segurança – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Fri, 09 Sep 2022 15:04:11 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Renovando o Meio Ambiente e a Segurança nas Rodovias: O Programa Renovar https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3676&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=renovando-o-meio-ambiente-e-a-seguranca-nas-rodovias-o-programa-renovar Fri, 09 Sep 2022 15:04:11 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3676    Da Vitória Qualificação [1]

A Medida Provisória (MPV) nº 1.112/22 instituiu o Programa de Aumento da Produtividade da Frota Rodoviária no País, o Renovar. O Programa funcionará como agregador de iniciativas e ações voltadas à retirada de circulação, de forma progressiva, dos veículos em fim de vida útil, à renovação de frota e à economia circular no sistema de mobilidade e logística do País. Tive a grande honra de ser relator desta MPV na Câmara dos Deputados, onde pude discuti-lo com os Ministérios da Economia, Infraestrutura, Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) e representantes do setor privado, especialmente da indústria automotiva. A MPV 1.112/22 foi aprovada em 02 de agosto de 2022 no plenário da Câmara dos Deputados como Projeto de Lei de Conversão (quando há mudanças na MPV) e no dia seguinte no plenário do Senado sem alterações de mérito, e aguarda sanção presidencial.

O mérito da proposta me convenceu principalmente por causa dos seus dois principais objetivos: contribuir para a urgente melhoria do meio ambiente e para o incremento da segurança nas estradas brasileiras. O Renovar ataca estes dois problemas que, infelizmente, não se resolvem espontaneamente sem uma intervenção inteligente do Estado.

O Renovar incentiva o desmonte ou destruição, como sucata, de caminhões, ônibus, vans e implementos rodoviários antigos, baseados em tecnologia bem mais poluidora, trocando-os por novos. De fato, o material particulado emitido por caminhões que atendem à atual fase do Programa de Controle de Emissões Veiculares – Proconve P-7- chega a ser 96% menor do que em caminhões que atendem aos requisitos da fase P-3, do início dos anos 2000. Essa menor emissão de partículas no ar pelos veículos automotores pode reduzir problemas de saúde que custaram ao Sistema único de Saúde – SUS –, em 2018, mais de R$ 1,3 bilhão, em função de internações devido a problemas respiratórios. E ainda há um dado muito preocupante: caminhões e ônibus respondem por 47% da poluição do ar por carbono negro na cidade de São Paulo, mesmo sendo apenas 5% da frota veicular. Estes valores tendem a ser ainda maiores se considerarmos também as vans e furgões, que fiz questão de acrescentar aos bens elegíveis da proposta, o que amplia bastante o seu alcance social.

Vale ressaltar que nossa matriz logística se concentra em mais de 60% no modal rodoviário, o que torna esse modo de transporte vital para a distribuição de produtos e serviços e, consequentemente, para o bom funcionamento de nossa economia. Tendo em vista que quase um quarto dos nossos caminhões têm mais de trinta anos de fabricação, e, portanto, consomem mais óleo diesel e têm manutenção mais custosa, sua substituição por veículos mais modernos tem o potencial de impactar substancialmente os custos de frete, que por sua vez têm influência direta nos índices de inflação.

Além disso, equipamentos muito antigos tendem a oferecer mais riscos de ocorrência de falhas mecânicas, o que pode causar acidentes. No caso de veículos pesados, sabemos que acidentes podem ter consequências particularmente desastrosas. De fato, a falha mecânica é apontada como causa de 3% a 5% dos acidentes de trânsito no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde. A ocorrência de acidentes com caminhões, bem como o dano ao ocupante, aumenta conforme avança a idade dos veículos, uma vez que caminhões mais novos trazem consigo novos itens e requisitos de segurança. De fato, os veículos novos, além de livres do desgaste ao qual os antigos foram submetidos, contam com tecnologia mais avançada e itens de segurança adicionais (não obrigatórios anos atrás) que nos fazem crer que a renovação da frota evitará acidentes e salvará vidas.

O Renovar constitui mecanismo baseado em parcerias negociais ou operacionais entre a instituição coordenadora das iniciativas e as instituições financiadoras ou parceiras públicas ou privadas. Por meio da Plataforma Renovar, operada pela ABDI, a qual coordenará a iniciativa de âmbito nacional, os proprietários de caminhões, ônibus, vans e implementos rodoviários antigos poderão vendê-los e adquirir novos veículos com os recursos recebidos dos financiadores, além de benefícios e condições especiais oferecidas pelos parceiros.

O mecanismo de financiamento que deverá ser mais utilizado no Programa se dará por meio das contratadas para exploração e produção de petróleo e gás natural. O incentivo será dado pelo fato de o projeto permitir que os recursos aplicados nas iniciativas sejam considerados no cálculo de adimplemento de obrigações contratuais de pesquisa, desenvolvimento e de inovação (PD&I) naquele setor.

Este foi um ponto que recebeu algumas críticas de que se estaria retirando recursos de investimento em PD&I para o Programa. Segundo o Ministério da Economia, no entanto, frequentemente este valor não é cumprido, ensejando multas às empresas. O investimento no Renovar seria uma forma de evitar este tipo de penalidade quando não houver demanda suficiente para aquela finalidade.

De qualquer forma, me sensibilizei pelo argumento que não é desejável reduzir o montante gastos nestes programas de ciência e tecnologia em um país tão carente deste tipo de atividade. Afinal, são estes dispêndios que sustentam o incremento da produtividade da atividade econômica do País que é o que permite incrementos sustentados na renda dos brasileiros.

Entendemos que a distribuição ideal de recursos ano a ano, no entanto, está longe de ser estática e, portanto, não faz sentido cravar um percentual pela via legislativa. Dessa forma, propus regra na qual o Poder Executivo deverá regulamentar a proporção entre recursos destinados a PD&I e ao Renovar. Quando houver interesse da empresa em financiar o Programa, o montante correspondente deverá ser limitado ao teto estabelecido. O Poder Executivo é o agente com melhores condições de definir ano a ano, de acordo com os avanços da PD&I e das necessidades de renovação da frota, qual montante de recursos adequado a cada iniciativa.

As empresas de desmontagem participantes do Renovar poderão comercializar os materiais decorrentes da desmontagem ou destruição como sucata. Tais empresas destinarão à iniciativa nacional ou às outras iniciativas credenciadas o montante correspondente ao valor, por elas definido no ato de adesão.

Espera-se, com isso, o fortalecimento do mercado de reciclagem de veículos, o que por si só contribuirá para a preservação ambiental, uma vez que promove destinação das peças de forma mais sustentável e adequada.

Com relação às recicladoras, observamos que o texto original da Medida Provisória não esclarece os critérios para a escolha de empresas para atuação no Renovar. A ABDI, em parceria com a Fundação Getúlio Vargas, desenvolveu estudo cujas conclusões apontam para o fato de que, no mundo[2] em geral, e também no Brasil, a atividade de reciclagem veicular é, via de regra, deficitária. Ou seja, a receita auferida com a venda de peças e do aço frutos da desmontagem não seria suficiente sequer para cobrir os custos dessa atividade. A Medida Provisória previa apenas pagamento, por parte das recicladoras, pelo veículo a ser reciclado. Assim, entendemos ser necessário propor texto que permita a remuneração da recicladora, no sentido de tornar o arranjo do programa viável no caso concreto.

Por se tratar de atividade remunerada, e também por envolver direito à incorporação dos valores obtidos com a venda das partes recicladas, entendemos que essa escolha deve se basear em elementos de direito público, especificamente nos princípios da impessoalidade e da economicidade. Assim, propomos diretrizes para a escolha das empresas parceiras a ser feita pelo Poder Executivo.

No sentido de reforçar os mecanismos em favor dos impactos positivos para o meio ambiente, e fazer com que esta certificação tenha consequências concretas em favor desses objetivos, propomos que, por meio da certificação, os benefícios para a aquisição de novos veículos no âmbito do Renovar sejam crescentes com os resultados alcançados. Essa seria típica regulação de incentivo que, a depender de como for concretizada, pode representar estímulo a veículos sempre mais seguros e ambientalmente adequados. Aqui a velha regulação por “comando e controle” perde espaço para uma abordagem mais moderna em que se conta com os incentivos aos esforços e ao uso da melhor informação pelos agentes privados para atingir os objetivos do regulador.

Cabe destacar aperfeiçoamentos adicionais da Medida Provisória, sugeridas por meio de emendas parlamentares e pelo diálogo com o setor produtivo.

O Deputado Jerônimo Goergen propôs a remissão de débitos não tributários dos veículos no Renovar e a criação de linha de crédito no BNDES para aquisição de novos veículos, proposta também pelo Senador Mecias de Jesus. Ambas medidas incrementam a atratividade do Renovar e podem ser determinantes para o sucesso da iniciativa.

O Deputado Hugo Leal sugeriu regras aperfeiçoando procedimentos relativos aos veículos em fim de vida útil ou transferidos por leilão, confisco, apreensão ou doação à Administração, permitindo a baixa do veículo independentemente da existência de débitos fiscais ou multas. Permitem, ainda, a remoção de veículo abandonado, deteriorado ou acidentado sem responsável no local do acidente, medida sugerida também pela Deputada Christiane Yared. Essas medidas conferem maior fluidez ao processo nos departamentos estaduais de trânsito.

Em parceria com o Ministério da Infraestrutura, por meio da Secretaria nacional de Trânsito, oferecemos diversas alterações no Código de Trânsito Brasileiro (CTB) que, em seu conjunto, contribuirão para o aumento da segurança e da fluidez do trânsito além de aumentar a eficiência dos processos relacionados à sua gestão. Profundamente discutidas com membros de câmaras temáticas do Conselho Nacional de Trânsito (Contran)[3] e com entidades representantes de transportadores, essas sugestões foram construídas visando a corrigir falhas conhecidas do CTB.

Dentre elas, destaco, por exemplo, alteração proposta ao art. 67-C. Esse dispositivo obriga os motoristas profissionais a observar descansos regulares durante o exercício de sua atividade, sob pena de multa no caso de inobservância desses intervalos. Em que pese a boa intenção do comando e a reconhecida importância do descanso para a preservação da atenção e reflexos do motorista, é atributo desejável do legislador que observe a realidade fática do País e a considere ao propor normas de tamanho impacto. Nosso País não oferece infraestrutura suficiente para que os intervalos impostos sejam cumpridos em todas as rotas possíveis. A despeito dos ditames da Lei do caminhoneiro[4], que incentiva a criação dos pontos de parada e descanso, são frequentes as rotas nas quais o motorista simplesmente não consegue cumprir a regra do descanso pela total ausência de local seguro e adequado para estacionar o veículo. Nossa decisão, revestida de bom senso e amparada pelas discussões desenvolvidas, foi no sentido de suspender a aplicação de multa nesses casos. Naturalmente, onde houver pontos de parada e for possível cumprir a norma, ela continuará sendo aplicada. Entendo que o Estado não pode impor ao cidadão obrigação sem, por outro lado, oferecer meios para que ela seja cumprida e, como se não bastasse, aplicar multas por seu não cumprimento. Nosso texto corrige essa insensata realidade hoje em vigor.

Em favor do transporte de cargas e do transportador autônomo (TAC), ajustei a Lei nº 10.833, de 2003, para promovera isonomia tributária entre o TAC e as empresas de transporte. Atualmente, a norma define que poderá haver crédito presumido de 75% sobre o percentual de PIS/Cofins de 9,25% apenas quando uma empresa de serviços de transporte rodoviário de carga subcontratar um transportador autônomo ou transportadora optante pelo Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte – SIMPLES.

No entanto, se o usuário final do serviço contratar diretamente um transportador autônomo ou transportadora optante pelo SIMPLES, este crédito presumido não pode ocorrer. Ou seja, esse dispositivo, apesar de permitir que o crédito do PIS/Cofins seja efetivado com a operação de transporte realizada pelo autônomo, obriga a que haja a intermediação da empresa de serviços de transporte rodoviários. Nossa proposta promove isonomia fiscal e concorrencial entre as empresas e os caminhoneiros autônomos, oferecendo maior neutralidade ao sistema: o usuário escolherá diretamente um autônomo ou uma empresa conforme preços e confiabilidade/qualidade do transporte sejam mais vantajosos para si. A forma de incidência dos tributos deixa de afetar as decisões dos usuários, afastando os artificialismos competitivos.

Ainda sobre a tributação incidente na atividade de transporte rodoviário de cargas, objeto principal desta Medida Provisória, apresentamos dois ajustes adicionais à legislação do Pis/Pasep e Cofins. Na Lei nº 10.865/2004, propomos ajuste para permitir a restituição, ressarcimento ou compensação do estoque de créditos não consumido regularmente na sistemática da não-cumulatividade, nos casos de operações de importação e revenda de bens, não abarcadas por isenção, alíquota zero ou não incidência do Pis/Cofins.

Incluímos ainda os serviços associados às atividades com suspensão da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins, da Contribuição para o PIS/Pasep-Importação e da Cofins-Importação, hoje vigente, no caso de regime de drawback suspensão, apenas para mercadorias. Embora muitas empresas façam uso de serviços prestados por terceiros na produção dos bens destinados à exportação, tais serviços não podem ser adquiridos sob amparo do regime de drawback suspensão, já que o mecanismo em questão, à luz da legislação atual, viabiliza a suspensão de tributos que recaem apenas sobre mercadorias importadas ou compradas localmente para a produção de itens destinados ao mercado externo.

Enfim, o Renovar constitui política pública que mitiga externalidades negativas relacionadas à poluição gerada por veículos automotores e à possibilidade de danos a terceiros ocasionados por acidentes, além da redução do custo de transporte nas rodovias, diminuindo o chamado “Custo Brasil”. Assim, os benefícios extrapolam o setor de transporte rodoviário e atingem toda a sociedade, com impactos positivos para a economia, a segurança viária e o meio ambiente. As outras modificações introduzidas racionalizam procedimentos de trânsito e tornam mais eficiente e isonômica a tributação de forma a beneficiar a concorrência no transporte de caminhões, especialmente desonerando a atuação dos autônomos.

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[1] Deputado Federal pelo Espírito Santo.

[2] Exceto nos Estados Unidos, onde a dinâmica do mercado automotivo é tal que, aliada ao desenvolvimento tecnológico, viabiliza o mercado de reciclagem de veículos e recertificação de peças.

[3] As Câmaras Temáticas, órgãos técnicos vinculados ao Contran, são integradas por especialistas e têm como objetivo estudar e oferecer sugestões e embasamento técnico sobre assuntos específicos para decisões daquele colegiado.

[4] Lei nº 13.103, de 2 de março de 2015.

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Por que a saúde e a previdência vão piorar, mas a educação e a segurança vão melhorar? Ou: o que é a transição demográfica? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2938&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-a-saude-e-a-previdencia-vao-piorar-mas-a-educacao-e-a-seguranca-vao-melhorar-ou-o-que-e-a-transicao-demografica https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2938#comments Thu, 22 Dec 2016 14:55:36 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2938 Demografia e Previdência

A proposta do governo de reforma da Previdência é justificada pela transição demográfica (envelhecimento da população). Pode se entender o envelhecimento da população como o aumento da idade média dos brasileiros. Contrariamente ao que é frequentemente vinculado, esse aumento da idade média não se deve apenas ao aumento da expectativa de sobrevida, mas também à redução das taxas de natalidade da população.

A taxa de fertilidade por mulher no Brasil, em queda, já seria a menor da América do Sul1, e, desde 2005, o número de nascidos é insuficiente para repor a população. A queda na taxa de fertilidade (ou de natalidade) é atribuída na literatura internacional, entre outros fatores,ao aumento da escolaridade, à dissociação da sexualidade da reprodução e ao consumismo2. Especificamente para o Brasil, pesquisadores do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) chamam atenção para a redução de natalidade nas décadas de 70 a 90, o que estaria relacionada à ampliação da transmissão de novelas no país3.

A Previdência opera, no Brasil e em boa parte do mundo, pelo regime de repartição, em que as contribuições dos trabalhadores no mercado de trabalho formal financiam os benefícios dos trabalhadores inativos (aposentadorias, pensões, auxílios).  Assim, temos que, em uma ponta, menos pessoas estão nascendo para financiar os benefícios quando estiverem no mercado de trabalho, e, na outra ponta, os aposentados estão vivendo mais e recebendo os benefícios por mais tempo. Nos próximos 25 anos, o país terminará uma transição demográfica que países desenvolvidos fizeram em mais de 100 anos, de acordo com Tafner, Botelho e Erbisti (2014)4.

Neste sentido, por exemplo, o advento da idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição, proposto na reforma, faria com que no futuro os trabalhadores permanecessem mais tempo contribuindo, por um lado, e menos tempo recebendo os benefícios, por outro. O Gráfico 1 ilustra a situação atual  paraesse tipo de aposentadoria. Ela tem sido paga com aidade média de 54 anos (55 no caso dos homens, 52 no das mulheres). De acordo com a Tábua de Mortalidade do IBGE (2013), um homem nessa idade teria uma expectativa de sobrevida de mais 24 anos, vivendo em média até os 79 anos. Uma mulher, na idade média de 52 anos, tem umaexpectativa de sobrevida próxima de 30 anos, chegando em média ao redor dos 82 anos5. Segundo Tafner, Botelho e Erbisti (2015), entre 1980 e 2010, enquanto a expectativa de vida ao nascer cresceu 19% para homens e 18% para mulheres, a expectativa de sobrevida aos 60 anos cresceu muito mais: 42% para homens e 31% para mulheres6.

Tal informação ilustraria o desequilíbrio do benefício.A beneficiária desse tipo de aposentadoria teria como tempo de contribuição 30 anos e como tempo de usufruto esperado do benefício os mesmos 30 anos. Entretanto, a alíquota de contribuição do seu salário é de no máximo 11%, ou 31% quando se considera também a contribuição do empregador7. Fica evidente a dificuldade da Previdência de pagar o benefício sem a aplicação do fator previdenciário ou fórmula de cálculo semelhante.

A reforma da Previdência fará as pessoas “trabalharem até morrer”?

É importante observar nesta discussão que a variável relevante é a expectativa de sobrevida, e não a expectativa de vida ao nascer.  A expectativa de vida ao nascer, que também tem aumentado, reflete, por exemplo, as taxas de mortalidade infantil e mortes por causas externas em jovens (acidentes de trânsito, homicídio). É por isso que, neste exercício, em que usamos a expectativa de sobrevida condicional à idade de 55 anos (homem) e 52 anos (mulher), a expectativa de vida do homem chega aos 79 anos e da mulher aos 82 anos, acima da expectativa de vida ao nascer no país (72 para eles, 79 para elas). A expectativa de vida ao nascer é o equivalente à expectativa de sobrevida condicional àidade zero.

A incompreensão em relação à diferença entre expectativa de vida ao nascer e a expectativa de sobrevida gera um dos argumentos mais populares contra a reforma: o de que com uma idade mínima (ou aumento de outros parâmetros), as pessoas “trabalhariam até morrer” em algumas regiões do país. Um exemplo que foi muito disseminadonas redes sociais consta da Figura 1 abaixo.

De modo geral, a expectativa de vida ao nascer está relacionada com a idade média com que as pessoas falecem.  Ela é especialmente afetada pela mortalidade infantil, mais grave nas regiões mais pobres do país. Desta forma, de modo incoerente no argumento de “trabalhar até morrer”, a mortalidade infantil acaba sendo usada para justificar transferências de renda justamente para grupos de faixas etárias mais avançadas.

De maneira ilustrativa, o Secretário de Previdência do Ministério da Fazenda, Marcelo Abi-Ramia Caetano, aponta que os municípios que possuem as mais baixas expectativas de vida ao nascer no Brasil possuem inclusive uma proporção de idosos acima de 65 anos maior do que a média nacional, como Juripiranga (PB, com expectativa de vida ao nascer de 65 anos e meio) e Jurema (PE, expectativa de vida ao nascer de 65 anos e 10 meses)8.

A expectativa de sobrevida em idades mais altas não é perfeitamente correlacionada com a renda dos países. Parte da falência da previdência na Grécia se explica pela alta expectativa de vida dos idosos: uma das maiores da União Europeia, apesar do país ser um dos mais pobres do grupo. No mesmo sentido, a OCDE estima que nas próximas décadas a sobrevida das brasileiras será maior do que a das americanas ou dinamarquesas, que moram em países muito mais ricos9.

Com a transição demográfica, à medida que as pessoas vivem mais, o tempo esperado de usufruto aumenta para diversos benefícios previdenciários, como as aposentadorias e pensões. No entanto, isso ocorre sem contrapartida, já que há menos trabalhadores no mercado de trabalho, colocando uma pressão ainda maior nas contas previdenciárias. O exercício a seguir ajuda a visualizar este problema.

Como a configuração da população irá mudar daqui para frente?

De acordo com os dados e projeções de Camarano (2014)10, o Brasil teria cerca de 199 milhões de habitantes em 2015, dos quais 22% teriam entre 0 e 14 anos e 12% teriam 60 anos ou mais.  O restante, ou seja, a população entre 15 e 59 anos, somaria 66%.  A Figura 2 retrata essa proporção: em laranja estão as crianças; em azul, os idosos; e em branco, o restante da população.

Já a Figura 3 traz esta mesma proporção com as projeções para 2050. Seremos um país de 206 milhões de habitantes, mas a proporção de crianças teria caído de 22 para 9%, a proporção de idosos quase triplicará de 12 para 33% e o da população “em idade ativa”, cairia de 66 para 58%.

As Figuras 4 e 5, a seguir, são mais pertinentes para ilustrar o conceito de razão de dependência. Nas figuras anteriores, com o intuito de facilitar a visualização da mudança na distribuição etária, a população foi mantida fixa. Porém, na verdade, a partir de meados de década de 2030, ela começará a encolher11. Em 2050, o país não deverá mais ter uma das cinco maiores populações do mundo, sendo ultrapassado por Nigéria e Paquistão, e, ao fim do século, por outros seis países africanos12. As figuras abaixo ilustram, portanto, a transição demográfica também em termos absolutos, e não apenas relativos.

Nas Figuras 4 e 5, os dois grupos dependentes aparecem em azul (crianças e idosos), com o grupo em idade ativa aparecendo em cor branca. Simplificadamente, a razão de dependência relaciona a população em idade ativa com a população dependente: esta é sustentada por aquela. Seu inverso mostra a quantidade de pessoas em idade ativa capaz de financiar os economicamente dependentes. Considerando tanto crianças (0-14 anos) quanto idosos (60+), partiremos de 1,93 ativos para cada dependente em 2015 para apenas 1,37 em 2050, uma queda de quase 30%.Essa informação é relevante para o debate, já que por vezes é apontado que o crescimento da despesa previdenciária poderia ser compensado com a redução de gastos em educação: não só esse gasto per capita é muito inferior àquele, como a dependência total irá se elevar.

Boa parte desses dependentes serão idosos, conforme a Figura 5. O inverso da razão de dependência de idosos passará neste período de 5,36 para 1,75 (três vezes menos).A comparação entre as figuras que retratam a situação de 2015 evidenciam a transição demográfica que daria ensejo à reforma da Previdência. Seriam essas as tendências da população do país a partir de hoje, em que, conforme o Gráfico 1, mulheres beneficiárias da aposentadoria por tempo de contribuição têm praticamente tempo de contribuição e de usufruto do benefício iguais.

Em 2017, mesmo com a atual configuração populacional mais favorável, as despesas previdenciárias já serão responsáveis por 55% de todas as despesas primárias do governo federal. No Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2017, estima-se que a despesa apenas com o RGPS será equivalente a 8% do PIB em 2016, atingindo mais que o dobro desse valor em 2050, conforme o Gráfico 2, abaixo.

Cumpre observar que o ano de 2050 é usado como referência a título de ilustração, já que esta transição se fará sentir não apenas daqui a três décadas, mas a cada ano. Neste período, segundo Tafner (2015), o número de brasileiros recebendo benefícios afetados pela transição demográfica no INSS (aposentadoria por tempo de contribuição, aposentadoria por idade, pensão por morte e BPC-Idoso) passará de 29 milhões de pessoas em 2015 para 85 milhões em 2050. Teremos, em média, 1 milhão e 600 mil novos benefícios sendo pagos a cada ano13.

Economia

A questão da Previdência é emblemática sobre os efeitos de transição demográfica, mas o envelhecimento da população se fará sentir de diversas maneiras. A redução da razão de dependência está associada ao fim do “bônus demográfico”, período em que um país possui uma demografia mais favorável ao crescimento econômico: a força de trabalho (população economicamente ativa) é relativamente maior, o que em tese proporciona ganhos via mercado de trabalho e via incremento da poupança (que tende a se reduzir à medida que as pessoas alcançam a velhice).

Samuel Pessoa descreve, assim, haver dois “tipos” de bônus demográfico. O primeiro, relacionado ao mercado de trabalho, se encerraria em 2023. O segundo, ligado à poupança, “não ocorreu, pelo contrário ela [a poupança] reduziu-se, em função da queda da poupança pública14.

De fato, o termo “bônus demográfico” passa erroneamente a impressão de que há uma relação determinística entre a demografia mais favorável e o crescimento da economia: por isso, muitos especialistas preferem os termos “dividendo demográfico” ou “janela de oportunidades”. No caso do Brasil, é provável que o país envelheça antes de ficar rico.

Adicionalmente, Camarano (2014) descreve a literatura que trata de crescimento econômico e redução da população como um todo. O encolhimento da população desestimularia o investimento e a inovação tecnológica15.

Considerações finais: outros efeitos sobre as finanças públicas

A pressão do envelhecimento populacional sobre as contas do Estado está associadanão só à Previdência, mas também à saúde pública. Para Armínio Fraga, há uma “inexorável trajetória crescente dos gastos com a saúde16Já o Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS) projeta para as próximas décadas aumentos significativos da incidência na população de diabetes (50%), hipertensão (64%), artrite (66%), doença do coração (75%) e insuficiência renal (100%).

Camarano chama a atenção também para o fato de que a saúde dos idosos seria mais sensível às mudanças climáticas: o agravamento do processo de aquecimento global deve coincidir com o de envelhecimento populacional no Brasil.

Por outro lado, a redução no número de jovens permitiria um aumento mais confortável do gasto por aluno no país, com prováveis ganhos na qualidade da educação. A má notícia é que há pouco tempo para melhorar a educação do país, uma vez que melhorias somente no futuro serão absorvidas por uma parcela pequena da população.

A queda nas taxas de natalidade também tende a atenuar os problemas do país com a violência urbana, uma vez que a maioria dos crimes violentos são cometidos por homens jovens. A literatura dá especial atenção aos jovens nascidos em famílias pobres, relação que foi muito discutida pela opinião pública a partir do polêmico trabalho de Steven Levitt, o autor de Freakonomics1718. Cerqueira e Moura (2014) projetam expressiva redução na taxa de homicídios no país nos próximos anos, mantidos outros fatores constantes, vide Gráfico 319.

Assim, fica claro que o país passa por uma mudança profunda e veloz, que vai lhe afetar em várias áreas, mas que até agora parece ser invisível20 para a sociedade. A reforma da Previdência traz a demografia para o centro do debate nacional, muito embora o problema previdenciário seja apenas uma de suas facetas.

Várias referências deste texto são do livro “Novo Regime Demográfico: Uma nova relação entre população e desenvolvimento?”, organizado por Ana Amélia Camarano, do Ipea, que constitui um impressionante esforço de analisar o impacto da  transição demográfica sobre vários aspectos da vida nacional, e está disponível gratuitamente em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=23975.

 

(Este texto é baseado no Texto para Discussão nº 219 do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado, disponível no seguinte link:http://www.senado.gov.br/estudos)

 

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1CIA World Factbook 2016

2 Ver Camarano e Fernandes (2014). CAMARANO, A. A. FERNANDES, D. Mudanças nos Arranjos Familiares e Seu Impacto nas Condições de Vida: 1980 a 2010. CAMARANO, A. A. (Org.). Novo Regime Demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento?. Rio de Janeiro: Ipea, 2014.

3As novelas afetariam o comportamento das famílias, como a escolha pela quantidade de filhos e até seus nomes. Ver: La Ferrara et al. (2008). LA FERRARA, E.; CHONG, A.; DURYEA, S. Soap Operas and Fertility: Evidence from Brazil. Working Paper #633. Inter-AmericanDevelopment Bank. Junho de 2008.

4 TAFNER, P.; BOTELHO, C.; ERBISTI, R. Transição Demográfica e o Impacto Fiscal na Previdência Brasileira. CAMARANO, A. A. (Org.). Novo Regime Demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento?. Rio de Janeiro: Ipea, 2014.

5 23,6 no caso do homem e 30,2 no caso da mulher.

6TAFNER, P.; BOTELHO, C.; ERBISTI, R. Debates sobre Previdência: As Convergências. In: TAFNER, P.; BOTELHO, C.; ERBISTI, R. (Org.). Reforma da Previdência: A Visita da Velha Senhora. Brasília: Gestão Pública, 2015.

7 Não se pode descartar ainda que o tempo de usufruto esperado da aposentadoria por tempo de contribuição, por exemplo, seja ainda maior do que a que colocamos no Gráfico 6: neste exercício foram usadas as expectativas de sobrevida calculadas pelo IBGE para todo o conjunto da população. No entanto, o subconjunto da população que se aposenta por tempo de contribuição, por ter renda superior à média, possivelmente goza de diversas condições que aumentam em alguma medida a expectativa de sobrevida deste grupo.

8 Ver: http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-11/expectativa-de-vida-ao-nascer-nao-e-dado-adequado-para-discutir-previdencia.

9Pensions at Glance – 2013: OECD and G20 indicators. Disponível em: http://www.oecd.org/els/public-pensions/

10  CAMARANO, A, A. Perspectivas de Crescimento da População Brasileira e Algumas Implicações. In: CAMARANO, A. A. (Org.). Novo Regime Demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento?. Rio de Janeiro: Ipea, 2014.

11 Com exceção principal do continente africano, a transição demográfica é considerada fenômeno mundial. Anedoticamente, mesmo a China em 2015 anunciou o fim de sua “política” do filho único.

12 Congo, Tanzânia, Etiópia, Níger, Uganda e Egito. Projeções da Divisão de População da Organização das Nações Unidas (ONU). Disponível em: http://esa.un.org/unpd/wpp/.

13Note que estamos falando de novos benefícios “líquidos”, uma vez que parte dos novos benefícios “brutos” é compensada pela extinção de outros benefícios (como dos aposentados que falecerem no período).

14https://www.insper.edu.br/conhecimento/wp-content/uploads/2015/05/B%C3%95NUS_DEMOFR%C3%81FICO.pdf.

15CAMARANO, A. A. (Org.). Novo Regime Demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento?. Rio de Janeiro: Ipea, 2014.

16FRAGA, A. Prefácio. Convergências. In: TAFNER, P.; BOTELHO, C.; ERBISTI, R. (Org.). Reforma da Previdência: A Visita da Velha Senhora. Brasília: Gestão Pública, 2015

17Donohue and Levitt, “the Impact of Legalised Abortion on Crime” Quarterly Journal of Economics, May 2001.

18http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2510200701.htm.

19CERQUEIRA, D.; MOURA, R. L. Demografia e Homicídios no Brasil. In: CAMARANO, A. A. (Org.). Novo Regime Demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento?. Rio de Janeiro: Ipea, 2014.

20 Este termo batiza um dos melhores livros sobre a questão previdenciária: Demografia – A Ameaça Invisível, de Fabio Giambiagi e Paulo Tafner.

 

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