pressão sobre os postos-chave de nosso presidencialismo de coalizão ainda não tenham alcançado sucesso nessa campanha, os ganhos da cúpula do Judiciário tornaram-se o parâmetro para as negociações salariais – e eles vêm obtendo reajustes significativos nas duas últimas décadas. Os gráficos abaixo apresentam dados extraídos do Boletim Estatístico de Pessoal do Ministério do Planejamento com os salários iniciais e máximos de algumas dessas carreiras “típicas de Estado” e sua evolução em relação à inflação.

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Como se vê pelos gráficos, a questão de fundo colocada pelo reajuste dos servidores não é de variação (ou seja, recomposição de inflação), mas sim de nível. Com o sistema posto no Brasil, os salários médios de uma parcela não desprezível dos funcionários públicos federais, com grande poder de organização e pressão, alcançaram patamares fora da realidade – ainda mais uma realidade marcada por grave crise fiscal, desemprego e recessão que assolam a população brasileira.

Esse quadro torna-se ainda mais grave quando se verifica que servidores com salários médios em torno de R$ 20 mil, ou juízes, procuradores e defensores públicos ganhando R$ 30 mil mensais (fora os 60 dias de férias anuais, auxílio moradia e outros privilégios) são amparados por estabilidade no emprego – não é formal, mas acaba sendo de fato – e não estão sujeitos a sistemas efetivos de avaliação de resultados.

Corrigir essa distorção é tarefa hercúlea: seriam necessários pelo menos rever o sistema de remuneração e avaliação de pessoal, criar instituições para avaliar os resultados do gasto público e reformar o sistema orçamentário (afinal, simplesmente aumentar a meta do déficit não deve ser a solução).

O problema é que governos fracos são especialmente vulneráveis a comportamentos oportunistas de grupos de interesses bem organizados. Como a responsabilidade fiscal ainda não se tornou um valor inquestionável na sociedade brasileira, o mais provável que ela continue refém dos grupos de interesses – e os servidores públicos são apenas um deles.

 

O presente texto foi publicado originalmente no Blog “Leis e Números”, no link https://leisenumeros.com.br/

 

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Quanto deve custar um juiz? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2702&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=quanto-deve-custar-um-juiz https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2702#comments Tue, 15 Dec 2015 12:16:19 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2702 No século XXI de Thomas Piketty, a desigualdade é o tema do momento: nos Estados Unidos, veio do movimento Occupy Wall Street o slogan “We are the 99%”, fazendo alusão à grande concentração de renda no 1% mais rico da população. No Brasil da recessão, o teto do funcionalismo federal deve passar dos R$ 39 mil em 2016 (remuneração bruta). Com isso, o gasto do país com a remuneração (direta) de um ministro do STF passará a ser equivalente ao gasto com 1.213 grávidas abaixo da linha da pobreza, beneficiárias do Bolsa Família. Este texto trata dessa questão, se aplicando, portanto, a remuneração do funcionalismo como um todo, e não apenas o caso dos juízes, que é apenas anedótico.

Como se o valor do teto não fosse alto o suficiente, muitas categorias de servidores construíram sobre ele uma laje, ou mesmo verdadeiras coberturas. Para disciplinar a matéria, o governo apresentou em regime de urgência o PL 3.123/2015, que veda nada menos do que 37 truques usados para furar o teto constitucional.  Até agora, a proposta não ganhou a devida atenção, apesar do momento de ajuste fiscal e de estagnação da queda da desigualdade no país. No início de dezembro, ela foi ao Plenário da Câmara dos Deputados, depois de ser aprovada em duas comissões daquela Casa. Depois do “realismo tarifário”, chegou a hora também do “realismo remuneratório” no serviço público.

Um monopolista frequentemente é aquele que atua em um mercado com barreiras à entrada e à saída. No mercado de contratação de servidores, há barreiras à entrada (o concurso público, que não é periódico e exige alto investimento para superar as exigências desproporcionais de conteúdo) e barreiras à saída (a estabilidade funcional). Assim, o trabalho do servidor não é fácil de ser substituído, criando terreno fértil para o rent-seeking e remunerações fora da realidade.

O valor do teto constantemente driblado já colocaria um servidor no 1% brasileiro (confortavelmente). O teto constitucional de 2016 é equivalente a 8 vezes o teto do INSS, 21 vezes o rendimento médio do trabalho ou ainda a 45 salários mínimos. Segundo estudo do Ipea (2013)1, os salários do funcionalismo como um todo seriam responsáveis por nada menos do que 24% de toda desigualdade de renda no país. Na última década, quase toda a queda na desigualdade gerada pelo Bolsa Família teria sido compensada por aumentos salariais a servidores. Daí o mérito da proposta de realismo remuneratório, fazendo com que o teto da Constituição seja finalmente cumprido.

O projeto é essencial porque existe um “efeito farol” a partir das maiores remunerações do funcionalismo, espécie de cascata informal que tende a criar pressões por aumentos sucessivos em várias carreiras a partir do topo da pirâmide. Embora a vinculação de salários seja proibida, há uma vinculação fictícia que baliza a remuneração de muitos órgãos por todo o país. Quando um deles cria uma maneira de burlar o teto, abre-se a porteira para que outras carreiras deem seu jeitinho de chegar ao sobreteto, seja por via administrativa, legislativa ou judicial.

Defensores públicos indenizados porque o colega saiu de férias, juízes que recebem auxílio para comprar livros, burocratas que embolsam jetons de estatais dependentes que não produzem um parafuso, ou procuradores que ganham honorários pelo trabalho para o qual já ganham salários fixos elevados2. Esses são alguns dos casos de “indenizações” usados hoje para furar o teto e que seriam proibidas de fazê-lo pelo PL 3123. As possibilidades totalizam 37 incisos, tantos que a lista inclui, entre ajudas, adicionais e gratificações, até algo exótico chamado de “cascatinha”.

Diante desse cenário, que justificativas são apresentadas para as coberturas construídas acima do teto? As principais são a reposição de perdas inflacionárias, a necessidade de manter bons profissionais e até o nível de dificuldade dos concursos públicos.

Perda por inflação

A primeira justificativa é amparada pelo inciso X do art. 37 da Constituição, um resquício da época de hiperinflação que prevê indexação dos salários do funcionalismo. Esse contrato constitucional faz pouco sentido quando se considera que foi justamente com o combate à cultura de indexação que vencemos a hiperinflação. Para qualquer grupo, seria um privilégio no conflito distributivo ter a renda indexada à inflação enquanto outros grupos não possuem tal proteção. Vira um privilégio mais injustificável quando a renda deste grupo provém diretamente da renda de grupos que não estão protegidos. O teto constitucional é indexado, mas o Bolsa Família não.

Ainda, é preciso relativizar a perda de poder aquisitivo de quem ganha o sobreteto, por conta do que os economistas chamam de “viés de substituição”. Isto é, a possibilidade de trocas nos bens de consumo por conta de mudança nos preços relativos, que tende a ser muito maior na cesta de consumo dos que ganham mais.  Viajar para outro destino que não Miami se o dólar subir muito não é a equivalente a ter de substituir a carne do almoço que encareceu.

Aqui, pode-se fazer um paralelo na teoria econômica com a conhecida concepção de “utilidade marginal decrescente do dinheiro”.

Vale lembrar também que muitas carreiras possuem ainda promoções automáticas ao longo do tempo, sem contrapartidas de produtividade, enfraquecendo o argumento da perda por inflação. Em qualquer caso, é natural que o valor real do salário varie ao longo do tempo, o que implica que os reajustes salariais não devem acompanhar a inflação. Em períodos de crescimento econômico, a produtividade do trabalho tende a subir e o salário real aumenta, o que implica que o salário nominal aumenta acima da inflação. Em períodos de crise, a produtividade do trabalho tende a cair, fazendo com que o salário real caia, ou seja, o reajuste nominal é abaixo da inflação. Indexar o salário à inflação implica congelar um preço relativo, o que não faz sentido e é prejudicial para a economia.

Manutenção de bons profissionais e o crowding out motivacional

Justifica-se também que os supersalários são necessários para manter bons profissionais, e mantê-los produtivos. Trata-se de uma falácia: entre o serviço público e a iniciativa privada não parece haver “porta giratória”, mas sim um movimento de mão única. Quase não se observa servidores saindo para as empresas, mas, a título de ilustração, somente o concurso de 2015 do TRT de Minas teve 130 mil inscritos.

Contrariamente ao senso comum, a moderna Economia do Trabalho não prescreve que maiores salários aumentam a produtividade. A partir de um determinado nível de remuneração, ocorre o chamado “crowding out motivacional” (deslocamento motivacional). Isto é, uma remuneração maior não levaria necessariamente a um desempenho melhor, considerados salários que já estejam em um patamar razoável.

Baseados em larga pesquisa acadêmica, expoentes da Economia Comportamental como Dan Ariely e Daniel Pink enfatizam a importância, para a produtividade e a motivação, de valores mais “intrínsecos”, como senso de propósito e de aprimoramento de expertise (a remuneração seria um valor “extrínseco”).

Esta visão foi pioneiramente definida por Deci (1971), que enfatiza o papel que uma política de remuneração pode ter em fazer com que os trabalhadores percam “interesse intrínseco pela atividade”. Para Pink (2009), ela tem o poder de “reduzir a motivação de longo prazo”:

Empresas, mas também governos e organizações não-lucrativas ainda operam com hipóteses sobre o potencial humano e performance individual que são obsoletas, não estudadas e enraizadas mais em folclore do que em ciência.

Para Pink, aumentos em remunerações altas “geralmente não funcionam e frequentemente causam danos”, em relação a seus efeitos na motivação e na produtividade. Tal tipo de política estaria “se tornando incompatível com muitos aspectos do trabalho contemporâneo”.  A exceção se daria em atividades “rotineiras”, passíveis de automação, em que não há interesse intrínseco a ser contemplado: ainda assim, mesmo nesses casos, a remuneração estaria condicionada à produtividade (como um vendedor que recebe comissões).

Mesmo onde pode haver uma correlação entre salários extremamente elevados e produtividade – como no sistema financeiro ou nos altos cargos executivos de grandes corporações – essas mega remunerações usualmente vêm acompanhada de metas bem ousadas. Como é notório, metas de produtividade para atividades rotineiras ainda não são comuns no serviço público.

Daniel Pink, que já foi escolhido um dos 15 principais pensadores do mundo dos negócios3 e foi assessor do ex-presidente americano Al Gore, considera que a motivação no mercado de trabalho se apoia no tripé autonomia, domínio e propósito (autonomy, mastery e purpose), remetendo a uma conhecida teoria da psicologia, a da autodeterminação, de Deci e Ryan (2002).

O termo “domínio” se refere a “uma necessidade inata (…) de aprender e criar novas coisas”, enquanto “propósito” é definido como a necessidade de melhorar a própria vida e também o mundo. Dessa forma, motivadores mais poderosos do que a remuneração seriam a busca por conquistas e por crescimento pessoal. Um exemplo seria a manutenção da enciclopédia on-line Wikipedia, feita por voluntários.  No mesmo sentido, Karim Lahkani, da Harvard Business School, e Robert Wolf, do The Boston Consulting Group, argumentam que a motivação intrínseca, tida como “quão criativa uma pessoa se sente trabalhando em um projeto” seria o motivador “mais forte e mais pervasivo”.

Ariely (2008) argumenta que aspectos como esses seriam especialmente relevantes para políticas de RH em carreiras públicas. Não se trata de uma visão romântica, mas científica. Para Pink, esta análise está consoante com a visão de que a ciência econômica não é o estudo do dinheiro, mas sim o estudo do comportamento. Bruno Frey, um dos cinquenta economistas mais influentes do universo acadêmico4, considera que a “motivação intrínseca é de grande importância para todas as atividades econômicas. É inconcebível que as pessoas sejam motivadas somente ou principalmente por incentivos externos”.

Essa visão difere de formulações mais tradicionais na economia, em que o trabalho é tido como uma “desutilidade”, e não como uma utilidade. No mesmo sentido, em Giambiagi (2015) fala-se em “renda psíquica”, aludindo à utilidade do trabalho no serviço público. Para Pink, a ideia de crowding out, ou deslocamento motivacional, “é uma das descobertas mais robustas das ciências sociais – e também uma das mais ignoradas”.

Por fim, a teoria econômica tem incorporado cada vez mais não só elementos da psicologia, mas também da sociologia. O Prêmio Nobel George Akerlof5 (2010), amparado no conceito de “normas sociais”, defende que mais importante do que a remuneração para o desempenho do trabalhador é a identificação com o emprego e a missão do empregador.

Tais conclusões sugerem que, em muitas carreiras, a política remuneratória do governo é ineficiente, porque ele poderia obter os mesmos serviços pagando menos. Os especialistas em Economia Comportamental relativizam até mesmo o impacto de aumentos sobre salários já altos na satisfação individual de quem os recebe (discutido no blog aqui), o que indica também que este é um gasto ineficiente do ponto de vista do bem-estar social, urgindo o realismo remuneratório.

Dificuldade de concursos

Um último argumento dos servidores se relaciona ao que pesquisadores chamam da Economia Comportamental de “efeito licenciamento”, a ideia de que um “sacrifício” individual deve ser (bem) recompensado posteriormente. É comum ouvir, até em microfones de grevistas, que os servidores “merecem ser valorizados” porque passaram em concursos concorridos. É razoável que um candidato ao estudar se motive pensando que o esforço para conseguir a sua aprovação será recompensado com um bom emprego. O que não faz sentido é dar sucessivos aumentos ao funcionalismo por conta disso. A lógica correta é que os cargos são concorridos porque são bons, e não que devem ser bons porque são concorridos.

Considerações finais

O aumento das despesas com funcionalismo nos últimos anos contribuiu para a rigidez do orçamento, dificultando o ajuste fiscal. Ainda assim, a casta que fura o teto mobiliza de forma coordenada o lobby para manter seus privilégios, contra o PL 3123. O que deve ficar claro neste debate é que a sociedade está pagando mais do que tem condições e do que precisa pagar para manter esses funcionários produzindo. Sem realismo para essas remunerações, estamos matando, por inanição, políticas públicas e investimentos. Especialmente os voltados para os mais necessitados dos 99%.

 

Versão resumida deste texto foi publicada no jornal Valor Econômico, edição de 26/11/2015, sob o título “O PL do teto do funcionalismo”.

 

Referências:

AKERLOF, G. A.; KRANTON, R. E. Identity Economics: how our identities shape our work, wages, and well-being. Princeton: Princeton University Press, 2010.

ARIELY, D. Predictably Irrational: The Hidden Forces that Shape our Decisions. New York: Harper  Collins, 2008.

DECI, E. L. The effects of externally mediated rewards on intrinsic motivation. Journal of Personality and Social Psychology, 1971, 18, 105-115.

ÉPOCA. Juízes estaduais e promotores: eles ganham 23 vezes mais do que você. 12 de junho de 2015.

GIAMBIAGI, F. Capitalismo: Modo de Usar. Rio de Janeiro: Elsevier, 2015.

MEDEIROS, M; SOUZA, P. Gasto Público, Tributos e Desigualdade de Renda no Brasil. Texto para Discussão nº 1844. Brasília: IPEA, Junho de 2013. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_1844b.pdf.

PINK, D. H. Drive: The Surprising Truth about What Motivates Us. New York: Riverhead, 2009.

RYAN, R.; DECI, E. The Handbook of Self-Determination Research. Rochester: University of Rochester, 2002.

________________

1 Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_1844b.pdf. Os autores divulgaram recentemente novos resultados sobre a desigualdade de renda, usando dados do imposto de renda, o que permite incorporar outras rendas do setor privado, tendendo a reduzir a participação estimada da renda do setor público na desigualdade total.

2 A edição de 12 junho de 2015 da revista Época apresenta um extenso catálogo das indenizações usadas para furar o teto no Judiciário e no Ministério Público.

3 http://thinkers50.com/t50-ranking/2013-2/

4 Economist Rankings at IDEAS (RePEc): https://ideas.repec.org/top/top.person.all.html. Acesso em junho de 2014.

5 Akerlof é também casado com a presidente do Banco Central americano (FED), Janet Yellen.

 

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Por que instituir a previdência complementar do servidor público? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=236&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-instituir-a-previdencia-complementar-do-servidor-publico https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=236#comments Fri, 25 Feb 2011 02:10:10 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=236 As duas reformas da previdência brasileira, feitas em 1998 e em 2003, embora tenham repercutido basicamente no regime de previdência do servidor público, ainda estão inacabadas. Isso porque uma das principais alterações aprovadas ainda não foi regulamentada em nenhum dos entes federativos: o estabelecimento da previdência complementar do setor público.

Os sistemas previdenciários podem operar, basicamente, na forma de dois regimes: capitalização e repartição. No regime de capitalização, os benefícios de cada indivíduo são custeados pela capitalização prévia das contribuições feitas ao longo da vida ativa. No regime de repartição, os trabalhadores ativos financiam as aposentadorias e pensões em curso, esperando que, no futuro, seus benefícios previdenciários sejam custeados por outros

A previdência complementar, onde vige o regime de capitalização, complementa a previdência básica regida pela repartição (sistema vigente no INSS e no serviço público federal), subdividindo-se em previdência complementar fechada (acessível apenas aos empregados de patrocinadoras ou associados de sindicatos, associações, etc) e aberta (acessível a qualquer pessoa física). No primeiro caso, ao contrário do segundo, há a participação financeira do empregador, quando este existe.

A previdência complementar do setor público será, assim, regida pela capitalização, complementará o regime básico, que continuará a existir, e contará com a participação financeira do ente federado, que, de acordo com o art. 202 da Constituição, não poderá superar a do segurado.

De acordo com o art. 40, §§ 14, 15 e 16 da Constituição Federal, , o ente federado (União, estado ou município), desde que institua regime de previdência complementar, poderá fixar, para as aposentadorias e pensões de seus servidores, o mesmo teto vigente no INSS, que hoje corresponde a cerca de 6,8 salários mínimos. Ou seja, não será necessário para esses governos pagar aposentadorias em valores equivalentes ao salário da ativa. Para receber maior renda de aposentadoria, os servidores terão a opção de adesão à previdência complementar.

A nova regra, todavia, só se aplicará compulsoriamente aos servidores que entrarem no serviço público após a implantação do respectivo plano de previdência complementar (para os demais, a adesão será facultativa).

Ademais, considerando que os planos de benefício da previdência complementar do servidor público deverão se restringir à modalidade de contribuição definida, na qual os benefícios futuros dependem da capitalização de contribuições, o novo regime de previdência do servidor deverá ter a seguinte configuração: a) até o teto do INSS, continuará a viger o sistema de benefício definido, em que o valor do benefício é garantido pelo ente federativo; b) para o valor que exceder o teto, caberá ao servidor a assunção dos riscos.

Contudo, por falta de legislação regulamentando a matéria, nada disso ocorreu até o momento.

O grande problema da postergação na efetivação do novo modelo é que, embora as reformas previdenciárias empreendidas tenham conseguido controlar a tendência explosiva dos gastos, o déficit do regime ainda é e continuará sendo elevado, já que ainda não se conseguiu reduzir efetivamente a pressão fiscal advinda dos encargos previdenciários.

As despesas com o regime próprio dos servidores se encontram estabilizadas em relação ao PIB. Na União, têm oscilado em torno de 2% do PIB, com tendência decrescente no longo prazo, conforme mais e mais servidores passem a receber benefícios previdenciários de acordo com as regras estabelecidas nas reformas da previdência empreendidas.

Ademais, mesmo considerando que os servidores públicos em atividade ficaram sujeitos a regras de transição, já se observa que a idade média de aposentadoria subiu (de 58 para 62 anos, no caso dos homens, e de 54 para 58 anos, no das mulheres), bem como aumentou o tempo de permanência no serviço público, tendências que seguirão seu curso ascendente até que as regras de transição se esgotem.

Não obstante, as despesas e o déficit do regime previdenciário dos servidores continuam sobremaneira elevados. Em 2009, enquanto as despesas do INSS, que abrange 23,2 milhões de beneficiários, somaram 7,1% do PIB; as do regime dos servidores, com apenas 3,1 milhões de beneficiários, totalizaram 4,3%. Em termos de déficit, o do primeiro regime representou 1,7% do PIB e o do segundo, 1,4%.

Essa situação se dá por duas razões básicas. Por um lado, porque as reformas estabelecidas e seus efeitos levam tempo para surtir efeitos fiscais plenos, tendo em vista as regras de transição. Por outro, porque ainda não existe um valor máximo para os benefícios previdenciários dos servidores públicos, o que só será possível depois do estabelecimento, mediante legislação ordinária, da previdência complementar desses trabalhadores.

Nesse último caso, pode-se afirmar que não há como restringir o montante do déficit do sistema sem a existência de um teto. A razão é que, de acordo com a estrutura de custeio do regime de repartição hoje existente no setor público, as contribuições sociais arrecadadas dos servidores públicos ativos, dos aposentados e dos pensionistas equivalem a menos de 12% dos gastos correntes da União com aposentadorias e pensões. Ou seja, os 88% restantes precisam ser bancados pelos contribuintes de tributos federais. Além disso, a imposição do teto no regime próprio dos servidores significa a aproximação entre este regime e o existente para os demais trabalhadores do País, prática que hoje representa tendência internacional.

Do ponto de vista da política fiscal, os efeitos de curto e longo prazo redundantes da mudança do regime de previdência dos servidores são distintos. No curto, existem os elevados gastos envolvidos com a transição de um regime integralmente de repartição, como o vigente, para outro em que parte será regida pela capitalização. Os custos são elevados por que os futuros servidores, ou seja, os que ingressarem no serviço público após a constituição da respectiva previdência complementar, passarão a contribuir apenas até o teto do regime, que, sendo igual ao do INSS, hoje equivale a R$ 3.689,66. Com isso, menor arrecadação será revertida para financiar as aposentadorias integrais em manutenção, cujos valores médios para a União correspondem a: R$ 6.177,00, no Executivo (civis), R$ 19.281, no Legislativo, e R$ 15.563 no Judiciário (MPO, 2010). Resultado: caberá ao Tesouro Nacional aportar, por vários anos, ainda mais recursos para financiar esses benefícios.

Cabe observar que a aplicação compulsória das novas regras apenas para os novos servidores amenizará o custo de transição, na medida em que o sistema previdenciário antigo continuará a contar com as contribuições integrais dos servidores públicos em exercício, o que minimizará a perda de arrecadação.

Mesmo assim, a vigência de um valor máximo para os benefícios dos novos servidores públicos redundará em um custo de transição entre o regime antigo e o novo estimado em torno de 0,1% do PIB nas duas primeiras décadas.

No longo prazo, todavia, a situação tende a se acomodar, já que a quantidade de aposentadorias integrais se reduz paulatinamente enquanto as novas crescem. Após um razoável período de tempo, a situação se reverte completamente, passando, então, a gerar a fundamental redução dos gastos públicos no âmbito do regime próprio de previdência do servidor público. Paralelamente, a previdência complementar dos servidores estará captando e capitalizando as contribuições adicionais, bem como aplicando a poupança em investimentos de longo prazo. Ao final do processo, as aposentadorias de maior valor deixarão de ser financiadas pelo Estado e, consequentemente, por toda a sociedade.

O gráfico a seguir mostra a trajetória estimada do custo de transição como proporção do PIB, caso a previdência complementar tivesse sido instituída na União em 2009. Verifica-se que tal custo apresenta três fases distintas. Nas duas décadas iniciais, é elevado. Na década seguinte, embora o custo de transição ainda seja positivo, sua trajetória já é descendente. A partir da terceira década, as vantagens advindas da limitação das aposentadorias ao teto do RGPS começam a superar os custos associados às perdas de arrecadação, fazendo com que os ganhos fiscais atinjam algo próximo a 0,2% do PIB.

Custo de transição da previdência complementar dos servidores públicos da União (em % do PIB)

Fonte: CAETANO, Marcelo A. “Previdência complementar para o serviço público no Brasil”. Sinais Sociais, v.3. nº 8, set/dez 2008. Rio de Janeiro: SESC, 2008.

Ressaltem-se ainda duas situações específicas que recomendam a tempestiva reformulação do regime previdenciário do servidor público. Em primeiro lugar, o Brasil encontra-se em fase de crescimento, o que torna menos difícil custear a transição. Em segundo, quase 40% dos servidores públicos federais possuem hoje mais de 50 anos de idade, o que configura um perfil envelhecido de trabalhadores (superior ao verificado no conjunto da nossa força de trabalho e mesmo nos países da OECD). Nesta segunda situação, embora haja uma pressão das despesas previdenciárias no médio prazo, há também a oportunidade de repor esses servidores por novos já inseridos num também novo regime de previdência sujeito ao teto do INSS e complementado por fundo de pensão do setor público. Se o processo de renovação dos servidores ocorrer antes da mudança de regime, os custos fiscais serão maiores e o tempo de maturação do novo regime será mais amplo.

Por fim, cabe fazer um alerta em relação à exigência constitucional de que os fundos de pensão dos servidores deverão ter natureza pública. Já que tal figura não possui significação jurídica estabelecida, caberá à lei que vier a instituir a previdência complementar a normatização da matéria. Se esta for no sentido do estabelecimento de institutos de previdência constituídos como fundações ou autarquias públicas, estar-se-á quebrando um dos pilares da organização da previdência complementar no Brasil, que sempre teve natureza privada. Além disso, correr-se-á o risco de o sistema ficar mais vulnerável às ingerências políticas. Ademais, caso venham a ser fundos públicos, o Governo Federal poderá encontrar dificuldades para supervisionar e regular as entidades criadas por estados e municípios, devido aos princípios constitucionais de autonomia federativa.

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Para ler mais sobre o tema:

AMARO, Meiriane N. Terceira Reforma da Previdência: até quando esperar? Brasília: Centro de Estudos da Consultoria do Senado, fev/2010 (Texto para Discussão nº 84). Disponível no site: http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao.htm

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https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=236 13
O que fazer para melhorar a eficiência dos servidores públicos e reduzir as despesas de pessoal do governo? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=36&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-que-fazer-para-melhorar-a-eficiencia-dos-servidores-publicos-e-reduzir-as-despesas-de-pessoal-do-governo https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=36#comments Fri, 18 Feb 2011 00:07:05 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=36 Esse texto propõe diretrizes para a política de admissão e gerência de pessoal no Governo Federal, tendo por objetivo: elevar o estímulo à produtividade, evitar a admissão excessiva de pessoal, melhorar a qualidade do pessoal selecionado para o serviço público, facilitar a alocação mais eficiente da mão-de-obra disponível e reduzir o custo da folha de pagamento.

1. Cada órgão deve focar esforços em sua área-fim. É comum que as instituições públicas percam foco em suas areas-fim, permitindo o crescimento excessivo das atividades-meio ou secundárias; com consequente necessidade de contratar pessoal para essas áreas.

É preciso permanentemente reavaliar as estruturas organizacionais, “aparando” a expansão das atividades de apoio, de divulgação, ou acessórias; bem como evitando a duplicação de estruturas e promovendo a automação de tarefas rotineiras, que leva a ganhos de eficiência e redução da necessidade de pessoal.

2. Planejamento da força de trabalho e cronograma anual de concursos. Um órgão central, como o Ministério do Planejamento, deve montar um planejamento das necessidades de força de trabalho do governo com horizonte de cinco anos ou mais para as admissões.

A partir daí, deve ser fixado um cronograma de concursos, a serem realizados anualmente, em data preestabelecida, para praticamente todas as carreiras. Seria uma regularidade similar à dos concursos vestibulares das universidades.

Atualmente os concursos públicos são realizados sem regularidade temporal, por decisão negociada entre o órgão contratante e o Ministério do Planejamento. Sabedores da dificuldade de se aprovarem novas admissões futuras, e cientes do custo de transação envolvido na negociação para abertura de concurso, os gestores públicos têm incentivos para superestimar o número de servidores necessários. Abrem vagas em excesso e, além disso, realizam concursos com prazo de validade máximo permitido pela Constituição (4 anos), deixando uma lista de espera a ser convocada ao longo desse período.

Isso gera diversos problemas. Primeiro, os indivíduos da lista de espera tendem a montar lobby para garantir e acelerar sua convocação, o que gera mais custo de transação e induz a contratação de mais servidores que o necessário. Segundo, os concursos se tornam grandes eventos, com número elevado de candidatos, o que eleva o custo de realização dos certames. Terceiro, deixa de haver uma substituição gradativa dos servidores que ano após ano saem de atividade, pois há grande intervalo entre um concurso e outro, com prejuízo à memória institucional.

3. Melhorar a qualidade dos concursos públicos. Nos concursos públicos as questões de múltipla escolha têm maior peso. Dado que os concursos são grandes eventos, opta-se por um método de teste que facilite a correção por meio eletrônico.

As provas raramente são focadas nos assuntos e habilidades estritos que serão requeridos do candidato ao longo da vida profissional. É costume cobrar dos candidatos um tipo de conhecimento enciclopédico, superficial, com amplo espectro de matérias (direito penal, direito civil, direito constitucional, orçamento e contabilidade pública, economia, ciência política, administração, regulamento interno dos órgãos, etc.). Isso leva os candidatos a uma extenuante preparação, baseada no aprendizado pouco profundo de matérias (a famosa “decoreba”) que, passado o concurso, raramente lhes serão de interesse ou de alguma utilidade.

A tendência é que sejam aprovados nos concursos os jovens candidatos a primeiro emprego, que têm tempo suficiente para dedicar ao estudo intensivo das matérias exigidas nas provas. Profissionais mais experientes, com bagagem e habilidade profissional que seriam muito importantes ao setor público, simplesmente não têm condições de parar de trabalhar durante vários meses para se dedicarem ao estudo do programa do concurso.

Além de reduzir a importância das questões objetivas, seria importante aumentar a importância das questões dissertativas (nas quais é possível avaliar a capacidade de argumentação e a habilidade para escrever); reduzir a amplitude de matérias cobradas, focando naquelas de importância direta para o exercício profissional; dar preferência ao teste de habilidade cognitiva (testes de raciocínio e lógica) em detrimento do conhecimento decorado; e aumentar o peso atribuído ao histórico profissional e aos títulos acadêmicos.

A implantação de um cronograma de concursos anuais, com menor número de vagas e candidatos, conforme sugerido no item 2, viabilizaria esse tipo de modificação nos concursos, pois seria menor o número de candidatos e de avaliações a corrigir.

4. Mudar o foco dos cursos de formação. Uma vez que os concursos públicos tendem a selecionar jovens pouco experientes, há a necessidade de “treinar” aprovados antes do início do efetivo exercício das suas funções. Surgem, então, os longos (e caros) cursos de formação. Contudo, os cursos de formação acabam repetindo a fórmula usada nos concursos: ministrar aulas sobre conteúdo acadêmico, muitas vezes na modalidade express, apresentando-se uma visão introdutória e superficial de grande quantidade de disciplinas acadêmicas.

Se fossem selecionados para o setor público profissionais mais experientes, com conhecimento nas áreas específicas que serão demandadas na atividade laboral cotidiana, a política de formação poderia enfocar o desenvolvimento ao longo da carreira. Os servidores se candidatariam para periódicas e regulares licenças para estudo, no âmbito de um programa de treinamento da instituição, focado na missão e nos objetivos principais daquela organização.

Esse seria um incentivo à qualidade e produtividade dos servidores, que procurariam ser mais aplicados em suas atividades, como forma de se credenciar a um desses programas de treinamento ao longo da carreira. Principalmente se o sucesso na conclusão do curso fosse premiado com um adicional à remuneração.

5. Evitar o excesso de qualificação. Um equívoco comumente observado é a exigência de formação escolar em nível mais elevado que o necessário para o exercício da função, na suposição de que isso levará a uma seleção de pessoal melhor qualificado.

Isso não necessariamente é correto. Moriconi[1] mostra que, tendo em vista que as remunerações oferecidas a professores do ensino básico não são atrativas, e que pessoas com nível superior têm alternativas de emprego com melhor remuneração, ao se exigir nível superior completo para o ingresso na carreira, as vagas para professor acabam atraindo os indivíduos de nível superior com menor qualidade profissional.

Se não fosse exigido o nível superior completo, é possível que jovens talentosos, ainda cursando a universidade, se sentissem atraídos pela remuneração oferecida. A exigência de nível superior, nesse e em outros casos similares, em vez de selecionar os melhores, acaba selecionando os piores.

6. Ascensão funcional por mérito. Ao longo da vida profissional as pessoas estudam, melhoram suas qualificações e podem se tornar sobrequalificadas para o exercício da função para a qual foram inicialmente contratadas. Um jovem, admitido aos vinte anos de idade para exercer funções de nível médio, pode se formar, realizar cursos de especialização, etc. Manter-se com as mesmas tarefas que exercia aos vinte anos, ao longo de toda a vida funcional, é algo bastante frustrante. A tendência é que essas pessoas se tornem desmotivadas para a realização de suas tarefas.

No atual quadro constitucional não é permitido fazer concursos para ascensão interna no setor público. A opção para esse profissional passa a ser a de fazer concurso público para uma nova carreira. Porém, como visto nos itens 2 e 3, os concursos públicos, em seus modelos atuais, exigem um esforço elevado de preparação, e dão pouca importância à experiência profissional acumulada. Há, portanto, um alto custo de transação na opção de “começar de novo” em uma nova carreira, por meio de novo concurso público.

Por isso, seria importante a regulamentação da possibilidade de ascensão funcional, de atividades de nível médio para outras de nível superior, por meio de concursos internos. Esses concursos, praticados anteriormente à vigência da Constituição de 1988, têm um histórico de manipulação em favor de apadrinhados e de uso como mecanismo indevido de elevação geral de remunerações. Seria preciso adotar mecanismos de transparência para evitar tal problema.

7. Carreiras não vinculadas a órgãos específicos. É preciso aumentar a possibilidade de um mesmo servidor ser alocado em diferentes órgãos da administração. Desde o final dos anos noventa houve uma tendência de criação de carreiras vinculadas a um determinado órgão. Temos, por exemplo, o “Plano Especial de Cargos da Cultura”, cujos servidores ficam vinculados ao Ministério da Cultura, o “Plano Especial de Cargos do Ministério da Fazenda”, etc.

Essa foi uma forma encontrada pelas lideranças sindicais e corporativas dos servidores para melhorar a sua remuneração e estimular a coesão em torno dos interesses de classe, reduzindo seus custos de decisão coletiva.

O resultado disso foi uma redução da possibilidade de remanejamento de pessoal entre órgãos. Um “Analista Ambiental” que realize atividades burocráticas e gerenciais no Ministério do Meio Ambiente não encontará espaço para realizar atividades similares no Ministério dos Transportes: ao se transferir, perderá a gratificação que recebe no órgão de origem e não poderá receber gratificação similar paga no órgão de destino, pois não pertence à carreira daquele órgão.

Caso haja excesso de pessoal no primeiro Ministério e escassez no segundo, é reduzida a possibilidade de se solucionar esse desequilíbrio por meio de realocação de pessoal.

8. Competição e mérito na distribuição de funções comissionadas e de Direção e Assessoramento Superior (DAS). A maior mobilidade horizontal, tratada no item anterior, facilitaria a criação de um ambiente de competição, meritocracia e aumento de produtividade: as funções gratificadas ou DAS oferecidas por um órgão poderiam, a critério de seus dirigentes, ser alocadas por meio de abertura de concorrência eletrônica, a ser disputada por servidores de diversos órgãos.

9. Reformulação e enxugamento das funções de confiança e DAS. Nos anos recentes houve um grande incremento no número de funções e cargos que podem ser livremente nomeados pelo gestor público, sem a exigência de que o escolhido seja servidor público de carreira. O número de DAS pulou de 17,6 mil para 21,2 mil entre 2003 e 2009: um crescimento de 20,5%.

Isso é prejudicial não apenas pela tendência ao acúmulo de excesso de pessoal, como também por gerar descontinuidade no processo de trabalho. A cada troca de governo, milhares de gestores e assessores de nível superior e intermediário são substituídos, com a quebra de ritmo do trabalho e perda da memória das organizações. Isso sem contar o elevado risco de que as nomeações políticas levem à escolha de pessoas de baixo nível técnico ou não identificadas com as metas de longo prazo das instituições para as quais foram nomeadas.

Essas contratações revelam uma contradição. Por um lado, é banido o instrumento da ascensão funcional, como visto no item 6, sob o argumento de que a seleção de mérito deve ser por concurso. Por outro lado, usa-se e abusa-se da contratação sem qualquer concurso, para cargos em comissão.

É preciso extinguir os cargos e funções de livre provimento nos níveis intermediários e básicos da administração. A entrada de não-servidores na administração ficaria restrita aos de alta hierarquia, de cunho político.

10. Uso parcimonioso da gratificação por desempenho. Sempre que se fala em premiar o mérito, surge a idéia da avaliação de desempenho pessoal, pagando-se gratificações aos servidores bem avaliados.

Esse procedimento, contudo, tem-se mostrado pouco eficaz. Uma má avaliação deteriora as relações pessoais entre superior (avaliador) e subordinado (avaliado), gerando hostilidade. A tendência é a de se conceder avaliação máxima a todos.

Por isso, esse tipo de mecanismo deve ser usado exclusivamente nos casos em que seja possível medir, de forma exógena e independente, o desempenho coletivo. Por exemplo, gratificar servidores das escolas cujos alunos apresentem bons rendimentos em testes de proficiência, ou gratificar auditores fiscais por atingirem a meta de arrecadação.

Do contrário, o mérito deve ser premiado por outros mecanismos, como a rapidez na ascensão funcional ao longo da carreira (vide item 11) ou o acesso a funções comissionadas por meio de processos competitivos (vide item 8).

11. Progressão seletiva ao longo da carreira. Historicamente as progressões dos servidores a níveis mais elevados de suas carreiras têm sido feitas por tempo de serviço, o que não estimula o bom desempenho.

Para tornar esse quadro ainda mais desestimulante, houve uma tendência ao estreitamento na diferença de remuneração entre o nível inicial e o nível final de remuneração das carreiras, tornando pouco relevante o avanço para os próximos níveis.

Marconi[2] mostra, por exemplo, que para os auditores fiscais essa diferença caiu de 75% para 26%, para os analistas do Banco Central do Brasil reduziu-se de 117% para 40%, para os Técnicos de Seguro Social de 117% para 75%.

Deve-se ampliar a diferença de remuneração entre o nível inicial e final. A segunda providência seria reduzir a prática de concessão de gratificações com valores uniformes a todos os servidores da carreira. Em terceiro lugar, é preciso encontrar mecanismos de promoção ao longo da carreira que privilegiem o mérito.

Um mecanismo possível seria fixar um número de vagas para promoção sempre menor que o de candidatos à promoção. O critério para promoção seria o mérito, definindo-se os escolhidos por um colegiado de superiores (evitando-se a decisão individual do chefe direto).

O estabelecimento de um “funil” de vagas, muito similar ao que existe no sistema de promoção de oficiais militares, serviria para acelerar a ascensão dos servidores de melhor desempenho.

12. Fixação dos vencimentos a partir de comparações com o setor privado. A fixação dos vencimentos para cada carreira tem sido feita de forma ad hoc, ao sabor das pressões sindicais e corporativas. Os percentuais de reajustes no setor público devem acompanhar aqueles praticado no setor privado, para atividades que exijam escolaridade e experiência similares.

13. Regulamentação do direito de greve. Devido à não regulamentação do dispositivo constitucional que estabelece o direito de greve dos servidores, as organizações sindicais de servidores encontram espaço para realizar greves sem sofrer punições, o que permite que se mantenham greves longas, sem a preocupação de se manter um nível mínimo de funcionamento dos serviços essenciais.

Uma decisão do Supremo Tribunal Federal estipulou que, na ausência da lei regulamentadora da greve no setor público, deveriam ser aplicadas as regras (mais disciplinadoras) vigentes no setor privado. A aplicação dessa decisão, contudo, depende da disposição política do governo, que quase sempre tem sido de condescendência com os grevistas.

14. Regulamentação da previdência complementar dos servidores públicos. As Emendas Constitucionais nº 20, de 1998 e nº 41, de 2003 criaram a possibilidade de se estabelecer um regime de previdência complementar para os servidores públicos. A idéia é aproximar as regras do atual sistema de aposentadorias do Regime de Próprio de Previdência Social (RPPS), dos servidores públicos, àquelas vigentes no Regime Geral de Previdência Social (RGPS), que abarca os trabalhadores do setor privado.

Atualmente as aposentadorias e pensões no setor público podem atingir valores muito superiores ao teto legal imposto aos trabalhadores do setor privado. A Constituição, a partir da aprovação das emendas acima citadas, prevê a possibilidade da criação, por lei ordinária do poder executivo (federal, estadual, distrital ou municipal) de um regime de previdência complementar. A partir do início do funcionamento dessa previdência complementar, o RPPS pagaria, a seus participantes, aposentadorias e pensões em valor até o limite máximo do RGPS.

A previdência complementar dos servidores públicos funcionaria sob o regime de contribuição definida, ou seja, a aposentadoria futura seria calculada com base no valor da poupança individual acumulada pelo servidor, a partir de contribuições suas e do governo empregador. Isso garantiria a solvência de longo prazo da previdência dos servidores e desoneraria o Tesouro da obrigação de custear o déficit gerado no sistema atual.

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Para ler mais sobre o tema:

Marconi, N. (2010) A gestão recente de recursos humanos no Governo Federal e sugestões de políticas. Fundação Getúlio Vargas, mimeo, São Paulo.

Mendes, M. (2010). POLÍTICA DE PESSOAL DO GOVERNO FEDERAL: diretrizes para maior produtividade, qualidade, economicidade e igualdade. In: Senado Federal. Agenda Legislativa para o Desenvolvimento Nacional. Senado Federal, Brasília, DF.

OECD (2010) OECD reviews of human resource management in government: Brazil 2010 – Federal Government, mimeo.


[1] Moriconi, G. (2008) Os professores públicos são mal remunerados nas escolas brasileiras? Uma análise da atratividade da carreira do magistério sob o aspecto da remuneração. Fundação Getúlio Vargas, São Paulo. Mestrado em Administração Pública e Governo.

[2] Marconi, N. (2010) A gestão recente de recursos humanos no Governo Federal e sugestões de políticas. Fundação Getúlio Vargas, mimeo, São Paulo.

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