reforma tributária – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Wed, 31 Aug 2022 13:16:37 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Limitações ao Ajuste Fiscal pelo Lado da Receita https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3674&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=limitacoes-ao-ajuste-fiscal-pelo-lado-da-receita Wed, 31 Aug 2022 13:16:37 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3674 Limitações ao Ajuste Fiscal
pelo Lado da Receita
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Por Carlos Alexandre A. Rocha*

O teto de gastos integra o Novo Regime Fiscal (NRF), introduzido pela Emenda Constitucional 95/2016. Com duração prevista até 2036, o NRF prevê limites máximos para as despesas primárias de cada um dos Poderes e órgãos autônomos da União (a Defensoria Pública, o Executivo e as subdivisões do Judiciário, do Ministério Público e do Legislativo). Os tetos individualizados têm como base os montantes pagos em 2017 corrigidos, anualmente, pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

O NRF tem caráter anticíclico. Acumulam-se recursos (ou diminui-se a pressão por novos passivos) durante a fase favorável do ciclo econômico e preservam-se os gastos, em termos reais, durante a fase desfavorável.O seu pleno funcionamento permitiria que o atual déficit primário estrutural fosse substituído, futuramente, por um superávit capaz de estabilizar ou mesmo reduzir a razão entre a dívida pública e o produto interno bruto (PIB).

Trata-se, portanto, de uma estratégia de ajuste fiscal diferida ao longo do tempo centrada na contenção dos gastos primários. Ou seja, o teto de gastos precisa desempenhar, para que seja efetivo, o papel de uma poupança precaucional. Na ausência da poupança, porém, o teto perde a sua razão de ser. É o que apontam as sucessivas flexibilizações das suas regras aprovadas no último triênio (Emendas Constitucionais 102/2019, 109, 113 e 114/2021 e 123/2022), além de medidas similares implementadas ou tentadas pelo Governo Federal no mesmo período, como apontado pela Instituição Fiscal Independente (IFI) em seu relatório “Considerações sobre o Teto de Gastos da União”.[2]

Em face de tantas alterações, vários especialistas argumentam que o novo regime perdeu a capacidade de balizar as expectativas dos agentes econômicos sobre o comportamento do resultado primário e da dívida do Governo Federal nos próximos exercícios. O ex-ministro Delfim Netto, p. ex., sustentou, ainda em outubro de 2021, que o teto de gastos é um artefato de comprometimento com uma trajetória futura das finanças públicas federais. O seu esvaziamento implicava perder a baliza para avaliar a (in)sustentabilidade da dívida pública.[3]

Mais recentemente, Cecília Machado, professora da FGV-RJ, argumentou que o ativismo fiscal via emendas à Constituição representava o fim da possibilidade de suavizar e diferir temporalmente novos ajustes fiscais que se façam necessários.[4]

Samuel Pessôa, pesquisador da FGV-RJ, por sua vez, alerta que a flexibilização do teto dos gastos precisa ser precedida da construção de uma situação fiscal estruturalmente solvente. O caminho para isso, na falta de um ajuste pelo lado da despesa, seria convencer a sociedade a entregar mais imposto ao Estado.[5]

Com efeito,em termos de ajuste fiscal, observou-se, no passado recente, uma clara preferência por cortes nas despesas futuras, como demonstrado pela reforma da previdência,[6]e por uma corrosão inflacionária do valor nominal das obrigações do setor público. A contenção estrutural dos gastos públicos correntes foi evitada de forma reiterada. Tomando-se isso como um dado da realidade brasileira, é cabível o entendimento de que a reversão do alto nível de endividamento do Governo Federal passa por uma nova elevação da carga tributária, como antecipado por Pessôa.

No entanto, mesmo essa opção está longe de ser trivial, para além do desafio político inerente à construção de um consenso a esse respeito. Um aspecto que não tem recebido, s.m.j., a devida atenção é que eventual aumento na arrecadação precisaria proporcionar recursos líquidos de transferências e vinculações. De outra forma, o Governo Federal continuaria sem contar com os meios necessários para o gerenciamento da sua dívida.O quadro a seguir resume os usos predefinidos de um aumento de R$1.000,00 nos principais tributos ou cestas de receitas (contribuições sociais, impostos em geral e receita corrente líquida – RCL):

 Usos Predefinidos para uma Arrecadação de R$ 1.000,00,
por Tributo ou Cesta de Receitas

 

Vinculação Valor
Compartilhamento com os entes subnacionais1
Imposto sobre produtos industrializados (IPI) 600,00
Imposto sobre a renda (IR) 500,00
Contribuição de intervenção no domínio econômico (CIDE) 290,00
Com a revogação do NRF
Vinculação da receita de impostos à educação 180,00
Vinculação da RCL à saúde 150,00
Vinculação da RCL às emendas parlamentares individuais e de bancada 22,00
Na vigência da Desvinculação de Receitas da União (DRU)2
Vinculação à seguridade social das contribuições sociais 700,00
Vinculação ao objeto da CIDE (após o rateio federativo)
497,00
Fonte: elaboração própria.

Notas:

(1)inclui os programas de financiamento ao setor produtivo das regiões CO, N e NE;

(2)duração até 31/12/2023, conforme a Emenda Constitucional 93/2016.

O acréscimo de R$ 1.000,00, para que represente um ganho para as políticas setoriais favorecidas em relação à regra de correção pelo IPCA, contida no NRF, deve ser entendido como uma elevação da receita em termos reais (ou seja, descontada a variação do nível de preços). No quadro, cada linha representa um uso predefinido para o incremento ora tratado, por tributo ou cesta de receitas– de modo mais simples, dado um aumento real de R$ 1.000,00 na receita x, cada linha aponta quanto caberia ao uso y. Exceto no que tange à CIDE, cada vinculação é tratada isoladamente, sem efeitos cumulativos.

Ressalte-se, todavia, que as superposições entre as vinculações, como na CIDE, são recorrentes. No IR, p. ex., metade do montante arrecadado é repassado inicialmente para os entes subnacionais e os respectivos setores produtivos por meio dos Fundos de Participação dos Estados e do Distrito (FPE) e dos Municípios (FPM) e dos Fundos Constitucionais de Financiamento do Centro-Oeste (FCO), do Norte (FNO) e do Nordeste (FNE). O restante compõe a cesta geral de impostos e a RCL. Caso o NRF seja extinto, as vinculações em prol da educação, da saúde e das emendas parlamentares individuais e de bancada serão restabelecidas. Com isso, R$ 90,00 irão para a primeira, R$ 75,00 para a segunda e R$ 11,00 para as últimas. Sobrariam R$ 324,00 para usos diversos.

Um novo imposto, a seu tempo, repassaria 20% para os governos estaduais. Com o fim do NRF, o restante sofreria a incidência das três vinculações recém-discriminadas. Do total de R$ 1.000,00 arrecadados, sobrariam R$ 518,40 – eficiência de 51,8% na geração de receita desimpedida.

Eventual recriação da contribuição provisória sobre a movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira (CPMF) teria desempenho semelhante ao do IR, mas dependeria da contínua renovação da DRU. Trata-se de tributo vinculado à seguridade social, mas, com a DRU, 30% da arrecadação poderia ser usada livremente. Ou seja, cada R$ 1.000,00 arrecadado proporcionaria apenas R$ 300,00 para, p. ex., a gestão da dívida.

No entanto, na presença de déficit primário no orçamento da seguridade social, a recriação da CPMF também permitiria o uso do artifício conhecido como “substituição de fontes”. Atualmente, as receitas específicas da seguridade social são insuficientes para custear as despesas correspondentes. Com isso, o Tesouro Nacional emprega recursos ordinários na cobertura do déficit. No exercício em curso, p. ex., estima-se que a diferença entre despesas e receitas da seguridade alcançará R$ 170 bilhões[7](contra um déficit de R$ 292 bilhões, em 2017)[8]. São recursos que poderiam ser liberados para outros usos se a CPMF retornasse.[9]Isso, porém, requereria a persistência do quadro deficitário na ausência da nova contribuição, o que é incerto e até mesmo indesejável em face da recém-aprovada reforma da previdência.Não constitui, por essa razão, uma solução estrutural para a demanda por recursos livres.

Essa miríade de vinculações dificulta não só o gerenciamento do Orçamento Geral da União (OGU), mas também a formatação de qualquer programa de ajuste fiscal. Descartando-se o artifício da substituição de fontes e assumindo-se, à luz das competências e obrigações tributárias do Governo Federal, que a razão entre os seus potenciais de arrecadação livre e de arrecadação total seja igual a 50% (percentual similar ao obtido por um novo imposto),um programa que exigisse uma elevação da receita livre da ordem de R$ 226 bilhões (ou 2,6% do PIB de 2021)[10]requereria que a receita total aumentasse cerca de R$ 452 bilhões (ou 5,2% do PIB de 2021) – uma meta desafiadora mesmo diferida por um prazo longo.

O Brasil é um país complexo e carente, no qual os pleitos da sociedade se multiplicam quase ao infinito. Conciliar meios e fins é o desafio deste, do próximo e de qualquer governo. Este texto assinala que escolhas precisam ser feitas. Se a estratégia de conter os gastos públicos não foi bem-sucedida, será preciso rediscutir a contribuição da sociedade para o funcionamento do Estado. Mesmo isso, contudo, não está isento de problemas – políticos, naturalmente, mas também operacionais, o que é menos evidente. A presente análise permite entender por que um tributo como a CPMF é sempre lembrado quando se buscam alternativas para um ajuste fiscal rápido. A perspectiva de uma “troca de fontes” instantânea é por bastante sedutora. Trocam-se benefícios presentes por custos futuros, mantendo a economia em um nível de baixa eficiência. Resistiremos?

 

[1] Adaptado do documento “Teto de Gastos: Problemas e Alternativas”, disponível em:https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td311.

[2] Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/575583.

[3] Videhttps://www1.folha.uol.com.br/colunas/antoniodelfim/2021/10/sem-teto-a-casa-cai.shtml.

[4] Videhttps://www1.folha.uol.com.br/colunas/cecilia-machado/2022/07/sem-mais-promessas.shtml.

[5] Videhttps://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2022/06/a-esquerda-e-o-teto-de-gastos.shtml.

[6]Emenda Constitucional 103/2019.

[7] Videhttps://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/raio-x-do-orcamento/2022/raio-x-do-orcamento-2022-ploa.

[8] Videhttps://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/planejamento-e-orcamento/orcamento/publicaoes-sobre-orcamento/informacoes-orcamentarias/arquivos/estatisticas-fiscais/2-resultado-primario-da-seguridade-social/2-resultado-da-seguridade-anual.xlsx/view.

[9] A análise dos problemas econômicos introduzidos pela CPMF extrapola os limites do presente trabalho. Discussão sobre esse tema consta do documento “Os Impactos Econômicos da CPMF: Teoria e Evidência”, disponível em: https://www.bcb.gov.br/pec/wps/port/wps21.pdf.

[10] Conforme simulação contida no documento “Evolução das Contas da União: Ajuste, Desajuste, Pandemia e Desafios”, disponível em: https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td304/view.

 

* Carlos Alexandre A. Rocha é consultor legislativo do Senado Federal e especialista em finanças públicas. As opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade do autor.

 

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Uma boa reforma tributária ficou mais distante https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3452&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=uma-boa-reforma-tributaria-ficou-mais-distante https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3452#comments Mon, 31 May 2021 15:07:41 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3452 Uma boa reforma tributária ficou mais distante

 

Presidente da Câmara atuou como o juiz que apita o fim do jogo no meio da partida…

 

Por Maílson da Nóbrega*

O término da Comissão Especial da PEC 45 na Câmara dos Deputados, decidida por seu presidente, Arthur Lira, foi um duro golpe nas esperanças de dotar o País de um moderno sistema de tributação do consumo. Havia fundadas expectativas de aprovação daquela proposta de emenda à Constituição, que previa a criação de um Imposto sobre o Valor Agregado (IVA), nos moldes do que há de melhor entre os mais de 180 países que adotam o método.

A PEC 45, baseada em estudos do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), poderia superar as dificuldades enfrentadas por iniciativas semelhantes nos últimos 20 anos. De um lado, estribava-se no melhor dos projetos, cujo texto se beneficiou da experiência acadêmica, internacional e de governo de seus autores. De outro, obteve adesão unânime dos Estados, que antes se opunham a ideias de reforma da tributação do consumo para não perderem o comando do ICMS, usado para atrair investimentos via incentivos fiscais.

Houve amplo apoio de formadores de opinião e da imprensa à PEC 45. Ela sofreu, é certo, críticas de tributaristas apegados excessivamente a aspectos formais e à equivocada ideia de prejuízo à autonomia de estados e municípios. Ao mesmo tempo, estudos indicaram que a reforma contribuiria para elevar em 20% a taxa de crescimento do produto interno bruto (PIB). Estimular-se-ia o abandono da guerra fiscal e a adoção de novas formas de atrair investimentos, na linha de práticas bem-sucedidas em outros países.

O presidente da Câmara preferiu aliar-se à estratégia do Ministério da Economia, que nunca demonstrou simpatia pela PEC 45. Inventou-se a ideia de reforma “fatiada”, que supostamente facilitaria a aprovação. O sistema tributário reclama mudanças nas suas demais partes: no Imposto de Renda, para restaurar a progressividade; no Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), para modernizá-lo (seu conceito nasceu há 60 anos); na tributação de heranças e doações, para torná-la progressiva. Pode-se falar em etapas, e não em “fatiamento”.

O caótico sistema tributário é hoje a principal fonte de ineficiências da economia. Inibe ganhos de produtividade. Freia a expansão do PIB e a geração de emprego e renda. A essência do desastre é a tributação do consumo e suas cinco confusas incidências: IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS. A mais irracional de todas é o ICMS, impregnado de incontáveis regimes e inúmeras alíquotas.

Esperava-se que o governo federal se envolvesse na tramitação da PEC 45, que criava o Imposto sobre Bens e Serviços e substituía as cinco incidências, incluído o ICMS. A liderança da União e sua capacidade de coordenação podiam melhorar seu conteúdo, fortalecendo as condições para sua aprovação. Optou-se, todavia, por uma solução tímida e insuficiente – a fusão do PIS e da Cofins – que pode duplicar a tributação das telecomunicações e enfrentar a oposição das áreas de serviços e de venda de livros. Parte dessa resistência também existe na PEC 45, mas, já que haveria consumo de capital político, o razoável seria apoiar a PEC 45, e não buscar solução pouco ambiciosa.

Para piorar, o Ministério da Economia cogita de recriar a CPMF com outro nome, associada à elevação do emprego. A ideia incorre em dois erros. Primeiro, reintroduz incidência tributária em cascata, de efeitos negativos na intermediação financeira e na produtividade. Em segundo lugar, a literatura indica que medidas como essa aumentam a renda para os trabalhadores, e não postos de trabalho. Adicionalmente, a nossa experiência prova que tributos fáceis de arrecadar, como a CPMF, terminam sendo a válvula para momentos de dificuldades fiscais. A correspondente elevação da alíquota tende a ser frequente, elevando os danos à economia e à sociedade.

O presidente da Câmara atuou como o juiz de futebol que apita o fim do jogo no meio da partida e pede a bola para se juntar a outro time, de qualidade inferior. Com a opção pelo adversário, dificilmente ganhará o campeonato. Pior, a decisão ocorreu quando o relatório era lido pelo deputado Aguinaldo Ribeiro, relator da PEC 45. Ele havia sido instado a tanto pelo próprio Arthur Lira. Inacreditável. O deputado, que se dedicara por quase dois anos à missão, produziu um bom documento.

O texto contém saídas para contemplar distintas demandas, incluídas as do setor de serviços. Cria um oportuno imposto seletivo para lidar com externalidades como as decorrentes da poluição e do consumo de fumo e de bebidas alcoólicas. O próprio governo ganharia tempo para discutir a constituição do Fundo de Desenvolvimento Regional, demandado pelos Estados para manter a capacidade de atrair investimentos, sem os defeitos da guerra fiscal.

A extinta comissão, não prevista em regimento, pretende continuar seu trabalho, acolher emendas ao relatório e apresentar a versão final em breve. O exame da matéria pode continuar no Senado, mas com menos força. Além disso, o timing da reforma foi perdido. Agora é torcer para que a PEC 45 renasça no próximo governo. O custo do adiamento será enorme. 

 

*Maílson da Nóbrega é sócio da Tendências Consultoria, foi ministro da Fazenda  e é membro do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial

Artigo publicado em O Estado de S. Paulo dia 30 de maio de 2021.

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O que é guerra fiscal? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=665&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-que-e-guerra-fiscal https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=665#comments Thu, 28 Jul 2011 15:50:37 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=665 Alguém já disse que toda unanimidade é burra. Não sei se essa regra se aplica ao consenso brasileiro a favor da reforma tributária. Digo isso porque considero a reforma tributária uma falsa unanimidade. Todos a desejam, é verdade – empresários, trabalhadores, consumidores, estados, municípios e – pasmem! – até a União, que tem sido a grande beneficiária do nosso caos fiscal. Mas cada um a quer por razões diferentes e com objetivos diferentes. Portanto, cada grupo almeja uma reforma tributária diferente, incompatível com a reforma tributária pretendida pelos demais, e unanimidade é o que menos há nesse tema.

Para começar, empresários, trabalhadores e consumidores querem uma reforma tributária para pagar menos tributos; já municípios, estados e a União a querem para combater a sonegação e a guerra fiscal – isto é, para elevar a arrecadação. Fato interessante: a União quer uma reforma para elevar a arrecadação dos Estados, já que a sua tem sido fonte inesgotável de alegrias. Tanto que o Governo Federal acha até melhor não mexer em seus tributos – nem para criar novos (como o imposto sobre grandes fortunas – IGF), nem para ressuscitar os falecidos (como a contribuição sobre movimentação financeira – CPMF).

Uma reforma tributária pode mirar muitos objetivos: justiça fiscal, eficiência econômica, simplificação tributária, repartição de recursos entre os entes da Federação, desoneração de exportações, etc. Mas no Brasil – em que pesem certas tentativas abafadas de tempos em tempos – a reforma tributária virou um samba de uma nota só: seu único objetivo tem sido evitar a chamada “guerra fiscal” entre os estados.

Infrutífero objetivo, aliás; malsucedida reforma que nunca aconteceu.

A abertura da economia, no início da década de 1990, e a estabilização de 1994 criaram um novo ambiente de negócios no país e começaram a atrair capitais, estimular a instalação de novas empresas e a ampliação das existentes. Percebendo a oportunidade, os estados da Federação (inclusive o Distrito Federal) passaram a disputar os novos investimentos. Instituíram benefícios fiscais variados, muitos dos quais com base no ICMS, para atrair as empresas ­– especialmente as industriais, mas também comerciais (atacadistas, por exemplo) e de alguns serviços.

Após a estabilização monetária, o equilíbrio fiscal e a sustentabilidade da dívida pública passaram à frente na agenda política. Por isso, as propostas de reforma tributária convergiram, pouco a pouco, na direção do combate à guerra fiscal, que ameaçava os orçamentos estaduais e poderia tornar-se um calcanhar de aquiles da estabilização. Pelo menos era o que argumentavam os defensores da reforma: era preciso manter a arrecadação dos estados, para garantir que as dívidas estaduais não crescessem.

Desde então, testemunhamos algumas variações sobre o mesmo tema. Os demais objetivos da reforma ficaram, quando muito, para segundo plano. Mesmo o capítulo mais recente dessa novela – a redução das alíquotas interestaduais do imposto (que explicarei em seguida) – não rompe essa tradição.

Para perceber a dimensão do problema, é importante notar que o ICMS é a principal fonte de receita própria para a ampla maioria dos estados, em especial para os mais industrializados e para aqueles que têm maior potencial de industrialização – que são os protagonistas da guerra fiscal.

A reforma tributária não acabaria com a guerra fiscal, mas enfraqueceria substancialmente o seu principal instrumento, que é o incentivo concedido com base no ICMS. Para entender melhor a questão e as soluções propostas, é importante entender, antes, como funciona o ICMS. Como o ICMS é um imposto bastante complexo, vou simplificar a exposição, atendo-me ao que interessa e ignorando algumas tecnicidades do tema.

O ICMS incide sobre a circulação de mercadorias entre diferentes estabelecimentos e na venda a consumidor final, e também sobre a prestação de alguns serviços de comunicação e transportes. É um imposto estadual, mas também incide sobre a circulação de mercadorias e serviços entre pessoas em estados diferentes da Federação. Até 1996, incidia também sobre algumas operações de exportação.

Para avaliar o poder que os estados detêm na guerra fiscal, é preciso saber que o ICMS poderia obedecer a um de três regimes: o regime de origem, o regime de destino e o regime misto.

No regime de origem, uma transação realizada entre um comprador de um estado e um vendedor de outro geraria receita apenas para o estado onde se encontra o vendedor (ou seja, a operação seria tributada apenas pelo estado de origem da mercadoria ou serviço).

No regime de destino, em contraste, essa transação geraria receita apenas para o estado do comprador (ou estado de destino da mercadoria ou serviço).

No regime misto, os estados partilhariam a receita do imposto segundo alguma regra pré-definida.

No Brasil, adotamos o regime misto. Para definir a partilha entre os estados, criamos duas categorias de alíquotas de ICMS: as alíquotas internas e as alíquotas interestaduais. Digo que são duas categorias de alíquotas porque há duas alíquotas interestaduais e inúmeras alíquotas internas. As alíquotas interestaduais são definidas por resolução do Senado Federal, e as internas, pela legislação tributária de cada estado.

A alíquota interna incide sobre todas as operações ocorridas dentro do estado. Em geral, é de 17%, embora haja casos em que passe de 20%.

A alíquota interestadual somente incide sobre as transações ocorridas entre contribuintes de estados diferentes. Nesse caso, o estado de origem recebe o equivalente à incidência da alíquota interestadual sobre o valor da transação, e o estado de destino receberá o equivalente à incidência da diferença entre a alíquota interna prevista na sua legislação de ICMS e a alíquota interestadual. Assim, o imposto é partilhado pelos dois entes, sem que o contribuinte pague mais por isso.

Um exemplo ajudará a visualizar melhor. Suponhamos que uma empresa industrial de Minas Gerais venda uma mercadoria para uma empresa localizada no Paraná, no valor total de R$ 10 mil. Nesse caso, é necessário saber qual é a alíquota interna do Paraná. Digamos que seja de 17%. Então o imposto total devido na operação é de 17% sobre R$ 10 mil, ou R$ 1.700,00.

Como a alíquota interestadual, nesse caso, é de 12%, caberá à Fazenda de Minas Gerais a quantia de 12% sobre R$ 10 mil, ou R$ 1.200,00. O Tesouro do Paraná arrecadará o restante, ou R$ 500,00, equivalente à aplicação da diferença de alíquotas (17% – 12% = 5%) sobre a base de cálculo de R$ 10 mil. Note que, somando as duas parcelas, obtemos os mesmos R$ 1.700,00 que seriam arrecadados pelo Estado do Paraná, se a mercadoria adquirida pela empresa paranaense tivesse sido fabricada naquele estado, em vez de sê-lo em Minas, e não ocorresse partilha do imposto.

No caso das alíquotas interestaduais, há apenas duas. A alíquota geral, de 12%, incide sobre quase todas as operações interestaduais. A alíquota reduzida, de 7%, incide apenas nas operações em que o estado de origem esteja nas Regiões Sul e Sudeste, exceto o estado do Espírito Santo, e o estado de destino esteja nas Regiões Norte, Nordeste ou Centro-Oeste ou no estado do Espírito Santo.

Então, se a empresa de Minas Gerais do exemplo acima vender mercadorias no valor de R$ 10 mil para uma empresa situada na Paraíba, e supondo que a alíquota interna da Paraíba também seja de 17%, o total do imposto pago sobre essa operação será o mesmo, mas a repartição entre os estados será diferente. Minas Gerais ficará com o valor relativo à alíquota interestadual reduzida de 7%, ou R$ 700, enquanto a Paraíba ficará com os 10% restantes, ou R$ 1.000,00.

Essa é uma forma de assegurar aos estados do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste uma participação maior nas receitas de ICMS. Mas também lhes confere uma vantagem importante sobre os demais estados na guerra fiscal, pois quem tem mais, também pode conceder mais incentivos fiscais.

A alíquota interestadual desempenha papel estratégico na guerra fiscal, embora os incentivos tipicamente sejam vinculados ao valor total do ICMS devido. É a alíquota interestadual que permite ao estado atrair empresas, oferecendo-lhes vantagens que superam o seu sacrifício de receita. É uma mágica interessante, e o segredo reside no fato de que, no sistema brasileiro, os estados têm aliviado a carga do imposto que seria cobrado nas operações de venda a outras unidades da Federação.

Assim, se uma empresa da Paraíba vender uma mercadoria para outra de Minas Gerais, aplica-se a alíquota interestadual de 12%. Mantendo o exemplo de que o produto custa R$ 10 mil, então a Paraíba pode conceder incentivos sobre o tributo devido de R$ 1.200,00 a uma empresa que se instale no seu território para produzir e vender para cidades do Sul e do Sudeste. Já o Estado de Minas, que tem direito a uma alíquota de 7% para vender para Paraíba, só poderá dar incentivos fiscais de R$ 700, em uma transação similar, em que se produza em Minas para vender para a Paraíba e outros estados do Nordeste e do Norte.

O objetivo do estado que concede um benefício para reduzir de fato a alíquota interestadual é atrair uma empresa que ainda não opera em seu território. Logo, ele não arrecada nem um centavo a título de alíquota interestadual com as operações dessa empresa e, a rigor, pouco perderia ao oferecer uma isenção a ela. Quem perderia mais é o estado onde essa empresa está localizada, que deixaria de arrecadar o imposto sobre as vendas dela aos demais estados, caso a empresa se mudasse para o estado que oferece o incentivo.

O estado que concede o incentivo ganha mais: ao atrair a empresa, ele provavelmente atrairia também alguns de seus fornecedores, ou fortaleceria os fornecedores que já estão instalados em seu território, e criaria mais empregos. Isso tende a gerar um aumento de receita tributária que pode contrabalançar a perda do ICMS devido nas operações internas. Logo, a conta fecha positivamente para o estado que oferece o incentivo fiscal.

Para evitar essas disputas possivelmente danosas aos orçamentos estaduais, a Constituição proibiu a concessão unilateral de incentivos com o ICMS, forçando a atuação cooperativa dos estados, na forma de lei complementar. Coerentemente, a Lei Complementar (LC) 24/75 proíbe expressamente a concessão de incentivos com o ICMS sem que haja aprovação unânime dos estados.

Ora, a disputa de sede e localização de empresas entre estados concorrentes tem potencial para gerar conflitos intermináveis e muito pouca concórdia. De fato, as leis estaduais que criam incentivos fiscais com o ICMS têm sido aprovadas nas Assembleias Legislativas e aplicadas ao arrepio da LC 24/75, e passando por cima da autoridade do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), que é o fórum para apreciar a aprovar as concessões de incentivos fiscais com o ICMS.

Quero que o leitor perceba que o vigor da guerra fiscal deve-se à existência da alíquota interestadual, que é típica do regime misto. Se o ICMS fosse integralmente ou preponderantemente de destino, a guerra fiscal seria muito enfraquecida, e não feriria (ou feriria muito pouco) as finanças dos estados.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade de diversas leis estaduais que concediam incentivos fiscais com o ICMS, por inobservância da LC 24/75. Essa decisão esclarece as regras para concessões de incentivos fiscais e contribui para que cada estado saiba o que tem a ganhar e a perder em uma eventual reforma tributária. Com mais segurança jurídica, a negociação tende a ficar mais clara. No entanto, há ainda uma ação a ser julgada, que tem o potencial de inverter o quadro atual. A regra de aprovação de incentivos fiscais no Confaz, estabelecida pela LC 24/75, exige unanimidade dos estados presentes. A necessidade desse consenso está sendo questionada, também na Corte Suprema.

No início de 2011, o Poder Executivo Federal anunciou que estuda proposta de reforma tributária baseada na redução das alíquotas interestaduais do ICMS a 2%. Essa proposta, muito mais simples do que a unificação das alíquotas do ICMS, encontrará, decerto, alguns inimigos. Os estados mais industrializados, que derivam forte receita das operações interestaduais, dificilmente terão interesse em aprovar uma iniciativa que os prive dessa fonte de recursos. (Além disso, essa proposta teria outras consequências, relevantes para os estados exportadores.)

Considerando as diversas propostas apresentadas, creio que a mais atraente, sob diversos aspectos, é a criação de um imposto sobre o valor adicionado (IVA), em substituição à legião de tributos incidentes sobre o valor adicionado, a receita ou o faturamento (ICMS, IPI, PIS, Cofins, ISS).

No entanto, muitas das propostas até hoje apresentadas trazem no pacote um aspecto desnecessário e que pode atrapalhar a aprovação da reforma. Falo da unificação das alíquotas internas, que passariam a ser idênticas, para cada produto ou serviço, em todo o território nacional. Embora haja previsão de alguma flexibilidade, essa unificação limitaria substancialmente a possibilidade de praticar alíquotas mais baixas, criando um obstáculo à guerra fiscal.

Por outro lado, essa unificação é arriscada, pois deixaria os estados à mercê de decisões nacionais que não necessariamente atenderiam suas necessidades. Essa heteronomia fiscal seria ainda mais perigosa porque a maior parte dos gastos públicos tem caráter obrigatório, e muitas despesas são inflexíveis. Apesar de abrir espaço para sensíveis reduções de alíquotas (em especial as relativas a energia elétrica, combustíveis e telecomunicações, atualmente muito altas), a criação de uma receita igualmente inflexível poderia desorganizar a administração financeira de alguns estados. Por isso mesmo, geraria pressão política para elevar, mesmo quando dispensável, as alíquotas do ICMS dos demais estados, criando uma tendência ao aumento da carga tributária.

Mas, além do combate à guerra fiscal, para que é necessária uma reforma tributária?

Certamente não para pagar menos tributos. Para isso, bastaria reduzir alíquotas, o que independe de uma reforma tributária. Para simplificar o sistema tributário, entretanto, seria extremamente útil, e talvez seja esse o maior ganho potencial de uma reforma tributária hoje no Brasil, considerando o emaranhado de leis, portarias, regras e exceções e a sobreposição de tributos de natureza semelhante, para desespero do contribuinte. E também para conferir maior neutralidade ao sistema e impedir que induza ineficiências econômicas. A cumulatividade (que por si só vale outro artigo), foi reduzida para as grandes empresas, após a reforma da legislação do PIS e da Cofins, mas se expandiu para as pequenas e microempresas, que não foram abrangidas por essas mudanças e que, ao aderirem ao Simples, ingressaram em um sistema cumulativo por natureza.

Lamentavelmente, a convergência da reforma para uma e apenas uma de suas vertentes empobreceu a discussão e limitou os objetivos a serem alcançados. Como nem o caminho escolhido rendeu frutos, restou um cansaço do tema e uma sensação de impotência, reflexos do malogro sucessivo de inúmeras tentativas.

Já estamos debatendo o tema há mais de 20 anos. Não há necessidade de ideias inovadoras ou mirabolantes. Sabemos onde aperta o sapato tributário e quais soluções simplesmente não vingarão. E mesmo que não o soubéssemos por nós mesmos, bastaria inspecionar a experiência internacional – à qual, país da jabuticaba que somos, temos tanta aversão.

O impasse da reforma tributária é um vergonhoso atraso na agenda política do país. Se não desatarmos o nó das negociações, a reforma, à moda do solilóquio de Hamlet, jamais sairá do to be or not to be. Ou, se sair, será apenas para avançar algumas linhas mais, até o melancólico to die, to sleep, no more.

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