salário – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Mon, 05 Feb 2018 14:17:10 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Contos da Reforma Trabalhista https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3157&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=contos-da-reforma-trabalhista Mon, 05 Feb 2018 14:17:10 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3157 Miranda queria comemorar a causa que ganhou: ele aproveitou a sexta-feira e chamou os colegas do escritório para um bar badalado. A noite não foi tão divertida: reclamou com o dono do estabelecimento, Emanuel, que o atendimento do grupo foi ruim e não conseguiam fazer seus pedidos porque faltavam garçons.

João acaba de sair do ensino médio em uma escola pública, sem boas perspectivas. Quer ingressar em uma faculdade, mas não tem dinheiro para pagar uma particular ou o cursinho para passar no Enem. Sem experiência, não consegue um emprego. Na verdade, gostaria de pelo menos um bico, que o ajudasse a pagar as despesas e que também permitisse que tivesse tempo para os estudos.

Emanuel gostaria de contratar mais garçons para o fim de semana, para atender clientes como o advogado Miranda. Porém, a lei o impede: se contratar, tem que ser pra semana toda, dinheiro que ele não tem. Pensou então em contratar garçons informalmente apenas para as sextas e sábados. Desistiu porque da última vez que tentou recebeu uma condenação da Justiça que pesou em suas despesas.

Consumidores tais quais Miranda continuarão mal atendidos, Emanuel continuará sem funcionários para parte da semana e João continuará sem trabalho. Como João, um a cada quatro jovens procurando não têm empregos. A taxa de desemprego entre eles é mais do que o dobro da média nacional.

*

Renato está feliz: concluiu um ano no emprego com carteira assinada em uma pequena empresa e tem recebido elogios de clientes e patrões. O trabalho finalmente deu a segurança que faltava para sustentar sua filha pequena sem contar só com o Bolsa Família, e as perspectivas no emprego são boas.

Sua chefe Dora reconhece seu esforço e as metas que bate na firma, e pensou em promove-lo para a função de Mauricio – um empregado mais antigo que está desmotivado no posto. Entretanto, como Mauricio tem 10 anos na função não pode mais perde-la. Não existe lei com esta obrigação, mas a determinação de um tribunal superior. A pequena empresa não consegue pagar duas pessoas para o trabalho de uma, e, portanto, Renato não receberá a gratificação.

Dora pensou então em dar um adicional a Renato pela boa avaliação que recebe dos clientes. Porém, da última vez que tentou fazer isso recebeu uma condenação da Justiça. Como Renato ocupa formalmente o mesmo cargo que outros funcionários, Dora poderá ser processada pelos colegas de Renato, ou funcionários da outra filial, ou funcionários que a empresa eventualmente contratar no futuro.

Renato não receberá o aumento. Com o tempo, ficará desmotivado como Mauricio. Dora não vai ouvir mais elogios das famílias que usam o estabelecimento.

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Cristina finalmente terminou o curso de técnica em enfermagem. Foi em boa hora: se casou há pouco tempo e agora quer ter filhos. Cristina tentará uma vaga em um hospital.  Ela disputará a vaga com um colega do mesmo curso, com o mesmo nível de experiência e qualificação.

Luiz, responsável pelo RH do hospital, nota a aliança no dedo e a juventude de Cristina. Luiz sabe que se Cristina engravidar o hospital deverá pagar o afastamento dela durante a gestação e simultaneamente arcar com outra pessoa em seu lugar. A exigência existe há pouco tempo para gestantes em locais com qualquer nível de insalubridade. Luiz também sabe que Cristina tem restrições legais a fazer horas-extras.

Esses impeditivos não existem para o colega do curso de Cristina, que é homem. Ele levará a vaga.

No Brasil, o desemprego entre mulheres é quase 30% maior que dos homens. O grupo mais afetado pelo desemprego é o de mulheres jovens, como Cristina.

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José está animado. Depois de anos trabalhando no setor de construção, virou um reconhecido especialista em terraplenagem em Fortaleza. Limpeza de terreno, locação topográfica, escavação, corte, aterro, compactação, fundação. Nada escapa a perícia de José, que consegue fazer o serviço de modo mais eficiente, poupando custos para a construtora e reduzindo o tempo de entrega das obras para os consumidores.

Por isso, José se demitiu para criar um pequeno negócio especializado na tarefa. Quer que sua firma de terraplenagem preste serviços para várias construtoras cearenses. Confiante, José investiu em equipamentos e contratou o primo e o cunhado para ajudá-lo.

José confia no seu taco: acha que contratar seu serviço será mais vantajoso para as empresas do que manter pessoal pouco especializado ou um quadro fixo que só trabalha algumas vezes durante o ano.

Nenhuma construtora contratará o serviço de José. Ele vai falir e seu negócio jamais existirá. José, o primo e o cunhado entrarão para a fila de desempregados no Nordeste, onde a taxa de desemprego é quase o dobro da do Sul e mais de 20% acima da média nacional.

As construtoras temem ser processadas. Dr. César é um dos juízes que proibiu construtoras de terceirizar este serviço. Ele entende que, embora eventual, o serviço faz parte da “atividade-fim” dessas empresas, não de sua “atividade-meio”. Embora não exista lei com esta proibição ou distinção, existe uma determinação de um tribunal superior, que Dr. César acatou.

O gabinete de César tem muitos processos. Para ajudá-lo, ele conta com o auxílio de assessoras como Kátia. Compete a Kátia fazer a pesquisa de jurisprudência, aplica-la ao caso concreto e redigir os votos que César assinará.

Seu trabalho, com o de outros assessores, é supervisionado por César, que assim pode dedicar seu tempo e energia a outras atividades que considera mais importantes para o trabalho eficiente do gabinete.

A decisão escrita por Kátia e assinada por Dr. César diz que as construtoras não podem contratar com terceiros atividades que lhe são inerentes, que há subordinação estrutural entre as partes e ordena então que desembolsem uma determinada quantia para equiparar os terceirizados.

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Miranda está irritado. Com o escritório de vento em popa, ele está sem internet no celular logo no meio da semana. Ligou para o call-center da empresa de telefonia, que atende Miranda com lentidão e não consegue resolver o seu problema.

O call-center é de responsabilidade de Helena. Engenheira, ela era na verdade uma promissora profissional da área de mercado digital e inovação. Porém, a empresa optou por transferi-la da área onde pesquisava novos aplicativos e big data para que montasse uma estrutura para atender os clientes por telefone. Uma decisão judicial obrigou a empresa a ter seu próprio call-center.

Com a ajuda de Kátia, Dr. César foi o responsável pela decisão. Nenhuma lei obriga empresas telefônicas a terem seu próprio call-center, mas César entende que a atividade-fim de uma telefônica inclui falar ao telefone, ao contrário de outras firmas, que podem terceirizar a tarefa.

Sem poder contratar empresas especializadas para fazer o serviço, coube a Helena gerenciar o novo setor sem profissionais com know-how para auxiliá-la. Os novos aplicativos disponibilizados aos consumidores pela equipe especializada do antigo setor de Helena vão ter que esperar, e o atendimento da companhia por telefone demorará para ter a mesma eficiência.

Miranda não vai ser atendido hoje – como outros milhares de consumidores que perderão tempo de trabalho e convívio familiar com a inoperância do novo call-center.

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A reforma trabalhista entra em vigor em novembro. Se ela já valesse, João poderia ser contratado formalmente por Emanuel, o dono bar; Renato poderia pegar a função de Mauricio ou receber o adicional por produtividade; Cristina talvez fosse contratada pelo hospital em vez de seu colega homem; José poderia abrir sua empresa de terraplenagem; Helena poderia se dedicar a produzir para a sociedade aquilo que ela faz melhor; e Miranda seria um consumidor mais satisfeito.

Nem todos ganham com a reforma. Mauricio terá que competir com trabalhadores mais jovens. Miranda teria menos para comemorar no bar porque ações trabalhistas não poderão ser disparadas a esmo, a Justiça do Trabalho terá menor poder para legislar, e a nova lei impede algumas criações judiciais – como a “equiparação em relação ao paradigma remoto” que impede o aumento de Renato. (Advogados e o Judiciário trabalhista continuarão a ter um papel essencial no combate a ilegalidades, como a de Emanuel – aliás, a multa para empregar trabalhadores informais subiu 7 vezes.)

Os personagens representam uma parcela da população que é difusa e desorganizada, invisível neste debate. Essa massa contrasta com a organização e articulação de grupos como os que representam os trabalhadores já inseridos no mercado de trabalho formal (sindicatos) e os que representam o status quo da estrutura judicial.

Rara exceção neste debate foi a campanha dos trabalhadores da Guararapes contra o Ministério Público do Trabalho – evidentemente apoiada pela empresa e por um movimento político – mas que serviu para mostrar o rosto de uma massa prejudicada pela regulação atual do trabalho no Brasil e que é tipicamente invisível.

Um mercado de trabalho que funcione bem é vital para redução da pobreza e das desigualdades. A reforma trabalhista não é bala de prata para solucionar todos os seus problemas, mas permite a inclusão de excluídos com novas formas de contratação; dá segurança jurídica para a criação de empregos formais; e estimula o crescimento da produtividade (renda). Mesmo no bom momento do mercado de trabalho na primeira metade da década, a produtividade permaneceu estagnada e a informalidade muito alta, enquanto a baixa taxa média de desemprego escondia os indicadores piores para jovens, mulheres, negros e estratos mais pobres da população.

É fato conhecido que a pobreza no Brasil se concentra desproporcionalmente nas crianças e jovens, que moram em famílias com inserção precária no mercado de trabalho e sem pessoas mais velhas (que comumente recebem benefícios da Seguridade Social). Entre os 20% mais pobres da população, o desemprego é 7 vezes maior do que entre os mais ricos, e a informalidade cerca de 4 vezes maior. São estas as famílias que mais tem a ganhar. Estimativas iniciais sugerem entre 1,5 e 2,3 milhões de novas vagas apenas por conta da reforma.

É evidente que a reforma também beneficia os empregadores, afinal o empresariado apoiou a proposta. Não é por benevolência deles que os empregos formais ou a renda aumentarão. Toda contratação faz parte da busca por lucro pelo empresário. Cabe à legislação estabelecer regras do jogo para que, em sua procura pelo lucro, os patrões também maximizem os níveis de emprego e salários – e não que os prejudiquem. Afinal, a escolha da sociedade brasileira em sua Constituição foi por uma economia de mercado, e a regulação do trabalho deve ser ciente disso.

Além dos casos dos personagens do artigo, a reforma ataca muitas outras situações em que a CLT ou o Judiciário estabelecem condições que à primeira vista parecem favoráveis ao trabalhador, mas acabam não o sendo porque ignoram a premissa de um empregador que se comporta racionalmente e objetiva o lucro. O comportamento do empregador não deve ser idealizado.

Por exemplo, decisões bem-intencionadas de juízes para que o tempo no transporte oferecido voluntariamente pelo empregador aos empregados seja contado como horas-extras provocam a reação defensiva do empresário que, para preservar o lucro, desiste de fornecer o transporte. A situação do trabalhador piora: perderá mais tempo e dinheiro na rede de transporte pública, normalmente pior.

Autorização médica

Para o Prêmio Nobel indiano Amartya Sen, autor de Desenvolvimento como Liberdade, a pobreza é a privação de oportunidade. A reforma precisa ser melhor compreendida para vencer os esforços contrarreformistas de algumas entidades sindicais, da advocacia trabalhista e de parte do Judiciário/MP. No mesmo sentido do caso Guararapes, as pequenas fábulas aqui contadas precisam chamar atenção para um imperativo: a necessidade de defender os mais pobres de seus defensores.

Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 20 de outubro de 2017.

 

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Reforma trabalhista rumo ao ‘planalto’ https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3148&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=reforma-trabalhista-rumo-ao-planalto Mon, 29 Jan 2018 13:59:27 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3148 Rússia, Moçambique, Ucrânia, Comores, Venezuela, Panamá, Angola e Bielorrússia são alguns do grupo de apenas 12 países com legislação trabalhista mais rígida que a brasileira. Entre 144 nações, o Brasil ocuparia a 132ª posição em ranking de flexibilidade da legislação, segundo índice criado em anos recentes por pesquisadores do Institute of Labor Economics (IZA)1.

O indicador compara o tratamento das diferentes legislações para temas como a possibilidade de modalidades alternativas de contrato (como o trabalho intermitente); custos de contratação; custos e procedimentos de demissão; e jornada anual (que considera férias e feriados).  É pacífica na literatura a noção de que indicadores como este, em vez de serem usados para identificar causalidade entre a legislação e o crescimento econômico ou a taxa de desemprego de um país, são mais úteis quando analisados conjuntamente com medidas sobre o mercado de trabalho.  Se o índice aponta uma legislação trabalhista rígida, mas para um país que dispõe de bons dados para emprego, formalização e produtividade, não haveria problema.

Não é o caso do Brasil. O novo conjunto de indicadores divulgados pelo IBGE a partir de setembro de 2016 revela que cerca metade da força de trabalho não está abrangida pela legislação trabalhista. São os milhões de desempregados, informais e os integrantes da “força de trabalho potencial”, isto é, os desalentados que não apareciam nas estatísticas de desemprego porque já desistiram de procurar uma ocupação, embora quisessem uma. Nos Estados Unidos ele compõem uma taxa chamada de “taxa de desemprego real”.

Essas medidas ruins se somam aos indicadores de produtividade, estagnados há décadas, e ao índice de rigidez da legislação trabalhista para manifestar a necessidade de reforma nas leis do trabalho.

O Banco Mundial aponta os desafios de desenhar uma legislação trabalhista em países emergentes. Uma bem-intencionada legislação trabalhista, generosa, mas alienada, pode prejudicar exatamente os trabalhadores que tenta proteger, ao impedir a criação de vagas formais e o crescimento da produtividade (e da renda). Por outro lado, uma legislação exageradamente flexível pode levar à desproteção do trabalhador.

Esses dois extremos de regulação excessiva ou insuficiente são chamados de abismos. Não se sugere uma legislação “ideal”, ou a existência de um pico único para a performance do mercado de trabalho, mas sim a presença de múltiplos picos. Entre os abismos, há um planalto de possibilidades para esta legislação, que não levem o mercado de trabalho ao abismo do desemprego e da pobreza, nem ao abismo da precarização. Neste espaço, a regulação adereça as falhas de mercado sem prejudicar a eficiência. É neste planalto que o legislador quer chegar.

Figura 1 – Planalto e abismos da legislação trabalhista

Fonte: Betcherman (2014). Disponível em: https://wol.iza.org/uploads/articles/57/pdfs/designing-labor-market-regulations-in-developing-countries.pdf

 

Os dados sugerem que a regulação do mercado de trabalho no Brasil, pela CLT e pela jurisprudência trabalhista, nos coloca hoje em um desses abismos. Queremos subir ao planalto, mas sem correr o risco de cair no outro abismo2.

Este é o desafio da reforma trabalhista. A possibilidade que o negociado tenha a força do legislado contribui para que tenhamos contratos mais eficientes, com novas condições mutuamente benéficas para empregadores e empregados. É preciso, no entanto, ter a sensibilidade para reconhecer a desigualdade de poder negocial que pode existir nessa relação. A reforma impõe uma série de requisitos para as negociações coletivas, mas cortou subitamente a principal fonte de financiamento dos sindicatos (a impolular contribuição obrigatória).

Na teoria, se essa desigualdade leva uma das partes (o empregador) a conseguir termos mais favoráveis do que a outra, a liberdade contratual deixa de ser real e o resultado é uma falha de mercado, dando ensejo à proteção do arcabouço jurídico. Para que uma transação seja de fato mercado, é essencial a autonomia para veto em uma negociação.

Por sua vez, a incompreendida terceirização pode melhor entendida como um mecanismo para que a informação flua melhor no mercado de trabalho. Em A Reinvenção do Bazar: Uma história dos mercados, o falecido economista de Stanford John McMillan ensina que este mecanismo é um dos requisitos para o bom funcionamento de qualquer mercado, sob pena de reduzir quantidade e valor de transações.

No mercado de trabalho, isso significa desemprego e salários menores. A terceirização minimiza os custos de transação, entre eles o custo de busca. O desafio aqui para a regulação deste mecanismo é fazê-lo ser veículo de redução justamente desses custos, e não de custos com encargos trabalhistas (sonegação). O Judiciário aqui terá um papel fundamental: contrariamente ao que é divulgado, a reforma não liberou a terceirização “irrestrita”, mas sim a terceirização da atividade-fim: fraudes continuam sendo proibidas.

Há um mito no debate sobre a legislação e a Justiça trabalhistas no Brasil: o de que beneficiam e protegem demais o trabalhador. A pergunta é qual trabalhador. Se contribuem para nos levar ao abismo do desemprego, da informalidade e da renda baixa, não podem ser consideradas benéficas ao conjunto de trabalhadores. Cabe à reforma trabalhista mudar essa situação sem levar nosso mercado de trabalho ao abismo da precarização, mas sim ir rumo ao planalto.

Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 26 de abril de 2017 sob o título “Para a reforma trabalhista ir do abismo para o planalto”.

 

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1 Pelo Instituto Frasier, estaríamos em 144 de 159 países.

2 Note que este arcabouço também contempla a própria oposição à reforma. Para opositores, a legislação já estaria no planalto, mas a reforma nos levaria ao outro abismo. Um importante argumento divulgado é o de que o Brasil teria tido pleno emprego no início dos anos 2010 com legislação anterior. Cabe frisar que neste período convivemos com altos níveis de informalidade e produtividade estagnada, bem como que a taxa global esconde o alto nível de desemprego entre mulheres, jovens, negros e pobres. No melhor dos casos, tivemos um “pleno emprego do homem branco”. Ademais, o argumento, mesmo que aceito, não implica negar que as taxas poderiam ser ainda melhores sob outra legislação. Por fim, o argumento é valido ao apontar que o nível de emprego depende de outros fatores, como a atividade econômica e políticas de emprego ativas.

 

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Monteiro Lobato e a diferença salarial público-privada https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3099&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=monteiro-lobato-e-a-diferenca-salarial-publico-privada https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3099#comments Tue, 21 Nov 2017 13:54:56 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3099 “Os povos denunciam sua mocidade nas ideias, na alegria da vida, na dionisíaca vontade de poder. É moço o povo americano, como é moço o povo alemão. O brasileiro é velhíssimo. Onde está o entusiasmo criador, o ímpeto para formas só suas, o rush de avalanche para um über alles qualquer? Dê-me um rapazola, seu patrício, que não pense com cérebro de 70 anos, e que ao sair de uma escola superior não aspire a entrar na vida “já aposentado”, isto é, que não aspire a colocar-se num dos quadros do monstruoso parasitismo burocrático que aqui rói, como piolheira, o trabalho dos que ainda trabalham.” – Mr. Slang, personagem de Monteiro Lobato

 

José Bento Renato Monteiro Lobato, ou simplesmente Monteiro Lobato, ficou conhecido não apenas por suas obras infanto-juvenis, como Sítio do picapau amareloHistórias de Tia Nastácia, estas que constituem cerca de metade de toda a sua produção literária, mas também por suas ideias e opiniões fora do senso comum, materializadas em artigos, crônicas, cartas, contos e afins. Monteiro Lobato tornou-se ícone da literatura brasileira por contar histórias divertidas, curiosas e espantosas da gente simples com quem conviveu, que tinham apelo e identificação junto ao grande público.

Monteiro Lobato também era ávido crítico do parasitismo brasileiro, preocupando-se em reformar o Brasil política e economicamente, transformando a mentalidade popular. Em sua obra Mr. Slang e o Brasil, originalmente publicada em “O Jornal” de Assis Chateaubriand, o autor narra histórias de conversas que teve com John Irving Slang, uma espécie curiosa de amigo imaginário, natural de Hull, na Inglaterra. As opiniões do amigo inglês expressam, na verdade, críticas de Monteiro ao status quo, e constituem um retrato da vida brasileira na década de 20 do século passado. Em certo diálogo, ao se deparar com uma já desgastada caixa d’água, Mr. Slang teria dito:

Sempre que a vejo, tenho a sensação física dos orçamentos do Brasil. O orçamento do Brasil compõe-se de uma torneira como aquela, a Receita, e de uma infinidade de “ladrões” por onde a água escapa. Sabe o que é um “ladrão” em técnica hidráulica?

O leitor sabe bem que o Estado brasileiro passa por uma grave crise fiscal. Com déficits primários recordes e dívida pública explodindo, o governo se viu obrigado a aprovar a chamada “PEC do teto de gastos”, amarrando-se numa camisa de força para controlar seu ímpeto gastador.

Naturalmente, surgem todo tipo de propostas de como resolver o problema: desde ideias fantasiosas, como calotes (ou, como alguns têm chamado: “auditoria cidadã”), até algumas que, de fato, atacam o problema, como a reforma da Previdência. Alguns preferem falar sobre as mordomias de que gozam os membros do Judiciário e políticos (e não me confunda o leitor: de fato, tais mordomias existem e precisam ser combatidas); poucos, infelizmente, comentam sobre a sobre-remuneração da maior parte dos servidos públicos “comuns”, fora das manchetes de jornais ou capas de revistas.

Sugestão elaborada por Fernando Schuler, Sandro Cabral e Sergio Lazzarini propõe a criação de uma “Lei de Responsabilidade Gerencial” do setor público brasileiro. Os autores criticam a letargia do serviço público, bem como a ineficiência que, invariavelmente, vem associada ao elevado custo. Advogam, como solução, a introdução de metas e objetivos, aliadas à análise independente de desempenho, bem como remuneração por mérito dos servidores.

Trata-se de um passo na direção certa, mas ainda insuficiente. Uma investigação pelas torneiras por entre as quais flui o gasto público brasileiro pede que se traga ao centro do debate a política salarial do funcionalismo público. A maior eficiência do Estado brasileiro passa, inexoravelmente, por remunerações mais condizentes com a realidade do restante da sociedade que o sustenta. Afinal, é sabido que os servidores ativos da União, por exemplo, custaram, em 2016, incríveis R$147 bilhões, ou 2,3% do PIB nacional.

Quanto, de fato, os servidores públicos têm de vantagem?

Estudo conduzido por este autor junto ao professor Naercio Menezes, do Insper, quantifica e qualifica o chamado “prêmio salarial” público e analisa sua evolução no período que compreende as duas décadas entre 1995 e 2015. Fato interessante desse estudo é que não comparamos simplesmente os salários entre servidores públicos e trabalhadores da iniciativa privada; lembre o leitor, afinal, que não necessariamente os grupos têm características iguais: funcionários públicos, por exemplo, têm um nível médio de instrução mais elevado, além de serem mais velhos e terem maior experiência no emprego. Logo, a simples comparação de salários médios não seria justa; é preciso algo mais sofisticado, e foi isso que fizemos (a metodologia, caso o leitor se interesse, está bem explicada no paper).

Para que o leitor possa compreender melhor, comecemos definindo alguns termos: chamemos de “diferença explicada” aquela diferença que pode ser atribuída às diferenças nas características (como idade, educação, experiência e afins): faz sentido pensarmos que pessoas mais instruídas e experientes ganhem salários maiores. Logo, a “diferença inexplicada” será definida como toda a diferença que não se pode atribuir às diferenças nas características; em termos mais técnicas, a “diferença inexplicada” corresponde às diferenças na remuneração das características, não nelas per se. Tal diferença (inexplicada) será chamada simplesmente de “prêmio”, “vantagem” (“desvantagem”, caso negativa) ou palavras correlatas.

Vamos analisar o setor público dividido em suas três esferas (federal, estadual e municipal) e, por fim, analisá-lo de maneira agregada. Para tornar a análise mais interessante, vamos dividir cada grupo em três outros níveis de instrução, a saber: baixa instrução (0 a 8 anos completos de estudo), média instrução (9 a 12 anos de estudo), e alta instrução (mais de 12 anos de estudo).

Federal

O gráfico abaixo traz a diferença total entre o salário por hora médio recebido pelos servidores federais e pelos trabalhadores do setor privado, de 1995 a 2015.

O gráfico nos mostra que o prêmio salarial cresceu de 1995 até os anos mais recentes, saindo de cerca de 50% (em relação ao salário-horário médio do setor privado) para algo perto de 93%. Interessante, ainda, notar como a diferença total (explicada + inexplicada) manteve-se relativamente constante ao longo dessas duas décadas. Abaixo, o prêmio em 2015 decomposto por nível de instrução:

É possível perceber que, pelo menos para 2015, os prêmios são elevados para todos os níveis de instrução, mas relativamente maiores entre os mais instruídos. Enquanto o prêmio médio no grupo de menor instrução é de aproximadamente 71%, tal vantagem cai para cerca de 59% no grupo de 9 a 12 anos completos de estudo, e se eleva para algo próximo de 94% no grupo de maior educação.

Estadual

O comportamento do prêmio público estadual é levemente diverso de seu análogo federal. No começo do período, a vantagem era, na verdade, a favor do setor privado: em 1996, o “prêmio” público chegou a -3,1%. Contudo, ao longo dos anos a vantagem tornou-se a favor dos servidores, chegando, em 2015, a perto de 28%. A diferença total, ainda, subiu de 97,4% para 124,8%.

Quando analisamos o prêmio do ano de 2015 por nível de educação, observamos tendência curiosa: a vantagem é maior entre aqueles de menor instrução (31,5%), caindo para aproximadamente 29% no grupo de média instrução e chegando a cerca de 19% entre aqueles com mais de 12 anos completos de estudo.

Municipal

Um dos maiores desse esforço de catalogar a diferença salarial público-privada talvez seja referente ao setor público municipal. Em 1995, segundo as estimativas, os servidores municipais tinham uma desvantagem de cerca de 20% em relação ao setor privado. Ao longo do tempo, essa desvantagem aproximou-se de 0, mas hoje ainda é de aproximadamente 2,5%. Mais ainda: em 1995, os trabalhadores do serviço público municipal ganhavam menos no total (isto é, somando a parte explicada e a parcela inexplicada, que compõem a remuneração total) que os trabalhadores do setor privado. Em 2015, porém, a diferença total constituía valor em torno de 32,3%.

Ao quebrarmos nossa avaliação por nível de instrução, mais uma curiosidade emerge: os servidores municipais menos instruídos têm vantagem sobre os trabalhadores do setor privado (por volta de 6,2%); já aqueles no nível médio de instrução têm um prêmio de rigorosamente zero; por fim, no grupo de mais elevada instrução é que está a desvantagem: aproximadamente -11,2%.

Setor público

Finalmente, analisando o setor público de maneira agregada, encontramos que até 1997 os servidores públicos, na média, tinham desvantagem em relação aos trabalhadores da iniciativa privada, sendo que o ápice desse “prêmio negativo” foi no ano de 1996: -2,8%. Vinte anos mais tarde, contudo, o prêmio tornou-se fortemente positivo, em torno de 17,2%. A diferença total, por sua vez, saiu de algo como 69,9%, em 1995, para um total de 80,4%, em 2015.

Em termos de diferença por nível de instrução, o comportamento é muito peculiar: um prêmio de aproximadamente 12,5% tanto para o nível baixo, quanto para o nível médio de instrução, chegando a algo em torno de 15,4% no grupo de maior instrução.

Conclusão

Mesmo que não estivéssemos em plena crise fiscal, ainda seria necessário revisitar a remuneração dos servidores públicos, especialmente da esfera federal, a fim de melhor compatibilizá-la ao que se observa na iniciativa privada. A restrição orçamentária, embora muitos duvidem, também se aplica ao Estado e, num país onde quase 100 milhões de pessoas não têm acesso a saneamento básico, não parece muito justo, adequado ou prudente sobre-remunerar servidores públicos – que, é sempre bom lembrar, contam com a vantagem da estabilidade no emprego, benefício do qual não gozam os trabalhadores da iniciativa privada.

Em termos de desigualdade, a elevada vantagem salarial pública deixa um legado de injustiça social numa sociedade onde o Estado peca, justamente, em não conseguir prover os mais básicos serviços que se espera dele. Uma estrutura remuneratória mais racional seria capaz de reduzir a elevada desigualdade brasileira e economizar dezenas de bilhões de reais para o erário, ficando à sociedade a incumbência de decidir onde melhor alocar esses recursos – podendo optar, inclusive, por cortar impostos e diminuir o fardo tributário.

O mais importante, porém, é explicitar aos contribuintes e à sociedade os custos e benefícios do arranjo hoje vigente. Só com pleno conhecimento da conjuntura atual é que será possível um debate mais produtivo e que, ao fim e ao cabo, melhor reflita os interesses da maioria invisível que, apesar de tudo custear, não tem coluna nos jornais, tempo na TV ou quem a represente.

Este texto foi originalmente publicado no site do Instituto Mercado Popular, em 14 de novembro de 2017, sob o título “Funcionários públicos ganham mais do que trabalhadores do setor privado?”

 

Nota: as opiniões aqui expressas não representam aquelas do professor Naercio Menezes, coautor no estudo que embasou este artigo.

 

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Quem protege o trabalhador da Justiça do Trabalho? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3088&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=quem-protege-o-trabalhador-da-justica-do-trabalho Mon, 06 Nov 2017 14:38:37 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3088 É comum o argumento de que a legislação e a Justiça do Trabalho são exageradamente pró-trabalhador. A afirmação é falaciosa: sempre se deve querer o bem do trabalhador. A questão é que na verdade esta estrutura normativa o prejudica com frequência, especialmente quando peca por idealizar o comportamento dos patrões. A Justiça do Trabalho é uma justiça de decisões bem intencionadas e efeitos adversos.

A CLT prevê que o empregador pode oferecer transporte aos empregados, sem que isso conte como tempo da jornada. O transporte dado livra o empregado de passar mais tempo em deslocamento e de usar o precário sistema de transporte público. Há duas exceções: o transporte será computado como tempo de jornada se o local de trabalho for de difícil acesso ou não servido por transporte público regular.

Muitos juízes reinterpretam estes dois termos. A intenção pode ser boa, uma vez que o empregado ganha uma indenização. O resultado não é: diante da insegurança jurídica, as empresas ficam na defensiva e deixam de oferecer o transporte. Quem perde?

Outro bom exemplo é o engessamento de políticas de remuneração. Quando um juiz decide pela incorporação definitiva de um adicional eventual de produtividade, o empregador tende a resistir em conferir este tipo de prêmio.

Representativa desta miopia é a Súmula 277 do TST, derrubada pelo STF. Ela previa que condições benéficas concedidas temporariamente aos trabalhadores em negociações coletivas deveriam ser incorporadas definitivamente ao contrato individual. Quantos empregadores vão estar predispostos a negociar essas concessões temporárias?

A teoria microeconômica não é romântica ao descrever o comportamento de uma firma: seu objetivo é o de maximizar o seu lucro. Assim, a escolha racional de empregadores diante de decisões trabalhistas como essas será prejudicial justamente aos empregados. O Judiciário trabalhista tem sido pródigo em, ao julgar ações, decidir de maneira que nos casos concretos parece favorável os trabalhadores, mas que acaba sendo deletéria a eles. Este resultado ocorre, ironicamente, por idealizar o comportamento (natural) das empresas.

Individualmente, os julgamentos podem fazer sentido. No agregado, não. Mesmo o TST, que poderia ter uma melhor visão do todo, não tem os insumos do Parlamento para legislar, e também falha ao não antecipar a reação empresarial. A regulação do trabalho no Brasil precisa trabalhar com esta restrição: buscar o melhor para o trabalhador ciente que o DNA da empresa é visar o lucro.

Um segundo problema que existe no arcabouço que rege o trabalho no Brasil é o seu confinamento na lógica de mais valia e na oposição entre capital e trabalho. Outra oposição, talvez mais relevante, é a oposição tácita entre incluídos e excluídos. Cerca de metade de força de trabalho está incluída na legislação trabalhista, e metade está excluída, desempregada ou informal. O instinto protetor sobre o primeiro grupo pode penalizar o segundo.

Pelo dilema “insider-outsider”, o ganho do incluído pode significar perda para o excluído, e vice versa. Um exemplo presente na reforma trabalhista é a inovação do trabalho intermitente, uma controversa nova forma de contratação, por hora. Um bar poderia ampliar o número de garçons contratados no fim de semana, permitindo a inclusão de excluídos: como desempregados para quem trabalhar algumas horas por mês é um avanço em relação a não trabalhar hora nenhuma.

Por outro lado, a mudança permitiria que o bar tenha menos empregados no seu quadro fixo, pela menor demanda nos outros dias. Isso seria perda para incluídos contratados por toda a semana que passariam a trabalhar apenas no fim de semana. Este dilema ainda aparece pouco no debate sobre a legislação e Justiça trabalhistas, em que predomina a visão do conflito capital-trabalho, sem que se perceba que existe um terceiro grupo afetado por estas normas e decisões e sem que se note o conflito invisível entre incluídos e excluídos.

Um terceiro raciocínio que precisa ser aprimorado nesta discussão é o que defende que não precisamos de mudanças na CLT ou no Judiciário, uma vez que mudanças não aconteceram nos últimos anos, nem quando o desemprego caiu, nem quando o desemprego subiu. O argumento, expressado nas redes pela atriz Camila Pitanga, tem lógica: uma mudança na legislação não é uma varinha de condão que resolve sozinha os problemas de renda do país. Entretanto, mesmo quando esteve bom, o funcionamento do mercado de trabalho era muito ruim.

Até no período de boom, com desemprego em baixa, convivemos com informalidade alta e produtividade estagnada, negativa em alguns setores. As estatísticas também escondiam o desemprego oculto pelo desalento, o que se refere ao “desempregado raiz”: o desempregado que já desistiu de procurar ocupação e não aparece mais nos dados oficiais. A baixa taxa oficial também não revelava a “desigualdade de desemprego”: os indicadores muito piores para mulheres, negros e jovens, grupos normalmente esquecidos nesta discussão.

Cabe ao Juiz do Trabalho ativista entender melhor que os indicadores do mercado de trabalho – que não se resumem à taxa de desemprego – são sensíveis às suas decisões; que a soma de decisões individuais bem-intencionadas pode gerar a exclusão de largas parcelas da população; e que o empresário tende a reagir racional e defensivamente ao seu ativismo, transferindo riscos para o trabalhador (inclusive o excluído, quando foge da contratação formal).  Sem essa visão mais ampla, a Justiça do Trabalho periga continuar sendo vista como o elefante na loja de cristais.

 

* Este texto foi publicado sob o título “Boas intenções, efeitos adversos” no jornal O Estado de São Paulo, de 24 de junho de 2017.

 

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Por que a produção industrial não cresce desde 2010? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1420&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-a-producao-industrial-nao-cresce-desde-2010 https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1420#comments Mon, 27 Aug 2012 12:44:08 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1420 O objetivo deste trabalho é explicar porque a produção mensal da indústria de transformação está estagnada desde o início de 2010. Para dar uma resposta temos que pensar em uma economia com dois setores. O primeiro é o de serviços, com as características: a) de ser grande no mercado de mão de obra e ter elevada participação no PIB; e b) de ser fechado ao comércio internacional, operando como um “fixador de preços”. O segundo é o industrial, que é bem menor no mercado de mão de obra e também no PIB, mas é muito aberto ao mercado internacional, operando em uma situação próxima à de um “tomador de preços”.

A reação do governo à crise de 2008 foi provocar a redução da taxa de juros e dos superávits primários, ao lado da expansão do crédito por parte de bancos públicos, visando estimular a demanda agregada, que é a soma das demandas por serviços e por produtos industriais. A expansão da demanda do setor de serviços elevou a demanda de mão de obra, que foi a grande responsável pela queda acentuada da taxa de desemprego, provocando o crescimento dos salários reais. Mas no caso da indústria, o aumento da demanda por produtos industriais não levou à expansão da produção. Embora a taxa real de juros tenha caído o suficiente para que, tudo o mais mantido constante, tivesse ocorrido o aumento da utilização de capacidade, retirando o hiato da produção industrial do território negativo e ampliando a produção, o que ocorreu foi o contrário. A elevação dos salários combinada com a estagnação da produtividade do trabalho na indústria levou a um aumento do custo unitário do trabalho, que foi suficiente não somente para anular o estímulo vindo da queda da taxa real de juros, como para levar à ampliação do hiato negativo de produto e à queda da utilização de capacidade instalada.

E para onde foi a demanda de produtos industriais que não pode ser atendida pelo aumento da produção? Como a indústria é um setor muito aberto ao comércio internacional, seu destino foi o aumento das importações líquidas. Ao vazar para o

exterior na forma de importações líquidas, essa ampliação da demanda retirou parte do crescimento do PIB, contribuindo para a desaceleração do crescimento econômico.

Com esse modelo simples explicamos vários “puzzles” da economia brasileira atual. Como foi possível, por exemplo, a ocorrência simultânea de queda do nível de emprego na indústria com a elevação dos salários pagos pelo setor, levando ao aumento do custo unitário do trabalho? Como foi possível ter ao mesmo tempo uma economia com pleno emprego (ou acima dele) no mercado de mão de obra, ao lado de uma queda na utilização de capacidade na indústria?

O curioso é que a nossa explicação para o que ocorreu não faz qualquer menção à valorização cambial. Não que ela não tenha ocorrido. Primeiro, porque somente foi possível realizar uma expansão tão forte da absorção em relação ao produto devido aos ganhos de relações de troca, o que leva à valorização do câmbio real. Segundo, porque com o mercado de trabalho operando próximo de uma situação de pleno emprego, ocorreu o crescimento dos salários reais, elevando os preços dos bens “domésticos” relativamente aos bens “internacionais”, ou seja, valorizando o câmbio real. Terceiro, porque após a depreciação ocorrida em 2008, o câmbio nominal voltou a se apreciar, devido ao rápido retorno dos ingressos de capitais.

A força dos ingressos de capitais pode ter levado a uma apreciação do câmbio real maior do que a decorrente do crescimento da absorção; dos ganhos de relações de troca; e da elevação dos salários reais, mas mesmo na sua ausência, o câmbio real teria se valorizado. As evidências empíricas apresentadas neste trabalho mostram que não é preciso usar o argumento de uma valorização cambial determinada exogenamente para explicar o que se passou com a indústria brasileira.

Nas próximas seções detalhamos como tudo isso foi possível.

A REAÇÃO À CRISE DE 2008

Na crise de 2008 o Brasil teve uma recessão que foi profunda, porém curta e concentrada no setor industrial. Enquanto o PIB da indústria por dois trimestres consecutivos mostrou quedas que ocorreram a taxas anualizadas superiores a 20%, a contração no setor de serviços ocorreu à taxa anualizada de 10% por apenas um trimestre. O governo reagiu à crise estimulando o crescimento da demanda. A taxa SELIC caiu de 13,75% em janeiro de 2009 para 8,75% em julho, levando as taxas reais de juros de mercado para pouco acima de 4% ao ano no mês de outubro de 2009; o crédito de bancos oficiais se expandiu a uma taxa de 12 meses que superou 30% em 2009; foram cortados impostos e ampliados os gastos públicos, reduzindo o superávit primário em 2 pontos porcentuais do PIB.

Com estes estímulos, a economia saiu rapidamente da recessão, e em pouco tempo a produção mensal da indústria de transformação já havia voltado ao pico prévio. Porém, superada a fase das políticas contracíclicas, o governo continuou estimulando a expansão da demanda, e em 2010 colheu um crescimento do PIB de 7,5%. A maior ampliação da demanda veio da expansão do consumo. Medido a preços constantes do ano 2000, o consumo das famílias passou de uma média próxima de 63% do PIB em 2006 e 2007, para perto de 66% no período de 2009 a 2012, como mostra o gráfico 1. Mas ocorreu também uma elevação da formação bruta de capital fixo, que voltou a oscilar entre 19% e 20% do PIB depois de encolher para 16% no auge da recessão. Por algum tempo, a indústria de transformação elevou a produção, respondendo à ampliação de demanda, mas a partir do início de 2010 não mais conseguiu crescer.

Gráfico 1 – Consumo/PIB e Investimentos/PIB – a preços constantes do ano 2000

No gráfico 2 estão superpostas a produção industrial mensal e uma proxy mensal do PIB estimada pelo Banco Central (o IBC-Br). Há algum tempo a indústria vem perdendo participação no PIB, mas com base nestas duas séries em uma amostra de janeiro de 2003 a novembro de 2008 rejeita-se a hipótese de uma quebra de estrutura. Estes dados mostram que até novembro de 2008 há uma relação muito estável entre o crescimento da indústria e o crescimento do PIB. A quebra de estrutura somente ocorreu na crise de 2008, e daí em diante o PIB persistiu se elevando, ainda que a taxas mais baixas do que no período encerrado em 2008, mas a produção da indústria de transformação manteve-se estagnada desde o início de 2010, caindo nos últimos meses.

Gráfico 2 – Produção Industrial e proxy do PIB estimada pelo BC

EMPREGO, SALÁRIOS REAIS E O CUSTO UNITÁRIO DO TRABALHO

O peso do setor de serviços no mercado de mão de obra é muito maior do que o da indústria. Em 2009, a indústria contratava perto de 20 milhões de trabalhadores, e o setor de serviços contratava 60 milhões, com a proporção de 1 para 3 mantendo-se ao longo dos anos, como é mostrado na tabela 1. Os dados do CAGED mostram que os fluxos de contratação de mão de obra pelo setor de serviços sempre se mantiveram bem acima dos fluxos de contratação por parte da indústria. Foi devido ao vigor da demanda de mão de obra por parte do setor de serviços que a taxa de desemprego declinou.

Tabela 1 – Pessoal empregado (em milhões de trabalhadores)

Depois de um crescimento durante a crise de 2008, que é muito pequeno em proporção à profundidade da recessão vivida pela indústria, a taxa de desemprego desabou em 2010 e caiu abaixo de 6% em 2011, situando-se em torno de 6% quando corrigida pelas variações na taxa de participação, como é mostrado no gráfico 3. Em 2012, a taxa de desemprego estimada com base em uma taxa de participação constante caiu ainda mais. Os dados do IBGE mostram, também, que os salários reais médios vêm crescendo. Desemprego baixo e cadente, ao lado de salários reais crescentes, é indicativo de uma economia próxima (ou talvez acima) do nível de pleno emprego.

Gráfico 3 – Taxas de desemprego

Contrariamente à afirmação frequente de que “é a indústria que paga os salários mais elevados”, os dados do IBGE mostram uma clara tendência à equalização de salários. Na tabela 2 mostramos os salários anuais médios da indústria e do setor de serviços medidos a preços correntes. Não esperaríamos uma equalização perfeita, porque há diferentes composições nos graus de treinamento, idade, sexo e qualificação da mão de obra. Mas a proximidade dos salários médios dos dois setores indica que no agregado aquelas são diferenças que se diluem, havendo um grau suficientemente elevado de mobilidade da mão de obra que força na direção da equalização. Não surpreende, portanto, que um aumento na demanda de mão de obra por um setor que é o grande empregador no mercado brasileiro de trabalho produza um crescimento nos salários reais médios em outro setor, que é menor tanto na sua participação no PIB, quanto no mercado de mão de obra.

Tabela 2 – Salário médio anual a preços correntes

O resultado é a elevação contínua do salário médio real na indústria. Isto não seria um problema se a produtividade média da mão de obra na indústria estivesse crescendo à uma taxa próxima à de elevação dos salários, como ocorria entre 2004 e 2007, mantendo o custo unitário do trabalho na indústria flutuando em torno de um patamar estável. Mas a partir do início de 2010 há uma queda gradual da produtividade média da indústria, que coincide com a paralização da produção industrial, e que ocorre ao lado da elevação dos salários reais, como se vê no gráfico 4.

Gráfico 4 – Salários médios e produtividade média do trabalho na indústria

Durante a fase aguda da crise, ao final de 2008, ocorreu uma implosão da produtividade média do trabalho. A produção caiu mais do que o nível de emprego, e segundo a PIMES ocorreu um ajuste pequeno nas horas trabalhadas por trabalhador. O colapso temporário do crédito que se seguiu à quebra do Lehman Brothers explica porque a queda da produção e da produtividade por trabalhador foi tão intensa e tão rápida. Quem continuou trabalhando manteve os salários reais, em parte devido à pequena variação das horas trabalhadas por trabalhador, mas em parte porque o setor de serviços sofreu muito pouco durante a crise, mantendo o nível de emprego e impedindo o crescimento maior da taxa de desemprego. Ao longo desse curto ciclo de queda da produção e da produtividade os salários reais não declinaram. A restauração do crédito e dos pagamentos na economia global removeram a restrição à continuidade da produção, o que ao lado das medidas contracíclicas empurraram a produção e a produtividade da indústria brasileira para níveis “normais” em um período muito mais curto do que nos demais países.

O comportamento do custo unitário do trabalho é visto no gráfico 5. De fato, entre 2004 e a segunda metade de 2008, o custo unitário do trabalho oscilou em torno de um patamar estável. Por um breve momento, no auge da crise, o custo unitário do trabalho explodiu, mas isso foi devido à implosão da produtividade média da mão de obra. A rapidez da recessão logo corrigiu esse comportamento. A partir do início de 2010, o custo unitário do trabalho já se eleva fortemente, saindo de uma média de 0,95 em torno do início de 2010, para próximo de 1,05 no último mês disponível.

Gráfico 5 – Custo unitário do trabalho na indústria

Qual foi o efeito dessa elevação na produção industrial? Para dar uma resposta vamos trabalhar com dois modelos: um explicativo do hiato da produção industrial; e outro explicativo do hiato do nível de utilização da capacidade instalada (estimado pela FGV) na indústria. Ambos são definidos como os desvios com relação ao respectivo filtro HP. Há duas variáveis independentes de natureza doméstica: a taxa real de juros de mercado (os swaps de 360 dias deflacionados pela taxa de inflação esperada 12 meses à frente); e o custo unitário do trabalho, além de duas variáveis dummy para captar movimentos exacerbados em dois meses durante o auge da queda da produção, e da própria variável endógena defasada de um período para captar a dinâmica do ajuste. Incluímos, também, uma medida do hiato da produção industrial mundial, para captar o contágio de ciclos externos. Os resultados estão na tabela 3.

Tabela 3 – Modelos explicativos dos hiatos da produção e do NUCI

Notas: estimativas realizadas com base em dados mensais, de janeiro de 2002 a março de 2012. Os números entre parênteses abaixo dos coeficientes são as estatísticas t de Student.

Independentemente de qual seja a variável endógena escolhida, e independentemente de incluirmos ou não as dummies e o hiato do resto do mundo, o custo unitário do trabalho e a taxa real de juros mostram sempre coeficientes negativos que diferem significativamente de zero, com probabilidade nula de serem obtidos ao acaso. Uma queda da taxa real de juros atua (com defasagens) elevando a utilização de capacidade e elevando a produção relativamente à sua tendência, com o aumento do custo unitário do trabalho produzindo o efeito contrário. Como a taxa real de juros caiu nos meses após a crise, a utilização de capacidade teria que ter se elevado, e o hiato (negativo) da produção industrial teria que ter se reduzido, mas a elevação do custo unitário do trabalho atuou na direção contrária.

No gráfico 6 comparamos os valores observados do hiato da produção com as projeções dinâmicas, quer incluindo, quer excluindo o hiato do resto do mundo. Nas projeções dinâmicas os valores estimados não são obtidos usando os valores efetivamente observados da variável endógena em t-1, mas sim os seus valores estimados pelo próprio modelo. Os dados indicam que as projeções traçam muito bem a fase de estagnação ocorrida depois do início de 2010.

Gráfico 6 – Hiato da produção industrial – valores observados e projeções dinâmicas

Se a indústria fosse um setor fechado ao comércio internacional, atuando como “fixador de preços”, como é predominantemente o caso do setor de serviços, o aumento de custos representado pela elevação do custo unitário do trabalho poderia ter sido (pelo menos parcialmente) repassado para os preços. A magnitude do repasse dependeria da elasticidade preço da demanda. Mas a indústria de transformação é um setor aberto, e se não for exatamente um “tomador de preços” está muito próximo dessa situação. Isto significa que a elevação do custo unitário do trabalho leva ao estreitamento das margens, o que desestimula a produção, e produz o comportamento observado do hiato da produção.

A expansão forte da demanda agregada de bens (domésticos e internacionais) elevou a demanda de mão de obra e os salários reais. No entanto, atuou desestimulando a produção industrial.

AUMENTO DA ABSORÇÃO E DAS IMPORTAÇÕES LÍQUIDAS

Desde 2005, a absorção vem se expandindo a uma velocidade superior à do PIB. O crescimento das importações líquidas foi temporariamente interrompido durante a recessão de 2008, mas de 2009 em diante ocorreu um crescimento muito forte. Avaliadas a preços constantes do ano 2000, as importações líquidas passaram de perto de 1% do PIB, no início de 2009, para mais de 6% do PIB, da metade de 2011 em diante (gráfico 7).

Gráfico 7 – Absorção, PIB e Importações líquidas a preços constantes do ano 2000

Como ficou evidente da observação dos dados mostrados anteriormente no gráfico 1, a aceleração no crescimento da absorção em relação ao PIB não veio apenas da expansão do consumo das famílias, mas também, ainda que em menor escala, da formação bruta de capital fixo. A expansão da absorção em relação ao PIB também coincide com a aceleração dos ganhos de relações de troca. Desde 2005 há um movimento de elevação das relações de troca, mas esse crescimento se acelerou em 2010 (gráfico 8).

Gráfico 8 – Relações de troca

A mudança de preços relativos permitiu que a preços constantes a absorção atingisse 6% do PIB, enquanto que a preços correntes elevou-se apenas para 1,5% do PIB em 2010 e 2011. Os ganhos de relações de troca abriram o espaço para que pudesse ocorrer uma forte ampliação da absorção relativamente ao PIB. No gráfico 9 comparamos as importações líquidas a preços correntes e a preços constantes. Entre 2000 e 2005 praticamente não ocorreram ganhos de relações de troca, mantendo as importações líquidas a preços constantes e correntes flutuando em torno do mesmo valor. Em 2005 se iniciam os ganhos de relações de troca, e a aceleração das importações líquidas a preços constantes coincide com esses ganhos.

Gráfico 9 – Importações líquidas a preços correntes e a preços constantes

Entre 2009 e 2010/11 as importações líquidas elevaram-se em 5 pontos porcentuais do PIB, e este aumento foi suportado quase que exclusivamente pela indústria. Nem o setor de serviços, com um valor adicionado de 67,5% do PIB em 2009, nem o setor de construção, cujo valor adicionado em 2009 representava 5,3% do PIB (tabela 4), operam com uma proporção significativa de bens “internacionais”. A agricultura, por outro lado, foi o grande beneficiário dos ganhos de relações de troca, gerando elevadas exportações líquidas. Dessa forma, o peso de um aumento de cinco pontos porcentuais nas importações líquidas avaliadas a preços constantes foi suportado quase que exclusivamente pela indústria de transformação.

Tabela 4 – Proporção do valor adicionado no PIB (%)

Duas são as consequências deste elevado grau de abertura da indústria. A primeira é que impede que a indústria repasse para preços os aumentos do custo unitário da mão de obra, o que se transforma em queda de margens, desestimulando a produção. A segunda é que a demanda que não é atendida pela produção industrial vaza para o exterior na forma de importações líquidas, cuja elevação não leva a um déficit elevado nas contas correntes devido aos ganhos de relações de troca.

CÂMBIO REAL, RELAÇÕES DE TROCA E POUPANÇAS DOMÉSTICAS

Com o encerramento da fase aguda da recessão, ao final de 2009, e a forte expansão monetária promovida pelo crescimento dos ativos de vários bancos centrais no mundo, os ingressos de capitais retornaram e o câmbio nominal se valorizou. Embora seja frequente atribuir à China a força que leva ao aumento dos preços de commodities, não se pode ignorar que o aumento de liquidez que se seguiu à expansão dos ativos dos bancos centrais foi uma força adicional elevando preços de commodities.

Nos 12 meses que se encerram na metade de 2011, tivemos ingressos de investimentos estrangeiros diretos de mais de US$ 60 bilhões, com ingressos em portfólio de renda variável de mais de US$ 40 bilhões, e em portfólio de renda fixa de mais de US$ 20 bilhões. Esses ingressos foram mais do que suficientes para financiar o déficit nas contas correntes, que se ampliou com a elevação das importações líquidas, e apesar da acumulação de reservas, de perto de US$ 50 bilhões dentro do ano de 2011, o câmbio nominal se valorizou.

Essa valorização também ocorreu no câmbio real. O câmbio nominal é o preço de um ativo, sendo influenciado pelos ingressos e saídas de capitais, e o câmbio real é um preço relativo, entre bens domésticos e internacionais. A longo prazo, o câmbio real depende apenas de variáveis reais, e retorna à sua média (o câmbio real de equilíbrio), mas se desvia dessa média por períodos longos quando é submetido a choques no câmbio nominal, como são os choques gerados por variações nos ingressos de capitais. As economias são caracterizadas por um elevado grau de rigidez de preços, e o Brasil não é uma exceção. É isso que está por trás da correlação positiva entre o câmbio nominal e o câmbio real (gráfico 10). Contudo, os efeitos desses “choques” não são permanentes. As evidências empíricas sobre a paridade de poder de compra para um número enorme de países, inclusive o Brasil, mostram que quando ocorre um choque ele não se incorpora permanentemente ao câmbio real, dissipando-se. Mas essa dissipação é muito lenta. Ou seja, o câmbio real tem uma componente autorregressiva positiva, o que gera persistência, mas tem uma raiz fora do círculo unitário.

Gráfico 10 – Câmbio nominal e câmbio real

A parada de ingressos de capitais em 2008 provocou a depreciação do câmbio nominal e do câmbio real naquele ano, e o retorno dos ingressos de capitais levou à valorização do câmbio nominal e do câmbio real. Foram movimentos de natureza semelhante aos que ocorreram nas paradas bruscas de ingressos de capitais, que levaram à depreciação dos câmbios nominal e real durante a crise de confiança de 2002, e durante a crise internacional de 2008. O retorno dos ingressos de capitais tem um papel importante na explicação da valorização cambial ocorrida em 2010 e grande parte de 2011. Mas se o câmbio nominal não tivesse se valorizado, existiriam forças que levariam à valorização do câmbio real, ainda que em uma velocidade menor. Neste caso a valorização ocorreria com uma inflação maior.

A primeira destas forças vem dos ganhos de relações de troca. A associação entre as variações nas relações de troca e o câmbio real está longe de ser perfeita, mas há uma clara correlação inversa, como se vê no gráfico 11. A partir de 2010, o Brasil conheceu um ciclo de ganhos de relações de troca cuja intensidade somente se compara à ocorrida em torno da reforma monetária do plano Real, e em ambos os casos ocorreram valorizações do câmbio real.

Gráfico 11 – Câmbio real e relações de troca

A segunda é a condição que foi analisada ao longo deste trabalho, ou seja, em uma situação próxima do pleno emprego, a elevação da demanda doméstica gera a elevação dos salários reais, e valoriza o câmbio real.

A terceira vem do fato de que no Brasil as poupanças domésticas são baixas, e para financiar os investimentos o país precisa absorver importações líquidas. No gráfico 12 superpomos a formação bruta de capital fixo e as importações líquidas medidas em proporção ao PIB e avaliadas a preços constantes do ano 2000. É clara a correlação inversa entre estas duas séries, mostrando que maiores taxas de investimento requerem importações líquidas mais elevadas. No auge da recessão, os investimentos declinaram para perto de 16% do PIB, provocando uma pequena redução nas importações líquidas, mas desse ponto em diante os investimentos voltaram a se elevar, contribuindo para o aumento das importações líquidas. As políticas contracíclicas levaram também ao aumento do consumo das famílias, reduzindo as poupanças das famílias. Investimentos excedendo poupanças significa absorção excedendo o PIB, e o aumento da absorção eleva as demandas de bens “domésticos” e “internacionais”, mas como os bens domésticos são produzidos a custos marginais crescentes, isto conduz ao crescimento dos preços relativos dos bens domésticos. A valorização do câmbio real é a consequência da necessidade de elevar as importações líquidas para absorver poupanças externas. A solução deste problema requer o aumento das poupanças domésticas, e está no domínio da política fiscal.

Gráfico 12 – Exportações líquidas e formação bruta de capital fixo

A combinação destas três forças leva a uma valorização do câmbio real. Mas esta é uma consequência dos ganhos de relações de troca; da elevação dos salários reais; e das baixas poupanças externas. À exceção dos ganhos de relações de troca, que são um “choque exógeno” imposto ao país, as outras duas são forças que derivaram da ampliação da demanda agregada, que em uma situação próxima do pleno emprego levou simultaneamente à estagnação da produção industrial e ao aumento das importações líquidas, com grande parte da valorização do câmbio real sendo uma consequência, e não a causa, desses movimentos.

CONCLUSÕES

A letargia na qual a indústria entrou a partir do início de 2010 é uma consequência da forma como o governo reagiu à crise iniciada em 2008. A proposição de que o remédio keynesiano da política fiscal expansionista levaria à recuperação era válida durante a recessão, mas era totalmente inadequada de 2010 em diante, quando já estávamos em uma situação próxima do pleno emprego no mercado de mão de obra. A partir daquele ponto, a demanda agregada não se expandiu enfrentando uma oferta agregada infinitamente elástica. As elevações de salários reais, combinadas com as transferências de renda e com uma expansão acentuada do crédito, estimulariam ainda mais o consumo. O governo expandiu os gastos correntes e as famílias expandiram o consumo, contribuindo para elevar a absorção.

A elevação dos salários reais acima da produtividade média do trabalho na indústria atuou impedindo uma maior utilização de capacidade na indústria, e como esta é aberta ao comércio internacional, foi fácil direcionar o excesso de demanda gerado pelas políticas fiscal e monetária expansionistas para o aumento das importações líquidas. Os ganhos das relações de troca permitiram que não ocorresse um desequilíbrio externo preocupante, o que permitiu que se prosseguisse com a intensa expansão da absorção.

Em nenhum momento o governo se preocupou em corrigir o rumo da política econômica, e a perplexidade com relação ao aumento das importações de bens industrializados, combinada com a letargia da indústria, levou a uma crítica exacerbada à valorização do real. O câmbio nominal se valorizou, e o governo reagiu com intervenções no mercado de câmbio. Talvez até pudesse até ter feito mais neste campo, evitando que o real se fortalecesse tanto quanto de fato se fortaleceu. Neste ponto, no entanto, limitou-se aos brados contra a “guerra cambial”, à qual atribuía a letargia da indústria, que era provocada por ele mesmo.

Mas mesmo que tivesse evitado uma valorização maior do câmbio nominal, enfrentaria a valorização do câmbio real. Primeiro, porque com a insuficiência das poupanças domésticas, a elevação da formação bruta de capital fixo, que esteve longe de ser excessiva, teria contribuído para que o câmbio real se valorizasse. Segundo, porque ao continuar expandindo fortemente a demanda em uma situação na qual o mercado de mão de obra estava extremamente aquecido, provocou a elevação dos salários reais, o que trouxe duas consequências: o aumento do preço relativo dos bens “domésticos” relativamente aos bens “internacionais”; e a elevação do custo unitário do trabalho na indústria, que apesar dos estímulos da queda da taxa real de juros levaram a um hiato negativo de produto crescente ao lado de uma queda na utilização de capacidade.

Os erros de política econômica, mais do que a valorização cambial, estão por trás da letargia da indústria no período de 2010 em diante.

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A redução da jornada de trabalho melhora a geração de empregos? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=540&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-reducao-da-jornada-de-trabalho-melhora-a-geracao-de-empregos https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=540#comments Mon, 23 May 2011 12:45:44 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=540 A proposta de reduzir a jornada de trabalho para conseguir novos empregos é antiga e frequentemente volta à pauta nacional. Os sindicatos de trabalhadores defendem arduamente que a diminuição do tempo semanal de trabalho de quem está empregado preservaria os empregos existentes e criaria novos postos, gerando queda do desemprego e da informalidade, além de promover aumento da massa salarial.

A ideia por trás desse raciocínio é simples, o insumo trabalho na função de produção é dado pelo número de trabalhadores multiplicado pela jornada média de trabalho. Assim, se a jornada média diminui, o número de trabalhadores aumenta e a produção não se altera. Por exemplo, quatro pedreiros constroem uma parede trabalhando cada um dez horas por dia, ou seja, o serviço precisa de quarenta horas de trabalho para ser realizado. Mas se cada pedreiro trabalhar menos, vamos supor 8 horas, o serviço será realizado da mesma maneira com mais um profissional, totalizando cinco pedreiros. A questão é saber se a substituição entre horas trabalhadas e emprego acontece dessa forma direta.

A grande maioria dos artigos acadêmicos sobre o tema diz que não. A contestação vem do fato de que existem outros custos para se contratar mão-de-obra que não apenas os relacionados ao salário efetivamente pago pelo empregador. Há, por exemplo, custos fixos com licenças, repouso remunerado, alimentação, transporte, custos de demissão e litígios judiciais. Despesas que incorrem pela existência do empregado, independentemente do número de horas trabalhadas.

Assim, a crença de que a redução da jornada sem diminuição do salário criará empregos é falsa, pois a menor carga horária semanal do trabalhador aumenta o custo unitário do trabalho, tornando-o mais caro em relação aos outros fatores de produção, provocando uma substituição desse fator que ficou mais caro pelos demais.

Uma consequência do encarecimento do trabalho é a sua substituição pelo capital, por novas tecnologias, que geram redução do emprego. Na linguagem informal, é a substituição do homem pela máquina.

Outro resultado é o efeito escala. Como um dos custos aumentou, a produção da firma diminui. Isso acarreta menor consumo de todos os fatores de produção, incluindo o trabalho. A consequência novamente é a redução do emprego.

Assim, pode-se inferir que a redução da jornada de trabalho, sem alteração de salário, é benéfica para os trabalhadores que estão empregados, pois trabalharão menos. No entanto, não traz vantagem para os desempregados, que terão maior dificuldade em encontrar uma vaga no mercado.

Gonzaga, Menezes-Filho e Camargo (2003) ensinam que, se o objetivo é aumentar o volume de emprego e reduzir a jornada de trabalho, mantendo os mesmos salários e sem afetar o custo total do trabalho, a política correta seria reduzir o custo fixo do emprego (licenças maternidade e paternidade, número de dias pagos e não trabalhados, etc.) e aumentar, simultaneamente, o adicional pago por horas-extras trabalhadas. Na medida em que essa mudança na estrutura de remuneração do trabalhador não afete o custo total do trabalho, o efeito líquido sobre o nível de emprego seria inequivocamente positivo.

Os custos citados pelos autores são custos institucionais, que podem ser evitados se alterada a legislação. Mas há custos que decorrem da própria natureza do trabalho. Por exemplo, os custos de contratação e de aprendizagem (associado ao tempo necessário do empregado aprender as tarefas e se inserir na cultura da firma). Esses custos podem se tornar particularmente elevados para mão-de-obra que apresenta alta rotatividade, o que desestimularia a sua contratação.

Se o objetivo é puramente gerar mais empregos, há uma confluência dos estudiosos para a ideia de que o correto seria empreender reformas trabalhistas que permitissem determinar corretamente o preço da mão de obra e promovessem o crescimento do emprego, além de alinhar os incentivos necessários para aumentar a produtividade da mão de obra e os salários. É consensual a necessidade de se diminuir os encargos da folha de pagamento, pois o custo tributário relacionado ao salário é muito alto para o Brasil e estimula a informalidade no mercado de trabalho. Outra medida é oferecer mais autonomia para que trabalhadores e empresários possam negociar seus contratos de trabalho, sem tanta interferência da legislação.

Por fim, medidas que aumentem a produtividade da economia, não necessariamente relacionadas ao mercado de trabalho, também podem aumentar o emprego e/ou o salário real. Por exemplo, ações que reduzam as barreiras à entrada de novas firmas no mercado (redução de licenças burocráticas, de tarifas alfandegárias, de restrições a investimentos estrangeiros, de controles de preços, etc.) tendem a elevar o número de firmas atuando no mercado, o que ampliaria a oferta de emprego. Além disso, aumento da competição e da produtividade reduzem o preço final dos bens de consumo, aumentando os salários reais.

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Para ler mais sobre o tema:

BLANCHARD, O., GIAVAZZI, F. “Macroeconomic effects of regulation and deregulation in goods and labor markets”. The Quarterly Journal of Economics, vol. 118, 2003.

GONZAGA, G. M.; MENEZES-FILHO, N.A.; CAMARGO, J.M. “Os efeitos da redução da jornada de trabalho de 48 para 44 horas semanais em 1988”. Revista Brasileira de Economia, vol. 57, nº 2, 2003.

MENEGUIN, Fernando B. “A Legislação Trabalhista ajuda ou atrapalha a geração de emprego?”. Disponível no site Brasil, Economia e Governo (http://www.brasil-economia-governo.org.br/).

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