regulamentação – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Wed, 10 Aug 2022 22:14:37 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Estaria a saga da regulamentação do lobby no Brasil perto de seu fim? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3669&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=estaria-a-saga-da-regulamentacao-do-lobby-no-brasil-perto-de-seu-fim Wed, 10 Aug 2022 22:14:37 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3669 Estaria a saga da regulamentação do lobby no Brasil perto de seu fim?

 

Por Ricardo José Pereira Rodrigues

 

Ao encaminhar à Câmara dos Deputados, em dezembro de 2021, um projeto para disciplinar o lobby no país, o Poder Executivo não apenas adicionou mais um capítulo à verdadeira saga que se tornou a história da regulamentação da atividade no Brasil.  A ação legiferante promovida pelo Poder Executivo, de fato, colocou em evidência a importância que a regulamentação da representação privada de interesses junto a agentes públicos assumiu como fator de aprimoramento da imagem e do desempenho do país relativo à integridade de sua governança pública, sobretudo para os organismos internacionais.

Foram muitas as tentativas frustradas de regulamentação do lobby no Brasil.  A “saga” teve início ainda nos anos 1980, com a apresentação do Projeto de Lei do Senado nº 25, de 1984, pelo então Senador Marco Maciel.  No Senado federal tramitaram, entre 1984 e 2016, quatro outras proposições sobre o tema, incluindo uma Proposta de Emenda à Constituição.  Na Câmara dos Deputados, no mesmo período e sobre o mesmo tema, tramitaram nada menos que 7 projetos de lei e 11 projetos de resolução da Câmara. São quase 40 anos de iniciativas parlamentares que não resultaram em norma jurídica, com a maioria das proposições sendo arquivada por falta de deliberação.

Mas por que tem sido tão difícil aprovar no Brasil uma lei do lobby?  E, se o país tem vivido sem uma lei de lobby, qual importância teria a regulamentação do lobby?  Por que insistir em regulamentar a atividade?

Primeiramente, cabe salientar que a regulamentação do lobby não é uma empreitada fácil de se operacionalizar até porque compreende desafios nada triviais.  Não se trata apenas de restringir ou proibir a atividade dos grupos ou de lobistas individuais.  Como já tive oportunidade de frisar em outras ocasiões[1], trata-se de viabilizar uma legislação caracterizada por dois objetivos distintos que, para alguns, podem até parecer contraditórios. Por um lado, a regulamentação do lobby deve necessariamente conter dispositivos que estimulem e fortaleçam a pluralidade dos grupos de interesse sem, por outro lado, permitir que tal atuação degenere em tráfico de influência ou corrupção, crimes previstos pelo Código Penal Brasileiro.

O estímulo à representação de interesses no âmbito das esferas públicas, seja realizada por profissionais do lobby, seja realizada por grupos oriundos dos mais diversos setores da sociedade civil organizada, é plenamente amparada por nossa Carta Magna.  Tal estímulo deve-se ao caráter pluralista do próprio modelo democrático adotado pelo Brasil.  Os constituintes alçaram o pluralismo à condição de princípio fundamental do nosso Estado democrático de direito.  A Constituição Federal de 1988 consagra o pluralismo político em seu artigo primeiro, inciso V, como um dos fundamentos da democracia brasileira.

Outros artigos da nossa Constituição reforçam esse estímulo à participação de grupos no processo de tomada de decisão acerca de políticas públicas.  O direito de petição, por exemplo, é assegurado pela Constituição como uma das garantias fundamentais da sociedade.  O inciso XXXIV do art. 5º garante aos brasileiros “o direito de petição aos poderes públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”[2].  Esse direito é ainda reiterado pela Constituição em seu art. 58, § 2º, inciso IV, quando determina às comissões das Casas do Congresso Nacional “receber petições, reclamações, representações ou queixas de qualquer pessoa contra atos ou omissões das autoridades ou entidades públicas”[3].

Cabe salientar que o assunto tem ocupado a agenda de diversos organismos internacionais. A ONU e a OCDE, por exemplo, defendem a adoção da regulamentação do lobby como um requisito para se alavancar a boa governança de seus países membros. Curiosamente, são poucas as democracias que dispõem de normas legais para disciplinar a atividade de representação de interesses.  Neste sentido, continua a valer a conclusão a que chegou Margaret Malone, em 2004, segundo a qual “países com regras específicas para regulamentar as atividades de lobistas e grupos de interesse constituem muito mais a exceção do que a regra”[4].  Tanto assim que na linha do tempo elaborada pela OCDE para detalhar a evolução da regulamentação do lobby no mundo, de 1945 a 2014, constam apenas 15 países. Desses, somente 11 países promulgaram sua regulamentação da atividade depois de 2005.    Para a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, apenas uma minoria dos países no mundo adotou o instrumento da regulamentação para reduzir os riscos representados pelo lobby aos seus arranjos de governança.  Segundo a organização, “em 2020, apenas 23 de 41 democracias analisadas supria (por meio de legislação) algum nível de transparência às atividades de lobby”[5].

Não obstante o baixo número de países com leis para disciplinar as atividades do lobby, o tema tornou-se central para a agenda da OCDE desde 2009 quando lançou seu primeiro relatório dedicado ao assunto[6].  Para a OCDE, a ausência de uma regulamentação do lobby eficaz tem gerado, em muitos países, alocações equivocadas de recursos públicos, muitas vezes escassos, com redução de produtividade e aumento de desigualdades.  De acordo com a OCDE, práticas inapropriadas e censuráveis do lobby contribuem para “debilitar a confiança do cidadão no processo democrático”[7].

Para analistas que acompanham as tratativas do Brasil para integrar a OCDE, a falta de uma regulamentação de lobby representa uma barreira, que embora transponível, dificulta a adesão do país ao organismo.  Complementando um conjunto de leis voltado para o controle da corrupção e a melhoria da integridade no serviço público, a aprovação da regulamentação do lobby poria fim a uma defasagem regulatória que vem marcando a experiência brasileira no que concerne à relação dos agentes públicos com o mercado e os grupos de interesse.  Também consolidaria a convergência do Brasil com os princípios da OCDE relativos à governança pública.  Ressalte-se que numa pesquisa realizada pela OCDE sobre indicadores de regulação de produtos de mercado (PMR) com 46 países, o Brasil obteve a pior colocação do grupo.  Segundo manifestação da representante do Ministério da Economia durante a audiência pública realizada na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público, da Câmara dos Deputados, a aprovação de uma adequada regulamentação do lobby é o caminho para remediar a defasagem regulatória e melhorar o desempenho do país com relação aos índices de PMR (Product Market Regulation) da OCDE.

A apresentação pelo Poder Executivo do Projeto de Lei nº 4.391, de 2021, após quase 40 anos de proposições malogradas por parte de parlamentares, dá revigorada energia ao debate sobre a questão.  Com a importância que o tema assumiu para os organismos internacionais, o disciplinamento legal da representação de interesses privados deixou de ser uma preocupação apenas doméstica para o país.  A temática passou a ser uma questão de Estado, cuja condução e fecho pode ter influência nos objetivos diplomáticos e de comércio exterior do país.

Apensado ao Projeto de Lei nº 4.391, de 2021, tramita o Projeto de Lei nº 1.535, de 2022, de autoria do Deputado Carlos Zarattini. Ambos são compreensivos e abrangentes, incorporando em seus respectivos textos, princípios e diretrizes da OCDE para a regulamentação do lobby.  Espera-se que, desta vez, o Parlamento consiga alcançar um consenso mínimo, para, finalmente, transformar em norma jurídica o disciplinamento de uma atividade que é intrínseca ao processo democrático vigente no país.  Constituiria um passo firme na direção do aprimoramento e do aumento da qualidade de nossa democracia.

 

 

[1] RODRIGUES, Ricardo J. P. A adoção dos parâmetros da OCDE para a regulamentação do lobby no brasil. Revista Eletrônica Direito e Política, v.10, n.3, 2015, p. 1437-1458; RODRIGUES, Ricardo J. P.  A regulamentação do lobby: desafios e parâmetros para sua adoção.  STPC Café, Brasília, 2014, p. 27-35.

[2] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Edições Câmara, 2012, p. 15.

[3] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, p. 51.

[4] MALONE, Margaret M.  Regulation of lobbyists in developed countries.  Current rules and practices.  Dublin: Institute of Public Administration, 2004, p. 3.

[5] OECD.  Lobbyin in the 21st Centurty: transparency, integrity and access. Paris: OECD Publishing, 2021, p. 15.

[6] OCDE.  Lobbyists, government and public trust.  Vol. 1: increasing transparency through legislation.  Paris: OCDE Publishing, 2009

[7] OCDE, 2021, Ibid, p.

 

Ricardo José Pereira Rodrigues é doutor em ciência política pela State University of New York, consultor legislativo na Câmara dos Deputados e professor no curso de pós-graduação em Direito e Relações Governamentais do Uniceub em Brasília.

 

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O “BR do Mar” ruma para o desenvolvimento da cabotagem https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3427&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-br-do-mar-ruma-para-o-desenvolvimento-da-cabotagem https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3427#comments Sun, 28 Mar 2021 14:54:41 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3427 O “BR do Mar” ruma para o desenvolvimento da cabotagem

Por Diogo Piloni e Silva*, Dino Antunes Dias Batista** e Cléber Martinez***

A navegação marítima é, desde sua origem, considerada uma aventura. Se nos primórdios era a natureza que representava os grandes desafios, hoje são as ondas do mercado que podem afundar empresas e empreendedores. Com efeito, a volatilidade dos custos e fretes marítimos internacionais é mar revolto, que deve ser considerado quando na elaboração de políticas públicas que busquem o desenvolvimento deste modo de transporte. Por outro lado, sabe-se que mar calmo nunca fez um bom marinheiro. Assim, a política deve também trazer novos incentivos, que ampliem a contestabilidade do mercado da cabotagem brasileira.

O BR do Mar é um programa que busca desenvolver a navegação marítima de cabotagem, ampliando a concorrência, mas considerando a necessidade de mitigação dos efeitos negativos da abertura para o mercado internacional. O BR do Mar será implementado com base no Projeto de Lei nº 4.199/2020 que já foi aprovado na Câmara dos Deputados e que se encontra em discussão no Senado Federal.

Existem muitas controvérsias relacionadas ao transporte marítimo. Entretanto, pairam poucas dúvidas quanto a sua relação direta com o desenvolvimento econômico da grande maioria dos países, entendimento corroborado por estudo realizado entre os países membros da OCDE¹. O caráter estratégico que é dado ao transporte aquaviário está relacionado com diversos fatores, como: menores custos de transporte; menores índices de acidentes; menores níveis de emissões de poluentes; e menor dependência de recursos públicos para seu desenvolvimento. Tais fatores correspondem a externalidades positivas proporcionadas pela navegação para toda a sociedade.

Tais externalidades já justificariam políticas públicas voltadas ao setor, como a adoção, pela maioria dos países mais desenvolvidos, de regramentos específicos para o transporte marítimo, em especial para a cabotagem. Entretanto, para uma completa e precisa avaliação é fundamental compreender que, até o momento, não se chegou a um entendimento no âmbito da OMC² para que as práticas concorrenciais deste mercado pudessem ser analisadas pela organização.

Entre os diversos e importantes desdobramentos da desregulamentação das questões concorrenciais para o transporte marítimo internacional, estariam práticas que resultam na já citada volatilidade em termos de disponibilidade de navios e valores de frete, que caracterizam o ciclo econômico específico para o transporte marítimo.

Tal ambiente traz diversos riscos para usuários, impactados diretamente pelas incertezas dos valores de frete, e para os armadores, principalmente na tomada de decisão de investir na constituição de frota, em razão do elevado montante de capital exigido e os longos prazos para amortização. Este contexto leva grandes embarcadores a constituírem frota própria ou, quando possível, firmarem contratos de longo prazo, assegurando previsibilidade de embarque e condições de frete.

Já os pequenos e médios embarcadores, que não possuem demanda suficiente para mobilizar um navio completo, são direcionados para o mercado de contêiner. Esta dinâmica demonstra a relevância deste segmento do mercado para determinadas atividades e justificam o seu histórico de crescimento.

O transporte marítimo de contêineres é tão relevante para o desenvolvimento econômico que muitos países estabelecem regras concorrenciais específicas para o setor. Denominadas imunidades concorrenciais, tais regras possibilitam que empresas do setor atuem de forma coordenada. Entre as razões apontadas para essa tratativa diferenciada estaria a redução dos valores de frete e melhora da qualidade dos serviços, conforme justificado pela Comissão Europeia³ para estender a imunidade concorrencial até 2024.

Por outro lado, a possibilidade de atuação em conjunto das empresas de transporte marítimo de contêiner no mercado internacional estaria relacionada diretamente com a tendência de concentração do mercado, distribuídos atualmente em 3 grandes grupos operacionais, e valores de frete spot que dobram ou triplicam em curto espaço de tempo. A esse respeito, o mercado nacional foi particularmente impactado pelos efeitos da pandemia, sendo que os fretes da China para o Brasil passaram de US$ 2.500/TEU no início de 2020, para quase US$ 10.000/TEU no fim do ano.

Negligenciar estas características pode trazer relevantes consequências negativas, como depreende-se da experiência australiana de flexibilização da cabotagem. No final da década de 90, o governo australiano permitiu a atuação de navios estrangeiros por meio de concessão de licenças de operação, buscando o desenvolvimento da cabotagem. Sem alcançar os objetivos almejados, as restrições para a navegação costeira foram reimplementados em 2012, em uma tentativa de restabelecer o ambiente necessário para o desenvolvimento de frota nacional. O retorno à situação pré-abertura não ocorreu até o momento.

De forma geral, os argumentos relativos à manutenção de solução logística adequada justificam a resistência da maioria dos países em flexibilizar o acesso de embarcações estrangeiras aos seus mercados de cabotagem. Tais resistências permanecem mesmo com os potenciais benefícios econômicos identificados por diversas entidades e estudos, dentre os quais mencionamos o  Rethinking Maritime Cabotage for Improved Connectivity⁴.

O referenciado estudo apresentou experiências de liberalização da navegação, dentre as quais a liberalização da cabotagem entre os países da União Europeia, com a edição do Regulamento nº 3.577/1992, e a liberalização da carga incidental para o mercado de contêineres na Nova Zelândia, que é a possibilidade de reposicionamento de contêineres vazios por navios que atuam no trade internacional. Ressalta-se que o regulamento europeu possibilitou a maior integração marítima entre os países do bloco, mas não evitou a consolidação entre as empresas do setor.

O mesmo estudo apresenta algumas considerações a respeito da cabotagem brasileira, indicando que a regulamentação nacional é comparável à grande maioria dos países avaliados, sendo responsável pela estruturação de serviços de transporte regionais que atenderiam a outros países da região. Cabe destaque sobre a iniciativa de flexibilização da cabotagem chinesa, que passou a permitir que navios de bandeira estrangeira, controlados por empresas chinesas, pudessem operar na cabotagem.

A experiência chinesa corrobora a tendência de internacionalização das frotas, entretanto permanecendo sob controle das empresas sediadas nos países desenvolvidos, conforme demonstrado por publicação da ITF-OCDE/2019⁵.

O referido estudo relata a redução de aproximadamente 50% da frota de navios registrados nos países desenvolvidos, apesar de todas as políticas de subsídios e incentivos tributários existentes. Entretanto, as empresas sediadas nos países desenvolvidos continuam controlando a maior parte da frota mundial, mesmo arvorando a bandeira de outros países.

Diante de toda a complexidade inerente ao mercado de transporte marítimo, agravado pela impossibilidade de implementação de medidas de incentivo utilizadas por outros países, o governo federal estruturou medidas que potencializarão o desenvolvimento da cabotagem, consolidadas no programa BR do Mar. Este objetivo se mostra extremamente desafiador se considerados os dados históricos de redução dos valores de frete da cabotagem, divulgados pela EPL⁶, e de crescimento das atividades publicados pela ANTAQ⁷, neste caso merecendo destaque o crescimento superior a dois dígitos na cabotagem de contêineres nos últimos 10 anos.

Como coração da proposta está um novo regramento para afretamento de embarcações estrangeiras que, se por um lado flexibiliza a navegação de cabotagem brasileira para a utilização de embarcações estrangeiras, reduzindo custos de operação e barreiras a novos competidores no mercado, por outro mantém uma estrutura de incentivos à formação de frota pelas empresas brasileiras de navegação.

Merece destaque, portanto, a possibilidade de navios estrangeiros, com menores custos operacionais, afretados por empresas brasileiras de navegação de uma subsidiaria integral no exterior, operarem na cabotagem brasileira. Esta estruturação pode parecer complexa à primeira vista, mas é uma prática de mercado, conforme apontado pelos estudos da UNCTAD e da ITF/OCDE, supracitados.

O grande diferencial desta proposta é que os navios estrangeiros operados por empresas brasileiras de navegação estariam comprometidos com o atendimento do mercado nacional, “isolados” da dinâmica de volatilidade do mercado externo, e sob regras brasileiras que não permitem as práticas concorrenciais percebidas no mercado internacional, conforme apresentado por estudo publicado pelo CADE⁸.

A operação de navios com menores custos operacionais seria permitida em determinadas operações, ou para empresas que mantenham investimento em frota própria no país, demonstrando vínculo de longo prazo. Assim, busca-se assegurar o ambiente para o investimento em frota e perenidade da disponibilidade das operações de transporte. E mais do que isso: a regularidade de custos de frete, sendo esta a maior demanda apontada pelos usuários do serviço.

Também foi contemplada medida voltada para mitigar as barreiras de entrada no setor, relacionadas aos investimentos necessários para constituição de frota, sendo permitido que empresas de navegação possam iniciar suas operações somente com embarcações afretadas e registradas no Brasil.

Outras medidas que merecem destaque são aquelas voltadas para proporcionar maior efetividade para o uso do AFRMM, assim como a instituição da figura da empresa brasileira de investimento na navegação. Esta atuará de forma semelhante ao que ocorre em outros setores da infraestrutura no Brasil, bem como no mercado de navegação em outros países, viabilizando o investimento em ativos no setor de navegação por instituições gestoras de capital.

A necessidade de simplificação das questões burocráticas é outro ponto de consenso destacado durante as discussões que precederam a estruturação do programa. Neste sentido, a possibilidade de comprovação eletrônica do recebimento de mercadoria é uma importante medida de desburocratização que integra o projeto de lei original. Além disso, a dispensa da livre prática da ANVISA para a navegação doméstica traz mais racionalidade e competitividade para a cabotagem frente a alternativa concorrente, que é o transporte rodoviário, onde não há este tipo de exigência.

A maturidade e equilíbrio das propostas contidas no BR do Mar, implementado pelo Projeto de Lei nº 4.199/2020, foi demonstrada pelo texto aprovado pela Câmara dos Deputados, que contou com diversos aprimoramentos, mas manteve a integridade da estrutura do programa que tramita agora no Senado Federal. E a expectativa é grande para que entre em vigência este novo marco para a navegação entre portos do país, parte relevante de uma revolução em curso na matriz logística brasileira, conduzida pelo Ministério de Infraestrutura.

 

¹The Impacts of Globalisation on International Maritime Transport Activity. Disponível em: https://www.oecd.org/greengrowth/greening-transport/41380820.pdf.

²Decision on Maritime Transport Services S/L/24 (WTO/1996). Disponível em: https://docs.wto.org/dol2fe/Pages/SS/directdoc.aspx?filename=q:/S/L/24.pdf.

³Antitrust: Commission prolongs the validity of block exemption for liner shipping consortia. Disponível em: https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/pt/ip_20_518.

Rethinking Maritime Cabotage for Improved Connectivity. Disponível em: <https://unctad.org/en/pages/PublicationWebflyer.aspx?publicationid=1965>. 

Maritime Subsidies Do They Provide Value for Money? Disponível em: https://www.itf-oecd.org/sites/default/files/docs/maritime-subsidies-value-for-money.pdf.

⁶Boletim de Logística 1° Semestre 2019. Disponível em: https://ontl.epl.gov.br/wp-content/uploads/2020/09/boletim-logistico-1semestre2019.pdf.

⁷Estatístico Aquaviário. Disponível em: < http://web.antaq.gov.br/anuario/.

⁸Cadernos do Cade: Mercado de transporte marítimo de contêineres. Disponível em: http://antigo.cade.gov.br/acesso-a-informacao/publicacoes-institucionais/publicacoes-dee/caderno-mercado-de-transporte-maritimo-de-conteineres-versao-final.pdf.

 

*Diogo Piloni e Silva é especialista em Engenharia e Gestão Portuária e secretário da Secretaria Nacional de Portos e Transporte Aquaviário (Ministério de Infraestrutura).

**Dino Antunes Dias Batista é mestre em Transportes e diretor do Departamento de Navegação e Hidrovias (Ministério de Infraestrutura).

***Cléber Martinez tem MBA em Administração e Finanças e coordenador no Departamento de Navegação e Hidrovias (Ministério da Infraestrutura).

 

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A regra de transição de 30 anos das linhas de ônibus interestaduais https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3394&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-regra-de-transicao-de-30-anos-das-linhas-de-onibus-interestaduais Tue, 19 Jan 2021 15:08:50 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3394 Por Liliane Galvão e Rodrigo Novaes

“Se quisermos que tudo continue como está,

é preciso que tudo mude”.

Giuseppi Tomasi de Lampedusa

O Transporte Rodoviário Interestadual e Internacional de Passageiros (TRIIP), a partir da promulgação da Lei nº 12.996, de 18 de junho de 2014, passou a ser outorgado por autorização. A Lei alterou dispositivos da Lei nº 10.233, de 5 de junho de 2001, que trata das competências da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), reguladora do setor.

A autorização como forma de outorga do TRIIP é estabelecida pelo  art. 43, inciso II, dessa Lei, e tem as seguintes características:

  1. a) independe de licitação;
  2. b) é exercida em liberdade de preços dos serviços, tarifas e fretes, e em ambiente de livre e aberta competição;
  3. c) não prevê prazo de vigência ou termo final, extinguindo-se pela sua plena eficácia, por renúncia, anulação ou cassação.

O modelo de autorizações para o TRIIP tem sido alvo de ataques tanto no Poder Judiciário – por meio de duas ações diretas de inconstitucionalidade que tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF) –, como no Poder Legislativo – por meio do Projeto de Lei (PL) n° 3.819, de 2020.

O objetivo dessas investidas parece ser a permanência da situação atual de um mercado fechado e sem concorrência – ou seja, manter os atuais incumbentes com liberdade de praticar os preços que entenderem adequados aos seus interesses sem serem ameaçados por novos entrantes.

O Poder Executivo, por meio do Decreto nº 10.157, de 4 de dezembro de 2019, buscou, justamente, equacionar essas questões, regulamentando o comando atual da Lei nº 10.233, de 2001. Espera-se com isso beneficiar a população, proporcionando um sistema de preços livres, em um ambiente competitivo e sem exclusividade de linhas, o que deve levar à queda de preços e ao aumento de oferta.

Na contramão desta iniciativa, no último dia 22 de dezembro, o Senado Federal remeteu à Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei (PL) nº 3.819, de 2020, que altera a Lei nº 10.233, de 5 de junho de 2001, para – novamente – alterar os critérios para a outorga de autorização da operação do TRIIP.

Apesar de o projeto ter sido aprovado na forma de um substitutivo, que manteve a possibilidade da operação do TRIP no regime de autorização, o texto proposto para o art. 47-B da Lei nº 10.233, de 2001, estabelece um conceito de “inviabilidade técnica, operacional e econômica” para limitar o número de autorizações e obrigar a realização de um processo seletivo público para escolha das empresas autorizatárias. Os critérios para a caracterização desta “inviabilidade” serão definidos pelo Poder Executivo; as regras do processo seletivo, pela ANTT.

Na prática, a depender das regras a serem criadas pelo Poder Executivo, poderá ser exigida a realização de processo de seleção, cujas regras da competição, como mostra a história recente do TRIIP, tendem a ser bastante restritivas. Além disso, regulamentos deixados a cargo do Poder Executivo podem ser alterados ao sabor das conveniências do momento, como se vê em todos os setores regulados.

Nesse contexto, o objetivo deste artigo é contribuir para a avaliação do modelo legal vigente para o mercado do TRIIP. Iniciaremos com a apresentação de um relato cronológico da regulamentação do TRIIP. Em seguida, argumentaremos sobre a adequação do marco regulatório vigente para a operação do TRIIP.

Relato cronológico da regulamentação do TRIIP

Ao longo da história, o transporte rodoviário de passageiros no Brasil sempre foi prestado por meio de autorizações outorgadas pela União a particulares, em caráter precário e sem licitação.

Com o advento da Constituição de 1988, que previa licitação para outorga de concessão ou permissão de serviços públicos (art. 175, parágrafo único e incisos), foi editado o Decreto nº 99.072, de 8 de março de 1990, para alterar o regulamento dos serviços públicos rodoviários de transporte coletivo de passageiros, e exigir licitação, na modalidade de concorrência, para a exploração dos “serviços públicos rodoviários de transporte coletivo de passageiros, interestaduais e internacionais, quando não prestados diretamente”.

Como as linhas existentes não haviam sido licitadas, foi estabelecido por decreto que elas somente poderiam ser exploradas até outubro de 2008 – tempo mais do que suficiente para amortizar os investimentos em ônibus, cuja depreciação se dá, em média, entre sete e dez anos. Mesmo contando com prazo tão extenso, as licitações que regularizariam as linhas do TRIIP jamais foram realizadas. Assim, as autorizações vigentes foram sucessivamente prorrogadas com a justificativa de que os serviços de transporte não poderiam sofrer descontinuidade.

Quando, finalmente, foi publicada a licitação das linhas, em 29 de agosto de 2013, o edital foi questionado por um sindicato de empresas de transportes do estado de São Paulo. A licitação foi suspensa por decisão judicial, e, posteriormente, cancelada em razão da entrada em vigor da Lei nº 12.996, de 18 de junho de 2014, que estabeleceu a autorização como modalidade de outorga do TRIIP, fosse ele regular ou especial.

Embora a nova lei preveja, em seu art. 5º, que as autorizações especiais deveriam ter sido extintas no período de um ano contado de sua publicação, também consta nela que tal prazo poderia ser prorrogado a critério do então ministro de Estado dos Transportes, mediante proposta da ANTT. Somente um ano após a alteração do marco legal do setor é que a Agência editou a Resolução nº 4.770, de 25 de junho de 2015, para disciplinar o novo regime de outorgas.

Essa norma criou um regime de transição para que a ANTT promovesse “estudos de avaliação dos mercados, com o objetivo de detalhar e estabelecer os parâmetros de avaliação dos casos enquadrados como inviabilidade operacional”. Nesse período, o número de autorizatárias por mercado (ligação entre pares de cidades) ficou limitado (i) à quantidade de autorizatárias existentes por mercado e (ii) a duas transportadoras em cada mercado novo.

Ao impor o número de vagas por mercado e conferir preferência aos transportadores nele estabelecidos, a ANTT criou, sem previsão legal, barreiras à entrada de novas transportadoras, em favorecimento às incumbentes.

Assim, pela via regulatória, a ANTT manteve o mercado em completo desacordo com as características do modelo de autorização que, conforme o art. 43, inciso II, da Lei nº 10.233, de 2001, “é exercida em liberdade de preços dos serviços, tarifas e fretes, e em ambiente de livre e aberta competição”.

Somente em 18 de junho de 2019, em decorrência do que previa o art. 4º da Lei nº 12.996, de 2014, que estabeleceu prazo de cinco anos para o controle de preços máximos e mínimos no TRIIP, o mercado passou a atuar em regime de liberdade de preços. As transportadoras, porém, continuam, em sua grande maioria, prestando os serviços em caráter precário, usufruindo do regime de autorização especial que lhes fora anteriormente concedido.

Na prática, a situação atual, então, é a de um mercado fechado, sem concorrência, em que os incumbentes, paradoxalmente, têm liberdade de preços. Não há elementos que indiquem que essa situação atenda ao interesse público de forma satisfatória, já que o estabelecimento tanto de monopólios quanto de oligopólios em que haja um líder claro de mercado produz a chamada “perda de peso morto”. Em suma, o monopolista (ou o líder do oligopólio) estabelece um preço acima do que seria possível com competição eficiente, abrindo mão da parte da demanda que poderia pagar esse preço menor, para extrair mais lucro dos consumidores dispostos a desembolsar o preço cobrado.

Com a edição do Decreto nº 10.157, de 4 de dezembro de 2019, que “institui a Política Federal de Estímulo ao Transporte Rodoviário Coletivo Interestadual e Internacional de Passageiros”, esperava-se que, finalmente, fosse possível fazer valer o regime de liberdade tarifária, em ambiente competitivo e sem exclusividade das linhas, nos termos previstos pela Lei nº 12.996, de 2014. Isso, porém, ainda não ocorreu, visto que tanto o Decreto quanto a Lei que o fundamenta são alvos de enormes embates jurídicos, que têm como objetivo claro a permanência do regime de transição que dura até os dias atuais.

E assim, o mercado de TRIIP, passados mais de trinta anos da promulgação da Constituição, ainda vive em uma situação que poderia ser descrita como o “jeitinho brasileiro”, sob o eterno pretexto da necessidade de continuidade dos serviços.

A adequação da operação do TRIIP no regime de autorizações

As autorizações trazem benefícios ao interesse público na grande maioria dos casos, pois se destinam a reduzir, de forma bastante significativa, os custos para entrada no mercado. Ao acabar com critérios de escolha discricionários, já que, sendo ato vinculado, a autorização deve ser dada a todos os que preenchem os critérios estabelecidos em Lei, amplia-se a competição no mercado, que atualmente é inexistente ou ineficaz.

Não vemos boa razão para essa proteção do mercado do TRIIP. O argumento principal é que o regime de competição pode deixar localidades desatendidas. Porém, em primeiro lugar, não há razão econômica para que as empresas incumbentes façam grandes desinvestimentos em linhas superavitárias. Mesmo que isso ocorra pontualmente – por exemplo, para atendimento a uma rota potencialmente mais lucrativa em um mercado próximo – deve-se considerar que, sendo livre a entrada de qualquer empresa, de qualquer porte, em pouco tempo outro operador reestabelecerá o serviço. Não havendo exigências excessivas de frequência mínima e de idade da frota, o investimento necessário é bastante pequeno. Considerando uma região com cidades com distância de 400 km entre elas, um único ônibus consegue distribuir passageiros de um ponto central a, no mínimo, sete outras localidades, com frequência semanal, restando ainda tempo suficiente para sua manutenção.

O transporte de longa distância, como é o caso do transporte interestadual, não tem a característica pendular que marca o transporte semiurbano, em que a disponibilidade de determinados horários é extremamente importante, já que o passageiro não compra a viagem com antecedência. Nos serviços de longa distância, os passageiros simplesmente se programarão para viajar nos dias e horários disponíveis, e o mercado pode se ajustar sem grandes dificuldades.

Portanto, não consideramos que haja prejuízo à qualidade do transporte com as autorizações.

Também não deverá haver prejuízo ao acesso ao transporte pela descontinuidade de rotas de menor demanda. A grande maioria das rotas deve ser superavitária, já que as empresas que as operam estão no mercado há décadas. As rotas que sejam deficitárias, inclusive as que estejam nessa condição após a pandemia da covid-19, podem sofrer ajustes de preços de modo a refletir seu real custo. De fato, com a redução das barreiras, o número de rotas ofertadas deve ser maior do que seria com a regulação anterior nas mesmas condições de mercado, seja porque rotas antes inviáveis passam a fazer sentido econômico, seja porque operadores que antes trabalhavam na clandestinidade podem se regularizar, formando empresas ou cooperativas autorizadas.

A linha de argumentação de redução de acessibilidade parte do pressuposto de que há linhas cronicamente deficitárias no sistema, e que essas linhas são de interesse social. Se esse for o caso, no entanto, devemos no perguntar: será que, de fato, é essencial o acesso frequente de passageiros de pequenas localidades a centros maiores em uma unidade da federação diferente daquela em que residem? Caso a resposta seja positiva, prosseguimos: quem deve pagar por esse acesso? Dificilmente há algum sentido econômico ou mesmo social em fazer com que o passageiro de ônibus da cidade vizinha pague essa conta, que é o que aconteceria em um modelo de operação em linhas superavitárias e deficitárias. Nesse caso, deveria haver a definição de uma rede de interesse social e de uma fonte de recursos pública para subsidiar essa operação.

Outra alegação bastante presente na argumentação contrária ao regime de autorizações é o “problema” do excesso de oferta em rotas superavitárias.

Parte da suposta injustiça causada por essa situação se explicaria pela utilização das receitas obtidas na operação dessas linhas para subsidiar linhas deficitárias, argumento que não deve prosperar, pelo motivo que acabamos de expor.

Outra parte é, simplesmente, a busca de compensação por uma posição de antiguidade no mercado, comportamento observado em diversos setores diante de potenciais mudanças de regras. Contudo, a história demonstra que os reguladores devem evitar encampar esse tipo de ideia, já que, cedo ou tarde, tecnologias disruptivas destroem o excedente de arrecadação proveniente de uma posição inicialmente vantajosa – como aconteceu com a entrada das linhas aéreas de baixo custo, ou com a concorrência dos aplicativos de transporte com os táxis.

Além do mais, onde é permitida a exploração de posições de mercado privilegiadas, seja por antiguidade ou por monopólio natural, o correto é que ao menos parte dos recursos arrecadados seja destinada ao poder público, para reinvestimento em outros setores, mediante o pagamento de outorga. Ainda que o modelo outorgado do TRIIP contivesse linhas deficitárias, se a soma dos lucros econômicos esperados é positiva, o pagamento ao Estado pela continuidade da operação das linhas seria devido, como mostram as concessões de aeroportos em blocos. No entanto, no caso do TRIIP, nada é repassado ao poder público em razão do usufruto do direito de explorar linhas de ônibus antigas, apenas se paga uma taxa de fiscalização à ANTT, de valor irrisório.

Ainda nesse quesito, há uma ressalva importante a fazer: o que se chama muitas vezes de “concorrência predatória” é a entrada de uma empresa mais eficiente no mercado, em relação à incumbente. Essa empresa consegue vender a preços menores porque produz a preços menores, não porque tenha uma estratégia de criação de monopólio. Certamente, é uma situação muito difícil para a incumbente, que precisa cortar custos ou ganhar escala de produção para sobreviver. Esse movimento, porém, é considerado parte das regras do jogo no sistema capitalista, já que se entende que a redução de ineficiências é, em geral, positiva para a sociedade. É verdade que a empresa mais eficiente pode aumentar seus preços após a falência da incumbente original. Porém, em um mercado contestável, há uma margem bastante pequena para esse tipo de comportamento, já que ele atrairia novos entrantes. De toda forma, socialmente, o aumento de excedente do produtor ainda é mais positivo do que a perda por ineficiência, já que pode estimular a inovação e a entrada em outros mercados, fomentando a competição.

Quanto aos questionamentos de lisura nos processos de autorização, embora seja possível que agentes corruptos retardem alguns processos e favoreçam outros, esse é um problema de polícia, que não pode ser resolvido por uma lei ou decreto. Ora, naturalmente, em uma rota que não estivesse sendo operada, não haveria nenhum mal em conceder autorização a quem quer que fosse para que se pudesse testar a viabilidade de uma entrada. O que está em jogo realmente é se o “sistema que funciona hoje” – com uma ou duas empresas, muitas vezes pertencentes ao mesmo grupo atuando em cada mercado – deve ser protegido da entrada de novos autorizados, sob o pretexto de que pode haver algum tipo de falha de governo nessa transição. Acreditamos que os potenciais benefícios da opção por uma menor regulação sejam muito superiores a esses prejuízos, que, de todo modo, sempre podem ser objeto de correção de rumo por parte da Agência Reguladora.

Também é improcedente argumentar que as autorizações prejudicarão o usuário, já que não há qualquer diferença nas regras de gratuidade, de segurança, e de regularidade e constituição de pessoa jurídica entre uma empresa autorizada e outra – e as atuais operadoras devem, de toda forma, se enquadrar no novo regime, já que a situação delas é, como vimos, bastante problemática.

A autorização não passa pelo processo de “concorrência pelo mercado” (licitação) justamente porque ela está livremente disponível para qualquer empresa que atenda aos critérios preestabelecidos e publicados de participação no mercado, e que tenha interesse comercial na operação. Ou seja, a concorrência se dá diretamente no mercado, onde as empresas têm capacidade de demonstrar diretamente suas boas práticas e sua eficiência. Ao contrário, a concorrência pelo mercado privilegia empresas de maior porte, bem estabelecidas e, muitas vezes, com conexões políticas na Agência Reguladora.

Quanto a possíveis alegações de que o modelo de autorização facilitaria conluios ou a concorrência predatória, esses são crimes contra a ordem econômica, tipificados pela Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990 (art 4º, I e II).

Não se deve, em nossa opinião, questionar o novo modelo pelo potencial de produzir atos criminosos, já que existe o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência para lidar justamente com esses casos. E, ainda que fôssemos por esse caminho, é muito mais fácil fazer acordos para divisão de licitação entre poucas empresas do que uma ação coordenada com todas as empresas do mercado para evitar entradas em um ambiente livre.

Neste momento em que a ANTT busca colocar em prática novas regras, acreditamos que o melhor caminho seria observar o comportamento do mercado e promover as correções necessárias – seja em nível infralegal ou legal – com base nas falhas que surgirem. Alterar mais uma vez o marco regulatório quando se está prestes a resolver o problema do mercado terminará por estender a situação transitória, o que contribuirá para perpetuar o privilégio das empresas incumbentes, que exploram os serviços sem nem mesmo oferecer qualquer contrapartida à União.

Conclusão

O setor de transporte rodoviário internacional e interestadual de passageiros vem operando por mais de vinte e cinco anos sem licitação, por meio de autorizações precárias.

A configuração atual do mercado é péssima para o interesse público e extremamente benéfica para os operadores incumbentes, que se encontram, neste momento, no melhor de dois mundos: possuem ao mesmo tempo a liberdade de preços de um sistema competitivo e a proteção de mercado de um sistema concedido.

O que nos parece o mais adequado à realidade tanto do mercado quanto da capacidade regulatória da ANTT é a efetivação, na prática, do modelo de autorizações proposto desde 2014, pois nada indica que o resultado de um eventual esforço de realização de alguma forma de processo seletivo para entrada no mercado será diferente do ocorrido na última tentativa de licitação das linhas, em que foi travada uma guerra na Justiça para procrastinar o andamento da licitação. Mantido o comportamento histórico dos agentes do setor, a situação atual de privilégio dos operadores incumbentes prosseguirá por mais alguns anos, quiçá décadas.

Embora tenha havido tentativas de regularizar a situação das empresas que se encontram no mercado, ao que tudo indica, muitas dessas próprias empresas se dispõem a lutar para que a situação atual permaneça, adotando o caminho ilustrado na obra O Leopardo, de Giuseppi Tomasi de Lampedusa: “se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”.

Liliane Galvão e Rodrigo Novaes são consultores do Senado Federal.

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