saúde – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Wed, 13 Dec 2017 19:36:28 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Princípio da vedação de retrocesso social: o caso da vinculação de recursos para a saúde https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3135&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=principio-da-vedacao-de-retrocesso-social-o-caso-da-vinculacao-de-recursos-para-a-saude https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3135#comments Wed, 13 Dec 2017 14:58:59 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3135 A judicialização da política e a consequente politização da justiça são fenômenos conhecidos da opinião pública, cujas causas são geralmente procuradas nas disfunções do sistema político ou na cultura compartilhada por juízes e promotores. A essência do problema encontra-se, no entanto, na própria teoria jurídica, que desenvolveu uma série de justificações para a atuação do Poder Judiciário em matérias anteriormente consideradas de competência exclusiva dos Poderes Legislativo e Executivo.

1. O princípio da vedação de retrocesso

Um exemplo desse tipo de justificação é o chamado “princípio da vedação do retrocesso social”, segundo o qual os patamares já alcançados na provisão de direitos sociais não poderiam ser posteriormente reduzidos, mas apenas mantidos ou ampliados. Tal argumento tem sido sistematicamente empregado contra todo tipo de legislação tida por seus defensores como “neoliberal”, por supostamente reduzir algum direito social “conquistado” no passado. Alega-se, por exemplo, que a reforma trabalhista e o Código Florestal seriam inconstitucionais por representarem um “retrocesso” na defesa dos direitos dos trabalhadores e na defesa do meio ambiente.

Uma versão mais atenuada do princípio considera que o retrocesso, por si só, não é necessariamente inconstitucional; apenas cria uma presunção de inconstitucionalidade, que pode ser superada mediante demonstração de que a medida é necessária ao atingimento de outro valor constitucional ou direito fundamental e que a redução operada não foi excessiva1. Admite-se levar em consideração o contexto econômico e político por que passa o país, assim como a chamada “reserva do possível”, ou seja, a disponibilidade de recursos. Tal modulação é excluída, no entanto, do chamado “núcleo essencial” do direito fundamental “atacado”, que, no caso dos direitos sociais, traduz-se em um “mínimo existencial”, que deve prevalecer, inclusive, sobre a “reserva do possível”. Ou seja, admite-se o “retrocesso” apenas no que exceder ao “mínimo existencial” e desde que demonstrada sua necessidade e proporcionalidade com relação a outro valor constitucional.

Em Portugal, um importante marco no reconhecimento do princípio foi o Acórdão 39/84 do Tribunal Constitucional, que considerou inconstitucional a revogação de dispositivos legais instituidores do Serviço Nacional de Saúde. No Brasil, os precedentes mais relevantes são o voto minoritário do Ministro Celso de Melo na ADI 3105/DF, contrário à contribuição previdenciária para inativos e pensionistas instituída pela Emenda Constitucional 41/2003, e o acórdão da Segunda Turma do STF no ARE 639337, relatado pelo mesmo Ministro, relativo à matrícula de crianças em creches próximas a sua residência. Na América Latina, há registro de emprego do princípio também em outros países, podendo ser citada a Sentença T-1318/2015 da Corte Constitucional da Colômbia, relativa a contrato celebrado no âmbito da política habitacional.

Não há na Constituição brasileira qualquer menção expressa ao princípio da vedação de retrocesso. Seus defensores indicam como fundamento os arts. 1º, III, e 3º, III, da Carta Magna, que consagram a dignidade da pessoa humana como fundamento e a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades regionais e sociais como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.

2. O princípio da vedação de retrocesso na ADI 5595

Encontra-se na pauta do Plenário do STF a ADI 5595, proposta pela Procuradoria Geral da República, que pede a declaração de inconstitucionalidade de dispositivos da Emenda Constitucional nº 86, de 2015, por violação do “princípio da vedação de retrocesso social”, decorrente da redução dos recursos vinculados à saúde. O relator do caso, Ministro Lewandowski, concedeu liminar acatando o pedido na íntegra.

A ADI 5595 pode ser considerada a mais radical formulação do princípio da vedação de retrocesso já submetida à apreciação do STF. Nela, a PGR pede ao Tribunal que declare a inconstitucionalidade dos arts. 2º e 3º da Emenda Constitucional nº 86, de 2015, que estabeleceram normas sobre a vinculação de recursos da União à política de saúde.

A Constituição de 1988, em sua redação original, não vinculava recursos para a saúde, mas para a seguridade social, conceito mais amplo, que abrange também a previdência e a assistência.

A Emenda Constitucional nº 29, de 2000, instituiu vinculação de recursos para “ações e serviços públicos de saúde” em todos os entes da Federação. No caso da União, atribuiu à lei complementar a fixação dos recursos mínimos a serem aplicados (CF, art. 198, § 2º, I, e § 3º, IV), o que acabou por ser feito pela Lei Complementar nº 141, de 2012. O art. 5º dessa Lei estabeleceu como piso de aplicação o montante empenhado no ano anterior, acrescido do crescimento do PIB, caso este tenha sido positivo. Posteriormente, a Lei nº 13.858, de 2013, destinou à saúde, em acréscimo a esse piso, 25% dos royalties e da participação especial da União oriundos da concessão de campos de petróleo na região do pré-sal (art. 2º, § 3º, e art. 4º).

A Emenda Constitucional nº 86, de 2015, substituiu a remissão à lei complementar pela fixação de um piso de aplicação de recursos na própria Constituição, correspondente a 15% da receita corrente líquida (CF, art. 198, § 2º, I). Estabeleceu, ainda, uma transição de cinco anos para o atingimento desse patamar, partindo de um percentual de 13,2%, e incluiu os recursos dos royalties do petróleo nesse piso (arts. 2º e 3º).

Essa transição foi subsequentemente revogada pela Emenda Constitucional nº 95, de 2016, que instituiu o Novo Regime Fiscal. O patamar de 15% foi antecipado para 2017, passando o valor resultante a ser rejustado pela inflação nos vinte anos seguintes.

A ADI 5595 insurge-se contra a transição instituída pela EC 86/2015 e a inclusão dos royalties do petróleo no piso de aplicação de recursos em saúde, sob o argumento de que o novo critério resultaria em patamar inferior de despesa, o que violaria o princípio da vedação de retrocesso. Alega-se, em síntese, que o direito à saúde é um direito fundamental garantido pela vinculação de recursos e protegido por cláusula pétrea (CF, art. 60, § 4º, IV). Embora o quadro de recessão econômica seja explicitamente reconhecido, alega-se que esse fato seria irrelevante diante da essencialidade da política de saúde.

3. Os equívocos da ADI 5595

O eventual provimento da ADI 5595 constituiria um precedente de grande impacto, que consagraria definitivamente o princípio da vedação de retrocesso, em sua versão mais radical, no direito constitucional brasileiro. O ineditismo da tese é múltiplo: contesta-se uma Emenda Constitucional em face de uma lei complementar e uma lei ordinária; o critério de aferição do “retrocesso” é puramente financeiro; a versão do princípio defendida é absoluta; e a abrangência da cláusula pétrea relativa aos direitos e garantias individuais (CF, art. 60, § 4º, IV) é estendida não apenas aos direitos sociais, mas aos recursos orçamentários a eles vinculados. Sua aceitação pelo STF representaria um enorme impulso à judicialização das políticas públicas e colocaria em risco não apenas a responsabilidade fiscal, mas o próprio direito à saúde. Sua repercussão não se limitaria a um maior aporte de recursos federais para a saúde, mas se estenderia a todas as eventuais realocações de recursos orçamentários, em todas as esferas da Federação.

3.1. Comprometimento da responsabilidade fiscal

A promoção dos direitos econômicos, sociais e culturais depende da condição econômica de cada país. Daí porque os documentos internacionais que os consagram se referem sempre aos “recursos disponíveis”2. A progressividade de seu atendimento decorre da expectativa de que o desenvolvimento econômico elevaria as condições de vida da população e a receita dos governos. Ocorre que o desenvolvimento não é linear. Diversos fatores podem levar os países à recessão ou mesmo à depressão econômica: guerras, catástrofes naturais, crises políticas, má gestão da política econômica, etc. Além disso, a economia de mercado apresenta ciclos de crescimento e recessão que atingem mesmo os países desenvolvidos.

A manutenção do patamar de despesas na fase descendente do ciclo econômico, quando há uma redução das receitas, somente pode ser feita mediante endividamento. No atual contexto brasileiro, contudo, a dívida pública já é muito elevada e cresce aceleradamente, em função dos elevados déficits nominais e primários verificados a partir de 2014. Um congelamento de despesas inviabilizaria qualquer tipo de ajuste fiscal capaz de recompor o equilíbrio das contas públicas. No limite, o governo seria obrigado a dar um calote nos credores, fornecedores e servidores públicos, o que comprometeria a continuidade dos serviços públicos e causaria um retrocesso de proporções catastróficas para as políticas sociais, a exemplo do que já ocorre no estado do Rio de Janeiro.

3.2. Prejuízo para os demais direitos sociais e para o próprio direito à saúde

A vinculação de recursos para uma política se dá sempre em prejuízo das demais políticas. O direito à saúde não se limita, no entanto, ao atendimento pelo SUS; abrange também as “políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos” (CF, art. 196). No mesmo sentido, o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais inclui entre as medidas de promoção do direito à saúde a redução da mortalidade infantil, a higiene do trabalho e do meio ambiente e a prevenção de doenças3. Ocorre que a Lei Complementar nº 141, de 2012, explicitamente exclui essas medidas da aplicação dos recursos vinculados à saúde (art. 4º).

Nesse contexto, o ajuste fiscal recairá desproporcionalmente sobre outras políticas igualmente necessárias à promoção da saúde, o que pode, no limite, inviabilizá-las por completo. Haverá recursos para o tratamento de doenças e o atendimento de acidentados ou vítimas da violência, mas não para o saneamento básico, a segurança alimentar, a fiscalização do trânsito e a segurança pública, políticas capazes atacar os problemas que estão na origem da demanda pelos serviços de saúde.

3.3. Violação da separação dos poderes

As vinculações de recursos são uma exceção à regra geral de livre alocação da receita de impostos pela Lei Orçamentária (CF, art. 167, IV). Ao impedir o Congresso Nacional de revê-las, a ADI 5595 “petrifica” o “congelamento” do orçamento, substituindo o juízo de 3/5 dos deputados e 3/5 dos senadores (quórum de aprovação das Emendas Constitucionais) pelo de 6 ministros do STF (quórum de julgamento das ADI) ou apenas do relator do caso (no caso de liminar).

Nesse contexto, a única alternativa disponível para o atendimento das políticas não vinculadas será a reclassificação de suas despesas, de modo que elas sejam enquadradas no âmbito das vinculadas. Isso obrigará, em um segundo momento, o Tribunal a se pronunciar sobre o que é ou não “saúde”, ou seja, a adentrar cada vez mais o universo da legislação ordinária.

4. Comprometimento da autodeterminação das futuras gerações

Os conceitos de “progresso” e “retrocesso” em matéria de legislação e políticas públicas é bastante subjetivo. O que é progresso para uns pode ser considerado um retrocesso para outros. Além disso, havendo trade-offs entre objetivos legítimos, faz-se necessário estabelecer prioridades, atividade eminentemente política.

É próprio da democracia o conceito de alternância no poder. Quem perdeu as eleições hoje pode vencê-las amanhã e vice-versa. A imposição da vontade do grupo político atual sobre as futuras gerações equivale a uma ditadura cujo dirigente recursa-se a sair do poder quando derrotado nas eleições.

A vedação de retrocesso congela, no entanto, a alocação de recursos feita em algum momento do passado e impede sua revisão pelas gerações subsequentes.

5. Conclusão

A aplicação do princípio da vedação de retrocesso, tal como proposta na ADI 5595, seria catastrófica. É certo que se trata de uma versão extrema do princípio, que desconsidera por completo o contexto econômico do país. Mesmo uma versão atenuada seria, no entanto, igualmente questionável, na medida em que levaria o Tribunal a revisar decisões alocativas de recursos financeiros próprias dos Poderes Executivo e Legislativo, que foram eleitos para isso.

Em realidade, o princípio da vedação de retrocesso, enquanto tal, parece-nos inadmissível, pois pretende impor à administração pública uma concepção linear de progresso, incompatível com a realidade econômica e com o direito das gerações futuras de eleger suas próprias prioridades4.

______________

1 Nesse sentido, SARLET, Ingo Wolfgang, Notas sobre a assim designada proibição de retrocesso social no constitucionalismo latino-americano. Rev. TST, Brasília, vol. 75, nº 3, jul/set 2009.

2 O artigo 2º do Pacto Internacional sobre Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, por exemplo, assim dispõe: “Cada Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas”. A mesma abordagem foi adotada nos demais documentos internacionais de proteção dos direitos humanos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção Americana de Direitos Humanos e seu Protocolo Adicional em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

3 “Art. 12. 1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental. 2. As medidas que os Estados Partes do presente Pacto deverão adotar com o fim de assegurar o pleno exercício desse direito incluirão as medidas que se façam necessárias para assegurar: a) A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como o desenvolvimento das crianças; b) A melhoria de todos os aspectos de higiene do trabalho e do meio ambiente; c) A prevenção e o tratamento das doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras, bem como a luta contra essas doenças; d) A criação de condições que assegurem a todos assistência médica e serviços médicos em caso de enfermidade.

4 Vale registra que, em seus escritos mais recentes, Canotilho, um dos principais defensores do princípio, revisou seu entendimento e considerou a vedação de retrocesso insustentável em face na realidade econômica. No mesmo sentido, o Tribunal Constitucional de Portugal deixou de aplicá-lo no julgamento de diversas medidas de ajuste fiscal adotadas naquele país.

 

Download

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=3135 3
Seu Jorge e a Previdência https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3044&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=seu-jorge-e-a-previdencia https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3044#comments Tue, 12 Sep 2017 14:31:13 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3044 Aos 77 anos, Giorgos não imaginava passar por aquela situação. Após trabalhar por anos na mina de carvão e na fundição, ele saíra naquela manhã de verão para sacar a aposentadoria da mulher. Sensibilizou-se com os pedintes que viu pelo caminho. Lembrou-se dos suicídios: não suportava mais ver o seu país assim. Tentou o saque da aposentadoria em uma agência, não conseguiu. Depois foi a mais um banco, nada. Insistiu em fazer o saque em mais outro, mas novamente sem sucesso. Na quarta vez que não conseguiu receber o benefício, Seu Giorgos não aguentou. Sentou no meio da calçada e chorou.

Um ano depois, talvez tivesse algum conhecido seu entre os que manifestavam contra o 15º corte no valor das aposentadorias, que ocorria mesmo após um ano da posse do primeiro-ministro Tsipras, do partido que chegara ao poder com discurso antiausteridade. Naquela ocasião, os manifestantes de cabelos brancos toparam com um ônibus da polícia no meio de sua passeata. Juntaram-se para tentar retirá-lo do caminho. A polícia respondeu à investida dos idosos. Com spray de pimenta.

Irresponsabilidade fiscal e contabilidade criativa foram alguns dos causadores da complicada crise da Grécia. Em um dos países mais envelhecidos da Europa, a crise levou a cortes de aposentadorias e até a feriados bancários, como o que Seu Giorgos Chatzifotiadis enfrentou. A foto do seu pesadelo, “O homem que chora”, correu o mundo.

***

Em alguns anos, Seu Giorgos pode ser Seu Jorge. Um idoso de mesmo nome que acreditou na mesma promessa de seu país de pagar a ele uma aposentadoria como pagou a de outros. Seu Jorge está desesperado com a sua aposentadoria cortada. A idade avançada não lhe permite mais trabalhar, e ele não consegue tratar suas doenças crônicas no SUS, cada dia mais sem dinheiro. É arrimo de família, uma vez que seus parentes jovens estão desempregados. Seu país vive uma crise grega, só que com sua renda per capita de Turquemenistão. Antes dos cortes, Seu Jorge já ganhava a metade do que ganhava Seu Giorgos.

Não acredita no que acontece. Vários anos antes ouviu de novo aquela ladainha de reforma da Previdência, mas recebeu no Whatsapp o vídeo explicando que tudo era mentira: a Previdência não tinha déficit, sobrava dinheiro que o governo desviava pra alguma coisa que Seu Jorge não entendeu muito bem o que era.

Seu Jorge não sabia que o vídeo fora criado por Nelson. Nelson ganhava bem mais que Seu Jorge, tinha direito a uma aposentadoria muito maior e com aumentos mais generosos, custeados não por suas próprias contribuições, mas pelas de pessoas como Seu Jorge. Nelson perderia esses direitos se o governo fizesse uma reforma.

Nelson era um orgulhoso servidor público, membro  da associação que representava a sua carreira. Seu Jorge confiou na informação do vídeo que recebeu porque tinha o selo de uma associação nacional de auditores. É coisa de doutor, pensou. Seu Jorge não sabia que cabia a associação de Nelson representar a carreira de elite com maior número de aposentados e pensionistas da União, 20 mil.

Entre as pautas da associação de Nelson, publicamente apresentadas em seu site em 2017, estavam o direito aos aumentos generosos, o fim da contribuição de servidores aposentados e até o direito desses aposentados receberem bônus de produtividade – de acordo com o aumento da arrecadação de impostos. No momento em que Seu Jorge recebeu o vídeo, este bônus era inclusive negociado pela associação de Nelson com o governo no meio de uma medida provisória. Insatisfeita com a proposta, a associação de Nelson contratou até um ex-presidente do Supremo Tribunal Federal para levar o pleito à Justiça. A associação também mobilizava seus recursos em 2017 para a campanha mostrando que não existia déficit na Previdência ou na Seguridade Social.

Nelson tinha um ponto de vista claro sobre como devem ser apresentadas as contas da Seguridade, mas Seu Jorge não tinha a mesma clareza. No vídeo que produziu, Nelson omitiu que a contabilidade de sua associação exclui as despesas com as aposentadorias e pensões dos próprios servidores públicos, e também não achou necessário mostrar que ainda assim havia um déficit já para o ano de 2016.

Seu Jorge não dava bola para o papo de crise na Previdência. Além do vídeo, ficou tranquilo ao ler no jornal que uma importante entidade da sociedade civil alertava que a reforma do governo era baseada em premissas equivocadas. Não entendia do assunto, mas novamente quem estava afirmando era doutor.

Seu Jorge também não percebia que cabia a esta outra entidade defender advogados como Miguel. O escritório de Miguel lucra ao conseguir benefícios do INSS para seus clientes, retendo em honorários uma parte do pagamento de aposentadorias rurais, aposentadorias especiais e aposentadorias por invalidez. Preocupado não só com seus clientes, mas também com seu negócio, Miguel, como outros advogados, acionou a entidade a que pertence e ela se manifestou contra a reforma da Previdência, pelos seus abusos sociais.

Em uma tarde daquele 2017, Seu Jorge perdeu tempo no trânsito com uma passeata. Porém, ficou resignado e a apoiou, porque se solidarizou com a causa dos trabalhadores do campo prejudicados pela reforma da Previdência. O protesto foi organizado por José. Como Miguel, José também ficou preocupado com as mudanças na aposentadoria rural. José é presidente de um sindicato rural cuja maior parte do filiados só se registrou para conseguir uma declaração atestando anos de trabalho no campo. Essa declaração é essencial para que recebam a aposentadoria rural.

Após a filiação para receber a aposentadoria, parte desses filiados terá mensalmente, e para sempre, descontos nos benefícios para financiar a atividade sindical, conforme autorizaram.  José não é o único presidente de sindicato rural preocupado com a reforma: ao todo, são cerca de 4 mil. Apesar da urbanização das décadas anteriores, existiam no Brasil em 2017 mais sindicatos de trabalhadores do campo do que sindicatos urbanos filiados à CUT e à Força Sindical, juntas. Caso fosse aprovada a reforma do governo, a comprovação de trabalho rural para aposentadoria seria feita com contribuições ao INSS ao longo da vida do trabalhador, e não apenas no momento de pedir da aposentadoria com intermédio de um sindicato como o de José ou de um advogado como Miguel.

***

Prosperando a mobilização de entidades com interesses como os de Miguel e José, sob a desinformação disseminada por entidades como a de Nelson, nenhuma reforma da Previdência será feita. Apesar das aposentadorias serem extremamente protegidas em nosso sistema jurídico, o absurdo cenário de relativização do direito adquirido e corte de benefícios pode aparecer no horizonte. Ele ocorrerá depois da redução em despesas não obrigatórias (mas não desimportantes) e do aumento de impostos, bem como do aumento do endividamento público que reprimirá a economia com juros altos. A outra saída é a hiperinflação.

Tem sido assim no Rio de Janeiro e foi assim em países europeus, como a Grécia de Seu Giorgos, o outro Seu Jorge. O duro corte de aposentadorias nesses países foi de tal forma imperativo que terminou validado pela Corte Europeia de Direitos Humanos. O tribunal foi provocado pela servidora pública portuguesa Maria Alfredina, que não aceitava o desconto da ‘contribuição extraordinária de solidariedade’, que é como se diz corte de aposentadorias em português de Portugal.

O córtex pré-frontal ventromedial é uma região de nossos cérebros que fica ativada quanto pensamos em nós próprios. Estudos mostram que quando pensamos em nós no futuro, porém, a região não se ativa: nossa incapacidade de pensar em nosso amanhã seria tal que é como se o cérebro estivesse pensando em outra pessoa. Enquanto país, talvez enfrentemos dificuldade semelhante. Encaramos uma reforma da Previdência como desnecessária e sequer questionamos a atividade dos grupos de interesse que atuam no debate. Fazer reforma da Previdência é ruim. A questão que devemos nos indagar é se não fazê-la é ainda pior, dando a Seu Jorge o destino de Seu Giorgos. Vamos deixá-lo chorando na calçada?

 

Download

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=3044 4
Por que a saúde e a previdência vão piorar, mas a educação e a segurança vão melhorar? Ou: o que é a transição demográfica? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2938&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-a-saude-e-a-previdencia-vao-piorar-mas-a-educacao-e-a-seguranca-vao-melhorar-ou-o-que-e-a-transicao-demografica https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2938#comments Thu, 22 Dec 2016 14:55:36 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2938 Demografia e Previdência

A proposta do governo de reforma da Previdência é justificada pela transição demográfica (envelhecimento da população). Pode se entender o envelhecimento da população como o aumento da idade média dos brasileiros. Contrariamente ao que é frequentemente vinculado, esse aumento da idade média não se deve apenas ao aumento da expectativa de sobrevida, mas também à redução das taxas de natalidade da população.

A taxa de fertilidade por mulher no Brasil, em queda, já seria a menor da América do Sul1, e, desde 2005, o número de nascidos é insuficiente para repor a população. A queda na taxa de fertilidade (ou de natalidade) é atribuída na literatura internacional, entre outros fatores,ao aumento da escolaridade, à dissociação da sexualidade da reprodução e ao consumismo2. Especificamente para o Brasil, pesquisadores do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) chamam atenção para a redução de natalidade nas décadas de 70 a 90, o que estaria relacionada à ampliação da transmissão de novelas no país3.

A Previdência opera, no Brasil e em boa parte do mundo, pelo regime de repartição, em que as contribuições dos trabalhadores no mercado de trabalho formal financiam os benefícios dos trabalhadores inativos (aposentadorias, pensões, auxílios).  Assim, temos que, em uma ponta, menos pessoas estão nascendo para financiar os benefícios quando estiverem no mercado de trabalho, e, na outra ponta, os aposentados estão vivendo mais e recebendo os benefícios por mais tempo. Nos próximos 25 anos, o país terminará uma transição demográfica que países desenvolvidos fizeram em mais de 100 anos, de acordo com Tafner, Botelho e Erbisti (2014)4.

Neste sentido, por exemplo, o advento da idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição, proposto na reforma, faria com que no futuro os trabalhadores permanecessem mais tempo contribuindo, por um lado, e menos tempo recebendo os benefícios, por outro. O Gráfico 1 ilustra a situação atual  paraesse tipo de aposentadoria. Ela tem sido paga com aidade média de 54 anos (55 no caso dos homens, 52 no das mulheres). De acordo com a Tábua de Mortalidade do IBGE (2013), um homem nessa idade teria uma expectativa de sobrevida de mais 24 anos, vivendo em média até os 79 anos. Uma mulher, na idade média de 52 anos, tem umaexpectativa de sobrevida próxima de 30 anos, chegando em média ao redor dos 82 anos5. Segundo Tafner, Botelho e Erbisti (2015), entre 1980 e 2010, enquanto a expectativa de vida ao nascer cresceu 19% para homens e 18% para mulheres, a expectativa de sobrevida aos 60 anos cresceu muito mais: 42% para homens e 31% para mulheres6.

Tal informação ilustraria o desequilíbrio do benefício.A beneficiária desse tipo de aposentadoria teria como tempo de contribuição 30 anos e como tempo de usufruto esperado do benefício os mesmos 30 anos. Entretanto, a alíquota de contribuição do seu salário é de no máximo 11%, ou 31% quando se considera também a contribuição do empregador7. Fica evidente a dificuldade da Previdência de pagar o benefício sem a aplicação do fator previdenciário ou fórmula de cálculo semelhante.

A reforma da Previdência fará as pessoas “trabalharem até morrer”?

É importante observar nesta discussão que a variável relevante é a expectativa de sobrevida, e não a expectativa de vida ao nascer.  A expectativa de vida ao nascer, que também tem aumentado, reflete, por exemplo, as taxas de mortalidade infantil e mortes por causas externas em jovens (acidentes de trânsito, homicídio). É por isso que, neste exercício, em que usamos a expectativa de sobrevida condicional à idade de 55 anos (homem) e 52 anos (mulher), a expectativa de vida do homem chega aos 79 anos e da mulher aos 82 anos, acima da expectativa de vida ao nascer no país (72 para eles, 79 para elas). A expectativa de vida ao nascer é o equivalente à expectativa de sobrevida condicional àidade zero.

A incompreensão em relação à diferença entre expectativa de vida ao nascer e a expectativa de sobrevida gera um dos argumentos mais populares contra a reforma: o de que com uma idade mínima (ou aumento de outros parâmetros), as pessoas “trabalhariam até morrer” em algumas regiões do país. Um exemplo que foi muito disseminadonas redes sociais consta da Figura 1 abaixo.

De modo geral, a expectativa de vida ao nascer está relacionada com a idade média com que as pessoas falecem.  Ela é especialmente afetada pela mortalidade infantil, mais grave nas regiões mais pobres do país. Desta forma, de modo incoerente no argumento de “trabalhar até morrer”, a mortalidade infantil acaba sendo usada para justificar transferências de renda justamente para grupos de faixas etárias mais avançadas.

De maneira ilustrativa, o Secretário de Previdência do Ministério da Fazenda, Marcelo Abi-Ramia Caetano, aponta que os municípios que possuem as mais baixas expectativas de vida ao nascer no Brasil possuem inclusive uma proporção de idosos acima de 65 anos maior do que a média nacional, como Juripiranga (PB, com expectativa de vida ao nascer de 65 anos e meio) e Jurema (PE, expectativa de vida ao nascer de 65 anos e 10 meses)8.

A expectativa de sobrevida em idades mais altas não é perfeitamente correlacionada com a renda dos países. Parte da falência da previdência na Grécia se explica pela alta expectativa de vida dos idosos: uma das maiores da União Europeia, apesar do país ser um dos mais pobres do grupo. No mesmo sentido, a OCDE estima que nas próximas décadas a sobrevida das brasileiras será maior do que a das americanas ou dinamarquesas, que moram em países muito mais ricos9.

Com a transição demográfica, à medida que as pessoas vivem mais, o tempo esperado de usufruto aumenta para diversos benefícios previdenciários, como as aposentadorias e pensões. No entanto, isso ocorre sem contrapartida, já que há menos trabalhadores no mercado de trabalho, colocando uma pressão ainda maior nas contas previdenciárias. O exercício a seguir ajuda a visualizar este problema.

Como a configuração da população irá mudar daqui para frente?

De acordo com os dados e projeções de Camarano (2014)10, o Brasil teria cerca de 199 milhões de habitantes em 2015, dos quais 22% teriam entre 0 e 14 anos e 12% teriam 60 anos ou mais.  O restante, ou seja, a população entre 15 e 59 anos, somaria 66%.  A Figura 2 retrata essa proporção: em laranja estão as crianças; em azul, os idosos; e em branco, o restante da população.

Já a Figura 3 traz esta mesma proporção com as projeções para 2050. Seremos um país de 206 milhões de habitantes, mas a proporção de crianças teria caído de 22 para 9%, a proporção de idosos quase triplicará de 12 para 33% e o da população “em idade ativa”, cairia de 66 para 58%.

As Figuras 4 e 5, a seguir, são mais pertinentes para ilustrar o conceito de razão de dependência. Nas figuras anteriores, com o intuito de facilitar a visualização da mudança na distribuição etária, a população foi mantida fixa. Porém, na verdade, a partir de meados de década de 2030, ela começará a encolher11. Em 2050, o país não deverá mais ter uma das cinco maiores populações do mundo, sendo ultrapassado por Nigéria e Paquistão, e, ao fim do século, por outros seis países africanos12. As figuras abaixo ilustram, portanto, a transição demográfica também em termos absolutos, e não apenas relativos.

Nas Figuras 4 e 5, os dois grupos dependentes aparecem em azul (crianças e idosos), com o grupo em idade ativa aparecendo em cor branca. Simplificadamente, a razão de dependência relaciona a população em idade ativa com a população dependente: esta é sustentada por aquela. Seu inverso mostra a quantidade de pessoas em idade ativa capaz de financiar os economicamente dependentes. Considerando tanto crianças (0-14 anos) quanto idosos (60+), partiremos de 1,93 ativos para cada dependente em 2015 para apenas 1,37 em 2050, uma queda de quase 30%.Essa informação é relevante para o debate, já que por vezes é apontado que o crescimento da despesa previdenciária poderia ser compensado com a redução de gastos em educação: não só esse gasto per capita é muito inferior àquele, como a dependência total irá se elevar.

Boa parte desses dependentes serão idosos, conforme a Figura 5. O inverso da razão de dependência de idosos passará neste período de 5,36 para 1,75 (três vezes menos).A comparação entre as figuras que retratam a situação de 2015 evidenciam a transição demográfica que daria ensejo à reforma da Previdência. Seriam essas as tendências da população do país a partir de hoje, em que, conforme o Gráfico 1, mulheres beneficiárias da aposentadoria por tempo de contribuição têm praticamente tempo de contribuição e de usufruto do benefício iguais.

Em 2017, mesmo com a atual configuração populacional mais favorável, as despesas previdenciárias já serão responsáveis por 55% de todas as despesas primárias do governo federal. No Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2017, estima-se que a despesa apenas com o RGPS será equivalente a 8% do PIB em 2016, atingindo mais que o dobro desse valor em 2050, conforme o Gráfico 2, abaixo.

Cumpre observar que o ano de 2050 é usado como referência a título de ilustração, já que esta transição se fará sentir não apenas daqui a três décadas, mas a cada ano. Neste período, segundo Tafner (2015), o número de brasileiros recebendo benefícios afetados pela transição demográfica no INSS (aposentadoria por tempo de contribuição, aposentadoria por idade, pensão por morte e BPC-Idoso) passará de 29 milhões de pessoas em 2015 para 85 milhões em 2050. Teremos, em média, 1 milhão e 600 mil novos benefícios sendo pagos a cada ano13.

Economia

A questão da Previdência é emblemática sobre os efeitos de transição demográfica, mas o envelhecimento da população se fará sentir de diversas maneiras. A redução da razão de dependência está associada ao fim do “bônus demográfico”, período em que um país possui uma demografia mais favorável ao crescimento econômico: a força de trabalho (população economicamente ativa) é relativamente maior, o que em tese proporciona ganhos via mercado de trabalho e via incremento da poupança (que tende a se reduzir à medida que as pessoas alcançam a velhice).

Samuel Pessoa descreve, assim, haver dois “tipos” de bônus demográfico. O primeiro, relacionado ao mercado de trabalho, se encerraria em 2023. O segundo, ligado à poupança, “não ocorreu, pelo contrário ela [a poupança] reduziu-se, em função da queda da poupança pública14.

De fato, o termo “bônus demográfico” passa erroneamente a impressão de que há uma relação determinística entre a demografia mais favorável e o crescimento da economia: por isso, muitos especialistas preferem os termos “dividendo demográfico” ou “janela de oportunidades”. No caso do Brasil, é provável que o país envelheça antes de ficar rico.

Adicionalmente, Camarano (2014) descreve a literatura que trata de crescimento econômico e redução da população como um todo. O encolhimento da população desestimularia o investimento e a inovação tecnológica15.

Considerações finais: outros efeitos sobre as finanças públicas

A pressão do envelhecimento populacional sobre as contas do Estado está associadanão só à Previdência, mas também à saúde pública. Para Armínio Fraga, há uma “inexorável trajetória crescente dos gastos com a saúde16Já o Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS) projeta para as próximas décadas aumentos significativos da incidência na população de diabetes (50%), hipertensão (64%), artrite (66%), doença do coração (75%) e insuficiência renal (100%).

Camarano chama a atenção também para o fato de que a saúde dos idosos seria mais sensível às mudanças climáticas: o agravamento do processo de aquecimento global deve coincidir com o de envelhecimento populacional no Brasil.

Por outro lado, a redução no número de jovens permitiria um aumento mais confortável do gasto por aluno no país, com prováveis ganhos na qualidade da educação. A má notícia é que há pouco tempo para melhorar a educação do país, uma vez que melhorias somente no futuro serão absorvidas por uma parcela pequena da população.

A queda nas taxas de natalidade também tende a atenuar os problemas do país com a violência urbana, uma vez que a maioria dos crimes violentos são cometidos por homens jovens. A literatura dá especial atenção aos jovens nascidos em famílias pobres, relação que foi muito discutida pela opinião pública a partir do polêmico trabalho de Steven Levitt, o autor de Freakonomics1718. Cerqueira e Moura (2014) projetam expressiva redução na taxa de homicídios no país nos próximos anos, mantidos outros fatores constantes, vide Gráfico 319.

Assim, fica claro que o país passa por uma mudança profunda e veloz, que vai lhe afetar em várias áreas, mas que até agora parece ser invisível20 para a sociedade. A reforma da Previdência traz a demografia para o centro do debate nacional, muito embora o problema previdenciário seja apenas uma de suas facetas.

Várias referências deste texto são do livro “Novo Regime Demográfico: Uma nova relação entre população e desenvolvimento?”, organizado por Ana Amélia Camarano, do Ipea, que constitui um impressionante esforço de analisar o impacto da  transição demográfica sobre vários aspectos da vida nacional, e está disponível gratuitamente em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=23975.

 

(Este texto é baseado no Texto para Discussão nº 219 do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado, disponível no seguinte link:http://www.senado.gov.br/estudos)

 

_________________

1CIA World Factbook 2016

2 Ver Camarano e Fernandes (2014). CAMARANO, A. A. FERNANDES, D. Mudanças nos Arranjos Familiares e Seu Impacto nas Condições de Vida: 1980 a 2010. CAMARANO, A. A. (Org.). Novo Regime Demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento?. Rio de Janeiro: Ipea, 2014.

3As novelas afetariam o comportamento das famílias, como a escolha pela quantidade de filhos e até seus nomes. Ver: La Ferrara et al. (2008). LA FERRARA, E.; CHONG, A.; DURYEA, S. Soap Operas and Fertility: Evidence from Brazil. Working Paper #633. Inter-AmericanDevelopment Bank. Junho de 2008.

4 TAFNER, P.; BOTELHO, C.; ERBISTI, R. Transição Demográfica e o Impacto Fiscal na Previdência Brasileira. CAMARANO, A. A. (Org.). Novo Regime Demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento?. Rio de Janeiro: Ipea, 2014.

5 23,6 no caso do homem e 30,2 no caso da mulher.

6TAFNER, P.; BOTELHO, C.; ERBISTI, R. Debates sobre Previdência: As Convergências. In: TAFNER, P.; BOTELHO, C.; ERBISTI, R. (Org.). Reforma da Previdência: A Visita da Velha Senhora. Brasília: Gestão Pública, 2015.

7 Não se pode descartar ainda que o tempo de usufruto esperado da aposentadoria por tempo de contribuição, por exemplo, seja ainda maior do que a que colocamos no Gráfico 6: neste exercício foram usadas as expectativas de sobrevida calculadas pelo IBGE para todo o conjunto da população. No entanto, o subconjunto da população que se aposenta por tempo de contribuição, por ter renda superior à média, possivelmente goza de diversas condições que aumentam em alguma medida a expectativa de sobrevida deste grupo.

8 Ver: http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-11/expectativa-de-vida-ao-nascer-nao-e-dado-adequado-para-discutir-previdencia.

9Pensions at Glance – 2013: OECD and G20 indicators. Disponível em: http://www.oecd.org/els/public-pensions/

10  CAMARANO, A, A. Perspectivas de Crescimento da População Brasileira e Algumas Implicações. In: CAMARANO, A. A. (Org.). Novo Regime Demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento?. Rio de Janeiro: Ipea, 2014.

11 Com exceção principal do continente africano, a transição demográfica é considerada fenômeno mundial. Anedoticamente, mesmo a China em 2015 anunciou o fim de sua “política” do filho único.

12 Congo, Tanzânia, Etiópia, Níger, Uganda e Egito. Projeções da Divisão de População da Organização das Nações Unidas (ONU). Disponível em: http://esa.un.org/unpd/wpp/.

13Note que estamos falando de novos benefícios “líquidos”, uma vez que parte dos novos benefícios “brutos” é compensada pela extinção de outros benefícios (como dos aposentados que falecerem no período).

14https://www.insper.edu.br/conhecimento/wp-content/uploads/2015/05/B%C3%95NUS_DEMOFR%C3%81FICO.pdf.

15CAMARANO, A. A. (Org.). Novo Regime Demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento?. Rio de Janeiro: Ipea, 2014.

16FRAGA, A. Prefácio. Convergências. In: TAFNER, P.; BOTELHO, C.; ERBISTI, R. (Org.). Reforma da Previdência: A Visita da Velha Senhora. Brasília: Gestão Pública, 2015

17Donohue and Levitt, “the Impact of Legalised Abortion on Crime” Quarterly Journal of Economics, May 2001.

18http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2510200701.htm.

19CERQUEIRA, D.; MOURA, R. L. Demografia e Homicídios no Brasil. In: CAMARANO, A. A. (Org.). Novo Regime Demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento?. Rio de Janeiro: Ipea, 2014.

20 Este termo batiza um dos melhores livros sobre a questão previdenciária: Demografia – A Ameaça Invisível, de Fabio Giambiagi e Paulo Tafner.

 

Download:

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2938 4
Os consumidores seriam beneficiados pelo fim dos impostos sobre remédios? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2340&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=os-consumidores-seriam-beneficiados-pelo-fim-dos-impostos-sobre-remedios https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2340#comments Mon, 24 Nov 2014 14:28:04 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2340 Vem ganhando corpo a reivindicação de redução ou eliminação dos impostos cobrados na venda de remédios. Muitos parlamentares têm formulado iniciativas de lei nessa direção. O argumento para redução dos impostos é o de que a saúde é um bem “essencialíssimo”. Para os que defendem tal isenção tributária, a cobrança de impostos sobre medicamentos elevaria o preço final ao consumidor, reduzindo o bem-estar da população, que, em função dos impostos, acabaria consumindo menos medicamentos do que o necessário.

Nesse artigo procura-se apontar os dois equívocos mais importantes desse raciocínio. O primeiro é acreditar que a redução dos impostos redundará necessariamente na redução significativa dos preços ao consumidor. O segundo está em desconsiderar que a demanda por medicamentos das famílias de menor renda é atendida primordialmente pelo SUS e não pelo mercado.

A ideia de que a redução dos impostos resultaria em redução significativa dos preços ao consumidor não leva em conta que o mercado de medicamentos tem duas características que afetam a reação dos preços a uma eventual alteração nos tributos: patentes e força das marcas.

As patentes – que são instrumentos de garantia da propriedade intelectual da empresa desenvolvedora do princípio ativo – conferem ao fabricante monopólio temporário sobre a produção de certo medicamento. A existência de patentes, ao contrário do que possa parecer, é um fator primordial para o desenvolvimento de novos medicamentos e do aumento no longo prazo do acesso à saúde da população em geral. No curto prazo, enquanto dura a patente, o monopolista pode auferir lucros extraordinários. Qual é esse lucro? Tudo depende da importância do remédio. Uma patente de um medicamento que eliminasse oralmente e sem dor, em uma semana, todos os tipos de câncer teria valor astronômico. Uma patente de um remédio que trouxesse uma abordagem alternativa para o tratamento da azia teria, comparativamente, um valor menor.

A razão está nas diferentes essencialidades dos dois medicamentos hipotéticos. Em outras palavras, ainda que o fabricante do primeiro medicamento praticasse preços ao consumidor muito superiores ao custo de produção, não teria dificuldade em vendê-lo. A procura pelo remédio não seria muito afetada pelo preço. Essa situação, no jargão econômico, é chamada de baixa elasticidade da demanda. O fabricante detentor da segunda patente, do remédio alternativo para azia, não só sofreria a competição dos remédios já existentes como também se defrontaria com o fato de que a azia, apesar de incomodar, não é algo que ameace tão intensamente a saúde e a vida do doente. A demanda pelo segundo medicamento seria, portanto, mais elástica a variações de preços.

Parte significativa dos remédios essenciais para cura ou controle de sintomas de doenças relevantes tem demanda inelástica. Por isso, dão grande poder de mercado aos fabricantes detentores de suas patentes.

O segundo fator relevante a afetar a formação de preços dos medicamentos está no fato de que o consumidor tende a valorizar muito a qualidade – suposta ou real – de um dado medicamento. Como os medicamentos são produtos complexos, apenas especialistas podem, de fato, garantir sua qualidade. Por isso, o consumidor tende a se orientar pelo prestígio da marca do medicamento. O peso da marca confere uma condição próxima à de monopólio a seu fabricante, mesmo depois de vencida a patente e a despeito da concorrência exercida por genéricos e similares. O marketing das farmacêuticas é bastante agressivo e alcança diversas áreas, incluindo o suporte a atividades acadêmicas de corporações médicas e incentivos financeiros a balconistas e farmácias.

Em condições de monopólio ou próximas, uma elevação de preços decorrente de aumentos de impostos ad valorem (aqueles que são cobrados como um percentual do preço) é inferior à que se verificaria se estivesse operando em um mercado de concorrência efetiva, como mostra o gráfico abaixo.

img_2340_1

Desse modo, a imposição de tributos ad valorem – ou a sua eliminação – afetará pouco o preço de venda ao consumidor. A consequência é que, no caso de aumento de tributos ad valorem, a maior parte do imposto adicional é paga pelo fabricante, que não o repassa integralmente ao preço. Inversamente, no caso de retirada de tributos, o preço não cairá significativamente, pois essa redução de custo não será totalmente repassada ao consumidor, já que será em grande medida capturada pelo fabricante. Diversamente, se a estrutura de mercado fosse de concorrência perfeita e a demanda, perfeitamente inelástica, toda a redução de tributo seria repassada ao consumidor (por outro lado, na direção oposta, todo aumento de tributos é 100% repassado para o consumidor).

A Organização Mundial da Saúde, por exemplo, cita evidências de que, no Peru, a eliminação de impostos sobre medicamentos de alta essencialidade – anticancerígenos e antirretrovirais – não levou à queda do preço ao consumidor1.

Pesquisa publicada no jornal The Lancet, em 20082, mostrou que nos países de renda semelhante à do Brasil (renda média alta) a mediana da diferença de preços dos remédios de referência para os genéricos mais baratos é de notáveis 151%. Isso indica que a entrada de opções mais baratas no mercado não foi suficiente para derrubar os preços dos remédios de marca, dado que há pessoas dispostas a pagar mais caro por eles, por suporem – correta ou equivocadamente – que são de melhor qualidade.

Outro aspecto importante é a incidência dos impostos sobre as diversas faixas de renda da população e o perfil de consumo de medicamentos de cada faixa de renda. Estudo do IPEA3 aponta que os preços médios de medicamentos no Brasil subiram de US$ 1,85 para US$ 8,56 entre 1990 e 2009, uma variação muito superior à inflação do dólar. Mais interessante, no entanto, foi o comportamento do gasto médio com medicamentos adquiridos em mercado pela população no mesmo período: variou de US$ 11,34 para US$ 9,24. Para um forte aumento do preço médio dos medicamentos, houve uma queda no gasto total em remédios adquiridos em mercado. Esse dado é indício de  aumento da importância do fornecimento de medicamentos gratuitos pelo governo no total do consumo desses produtos.

O mesmo estudo aponta que, em 2008, das famílias que compõem os 40% mais pobres da população, entre 40% e 48% receberam gratuitamente todos os medicamentos que lhes foram prescritos. Nesse mesmo grupo, entre 56% e 64% receberam todos ou alguns dos medicamentos prescritos. Para os 10% mais ricos, esses percentuais caíram para 10% e 16%.

Parece claro que, do ponto de vista fiscal – que analisa de forma agregada receitas e gastos – a cobrança de impostos em remédios é plenamente justificada e contribui para a redução de desigualdades de renda. De um lado, os impostos não afetam substantivamente os preços ao consumidor, fazendo com que o governo se aproprie de uma renda que, sem os impostos, seria capturada majoritariamente pelos fabricantes e pela rede de distribuição. Essa captura, é bom salientar novamente, é decorrente das características peculiares desse mercado e da baixa elasticidade da demanda por medicamentos. De outro, a receita pública gerada pelos impostos sobre medicamentos vendidos em mercado abre espaço fiscal para financiar a distribuição gratuita aos segmentos mais pobres da população na rede pública.

Não é por acaso que esse arranjo fiscal na saúde – e mais especificamente, na área de medicamentos – que combina atendimento pelo mercado e pelo sistema público, se assemelha ao padrão verificado na Europa, onde as sociedades, diferentemente dos Estados Unidos, optaram por sistemas de saúde predominantemente públicos.

Noruega e Dinamarca aplicam aos medicamentos a alíquota genérica do imposto de valor agregado (IVA) de 25%. O mesmo se dá na Suécia, com a exceção de que os remédios com receita são isentos. Na Alemanha e no Reino Unido, o IVA dos medicamentos é idêntico aos dos demais produtos de consumo, de 19% e de 17,5%, respectivamente. Na Itália, o IVA de medicamentos – 10% – é metade do IVA normal. Seguindo esse exemplo, também praticam IVA de metade do normal para medicamentos Letônia, Áustria, República Checa, Eslováquia, Estônia, Finlândia, Eslovênia e Turquia.

Em sentido oposto, os Estados Unidos se caracterizam pela isenção total do imposto sobre vendas para medicamentos prescritos, embora haja alguma diferença entre os diversos estados. Essa prática é compreensível num quadro fiscal em que o Estado participa de maneira insignificante na provisão de serviços de saúde, em especial, na distribuição de medicamentos.

Parece não haver dúvida, em vista do que apontam a teoria econômica, a observação internacional e a comparação entre os diversos sistemas de saúde prevalecentes no mundo, que o Brasil deve continuar cobrando impostos sobre medicamentos, pois essa é a fórmula que melhor se adapta ao nosso modelo de provisão de saúde, ao perfil de distribuição de renda e ao mercado de medicamentos brasileiro. Essa cobrança tem óbvios efeitos redistributivos, especialmente porque, em geral, a receita que advém dos impostos, caso fosse perdida em uma eliminação de sua cobrança, ficaria majoritariamente retida entre fabricantes e a rede de distribuição privada. Por melhor que sejam as intenções dos que propõem a eliminação integral dos impostos sobre remédios, essa medida traria consequências negativas para a população de menor renda.

________________

1 In Peru, sales tax and VAT were waived for a range of cancer medicines and antiretrovirals in 2001, though little change in retail prices was observed to result. (…). But the experience of at least one country – Peru – has shown that removal of taxes does not necessarily mean lower prices to patients unless supporting regulation, for example, on retail mark-ups, is implemented (CREESE, 2011).
2 (CAMERON, EWEN, ROSS-DEGNA, BALL  AND LAING, 2008)
3 (IPEA, 2010)

 

Referências:

CAMERON, A.; EWEN, M.; ROSS-DEGNA, D.; BALL, D.; and LAING, R. Medicine prices, availability, and affordability in 36 developing and middle-income countries: a secondary analysis. The Lancet. 2008.

http://www.who.int/medicines/areas/access/medicine_prices_availability_and_affordability_in_36_developing_
and_middle-income_countries_a_secondary_annalysis.pdf?ua=1

CREESE, A. Review Series on Pharmaceutical Pricing Policies and Interventions. Working paper nº 5: Sales Taxes on Medicines. World Health Organization. 2011.

http://www.haiweb.org/medicineprices/05062011/Taxes%20final%20May2011.pdf

IPEA. Comunicado IPEA nº 74: Programas de assistência farmacêutica do governo federal – evolução recente das compras diretas de medicamentos e primeiras evidências de sua eficiência 2005 a 2008. IPEA. Brasília. 2010. http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/comunicado/101216_comunicadoipea74.pdf

Download:

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2340 7
A desigualdade de renda parou de cair? (Parte III) https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2041&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-desigualdade-de-renda-parou-de-cair-parte-iii https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2041#comments Tue, 29 Oct 2013 13:44:19 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2041 O texto da semana passada mostrou como o mercado de trabalho atuou no sentido de reduzir a desigualdade de renda desde pelo menos o início da primeira década do século XXI. Argumentou-se, naquele texto, que as condições que levaram à redução da desigualdade podem não se reproduzir nos próximos anos, o que faria com que a trajetória de queda se interrompesse.

O presente texto analisa o impacto das políticas sociais mostrando que, também nesse caso, os ganhos mais fáceis em termos de redistribuição já foram obtidos, podendo-se prever redução do seu efeito redistributivo nos próximos anos.

De acordo com IPEA (2013)1, aproximadamente 40% da queda da desigualdade entre 2002 e 2012 decorreu de políticas governamentais, sendo os seguintes os impactos individuais de cada política: aumento do valor real das aposentadorias de menor valor, indexadas ao salário-mínimo (21%); expansão do Bolsa Família (12%) e do Benefício de Prestação Continuada (BPC) (6%). Souza e Medeiros (2013)2, analisando a variação da desigualdade entre 2002 e 2009, chegam a números similares.

Trata-se de impacto significativo: as políticas sociais estão, de fato, ajudando a reduzir a desigualdade. Todavia, o governo poderia ter feito muito mais em termos de redução da desigualdade e da pobreza sem, ao mesmo tempo, ter prejudicado tanto as perspectivas de crescimento econômico, no curto e no médio prazo.

Em primeiro lugar, deve-se considerar que o Bolsa Família, entre os instrumentos de políticas públicas de redução de pobreza e desigualdade, é o mais eficiente, pois reduz a desigualdade a baixo custo. Já os benefícios previdenciários indexados ao salário-mínimo e o BPC (que também é reajustado de acordo com o mínimo) têm elevado custo fiscal. Outros programas públicos, como o Seguro-Desemprego e o Abono Salarial, além de impacto pífio sobre a desigualdade, também têm custo mais alto que o Bolsa Família.

Não obstante isso, o governo insiste em manter programas sociais menos eficientes e de alto custo, em vez de ampliar as intervenções de menor custo, na linha do Bolsa Família. Em especial, insiste nos aumentos reais do salário-mínimo, que provocam grandes aumentos de despesa pública, gerando desequilíbrio fiscal (além do problema citado na parte II, publicada na semana passada: elevação de custos e perda de competitividade das empresas).

Os aumentos reais do salário-mínimo são uma importante ferramenta eleitoral, o que torna difícil alteração de rota em tal política, a despeito de seus impactos adversos. O resultado é a expansão do gasto público, que pressiona a taxa de juros e a carga tributária. Ambos desestimulam o investimento e o crescimento econômico.

Em segundo lugar, é preciso considerar que a Previdência Social como um todo (considerando-se não só os benefícios de um salário-mínimo mas todas as aposentadorias, pensões e demais benefícios pagos) é fortemente concentradora de renda. De acordo com IPEA (2012)3, em 2011 a Previdência era responsável por 18% de toda desigualdade de renda. Ou seja, se não existissem os pagamentos feitos pela Previdência Social, o Índice de Gini seria aproximadamente 18% menor.

Isso ocorre porque são pagos benefícios de valor mais elevado para segmentos de renda mais alta. Uma reforma da previdência que reduzisse os privilégios hoje existentes (como, por exemplo, a concessão de pensões por morte sem qualquer limitação do prazo de concessão ou restrições de valores), diminuiria esse efeito concentrador de renda. No entanto a reforma da previdência saiu da agenda política, tendo sido aprovada apenas uma versão mitigada da previdência complementar dos servidores públicos.

Em terceiro lugar, houve no período 2007-2010 (segundo mandato do Presidente Lula) significativos aumentos salariais para os servidores públicos, o que também tem impacto concentrador de renda, pois o funcionalismo está no topo da distribuição de renda. Houve aumento real da folha de pessoal da União da ordem de 8% ao ano naquele período4, com posterior estabilização ao longo do Governo Dilma.

De acordo com o texto de Souza e Medeiros (2013), acima citado, entre 2003 e 2009 quase toda a redução de desigualdade promovida pelo Bolsa Família (12%) foi desfeita pelo aumento da remuneração dos servidores públicos, que aumentou a desigualdade em  10%. Note-se que também nesse caso houve deterioração das contas fiscais e necessidade de aumento de impostos e juros, com prejuízo para o crescimento da economia.

Em quarto lugar, duas políticas públicas fundamentais para melhorar as condições de vida da população e ao mesmo tempo elevar a produtividade dos trabalhadores, têm apresentado pouco progresso ou estagnação. Trata-se do saneamento e da saúde.

No caso do saneamento, IPEA (2013, p. 7) apresenta a  informação de que “o percentual de pessoas que tiveram acesso simultaneamente a energia elétrica, coleta de lixo, esgotamento sanitário adequado e acesso adequado à rede geral de água aumentou 1 ponto percentual em 2012, atingindo o universo de 59,2%”. Este é um dado muito ruim: 40,8% da população brasileira não têm acesso a serviços públicos básicos.

É relevante ressaltar que enquanto houve farta distribuição de desonerações tributárias nos últimos anos, as empresas de saneamento básico continuaram a ser taxadas integralmente pelo PIS/COFINS e CSLL, a despeito de haver no Congresso diversos projetos propondo tal isenção.

Na saúde, conforme registra Médici (2011)5, houve descontinuidade de importantes políticas de ampliação de atenção à saúde dos mais pobres. Entre 1992 e 2002 a cobertura do Programa Saúde da Família expandiu-se a uma taxa anual de 25,5%, depois, entre 2002 e 2009, essa taxa reduziu-se para 8% a.a.. A mesma desaceleração foi verificada no Programa de Agentes Comunitários de Saúde, que crescia a 72,6% ao ano entre 1994 e 2002 e desacelerou para 2,5% ao ano no período 2002-2009.

Também foi interrompido o processo de organização da rede de atendimento ambulatorial de forma regionalizada. Por esse meio, postos de atendimento básico filtravam os pacientes mais graves para unidades capacitadas para atendimento mais complexo, geridas pelos estados e cobrindo vários municípios. O sistema regrediu para o modelo anterior de hospitais municipais pequenos, sem economia de escala, baixa capacidade operacional e alta ociosidade.

Pouca ênfase foi dada às experiências de gestão hospitalar por Organizações Sociais, em contratos de gestão mais flexíveis que, comprovadamente, reduzem o custo e aumentam a resolutividade e qualidade dos atendimentos.

Ainda na saúde interrompeu-se a implantação do Cartão SUS, que agregaria qualidade ao atendimento, ao armazenar o histórico clinico dos pacientes. Ao mesmo tempo, o Cartão permitiria a criação de uma câmara de compensação financeira, para que os estados e municípios que prestassem o atendimento fossem por ele remunerados, além de permitir a cobrança, junto a planos de saúde, pelo atendimento de seus clientes que viessem a ser atendidos pelo SUS.

Tais medidas, se levadas adiante, reduziriam a iniquidade no atendimento à saúde, melhorariam a gestão, a produtividade e a qualidade dos serviços prestados. Em última instância, elevariam a capacidade laboral do trabalhador, sua produtividade e as perspectivas de crescimento da economia.

Ou seja, com políticas mais focadas na população pobre teria sido possível diminuir a pobreza e a desigualdade de forma mais intensa do que realmente aconteceu. Esse tipo de aperfeiçoamento da política social se torna cada vez mais importante, pois há motivos para se crer que o atual conjunto de política tende a ter menor efeito sobre a desigualdade nos próximos anos, uma vez que os resultados mais fáceis já foram obtidos. Isso porque:

a) o Bolsa Família e os demais programas sociais estão próximos de esgotar o seu processo de expansão (praticamente toda clientela elegível já é atendida pelos programas) e só continuarão a ter efeito redistributivo se houver aumento real no valor dos benefícios, o que se defronta com a delicada situação fiscal do país;

b) o processo de elevação do valor real do salário-mínimo parece já ter chegado a um ponto de esgotamento, tanto por produzir aumentos artificiais de salários, reduzindo a competitividade das empresas, quanto pela pressão que exerce nas contas públicas via previdência social.

c) Segundo Ferreira et al (2013)6, 32% da população brasileira, em 2009, podia ser classificada como “vulnerável”. Essas pessoas deixaram de ser pobres, mas têm razoável chance de voltar a sê-lo. Uma desaceleração da economia pode levar parte desse grande contingente de volta à pobreza, com possível ampliação dos  índices de desigualdade.

Para evitar que a desigualdade e a pobreza parem de cair é preciso ir além dos ajustes nas políticas sociais referidos ao longo desse texto (inclusive nos setores de saúde e saneamento). Deve-se fazer uma reforma da previdência social que, ao mesmo tempo, reduza a iniquidade daquele sistema e promova ajuste estrutural das contas públicas, o que elevará a poupança agregada e, consequentemente, o potencial de crescimento da economia. Portanto, a reforma da previdência combinaria queda de desigualdade com aumento do crescimento.

Da mesma forma, é fundamental dar prioridade à melhoria da qualidade da educação que é o meio mais garantido de gerar, simultaneamente, redução de desigualdade e crescimento econômico no longo prazo. A oferta de educação de qualidade faz com que o futuro das crianças deixe de depender do nível sócio-econômico dos pais. Um sistema educacional equitativo cria igualdade de oportunidades e promove mobilidade social de uma geração para outra. Sem investimentos em educação as famílias podem até melhorar de vida, mas seus horizontes estarão limitados pelo histórico familiar, pois as suas oportunidades de educação tendem a ser similares ou pouco melhores do que as que seus pais tiveram.

Políticas públicas e reformas que combinem redução da desigualdade com remoção de barreiras ao crescimento devem ser as prioridades governamentais.

__________

1 IPEA (2013) “Duas décadas de desigualdade e pobreza no Brasil medidas pela Pnad/IBGE” – Comunicados do IPEA nº 159, de 2013

2 Souza, P.H.G.F, Medeiros, M. (2013) The Decline in Inequality in Brazil in 2003-2009: the role of the State. Universidade de Brasilia. Economics and Politics Working Paper 14/2013.

3 IPEA (2012) A Década Inclusiva (2001-2011): desigualdade, pobreza e políticas de renda. Comunicado IPEA nº 155, de 2012.

4 Fonte: Boletim Estatístico de Pessoal, mar. 2013. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.

5 Médici, A. (2011) Propostas para Melhorar a Cobertura, a Eficiência e a Qualidade no Setor Saúde. In: Bacha, E.L. e Schwartzman, S. (Orgs.) Brasil: a nova agenda social. LTC editora.

6 Ferreira, F.H.G. et al (2013) Economic Mobility and the Rise of Latin American Middle Class. Banco Mundial.

Download:

  • veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2041 3