responsabilidade fiscal – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Wed, 13 Dec 2017 19:36:28 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Princípio da vedação de retrocesso social: o caso da vinculação de recursos para a saúde https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3135&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=principio-da-vedacao-de-retrocesso-social-o-caso-da-vinculacao-de-recursos-para-a-saude https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3135#comments Wed, 13 Dec 2017 14:58:59 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3135 A judicialização da política e a consequente politização da justiça são fenômenos conhecidos da opinião pública, cujas causas são geralmente procuradas nas disfunções do sistema político ou na cultura compartilhada por juízes e promotores. A essência do problema encontra-se, no entanto, na própria teoria jurídica, que desenvolveu uma série de justificações para a atuação do Poder Judiciário em matérias anteriormente consideradas de competência exclusiva dos Poderes Legislativo e Executivo.

1. O princípio da vedação de retrocesso

Um exemplo desse tipo de justificação é o chamado “princípio da vedação do retrocesso social”, segundo o qual os patamares já alcançados na provisão de direitos sociais não poderiam ser posteriormente reduzidos, mas apenas mantidos ou ampliados. Tal argumento tem sido sistematicamente empregado contra todo tipo de legislação tida por seus defensores como “neoliberal”, por supostamente reduzir algum direito social “conquistado” no passado. Alega-se, por exemplo, que a reforma trabalhista e o Código Florestal seriam inconstitucionais por representarem um “retrocesso” na defesa dos direitos dos trabalhadores e na defesa do meio ambiente.

Uma versão mais atenuada do princípio considera que o retrocesso, por si só, não é necessariamente inconstitucional; apenas cria uma presunção de inconstitucionalidade, que pode ser superada mediante demonstração de que a medida é necessária ao atingimento de outro valor constitucional ou direito fundamental e que a redução operada não foi excessiva1. Admite-se levar em consideração o contexto econômico e político por que passa o país, assim como a chamada “reserva do possível”, ou seja, a disponibilidade de recursos. Tal modulação é excluída, no entanto, do chamado “núcleo essencial” do direito fundamental “atacado”, que, no caso dos direitos sociais, traduz-se em um “mínimo existencial”, que deve prevalecer, inclusive, sobre a “reserva do possível”. Ou seja, admite-se o “retrocesso” apenas no que exceder ao “mínimo existencial” e desde que demonstrada sua necessidade e proporcionalidade com relação a outro valor constitucional.

Em Portugal, um importante marco no reconhecimento do princípio foi o Acórdão 39/84 do Tribunal Constitucional, que considerou inconstitucional a revogação de dispositivos legais instituidores do Serviço Nacional de Saúde. No Brasil, os precedentes mais relevantes são o voto minoritário do Ministro Celso de Melo na ADI 3105/DF, contrário à contribuição previdenciária para inativos e pensionistas instituída pela Emenda Constitucional 41/2003, e o acórdão da Segunda Turma do STF no ARE 639337, relatado pelo mesmo Ministro, relativo à matrícula de crianças em creches próximas a sua residência. Na América Latina, há registro de emprego do princípio também em outros países, podendo ser citada a Sentença T-1318/2015 da Corte Constitucional da Colômbia, relativa a contrato celebrado no âmbito da política habitacional.

Não há na Constituição brasileira qualquer menção expressa ao princípio da vedação de retrocesso. Seus defensores indicam como fundamento os arts. 1º, III, e 3º, III, da Carta Magna, que consagram a dignidade da pessoa humana como fundamento e a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades regionais e sociais como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.

2. O princípio da vedação de retrocesso na ADI 5595

Encontra-se na pauta do Plenário do STF a ADI 5595, proposta pela Procuradoria Geral da República, que pede a declaração de inconstitucionalidade de dispositivos da Emenda Constitucional nº 86, de 2015, por violação do “princípio da vedação de retrocesso social”, decorrente da redução dos recursos vinculados à saúde. O relator do caso, Ministro Lewandowski, concedeu liminar acatando o pedido na íntegra.

A ADI 5595 pode ser considerada a mais radical formulação do princípio da vedação de retrocesso já submetida à apreciação do STF. Nela, a PGR pede ao Tribunal que declare a inconstitucionalidade dos arts. 2º e 3º da Emenda Constitucional nº 86, de 2015, que estabeleceram normas sobre a vinculação de recursos da União à política de saúde.

A Constituição de 1988, em sua redação original, não vinculava recursos para a saúde, mas para a seguridade social, conceito mais amplo, que abrange também a previdência e a assistência.

A Emenda Constitucional nº 29, de 2000, instituiu vinculação de recursos para “ações e serviços públicos de saúde” em todos os entes da Federação. No caso da União, atribuiu à lei complementar a fixação dos recursos mínimos a serem aplicados (CF, art. 198, § 2º, I, e § 3º, IV), o que acabou por ser feito pela Lei Complementar nº 141, de 2012. O art. 5º dessa Lei estabeleceu como piso de aplicação o montante empenhado no ano anterior, acrescido do crescimento do PIB, caso este tenha sido positivo. Posteriormente, a Lei nº 13.858, de 2013, destinou à saúde, em acréscimo a esse piso, 25% dos royalties e da participação especial da União oriundos da concessão de campos de petróleo na região do pré-sal (art. 2º, § 3º, e art. 4º).

A Emenda Constitucional nº 86, de 2015, substituiu a remissão à lei complementar pela fixação de um piso de aplicação de recursos na própria Constituição, correspondente a 15% da receita corrente líquida (CF, art. 198, § 2º, I). Estabeleceu, ainda, uma transição de cinco anos para o atingimento desse patamar, partindo de um percentual de 13,2%, e incluiu os recursos dos royalties do petróleo nesse piso (arts. 2º e 3º).

Essa transição foi subsequentemente revogada pela Emenda Constitucional nº 95, de 2016, que instituiu o Novo Regime Fiscal. O patamar de 15% foi antecipado para 2017, passando o valor resultante a ser rejustado pela inflação nos vinte anos seguintes.

A ADI 5595 insurge-se contra a transição instituída pela EC 86/2015 e a inclusão dos royalties do petróleo no piso de aplicação de recursos em saúde, sob o argumento de que o novo critério resultaria em patamar inferior de despesa, o que violaria o princípio da vedação de retrocesso. Alega-se, em síntese, que o direito à saúde é um direito fundamental garantido pela vinculação de recursos e protegido por cláusula pétrea (CF, art. 60, § 4º, IV). Embora o quadro de recessão econômica seja explicitamente reconhecido, alega-se que esse fato seria irrelevante diante da essencialidade da política de saúde.

3. Os equívocos da ADI 5595

O eventual provimento da ADI 5595 constituiria um precedente de grande impacto, que consagraria definitivamente o princípio da vedação de retrocesso, em sua versão mais radical, no direito constitucional brasileiro. O ineditismo da tese é múltiplo: contesta-se uma Emenda Constitucional em face de uma lei complementar e uma lei ordinária; o critério de aferição do “retrocesso” é puramente financeiro; a versão do princípio defendida é absoluta; e a abrangência da cláusula pétrea relativa aos direitos e garantias individuais (CF, art. 60, § 4º, IV) é estendida não apenas aos direitos sociais, mas aos recursos orçamentários a eles vinculados. Sua aceitação pelo STF representaria um enorme impulso à judicialização das políticas públicas e colocaria em risco não apenas a responsabilidade fiscal, mas o próprio direito à saúde. Sua repercussão não se limitaria a um maior aporte de recursos federais para a saúde, mas se estenderia a todas as eventuais realocações de recursos orçamentários, em todas as esferas da Federação.

3.1. Comprometimento da responsabilidade fiscal

A promoção dos direitos econômicos, sociais e culturais depende da condição econômica de cada país. Daí porque os documentos internacionais que os consagram se referem sempre aos “recursos disponíveis”2. A progressividade de seu atendimento decorre da expectativa de que o desenvolvimento econômico elevaria as condições de vida da população e a receita dos governos. Ocorre que o desenvolvimento não é linear. Diversos fatores podem levar os países à recessão ou mesmo à depressão econômica: guerras, catástrofes naturais, crises políticas, má gestão da política econômica, etc. Além disso, a economia de mercado apresenta ciclos de crescimento e recessão que atingem mesmo os países desenvolvidos.

A manutenção do patamar de despesas na fase descendente do ciclo econômico, quando há uma redução das receitas, somente pode ser feita mediante endividamento. No atual contexto brasileiro, contudo, a dívida pública já é muito elevada e cresce aceleradamente, em função dos elevados déficits nominais e primários verificados a partir de 2014. Um congelamento de despesas inviabilizaria qualquer tipo de ajuste fiscal capaz de recompor o equilíbrio das contas públicas. No limite, o governo seria obrigado a dar um calote nos credores, fornecedores e servidores públicos, o que comprometeria a continuidade dos serviços públicos e causaria um retrocesso de proporções catastróficas para as políticas sociais, a exemplo do que já ocorre no estado do Rio de Janeiro.

3.2. Prejuízo para os demais direitos sociais e para o próprio direito à saúde

A vinculação de recursos para uma política se dá sempre em prejuízo das demais políticas. O direito à saúde não se limita, no entanto, ao atendimento pelo SUS; abrange também as “políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos” (CF, art. 196). No mesmo sentido, o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais inclui entre as medidas de promoção do direito à saúde a redução da mortalidade infantil, a higiene do trabalho e do meio ambiente e a prevenção de doenças3. Ocorre que a Lei Complementar nº 141, de 2012, explicitamente exclui essas medidas da aplicação dos recursos vinculados à saúde (art. 4º).

Nesse contexto, o ajuste fiscal recairá desproporcionalmente sobre outras políticas igualmente necessárias à promoção da saúde, o que pode, no limite, inviabilizá-las por completo. Haverá recursos para o tratamento de doenças e o atendimento de acidentados ou vítimas da violência, mas não para o saneamento básico, a segurança alimentar, a fiscalização do trânsito e a segurança pública, políticas capazes atacar os problemas que estão na origem da demanda pelos serviços de saúde.

3.3. Violação da separação dos poderes

As vinculações de recursos são uma exceção à regra geral de livre alocação da receita de impostos pela Lei Orçamentária (CF, art. 167, IV). Ao impedir o Congresso Nacional de revê-las, a ADI 5595 “petrifica” o “congelamento” do orçamento, substituindo o juízo de 3/5 dos deputados e 3/5 dos senadores (quórum de aprovação das Emendas Constitucionais) pelo de 6 ministros do STF (quórum de julgamento das ADI) ou apenas do relator do caso (no caso de liminar).

Nesse contexto, a única alternativa disponível para o atendimento das políticas não vinculadas será a reclassificação de suas despesas, de modo que elas sejam enquadradas no âmbito das vinculadas. Isso obrigará, em um segundo momento, o Tribunal a se pronunciar sobre o que é ou não “saúde”, ou seja, a adentrar cada vez mais o universo da legislação ordinária.

4. Comprometimento da autodeterminação das futuras gerações

Os conceitos de “progresso” e “retrocesso” em matéria de legislação e políticas públicas é bastante subjetivo. O que é progresso para uns pode ser considerado um retrocesso para outros. Além disso, havendo trade-offs entre objetivos legítimos, faz-se necessário estabelecer prioridades, atividade eminentemente política.

É próprio da democracia o conceito de alternância no poder. Quem perdeu as eleições hoje pode vencê-las amanhã e vice-versa. A imposição da vontade do grupo político atual sobre as futuras gerações equivale a uma ditadura cujo dirigente recursa-se a sair do poder quando derrotado nas eleições.

A vedação de retrocesso congela, no entanto, a alocação de recursos feita em algum momento do passado e impede sua revisão pelas gerações subsequentes.

5. Conclusão

A aplicação do princípio da vedação de retrocesso, tal como proposta na ADI 5595, seria catastrófica. É certo que se trata de uma versão extrema do princípio, que desconsidera por completo o contexto econômico do país. Mesmo uma versão atenuada seria, no entanto, igualmente questionável, na medida em que levaria o Tribunal a revisar decisões alocativas de recursos financeiros próprias dos Poderes Executivo e Legislativo, que foram eleitos para isso.

Em realidade, o princípio da vedação de retrocesso, enquanto tal, parece-nos inadmissível, pois pretende impor à administração pública uma concepção linear de progresso, incompatível com a realidade econômica e com o direito das gerações futuras de eleger suas próprias prioridades4.

______________

1 Nesse sentido, SARLET, Ingo Wolfgang, Notas sobre a assim designada proibição de retrocesso social no constitucionalismo latino-americano. Rev. TST, Brasília, vol. 75, nº 3, jul/set 2009.

2 O artigo 2º do Pacto Internacional sobre Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, por exemplo, assim dispõe: “Cada Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas”. A mesma abordagem foi adotada nos demais documentos internacionais de proteção dos direitos humanos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção Americana de Direitos Humanos e seu Protocolo Adicional em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

3 “Art. 12. 1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental. 2. As medidas que os Estados Partes do presente Pacto deverão adotar com o fim de assegurar o pleno exercício desse direito incluirão as medidas que se façam necessárias para assegurar: a) A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como o desenvolvimento das crianças; b) A melhoria de todos os aspectos de higiene do trabalho e do meio ambiente; c) A prevenção e o tratamento das doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras, bem como a luta contra essas doenças; d) A criação de condições que assegurem a todos assistência médica e serviços médicos em caso de enfermidade.

4 Vale registra que, em seus escritos mais recentes, Canotilho, um dos principais defensores do princípio, revisou seu entendimento e considerou a vedação de retrocesso insustentável em face na realidade econômica. No mesmo sentido, o Tribunal Constitucional de Portugal deixou de aplicá-lo no julgamento de diversas medidas de ajuste fiscal adotadas naquele país.

 

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Ministério Público e os voos de galinha https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3097&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=ministerio-publico-e-os-voos-de-galinha https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3097#comments Thu, 16 Nov 2017 14:17:28 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3097 Recentemente o Procurador-Geral da República Rodrigo Janot respondeu a críticas de que o trabalho do MPF criava instabilidade e prejudicava a retomada do PIB e a agenda de reformas.  O PGR reconheceu que a atuação trazia um custo, mas que em contrapartida a prosperidade futura do país seria erguida em base sólida e consistente. Não sendo assim, estaríamos condenados a “voos de galinha” na economia.

Os esforços do MPF pela melhoria das instituições e da governança e pelo combate ao capitalismo de compadrio são elogiáveis, mas contrastam com uma marcante atuação da instituição pela manutenção do status quo, contra a agenda de reformas. Em junho, o PGR ajuizou ação para derrubar a Lei da Terceirização no STF. Antes, áreas do MPF se posicionaram institucionalmente contra a Emenda do teto de gastos e a reforma da Previdência, enquanto o Ministério Público do Trabalho foi um dos mais ativos opositores da reforma trabalhista.

O comportamento contrarreformista do MPF não é novo. No passado, a Procuradoria-Geral da República se manifestou no Supremo no sentido de reverter aspectos essenciais da 2ª reforma da Previdência, como a contribuição dos servidores inativos, sem sucesso. Na Lei de Responsabilidade Fiscal, a PGR deu parecer pela inconstitucionalidade de dispositivos que permitiam a redução de salários e de jornadas quando ultrapassados os limites de gasto com servidores. Não tivessem sido derrubados, o atual drama dos Estados teria a mesma dimensão?

Neste ano, os debates realizados pela Associação Nacional de Procuradores da República (ANPR) no processo de eleição da lista tríplice para novo PGR jogam luz sobre o pensamento da cúpula da instituição sobre temas estratégicos para a economia. Entre os integrantes da lista tríplice existe a opinião que o MPF tem de ter iniciativa para melhorar a política previdenciária porque “grande parte dos benefícios são sonegados a quem deles precisa”. Também no trio há quem opine que a reforma da Previdência é assustadora e muito drástica.

Entre os que não integraram a lista final, uma subprocuradora-geral da República sugere rever o teto de gastos caso a economia cresça. Outro subprocurador, a respeito da Emenda do teto, reclama sobre “dignidade remuneratória”. Entre os eleitos para a lista tríplice, há quem critique a “defasagem” e quem afirme que o MPF já é espartano em seus gastos. Dados do IR mostram que em 2016 a remuneração média de um membro do MP foi 46 vezes maior que o salário mínimo, acima do teto salarial da Constituição.

Também há críticas à situação dos procuradores aposentados. Eles são beneficiados pela integralidade e paridade, privilégios subsidiados pelo contribuinte que não existem no INSS. Porém, a crítica é que recebem pouco.

Um dos eleitos fala em “grave discrepância” porque os da ativa recebem indenizações que o inativo não recebe, de R$ 130 mil ao ano. Uma subprocuradora lamenta que muitos não se aposentam porque não tem “condição de viver com o que receberão”, e exemplifica:  “aposentados têm filhos na carreira que recebem muito mais do que eles”. Já o Ipea aponta que a previdência dos servidores é sozinha responsável por 7% da desigualdade de renda do país, já descontada as contribuições pagas. Nos termos do professor José Márcio Camargo, seria o maior programa de transferência de renda do Brasil.

Mesmo após um impeachment por pedaladas, houve nos debates também inclinação por contabilidade criativa. Uma candidata propôs achar solução para incorporar o auxílio-moradia às aposentadorias “obviamente sob uma outra rubrica”. Um dos escolhidos defende que a gratificação eleitoral seja computada no limite de pessoal do Judiciário, não do MP, pra evitar as consequências da LRF.

Para além do corporativismo, há uma atuação mais geral contra as reformas. Em nota ao Congresso o MPF foi contra a reforma da Previdência com um conjunto de alegações frágeis – se opondo a idade mínima com base na expectativa de vida ao nascer. Por sua vez a ANPR e outras associações de membros do MP assinaram notas afirmando não haver déficit na Previdência, alegando haver um confisco, e garantindo que a reforma não se sustentará no Judiciário (“fique alerta o País disso”).

Na PEC do teto, o MPF enviou ao Congresso durante a tramitação nota afirmando que a proposta era inconstitucional e deveria ser rejeitada, por ofender a separação de Poderes. Já o Ministério Público do Trabalho argumentou, no Parlamento e até em revistas em quadrinhos distribuídas pela instituição, que a reforma trabalhista não gerará empregos.

Exceção na campanha da lista tríplice foi a menção ao papel do MP em reduzir o custo Brasil. Entretanto, quem a vocalizou também argumentou repetidamente que o problema do Brasil são as desigualdades, porque rico ele é. Na verdade, estamos entre a 77ª e a 85ª posição na comparação do PIB per capita: mais pobres que o Iraque e a Botswana.

Em suma, se a atuação do MP na área criminal pode ser modernizadora para a economia, na área cível (tutela coletiva) não é possível dizer o mesmo. Em vez de proteger interesses difusos, na agenda de reformas a atuação do MP é meramente concorrente ao lobby de grupos organizados como as centrais, as corporações e as organizações de advogados.

É de alguém para defender as maiorias mudas que o país precisa. Não há quem advogue pelas crianças e jovens pobres excluídos do orçamento e que contarão com cada vez menos recursos sem mudanças na Previdência, ou pela multidão de desempregados e informais – onde as minorias prevalecem – à espera de oportunidades que não se viabilizarão com a atual legislação trabalhista ou o crescimento explosivo da dívida pública.

São grupos sem capacidade de mobilização para eleger representantes, que poderiam se beneficiar da estrutura bilionária e da missão constitucional do MP de proteger os interesses difusos e coletivos. Se, ao contrário, a instituição que é cada vez mais protagonista na definição dos rumos do país insistir e prosperar na luta contra as reformas estruturais, estaremos condenados a mais voos de galinha.

Este texto foi originalmente publicado no jornal Valor Econômico, em 12 de julho de 2017.

 

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Novos Pilares de Responsabilidade Fiscal https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2767&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=novos-pilares-de-responsabilidade-fiscal https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2767#comments Mon, 18 Apr 2016 13:07:46 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2767 A flexibilização da austeridade e a concomitante deterioração das contas públicas demonstram que a manutenção do equilíbrio fiscal ainda depende de novos avanços orientados ao fortalecimento do ambiente institucional público. Trata-se não de medidas conjunturais de contingenciamento de gastos, mas do estabelecimento de marcos complementares aos inicialmente introduzidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

Na nossa história econômica recente, a LRF constitui um dos mais relevantes marcos para o equilíbrio das contas públicas. A partir dos anos 2000, a busca pelo equilíbrio das contas públicas deixou de ser apenas um discurso e passou a estar efetivamente institucionalizada como um próprio código de conduta fiscal de observação cogente pelos gestores públicos em todos níveis federativos, com destaque para os limites de despesas de pessoal e de endividamento que passaram a ser regra rígida.Contudo, pilares institucionais como o conselho de gestão fiscal não foram ainda constituídos. Da mesma forma, a indefinição quanto ao limite do montante da dívida consolidada da União, exigido pelo art. 48, XIV, da Constituição, coloca em relevo a atuação do Legislativo nesse assunto.

 

Conselho de Gestão Fiscal e Instituição Fiscal Independente

A LRF estatuiu que o acompanhamento e a avaliação, permanente, da política e da operacionalidade da gestão fiscal devem ser realizados por um conselho de gestão fiscal (CGF). Esse seria constituído por representantes de todos os Poderes e esferas de Governo, do Ministério Público e de entidades técnicas representativas da sociedade, nos termos de lei ordinária (§ 2º do art. 67 da LRF). Referida lei, contudo, não foi editada e o CGF não foi instituído, passados mais de 15 anos após a edição da LRF.

Isso se explica pela composição do Conselho. Nos termos definidos pelo Projeto de Lei (PL) nº3.744, de 2000, de iniciativa do Poder Executivo1, em tramitação na Câmara dos Deputados desde sua apresentação, os potenciais conflitos de interesse entre partes interessadas na expansão e controle do gasto acabariam afastando uma formatação técnica, como esperado para esse tipo de instituição de controle. Tamanha abrangência e diversidade de participantes poderia ser problemática do ponto de vista da convergência de interesses, tendo em vista, ainda, que a responsabilidade precípua pelo desempenho fiscal é do governo federal. De fato, no lado do governo, a composição deveria estar restrita a quadros do Executivo, que é o responsável por consolidar e apresentar as peças orçamentárias2 – lembrando que essa é a lógica observada na política monetária, desde a edição do Plano Real em 1994, para a composição do Conselho Monetário Nacional, cujos membros são agentes do Executivo Federal.

Recentemente, entretanto, a concepção de conselho de gestão fiscal acabou perdendo força,diante dos debates em torno da Instituição Fiscal Independente (IFI). Essa alternativa passou a ser discutida pelo Senado Federal, em 2015, e foi recentemente aprovada em 2016, nos termos do Projeto de Resolução do Senado nº 61, de 2015. Esta terá caráter técnico e auxiliará o Senado em sua competência de fiscalização do Executivo, reforçando o acompanhamento legislativo das contas públicas, que hoje carece de uma institucionalidade mais efetiva, como demonstra o não funcionamento, ainda que regimentalmente previsto, dos subcomitês permanentes de Fiscalização da Execução Orçamentária e da Avaliação da Receita no âmbito da Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO), vis-à-vis a existência de constrangimento político e de conflito de interesse na relação entre parlamentares e Governo.

No sistema presidencialista, essa autonomia da IFI em relação ao Executivo pode ser considerada mais adequada do que a instituição de um conselho de gestão fiscal composto por quadros do próprio Executivo, composição que conflitaria com o princípio básico de gestão de recursos financeiros, que impõe a execução das funções de execução e controle em pessoas distintas. A IFI pode efetuar controle just in time sobre as contas públicas, em complementação às prerrogativas do Tribunal de Contas da União (TCU), cuja atuação possui ótica essencialmente ex post, ou de julgamento de contas efetivamente realizadas pela União, e à própria CMO.Além disso, a IFI pode ocupar papel central não apenas no controle das contas pelo Legislativo, como também na própria etapa de aprovação das peças orçamentárias anuais, seguindo o exemplo do veterano Congressional Budget Office dos EUA.

De fato, no âmbito global, o estabelecimento de instituições fiscais independentes tem representado uma das principais tendências, tendo sido criadas para controlar a expansão ampla do setor público, como resposta anticíclica que caracterizou o pós-crise 2008 nas economias centrais. Visam robustecer o arcabouço institucional para garantir o equilíbrio duradouro das contas públicas, bem como sinalizar um compromisso tempestivo em prol da sustentabilidade fiscal – finalidades que são aplicáveis e apropriadas também para o setor público brasileiro. No atual momento fiscal doméstico, a constituição de uma instituição técnica como a IFI representa uma possibilidade de elevar a qualidade do debate público sobre a política fiscal, a partir da promoção de maior grau de adequação orçamentária, prestação de contas e accountability.

Isso decorre de sua competência, dentre outras, em estimar parâmetros e variáveis relevantes para a construção de cenários fiscais e orçamentários, com base técnica e não política – por definição, mais crível –, reduzindo a politização em torno das projeções orçamentárias de receitas e despesas. No limite, pode até contrapor a reiterada superestimativa de receitas orçamentárias, que ocorre tanto no âmbito do Executivo quanto no próprio Legislativo, até como meio para dar margem à introdução das emendas impositivas. Com caráter técnico e apartidário, a IFI pode impor maior custo político à eventual indisciplina fiscal,já a partir do processo legislativo orçamentário, estimulando a adoção de políticas fiscais mais sólidas com base em peças orçamentárias mais críveis. Isso pode até evitar casos de revisão de meta fiscal como a que estamos vendo, decorridos apenas poucos meses de execução orçamentária – não que a revisão ao final de um exercício proporcione alguma credibilidade à gestão pública.

Quando falamos em responsabilidade fiscal, o foco sempre esteve voltado à execução financeira da programação orçamentária, mas o ciclo fiscal é mais amplo e começa já a partir das definições e estimativas das peças orçamentárias. Na verdade, a falta de sinceridade na fixação da despesa e na previsão da receita é um grande desafio do orçamento público – por isso o processo legislativo orçamentário deve ser tutelado por um sistema adequado de freios e contrapesos. A integridade e a qualidade das projeções orçamentárias, do planejamento fiscal e, posteriormente, da execução orçamentária devem ser promovidas mediante rigorosa aderência ao conceito de qualidade do gasto público, partindo da reestimativa séria de receitas anuais no Congresso. No presidencialismo de coalizão, a IFI pode mitigar o descompromisso dos parlamentares com o ciclo fiscal, muito mais afetos a ganhos políticos de curto prazo do que com o efetivo controle fiscal-orçamentário.

 

Limite Constitucional para a Dívida Consolidada da União

A responsabilidade fiscal em muito se sustenta em “regras de teto”, que estabelecem limites ou metas quantitativas claras para agregados relevantes como despesas de pessoal, resultados primário ou nominal e dívida pública. São mecanismos de gestão que visam atender à preocupação clássica que diz respeito ao controle de dívida e déficits excessivos.

Ao lado do que já ocorre para os outros entes federados, a regra de “convergência” da dívida da União constitui limitação prudencial e ao mesmo tempo terminativa para o endividamento público federal, nos termos do projeto de Resolução do Senado Federal (PRS) nº 84, de 2007, ainda em tramitação, que propõe a fixação delimite para a dívida federal. A proposição, gestada logo após a introdução da LRF, nada mais constata que há limites para o financiamento do Estado, que precisa estar dentro de uma trajetória crível. Naturalmente, o efeito esperado do indicador proposto é a limitação dos gastos públicos, caminho que o próprio mercado já apontou pelo rebaixamento do grau de risco da dívida soberana brasileira – custo com externalidade negativa para a economia brasileira como um todo, que teria sido evitado diante de um limite já posto legalmente.

Uma preocupação refere-se à factibilidade e ao impacto do nível de endividamento definido – de 4,4 RCL para a dívida bruta –, ainda que seja bem mais amplo do que o estabelecido para os Estados e Municípios (de 2 e 1,2 RCL, respectivamente), para comportar suas atribuições de gestão macroeconômica.Ainda que a definição do indicador envolva incerteza, trata-se de um número crível, que é bem superior ao valor inicialmente apresentado na proposta inicial do Executivo, de 3,5 RCL quando o endividamento estava na ordem de 2 RCL e a preocupação era de ser muito elevado e estimular ainda mais o endividamento da União. O cenário, hoje, é outro, com a deterioração do estoque da dívida para o patamar de 6 vezes a RCL, mostrando a conveniência e a necessidade do novo limite legal.

A sistemática para alcançá-lo mitiga eventual descompasso maior ao setor público, pois, de acordo com a proposta em tramitação, a convergência da dívida com a implementação da regra será gradual em horizonte temporal amplo de 15 anos, com o limite proposto sendo atingido apenas após 2030.Essa sistemática é consistente ao indicar um caminho longo de convergência fiscal, com a proporção de redução de 1/15 por ano,que equivale a menos de 1,5% do PIB – o próprio histórico de esforço fiscal e geração de superávit primário (com valores chegando a 3% do PIB) mostra capacidade de adequação e convergência do setor público.Além disso, traz ressalvas e condições de flexibilização fiscal em situações adversas, uma sistemática que já encontra respaldo na própria LRF.

De fato, há uma tendência global de estabelecimento de regras fiscais múltiplas, controlando mais de um agregado de política fiscal não apenas no curto prazo, como se observa nas economias centrais. O mais comum são regras que controlam o resultado fiscal e a dívida pública simultaneamente, mas, no caso da Europa, mergulhada em grave situação fiscal a partir da crise de 2008, o descontrole orçamentário e da trajetória de endividamento forçou a imposição de um novo conjunto de regras para a convergência e disciplina fiscal, especialmente nos países do Sul, voltadas para a própria estabilização e manutenção do regime monetário da zona do Euro. O Pacto Fiscal Europeu,complementou, em 2012, as regras do Tratado de Maastricht (1992) – que estabeleceu limite de endividamento bruto de 60% do PIB e restringiu o déficit nominal nos países-membros a 3% do PIB. Assim, estipulou limite de 1% do PIB para o chamado déficit nominal estrutural (um indicador de balanço fiscal de médio prazo, ajustado a variações do ciclo econômico), se o estoque da dívida é inferior a 60% do PIB, ou 0,5% do PIB, caso maior. Também faz parte desse pacto fiscal um mecanismo automático de correção, caso seja detectado desvio significativo da meta ou da respectiva trajetória de ajustamento – o que reforça o comprometimento, ex ante, dos governos em cumpri-las, na mesma linha do que está sendo proposto no PRS nº 84, de 2007.

Endividamento público é salutar tanto para o Estado quanto para o agente superavitário e a própria economia, mas encontra limite no tamanho e na trajetória da dívida.Daí que o limite de endividamento proposto pode ser benéfico para corrigir a trajetória de gastos, especialmente se indicadores de esforço primário e, mais ainda, resultado nominal, estabelecidos anualmente, estão sendo reiteradamente desconsiderados ou revisados. Por estar na competência privativa de controle do Senado, esse indicador terá maior estabilidade institucional para equacionar a dívida em uma trajetória sustentável no médio e longo prazo.

O projeto original dessa regulamentação, de 2000, do Executivo, foi desdobrado, no Senado, em duas proposições[3], uma que cuida da União e outra, dos demais entes federados. Esta segunda parte se transformou na Resolução nº 40, de 2001. Assim como o PL nº 3.744, de 2000, que tramita na Câmara, esta também se encontra praticamente no estágio em que foi apresentado – o que sugere uma simetria entre Senado e Câmara evidenciando que os impedimentos à tramitação desses temas não têm cores partidárias.

 

Nova Lei de Finanças Públicas

Também tramita no Senado Federal o Projeto de Lei Complementar (PLS) nº 229, de 2009, que visa introduzir nova lei geral de finanças públicas. O texto estabelece normas sobre orçamento, controle e contabilidade pública, além de contemplar temas como planejamento e orçamento; execução orçamentária; contabilidade e classificação da receita e da despesa. Também abrange aspectos relativos ao reconhecimento e pagamento de obrigações de exercício anterior, e diretrizes contábeis aplicáveis a fundos públicos.

Sua introdução deverá beneficiar o próprio processo legislativo orçamentário nacional, à medida que incorporará várias regras de cunho normativo geral, isto é, aplicáveis também para as demais esferas federadas, além de normas já aplicadas na esfera federal,que são, a cada ano, inseridas nas leis de diretrizes orçamentárias e que já deveriam estar consolidadas como regramento perene.

É relevante a nova regra de que a estimativa de receita orçamentária que o Poder Legislativo aprovar na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) deverá ser mantida tanto nesse projeto quanto no texto da Lei Orçamentária Anual (LOA) enviado para sanção presidencial – mecanismo que visa tornar mais crível o processo de previsão orçamentária das receitas, contrapondo-se ao viés altista não só do Executivo como do Legislativo para abarcar as emendas impositivas. O projeto também reformula o Plano Plurianual (PPA) para simplificá-lo com base no programa de governo eleito com o novo Presidente da República, acabando com o descasamento entre mandato presidencial e PPA.

Na esfera do planejamento, o Sistema Nacional de Projetos de Investimento agregará os dados dos sistemas dos municípios com mais de 200 mil habitantes, constituindo banco de dados único de projetos, cuja inclusão será pré-requisito para inserção no orçamento de cada ente federado. Esse mecanismo reforçará o papel da LDO, com a finalidade de os governos de todas as esferas federadas passarem a fazer um planejamento fiscal de médio prazo consistente, deixando de assumir obrigações futuras sem fontes de financiamento definidas. Para isso, prevê a projeção de todas obrigações já contratadas ou esperadas para os anos seguintes e, a partir da meta fiscal definida, a determinação do espaço disponível para novos projetos, contemplando que os projetos anteriormente aprovados sejam adequadamente observados. Esse detalhamento maior permitirá aprovar somente o que seja efetivamente viável em ser iniciado na prática.

 

Medidas Legislativas Complementares

A responsabilidade fiscal tem na apreciação das contas do Presidente da República pelo Congresso importante pilar institucional, mas a prerrogativa parlamentar acaba esvaziada se for intempestiva – como mostra as contas do governo Collor (1990-1992) que ainda aguardam parecer. A falta de prazos para apreciação de contas destoa do prazo fixo de 60 dias para apresentação das contas pelo Presidente da República e do prazo de 60 dias para emissão de parecer pelo TCU. O estabelecimento de prazo específico é uma necessidade para o exercício tempestivo da função fiscalizadora do Congresso Nacional, uma de suas prerrogativas básicas. Isso porque eventual reprovação de contas, por exemplo no primeiro semestre do ano seguinte ao ano de prestação das contas, pode constituir fato político relevante, além de subsidiar a sociedade sobre a qualidade do gestor público, permitindo-lhe formar melhor julgamento acerca da conveniência da reeleição de um político ou não. Trata-se de importante omissão de controle fiscal.

Também decorre daí a necessidade de sanção mais efetiva a políticos com contas reprovadas. Sanções de baixo custo ao agente político são ineficazes para coibir crime de responsabilidade, ou o desvio da conduta esperada do gestor público. No caso,a sanção de inelegibilidade política do mandatário com contas reprovadas não afeta o curso do próprio mandato, o que não gera uma preocupação tempestiva de curto prazo para o político, nema concomitante aderência às normas de finanças públicas. Talvez seja a hora de aprimorar as regras de gestão com foco nesse horizonte temporal.

O equacionamento da prática de contingenciamento e do uso da rubrica de Restos a Pagar (diante da falta de limite quantitativo específico) também merece avaliação, para valorizar a função de planejamento dos gastos. Se, por uma via, o contingenciamento é medida preventiva que favorece o equilíbrio das contas, sua utilização excessiva compromete a qualidade do gasto, distorcendo o planejamento das ações públicas, em especial por congelar, prioritariamente, despesas de investimentos, o que emperra o desenvolvimento. Sua prática reiterada mostra um enfraquecimento do PPA, que é o instrumento estratégico de investimentos. Hoje, o abuso do contingenciamento desarticula a execução orçamentária ao longo do exercício, que acaba, muitas vezes, concentrada no final do ano, quando sobra pouco tempo para se realizarem as despesas de forma eficiente e racional. Na prática, o Executivo costuma reter os recursos durante o exercício para, após a certeza do cumprimento das metas, pela realização da receita estimada, já próximo ao fim do ano, liberá-los em grandes quantidades para que sejam realizados. Este procedimento leva a sérias dúvidas quanto à qualidade do gasto e à observância do planejamento orçamentário, ensejando licitações aceleradas e preços oportunamente elevados pelos fornecedores.

Um aspecto importante do contingenciamento e da acumulação de contas a pagar no exercício fiscal seguintes é que acaba constituindo um segundo orçamento para competir com o novo orçamento aprovado. A existência de valores expressivos em Restos a Pagar indica, por definição, que será feito novo contingenciamento no ano fiscal seguinte, o que é ruim não apenas para o setor público como para a organização do próprio setor produtivo privado que é contratado. Nesse caso, a prática reiterada e abusiva do poder de contingenciamento e a não execução das despesas orçamentárias previstas acaba transformando o orçamento em uma peça de ficção, pois muitas das despesas previstas simplesmente deixam de ser executadas, ou apenas pagas. Ainda que o contingenciamento seja uma resposta do Executivo ao excesso de autorizações orçamentárias do Legislativo com base em superestimação da arrecadação, o fato é que Congresso Nacional e sociedade acabam não contando com o planejamento orçamentário para direcionar as ações públicas que serão efetivamente realizadas.O processo de planejamento precisa trazer previsibilidade dos gastos e resgatar a credibilidade e a importância do orçamento como mecanismo central da ação pública, que acaba sendo chamado, de forma pejorativa, como mera “carta de intenções”.

O ciclo fiscal é mais complexo do que apenas a etapa de execução dos gastos, pois parte do planejamento orçamentário, de receitas e despesas em equilíbrio, quando da elaboração das peças orçamentárias (com observação das regras de teto), e vai até a fiscalização e aprovação posterior das contas pelo Legislativo. Daí a capacidade de pilares como instituição fiscal independente,limite de endividamento federal e a introdução de novas normas de controle de finanças públicas,como citado, constituírem mecanismos institucionais críveis, que complementarão o arcabouço normativo atinente à gestão fiscal e conduzirão a gestão pública a uma trajetória de maior qualidade e sustentabilidade.

_____________

1http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=20145
2Nesse sentido, o projeto de lei do Senado nº 141, de 2014, tramita para corrigir a fixação de uma composição geral excessivamente extensa ao CGF, com vistas a definir a composição do conselho de forma mais simples.
3http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/44833

 

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Qual é o valor jurídico das metas fiscais? O caso da LDO 2014 https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2380&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=qual-e-o-valor-juridico-das-metas-fiscais-o-caso-da-ldo-2014 https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2380#comments Mon, 02 Feb 2015 11:48:10 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2380 1. Introdução

A Lei de Responsabilidade Fiscal exige que as Leis de Diretrizes Orçamentárias contenham um anexo com uma série de metas de natureza fiscal para os três anos subsequentes.

No final de 2014, a constatação de que a meta de resultado primário não seria cumprida gerou grande controvérsia no meio político e na sociedade quanto à caracterização ou não de crime de responsabilidade da Presidente de República na hipótese de descumprimento da meta. Isso levou o Poder Executivo a propor e o Congresso Nacional a aprovar a Lei nº 13.053, 15 de dezembro de 2014, que altera a LDO 2014, para eliminar o limite de abatimento da meta de superávit primário originalmente previsto.

A LDO 2014 (Lei nº 12.919, de 24 de dezembro de 2013) fixara a meta de superávit primário em R$ 116,07 bilhões, admitindo um abatimento de até R$ 67 bilhões para despesas relacionadas ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e a desonerações de tributos. A Lei 13.053 limita-se a suprimir a referência aos R$ 67 bilhões, permitindo o abatimento de despesas sem limite de valor.

Segundo a justificação do projeto que resultou na Lei, a medida seria necessária em virtude de a economia brasileira ter crescido em 2014 em ritmo inferior ao previsto no início de 2013, quando foi elaborado o projeto da LDO 2014, o que teria afetado as receitas previstas. Transcorrido o ano de 2014, constatou-se que não houve superávit, mas déficit primário de R$ 17,24 bilhões.

Um adequado esclarecimento do tema não pode prescindir de uma análise jurídica das metas macroeconômicas constantes das LDOs.

2. As finanças públicas na Constituição Federal

A lei de diretrizes orçamentárias (LDO) foi instituída pela Constituição de 1988 e compõe, ao lado do plano plurianual (PPA) e da lei orçamentária anual (LOA), o sistema orçamentário. A estruturação do sistema orçamentário obedece a uma hierarquia e a um calendário. A LOA deve ser compatível com a LDO, que deve ser compatível com o PPA. O PPA deve ser aprovado no 1º ano de mandato e tem prazo de vigência de quatro anos; a LDO deve ser aprovada no primeiro semestre de cada ano, para orientar a elaboração do orçamento relativo ao ano subsequente. Para assegurar que esse calendário seja cumprido, a Constituição proíbe a interrupção da sessão legislativa para o recesso de meio de ano enquanto a LDO não for aprovada (art. 57, § 2º).

Segundo a Carta Magna, “a lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subsequente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento” (art. 165, § 2º). A lei orçamentária, por sua vez, “não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa” (§ 8º).

A disciplina das finanças públicas foi reservada a lei complementar (art. 163, I), que deverá “dispor sobre o exercício financeiro, a vigência, os prazos, a elaboração e a organização do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e da lei orçamentária anual” e “estabelecer normas de gestão financeira e patrimonial da administração direta e indireta bem como condições para a instituição e funcionamento de fundos” (art. 165, § 9º).

Os atos do Presidente da República que atentem contra a lei orçamentária são considerados crimes de responsabilidade (art. 85, VI), dispositivo regulamentado pelo art. 10 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1960, (que define os crimes de responsabilidade), alterada pela Lei nº 10.028, de 2000.

3. A instituição das metas fiscais pela Lei de Responsabilidade Fiscal

Em atendimento à determinação constitucional, foi editada a Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, que “estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal”, conhecida como “Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF)”. Em conjunto com a Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, que “estatui normas gerais de direito financeiro”, recepcionada como lei complementar, a LRF contém a disciplina básica das finanças públicas.

As metas fiscais compõem o conteúdo obrigatório da LDO determinado pela LRF:

“Integrará o projeto de lei de diretrizes orçamentárias Anexo de Metas Fiscais, em que serão estabelecidas metas anuais, em valores correntes e constantes, relativas a receitas, despesas, resultados nominal e primário e montante da dívida pública, para o exercício a que se referirem e para os dois seguintes” (art. 4º, § 1º).

“O Anexo conterá, ainda:

I – avaliação do cumprimento das metas relativas ao ano anterior;

II – demonstrativo das metas anuais, instruído com memória e metodologia de cálculo que justifiquem os resultados pretendidos, comparando-as com as fixadas nos três exercícios anteriores, e evidenciando a consistência delas com as premissas e os objetivos da política econômica nacional; (…)” (art. 4º, § 2º)

A metodologia de elaboração dos anexos da LDO consta do Manual de Demonstrativos Fiscais, em 6ª edição, aprovado pela Portaria nº 553, de 22 de dezembro de 2014, da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) do Ministério da Fazenda (MF), que é o órgão central do Sistema de Contabilidade Federal, instituído pela Lei nº 10.180, de 6 de fevereiro de 2001.

Não integram a LDO, mas devem compor a mensagem do Executivo que encaminhe seu projeto os “objetivos das políticas monetária, creditícia e cambial, bem como os parâmetros e as projeções para seus principais agregados e variáveis, a ainda as metas de inflação para o exercício subsequente” (art. 4º, § 4º).

O projeto de lei orçamentária, por sua vez, deve conter anexo com “demonstrativo da compatibilidade da programação dos orçamentos com os objetivos e metas” da LDO (art. 5º, I).

Ao exigir que a LDO contenha um Anexo de Metas Fiscais, a LRF pretende induzir os entes públicos a adotarem um planejamento financeiro de longo prazo, a ser apresentado e monitorado perante a opinião pública e o Congresso Nacional. Tão importante quando as metas em si, é a sua fundamentação, que deve avaliar o cumprimento das metas no ano anterior e apresentar memória de cálculo que evidencie sua consistência com os objetivos da política econômica nacional.

Na seção denominada “Da Execução Orçamentária e do Cumprimento das Metas”, a LRF determina ao Poder Executivo que demonstre e avalie quadrimestralmente perante o Congresso Nacional o cumprimento das metas fiscais (art. 9º, § 4º). Além disso, determina a fiscalização do atingimento das metas fiscais pelos sistemas de controle interno de cada Poder e pelo Poder Legislativo, diretamente ou com o auxílio do Tribunal de Contas (art. 59, I), que deverá emitir um alerta sempre que constatar a possibilidade de insuficiência da receita que coloque em risco o cumprimento das metas (§ 1º, I).

A vinculação entre as metas fiscais e a gestão financeira do dia-a-dia é feita por dois mecanismos.

Preventivamente, exige-se a demonstração de compatibilidade com as metas fiscais como condição de validade dos atos que importem em renúncia de receita (art. 14, I); criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento da despesa (art. 16, § 1º, II); ou criação ou aumento de despesa obrigatória de caráter continuado (art. 17, § 2º).

Na hipótese de se constatar ao final de um bimestre que a receita poderá “não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal” deve ser promovida a “limitação de empenho e movimentação financeira (contingenciamento), segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias” (art. 9º, caput).

Na sequência da LRF, editou-se a Lei nº 10.028, de 19 de outubro de 2000, que tipificou diversos crimes comuns e de responsabilidade e infrações administrativas contra as finanças públicas. Foi tipificada como infração administrativa contra as leis de finanças públicas “propor lei de diretrizes orçamentárias anual que não contenha as metas fiscais na forma da lei”, a ser processada e julgada pelo Tribunal de Contas e punida com “multa de trinta por cento dos vencimentos anuais do agente que lhe der causa” (art. 5º, II).

4. As metas como instrumento de responsabilidade fiscal

As metas fiscais têm uma estreita relação com o conceito de responsabilidade fiscal, que é o valor maior perseguido pela LRF:

“A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar” (art. 1º, § 1º, da LRF).

O objetivo último da responsabilidade fiscal é alcançar o “equilíbrio das contas públicas”, por meio da prevenção de riscos e da correção de desvios.

A LRF estabelece dois instrumentos paralelos de promoção da responsabilidade fiscal: os limites e as metas. Os limites são parâmetros estruturais, que não devem ser desrespeitados em nenhuma hipótese. Sua violação indica comprometimento direto da responsabilidade fiscal. As metas, em contraposição, apontam níveis ótimos a serem perseguidos de acordo com a conjuntura. Seu não cumprimento sinaliza um risco de comprometimento da responsabilidade fiscal, a ser considerado na execução do orçamento vigente e na elaboração da lei orçamentária para o ano subsequente. Por serem conjunturais, as metas são revistas anualmente e constam da LDO, enquanto os limites são fixados diretamente pela LRF ou por leis ordinárias e resoluções do Senado Federal, que vigoram por prazo indeterminado.

A LRF prevê limites para despesa total com pessoal (art. 19); dívidas consolidada e mobiliária (art. 30); operações de crédito (art. 32) e concessão de garantias (art. 40).

No que diz respeito ao endividamento, a Constituição prevê a existência de limites para os montantes da dívida consolidada de todos os entes federados (art. 52, VI), para a dívida dos entes subnacionais (art. 52, IX) e para a dívida federal (art. 48, XIV), estipulação reiterada pela LRF (art. 30, I e II). A Resolução nº 40, de 2001, do Senado Federal estabeleceu os limites de 200% da receita corrente líquida para o Distrito Federal e os Estados e de 120% para os municípios, a serem gradualmente atingidos ao longo dos quinze anos subsequentes. Complementarmente, a Resolução nº 43, de 2001, estabeleceu outras restrições adicionais ao endividamento subnacional.

Para a dívida federal, no entanto, ainda não foram fixados limites. A matéria é objeto do Projeto de Resolução do Senado nº 84, de 2007, e do Projeto de Lei nº 3.431, de 2000, que tramita no Senado Federal como Projeto de Lei da Câmara nº 54, de 2009. Na ausência de limites para o endividamento federal o sistema de metas torna-se ainda mais relevante, pois ele passa a ser o único mecanismo de controle da responsabilidade fiscal da União.

Há diversos indicadores de equilíbrio fiscal adotados internacionalmente. Os principais procuram avaliar a capacidade do ente público de pagar sua dívida. A relação dívida/PIB é o índice que vem sendo adotado pelo Poder Executivo na definição das metas fiscais. Quanto maior for esse indicador, maior será o risco de não pagamento incorrido pelos investidores nos títulos públicos e consequentemente maior será a taxa de juros que terá que ser oferecida. A taxa de juros dos títulos públicos, por sua vez, influencia a taxa de juros cobrada pelos bancos nos empréstimos para o setor privado. Quanto menor for a relação dívida/PIB, portanto, menor será a taxa de juros da economia e maior será o investimento privado, que é o principal fator de crescimento da economia. É fundamental, portanto, que o País tenha sempre uma meta de relação dívida/PIB de longo prazo, que deve orientar a fixação das metas anuais de superávit primário.

O nível desejado de relação dívida/PIB pode ser considerado um dos “objetivos da política econômica nacional” a que se refere a LRF. Embora não seja fixado pela LDO, ele deve constar da memória de cálculo das metas fiscais, que integra o anexo da lei.

No sistema de metas adotado pela LRF, meta de “montante da dívida pública” corresponde ao valor absoluto da dívida a ser perseguido a cada ano, que deve indicar uma trajetória tendente a alcançar a relação dívida/PIB desejada.

A meta de resultado primário, por sua vez, representa os recursos a serem reservados para o pagamento da dívida. Segundo o Manual de Demonstrativos Fiscais da STN,

“O resultado primário representa a diferença entre as receitas e as despesas primárias (não financeiras). Sua apuração fornece uma melhor avaliação do impacto da política fiscal em execução pelo ente da Federação. Superávits primários, que são direcionados para o pagamento de serviços da dívida, contribuem para a redução do estoque total da dívida líquida. Em contrapartida, déficits primários indicam a parcela do aumento da dívida, resultante do financiamento de gastos não financeiros que ultrapassam as receitas não financeiras.” (p. 218)

A memória de cálculo da meta de resultado primário deve indicar, portanto, o patamar de endividamento que se pretende alcançar e em que prazo. Esse patamar, por sua vez, deve ser compatível como a capacidade de pagamento do País, que é medida pelo tamanho do PIB.

5. As metas fiscais na LDO 2014

Apesar de a LRF exigir que as metas fiscais constem do Anexo respectivo da LDO, criou-se ao longo dos anos a praxe de se repetir no texto da lei a meta de superávit primário. No caso da LDO 2014, o art. 2º estabeleceu as metas de R$ 116,072 bilhões para o resultado primário e de R$ 167,36 bilhões para o resultado do setor público consolidado não financeiro. O art. 3º autorizou o já citado abatimento da meta de superávit em até R$ 67 bilhões. O Anexo IV apresenta, sob a forma de tabela, as metas de receita primária, despesa primária, resultado primário, resultado nominal e dívida líquida para os anos de 2014 a 2016.

Há, no entanto, uma contradição interna ao texto original da LDO, uma vez que, subtraindo-se o abatimento autorizado, ter-se-ia como meta de superávit propriamente dita o valor de R$ 49,072 bilhões. Apesar disso, a meta constante do Anexo é de R$ 116, 072 bilhões, revelando desconsideração, portanto, do abatimento.

A memória de cálculo constante do Anexo indica que a meta de superávit para o setor público consolidado não financeiro (que abrange União e entes subnacionais), de R$ 167,36 bilhões, corresponde a 3,1% do PIB, percentual a ser mantido nos dois anos subsequentes, o que permitiria alcançar uma relação dívida/PIB de 26,4% ao final de 2016, e permitiria gerar “déficit próximo a zero no resultado nominal de 2016”. Isso significa que o objetivo maior buscado pelo governo seria o de estabilizar a relação dívida/PIB em 26,4% no ano de 2016.

Percebe-se, no entanto, que essa fundamentação é insatisfatória, pois não levou em consideração o abatimento de R$ 67 bilhões, que resultaria em uma meta de R$ 100,36 bilhões, correspondente a 1,86 % do PIB. Nesse patamar de superávit, não se alcançaria o citado déficit zero em 2016. Além disso, o “resultado do setor público consolidado não financeiro” não integra o Anexo da lei; apenas o resultado primário do governo federal.

Além dessas inconsistências, é preciso registrar que a LDO 2014 foi aprovada em 24 de dezembro de 2013, quando a Constituição determina o prazo de 17 de julho. O Projeto de Lei Orçamentária para 2014, foi apresentado em 29 de agosto de 2013, antes, portanto, da lei que deveria orientar a sua elaboração. O orçamento para 2014, que deveria ter sido aprovado até 31 de dezembro de 2013, veio a ser aprovado em 20 de janeiro de 2014, por meio da Lei nº 12.952. Tais atrasos tornaram-se rotineiros nos últimos anos e revelam a fragilidade institucional ainda presente na gestão financeira do País.

6. A alteração da meta de resultado primário da LDO 2014

Se a LDO 2014 já apresentava as impropriedades citadas, a Lei 13.053, de 2014, conseguiu torná-la ainda pior, descumprindo praticamente todas as exigências do Anexo de Metas Fiscais constantes da LRF. Ao eliminar o limite de abatimento da meta, na prática ela deixa de fixar qualquer meta de resultado primário.

Esse fato é agravado pela não alteração do Anexo de Metas Fiscais, que permanece com os números da LDO original. O mínimo que se poderia esperar de uma alteração dessa natureza seria uma revisão global do Anexo, contemplando novos valores para as metas de receita, despesa, resultados primário e nominal e dívida líquida. Essa revisão certamente teria que abarcar também os valores previstos para 2015 e 2016, que se supõe tenham sido afetados pelos mesmos fatos que justificariam a alteração da meta de superávit primário para 2014.

O desrespeito pela LRF e pela cidadania é evidenciado, ainda, pela ausência de qualquer memória de cálculo que fundamente a alteração realizada e esclareça quais são os atuais “objetivos da política econômica nacional”. Mais precisamente, fica a questão: qual é o novo objetivo da política fiscal da União, em substituição ao de estabilização do endividamento em 26,4 % do PIB no ano de 2016, que consta da LDO original?

7. Consequências jurídicas do descumprimento das metas fiscais

As metas fiscais não são regras jurídicas propriamente ditas, a serem cumpridas em quaisquer circunstâncias. São parâmetros de planejamento e transparência, a serem observados na elaboração da lei orçamentária anual e na execução orçamentária.

Esse entendimento fica evidenciado quando a LRF determina que o Anexo da LDO contenha avaliação do cumprimento das metas relativas ao ano anterior e a demonstração e avaliação do cumprimento das metas de cada quadrimestre perante o Congresso Nacional. Se seu cumprimento deve ser avaliado, presume-se aceitável que a meta não seja alcançada.

Tanto é assim que nem a Constituição (art. 85, VI) nem a Lei 10.028 tipificaram como crime comum ou de responsabilidade o descumprimento das metas fiscais da LDO. Todos os crimes dizem respeito exclusivamente à violação da lei orçamentária.

Outro não pode ser o raciocínio quando se considera a natureza das metas a serem fixadas: “receitas, despesas, resultados nominal e primário e montante da dívida pública”. Desses itens, apenas as despesas estão sob o controle do poder público. Ainda assim, não se trata de um controle absoluto, pois há despesas obrigatórias (art. 17 da LRF), cuja não realização seria ilegal. As receitas dependem da conjuntura econômica, que é influenciada por fatores alheios ao controle do Estado, como o desempenho da economia mundial e intempéries climáticas. O mais adequado seria falar-se em “previsão de receita”, como faz a Constituição Federal (art. 165, § 8º), em lugar de meta de receitas, como consta da LRF. Os resultados nominal e primário, por sua vez, dependem das receitas e despesas e o montante da dívida pública depende do resultado nominal.

O alcance das metas é influenciado, portanto, apenas parcialmente pelo governo, não se podendo responsabilizá-lo automaticamente por eventual descumprimento. O que se exige é que o cumprimento das metas seja avaliado no Anexo de Metas Fiscais da LDO subsequente, mediante indicação dos fatores que impediram seu atingimento e a fixação de novas metas compatíveis com a nova conjuntura econômica. Conclui-se daí que a alteração da LDO 2014 era desnecessária, bastando ao Poder Executivo apresentar perante o Congresso Nacional os motivos que levaram ao não atingimento da meta de superávit primário.

As metas são indispensáveis, por outro lado, para dar racionalidade ao orçamento, vinculando-o a um planejamento fiscal de longo prazo. Elas evidenciam a análise que deve orientar a elaboração da lei orçamentária, que “fixa a despesa” (art. 165, § 8º, da Constituição), ou seja, autoriza o gasto público. Essa é a regra jurídica propriamente dita, cuja violação caracteriza crime de responsabilidade (art. 85, VI, da Constituição Federal). Na ausência dessa vinculação, a dívida pública pode sair do controle, o que comprometeria não apenas a credibilidade do País no mercado financeiro internacional, mas principalmente a capacidade de manutenção dos serviços e investimentos públicos nos anos subsequentes.

A inexistência de Anexo de Metas Fiscais na forma da LRF é indício de pelo menos uma entre duas condutas inadmissíveis: ou não há planejamento fiscal ou ele existe, mas está sendo ocultado da opinião pública. No primeiro caso, viola-se o princípio da responsabilidade fiscal; no segundo, o da publicidade da administração pública.

É por esse motivo que a Lei 10.028, de 2000, tipifica como infração administrativa a apresentação de lei de diretrizes orçamentárias anual que não contenha as metas fiscais na forma da lei (art. 5º, II). Não basta meramente preencher uma tabela de metas com números quaisquer.  É preciso fundamentá-los com todos os elementos tornados obrigatórios pela LRF.

O mero encaminhamento ao Congresso Nacional do Projeto de Lei nº 36, de 2014, que resultou na Lei nº 13.053, de 2014, já caracterizou, portanto, a infração administrativa apontada. É importante que o TCU processe e julgue os responsáveis pela apresentação do projeto e que o STF declare a inconstitucionalidade da lei, a fim de que esse triste episódio não se transforme em um precedente capaz de comprometer o sistema de responsabilidade fiscal em todas as esferas da federação.

Mais grave que descumprir uma meta fiscal é não ter metas ou escondê-las da sociedade, situação que representa um risco não apenas para a estabilidade da economia, mas para a própria a democracia.

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