Privatização – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Thu, 05 Mar 2020 20:25:32 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 Economia da Privatização https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3228&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=economia-da-privatizacao Thu, 21 Nov 2019 19:56:28 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3228 César Mattos é ex-Secretário de Advocacia da Concorrência e Competitividade do Ministério da Economia.

 

“Smith observou que não há personagens mais distantes do que o soberano e o empreendedor no sentido que as pessoas tendem a ser mais generosas com os recursos de terceiros do que com os seus próprios, e de que a administração pública poderia levar ao uso ineficiente dos ativos dado que os servidores públicos não têm um interesse direto em seu desempenho econômico. De acordo com Smith (1776), a venda de propriedade pública (a qual naquele tempo era a própria terra) também tinha um outro efeito: as receitas podem ser alocadas para a redução da dívida pública; e a redução das despesas com juros alivia as finanças públicas em maior medida que a propriedade da terra. Com a privatização, portanto, a eficiência é ampliada. … Como frequentemente acontece, intuições simples possuem um toque de verdade … após vinte anos de experiência, a intuição de Adam Smith tem sido amplamente confirmada. Graças à transferência de direitos de propriedade, as companhias privatizadas têm melhorado amplamente sua eficiência. E os países que têm privatizado, têm reduzido suas dívidas e déficits públicos”.

 

Bortolotti, B. e Siniscalco, D. The Challenges of Privatization: An International Analysis, 2004.

 

  1. I) Introdução

 

A agenda de privatização voltou com carga total ao Brasil após ter “hibernado” desde o final do governo FHC. Enquanto houve alguma atividade de concessão de infraestruturas de rodovias, aeroportos, setor elétrico e portos nos governos Lula e Dilma[1], a venda permanente de ativos do Estado ao setor privado, como foram os casos dos setores siderúrgico, mineral (CVRD), fertilizantes, aeronáutico, entre outros, foi simplesmente interrompida.

 

O Governo Temer enviou ao Congresso o Projeto de Lei nº 9.463, de 2018, que trata da autorização para a alienação do controle da Eletrobrás, mas que acabou não indo adiante. Também criou a Secretaria do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), que contou com ambicioso programa de desestatizações.

Conforme o Boletim das Empresas Estatais Federais do segundo trimestre de 2019, havia um total de 133 empresas estatais federais. No governo Bolsonaro, o programa de privatização ganhou grande impulso, tendo já avançado na alienação da BR distribuidora, dois gasodutos e planejado a alienação de cerca de 50% de seu parque de refino. Planeja-se ainda seguir com a privatização da Eletrobrás, Telebrás, Correios, dentre outras.

 

Neste artigo resgatamos as bases do debate econômico sobre por que privatizar.

 

  1. II) Privatização e Desenvolvimento

 

Segundo Bortolotti e Siniscalco (2004), “a privatização constitui um dos principais eventos da história econômica e financeira mundial do período pós-guerra”.

 

De fato, a racionalidade econômica para a privatização em geral já se encontra bem estabelecida na literatura econômica[2]. Não à toa, foi uma política muito implementada nos países desenvolvidos, que, conforme a resenha de Megginson e Netter (2001), fez com que o peso das empresas estatais se reduzisse pela metade. Já em países menos desenvolvidos, o progresso da privatização ainda apresentava maior dificuldade no início do século XXI.

 

Do ponto de vista teórico, como destacado no já citado Bortolotti e Siniscalco (2004), é conhecido o “teorema da irrelevância da privatização”, que define em quais condições uma empresa ser estatal ou privada não faz diferença. No entanto, os autores destacam que o teorema da irrelevância se baseia em uma hipótese totalmente irrealista: contratos contingentes completos de longo prazo entre o gerente da empresa (estatal ou privada) e o regulador podem ser desenhados e ter o seu enforcement garantido.

 

Como há investimentos específicos afundados que não são contratáveis, tal como a quantidade de esforço empregada pelo gerente para reestruturar uma firma e reorganizar a produção, o volume de investimentos efetuado tende a ser excessivamente baixo, gerando a ineficiência destacada por Adam Smith na ementa. Nesse contexto de “contratos incompletos”, a propriedade da empresa (estatal ou privada) altera dramaticamente o seu desempenho, explicando “porque a privatização importa, i.e. porque as estatais se comportam de forma diferente das firmas privatizadas”.

 

O primeiro grande programa de privatização de sucesso no mundo se iniciou no Reino Unido, sob o governo conservador de Margaret Thatcher em 1979. Curiosamente, a privatização não chegou a ser um tema proeminente da campanha que levou os conservadores ao poder e foi recebida com muitas críticas pela sociedade britânica. Os trabalhistas na oposição chegaram a prometer retornar as empresas à condição de estatais tão logo retornassem ao poder. A privatização mais marcante do Reino Unido foi a da British Telecom em 1984.

 

O sucesso do programa britânico foi tão grande que os conservadores acabaram obtendo um largo apoio político, o que explica pelo menos uma parcela da longa era Thatcher no poder. O Reino Unido virou uma referência de experiência em privatização. Seus principais objetivos, ainda segundo Bortolotti e Siniscalco (2004), foram o incremento da eficiência das companhias, a redução do déficit fiscal, a liberdade do consumidor, a liberalização de monopólios públicos, o desenvolvimento de mercados financeiros e a democratização do capital acionário das empresas para a população em geral. Mesmo quando se vendia o controle a investidores estratégicos, em vários casos, uma parte das ações foi pulverizada pela venda nos mercados em bolsa. Conforme os autores, nos países da América Latina, além destes objetivos, caberia um objetivo adicional: atrair capital estrangeiro de forma a facilitar a importação de tecnologia.

 

A Europa Continental, por sua vez, passou a adotar um programa de privatização de larga escala a partir de meados da década de 80. Portugal, Espanha, Holanda e Suécia adotaram a política de privatização em 1989, sendo que Bélgica, Grécia e Irlanda passaram a efetivamente se engajar no processo ao longo dos anos 90, tal como o Brasil. De qualquer forma, as grandes empresas de telecomunicações e energia elétrica apenas iniciaram seu processo na Europa Continental a partir de 1994. A América Latina, a Oceania e a Ásia vieram em seguida, sendo que o Norte da África, o Oriente Médio e a África Subsaariana iniciaram seus respectivos processos de privatização apenas no início deste século.

 

Bortolotti e Siniscalco (2004) sugerem, inclusive, uma sequência lógica do processo de desenvolvimento dos países em geral, na qual a fase inicial requereria uma maior intervenção direta do Estado via empresas estatais no setor de infraestrutura e a fase subsequente contaria com a provisão privada de serviços públicos após processo de privatização: “Com base nestas observações agregadas, pode-se pensar que a privatização seria a consequência espontânea e inevitável do desenvolvimento econômico, e que sua evolução seria largamente independente das especificidades históricas de cada país. Nos estágios iniciais de desenvolvimento, apenas o Estado poderia promover a acumulação de capital na infraestrutura e nas indústrias capital-intensivas. Uma vez que o processo de desenvolvimento foi colocado em movimento, o Estado gradualmente se retiraria da economia por meio da privatização. À fase Colbert[3] se seguiria a fase Thatcherista, uma forma de determinismo que ecoaria, pelo menos no método, a teoria dos estágios de desenvolvimento.”

 

Acreditamos, no entanto, que o “período Colbert” de desenvolvimento guiado pelo Estado via estatais possa ser requerido mais por uma questão institucional da relação Estado/setor privado do que por uma incompetência ou aversão ao risco do setor privado para iniciar negócios nos setores de infraestrutura de um país.

 

De fato, o sucesso de uma política de privatização é muito ligado ao apoio dado pela sociedade civil ao programa. Isto porque os governos em geral, especialmente aqueles de países com baixas dotações institucionais no jargão de North (1990), detêm escassa capacidade de se comprometer a não ter comportamentos oportunistas no futuro. Ou seja, tais governos não são capazes de se comprometer hoje a não adotar uma política futura de expropriação do investimento privado[4] em áreas de infraestrutura, que são, em geral, muito sensíveis do ponto de vista político, especialmente as tarifas do serviço.

 

A incerteza dos investidores sobre as preferências futuras do governo são, portanto, importantes elementos a restringir o processo de privatização. Mais uma vez, ativos específicos afundados de longo prazo de maturação são especialmente vulneráveis a este tipo de expropriação.

Isso explica, em boa parte, a aversão ao risco que acometeu boa parte do setor privado por muito tempo nos setores de infraestrutura em vários países, à exceção dos EUA. Sabendo que os governos dificilmente resistiriam à atração fatal populista de expropriar investimentos nestes setores, especialmente forçando tarifas artificialmente baixas, os próprios agentes privados preferiram se manter à distância, apesar de terem sido os primeiros investidores em setores como telecomunicações e energia elétrica, antes dos governos, inclusive no Brasil.

 

Ou seja, o desinteresse do setor privado nos setores de infraestrutura no mundo todo por um longo período de tempo pode ter se derivado mais do risco de comportamentos oportunistas dos governos com as várias formas de expropriação dos ativos, em um ambiente de escassa blindagem institucional, especialmente por um Judiciário independente e não populista, do que de uma falta de apetite intrínseca do setor privado por estes setores. Em síntese, o risco que os afastou foi mais o político do que o de negócio.

 

As melhorias institucionais havidas em vários países, especialmente na garantia do equilíbrio econômico financeiro dos contratos regulatórios com empresas privadas por Judiciários independentes e minimamente atentos à importância da segurança jurídica para o investidor privado, garantindo-os contra o oportunismo de governos populistas, explicariam pelo menos parte do incremento do interesse privado na infraestrutura mundial nas últimas três décadas[5].

 

Uma das formas encontradas para a blindagem institucional foi a venda das ações das estatais para a classe média, o que, segundo Bortolotti e Siniscalco (2004) “pode criar um grupo da sociedade com interesse em aumentar o valor dos ativos e avesso às políticas redistributivas das esquerdas”. Isso tornaria a eventual tentativa de reestatização ou de outros comportamentos oportunistas mais custosos para o governo. Segundo os autores, na experiência britânica, “a distribuição de ações a um preço descontado fez com que a re-nacionalização (proposta no programa eleitoral do partido trabalhista) ficasse mais custosa e, portanto, menos provável de encontrar suporte popular enquanto simultaneamente aumentou o apoio aos conservadores”.

 

No Brasil, o grosso das privatizações ocorreu ao longo da década de noventa. Não houve reversões após o longo período de hegemonia de um governo de esquerda entre 2003 e 2016, apesar de alguns atos hostis que cheiraram a expropriação, como na discussão sobre tarifas de telecomunicações de 2003[6], na tentativa de indução à redução forçada da tarifa de energia implementada pela Medida Provisória 579, de 2013, e no discurso geralmente hostil à privatização. Entendemos que, de forma geral, o país passou pela “prova de fogo” da blindagem institucional à expropriação do investimento.

 

III) Soft Budget e Take-Overs

 

A empresa estatal tem o que se chama de soft budget, ou seja, o governo tende a resgatá-la quando tem problemas financeiros, gerando um genuíno problema de moral hazard. Isso significa que o acionista “governo”, sem objetivo de lucro, tende a ser mais tolerante que o privado aos prejuízos gerados por má gestão. Nesse caso, o “acionista governo” tende a responder à situação aportando novos recursos para resgatar a empresa com problemas, o chamado bailing-out.

Ou seja, quando a estatal quebra, normalmente não vai à falência, tornando este tipo de empresa relativamente mais inclinada a entrar em investimentos e ações mais arriscados do que a privada. Afinal, se o acionista majoritário é relativamente mais tolerante com os prejuízos do que a empresa privada, por que os dirigentes da estatal deverão se esforçar para serem mais cuidadosos?

A privatização transforma os incentivos gerenciais. Os gestores privados seriam mais “disciplinados” pelo mercado de capitais ao sofrerem maior ameaça de take-overs hostis de outras empresas mais eficientes. Se tais gestores forem ineficientes no setor privado, outros investidores podem acabar comprando ações que impliquem transferência ou nova dinâmica do controle da empresa de modo a equacionar as ineficiências. Provavelmente na transformação da empresa de ineficiente para eficiente, a mudança dos gestores será um ingrediente fundamental. Na estatal este processo é inibido, pois a empresa deve permanecer com controle do governo, que tem uma lógica política e não econômica de indicação dos gestores.

O gestor da estatal tende a perder o emprego mais porque não beneficiou o fornecedor da preferência de algum agente político do que pelo fato de ser incompetente da perspectiva da eficiência empresarial.

Relacionado a isso está o fato de que a função objetivo da empresa estatal é uma variável menos objetiva que o lucro (que é um número), objetivo por excelência da empresa privada. Esta maior subjetividade da função objetivo da estatal torna mais difícil avaliar a competência do gestor relativamente a uma empresa privada. Avaliaremos este ponto com mais cuidado abaixo.

Reconhece-se, de outro lado, que há bail-outs também de empresas privadas pelo governo, como foi o muito citado caso da General Motors à época da crise de 2008/9 nos EUA. A frequência deste tipo de evento, no entanto, é bem menor do que em estatais.

 

  1. IV) Incentivo a Ofertar o que o Consumidor Deseja

 

As empresas privadas têm um maior incentivo a produzir bens e serviços na quantidade e na variedade preferidas pelos consumidores, dado que seguem mais de perto os sinais de mercado para serem capazes de deslocar a curva de demanda para cima, vendendo mais e mais caro.

Isso está diretamente associado ao objetivo de maximização do lucro da empresa privada: como bens e serviços mais associados às preferências do consumidor implicam quantidades e/ou preços maiores, variáveis que contribuem com o aumento do lucro, a utilização dos sinais de mercado tende a ser maior na empresa privada. O deslocamento da curva de demanda para cima, por um aumento da qualidade dos produtos, é incentivado pela busca de maior lucro, característica da empresa privada. Daí que há um maior incentivo, em média, na iniciativa privada, relativamente ao setor público, a buscar o bem ou serviço que mais agrada ao consumidor. E isto será tão mais verdade quanto mais concorrência houver no mercado.

A disciplina do mercado de capitais, por sua vez, acentua este processo de busca do que o consumidor mais deseja na empresa privada. Se a empresa não vender e/ou vender a preços menores por ter produtos/serviços de baixa qualidade, gerando prejuízos, o valor das ações cai. Isso indica, em última análise, que ela não está produzindo o que os consumidores mais desejam comprar.

Em síntese, como argumentado por Beesley e Littlechild (1997) “vender uma empresa estatal substitui a influência governamental pela disciplina de mercado” e isso gera um impacto significativo nos incentivos para a empresa buscar melhor atender o consumidor, ser mais produtiva e inovadora. O maior ganho da privatização, afinal, tende a ser alterar a estrutura de incentivos da empresa e seus gestores.

 

  1. V) Clareza de Objetivos

 

Os objetivos tendem a ser mais claros na empresa privada do que na empresa estatal. Como já destacado, na empresa privada o objetivo é uma variável quantificável muito concreta que é o lucro. Na empresa estatal o objetivo do que se entende por “bem-estar social” tende a ser muito mais difuso e subjetivo.

De fato, as empresas estatais apresentam muitos objetivos não econômicos como a universalização do serviço, o que inclui a exploração em áreas não lucrativas, mas com alegado impacto social (ou político). As empresas privadas também teriam menor apego ao objetivo de evitar demissões de empregados, no que a estatal é bastante sensível. O fato é que a existência de múltiplos objetivos com pouca clareza torna difícil mensurar resultados, obscurecendo a eficácia e eficiência da empresa.

Mas afinal, qual é o objetivo da empresa estatal? O Banco Mundial (1995) afirma que: “Os burocratas tipicamente operam mal os negócios, não porque sejam incompetentes (eles não o são), mas porque se deparam com objetivos contraditórios e incentivos perversos que podem desestimular e desencorajar mesmo os mais capacitados e dedicados funcionários públicos”. Ou seja, a falta de clareza nos objetivos constitui forte comprometedor dos incentivos dos gestores.

Pinheiro (1996), avaliando os efeitos microeconômicos da privatização no Brasil, também destaca a dupla face das empresas estatais com objetivos comerciais de um lado e de política pública de outro: “Esta dupla face tem um impacto negativo sobre a eficiência econômica pois: i) os gerentes das empresas estatais nem sempre têm clareza dos objetivos do acionista controlador, o setor público, o que dificulta a tomada de decisões e a alocação de recursos; ii) os objetivos sociais são usualmente alcançados com o sacrifício dos objetivos comerciais e da rentabilidade da empresa. Esta situação contrasta com a existente no setor privado, onde as empresas e sua direção são orientadas pelo objetivo maior do lucro”.

Cave (1990), discutindo a experiência de privatização britânica, nega que o bem estar social (seja lá o que isto significa) seria o objetivo principal das estatais. Segundo o autor, “empresas estatais maximizam o seu suporte político” e não o bem estar social, o que é corroborado pela evidência empírica de Shleifer e Vishny (1994).

Niskanen (1975), citado por Sidak e Sappington (2003a), destaca que os gerentes das empresas estatais usualmente seriam avaliados não pelos lucros, mas pelo crescimento puro e simples da empresa que eles chefiam. Assim, a função objetivo do agente seria primordialmente maximizar o tamanho das operações da empresa, independente de se os projetos geram retorno ou não. Não é nada claro que uma empresa ser grande é sempre positivo para o bem estar social.

A falta de clareza dos objetivos afeta, naturalmente, os incentivos gerenciais das estatais. Este problema foi endereçado por vários governos e organizações multilaterais nas décadas de setenta e oitenta, conforme Musacchio e Lazzarini (2014). Nesse contexto, o governo francês passou a adotar um plano contratual destinado a “atacar os problemas de objetivos confusos ou mutantes, autonomia insuficiente dos gestores e sistemas de controle demasiado restritivos, que eram percebidos como grandes obstáculos à eficiência e à produtividade das empresas públicas”. O governo francês propunha investimentos, emprego, dentre outros objetivos em troca de maior autonomia e compensações por obrigações impostas pelo governo. Como mostram os autores, tais planos, que também foram adotados em outros países, fracassaram em grande parte.

 

  1. VI) Problema de Agente/Principal, Grupos de Interesse e Captura

 

O problema de agente/principal é uma característica geral das empresas modernas não geridas (parcial ou completamente) pelos seus acionistas. Há um problema de moral hazard entre o acionista principal, que deseja o maior esforço do gestor para gerar o maior lucro possível, e o deste mesmo gestor, que pode ter vários outros objetivos, como mais lazer, mais publicidade (para ele próprio), etc.

Na verdade, pode ocorrer na relação entre o proprietário e todos os seus contratados, gestores ou não. O problema será tão maior quanto mais distante da administração estiverem os proprietários principais[7]. Nesse contexto, o problema de agente/principal tende a ser mais significativo nas empresas estatais em virtude da enorme distância dos “principais” da sociedade com os agentes relativamente às empresas privadas.

De fato, enquanto nas empresas privadas os principais são um conjunto de acionistas, nas estatais os principais são representados por toda a sociedade. O problema de ação coletiva (free-riding) é naturalmente muito mais severo no “grupo da sociedade” do que grupo (menor) dos acionistas.

Na empresa privada há um conjunto de principais de um lado, representado pelos acionistas, e os agentes, representado pelos gestores da empresa, de outro. Já na empresa estatal, há dois níveis de “principais”, o ministério ao qual a empresa estatal está ligada e os “proprietários finais”, que são os cidadãos comuns. Naturalmente a função objetivo do principal “ministério” ou “governo” nem sempre está em sintonia com a função objetivo do principal “sociedade”. Naturalmente, o agente “gestor da estatal” será mais responsivo ao “principal intermediário” “governo”, que não obrigatoriamente (ou quase sempre) é o mesmo da sociedade. Também podemos pensar no ministério ou políticos como “agentes” intermediários da sociedade frente aos “agentes” finais, representados pelos gestores da empresa estatal. Haveria, portanto, diversas camadas de agentes/principais na gestão da empresa estatal.

O ponto principal é que isto torna os problemas de agente/principal muito mais complexos em empresas estatais do que em empresas privadas. Para Aharoni (1982), o problema é tão agudo que as estatais seriam como agentes sem principais bem definidos, o que dificultaria medir o desempenho da empresa: “O principal (a população) seria representado por uma coalizão frouxa de agentes: o ministro da pasta a que está ligada a estatal, o Tesouro, os funcionários públicos, outros ministros, e o parlamento. Suas decisões são influenciadas por todo o tipo de grupos de interesse -consumidores, sindicatos, e outros- todos alegando algum direito de participar no processo de formulação dos objetivos da empresa … A falta de acordo sobre objetivos parece estar na raiz de muitas das dificuldades indicadas nos estudos sobre empresas estatais … O problema de definir objetivos para as estatais permanece em grande medida não resolvido”.

Musacchio e Lazzarini (2014) destacam a ignorância dos próprios gestores sobre quem seria, afinal, o principal: “Muitas atividades do setor público envolvem vários principais dispersos em várias áreas. Ao mesmo tempo, os próprios gestores de estatais podem não saber quem é o principal mais importante e a quem devem prestar contas. Seria o governo, um ministro, uma holding estatal ou a população em geral? Não raro, os empregados das estatais sentem que esses próprios são o principal”.

Aharoni (1982) aponta ainda que: “Em geral, a experiência mostra que quanto maior a firma, mais independente ela é do governo”. Ou seja, o problema de agente/principal das grandes holdings como a Eletrobrás ou Petrobras tende a ser pior do que para estatais menores.

Em síntese, a propriedade extremamente difusa da empresa estatal (sociedade como um todo) comparada à sociedade anônima ou outros arranjos societários privados tende a aprofundar significativamente os problemas de agente/principal entre “acionistas” e gestores. Na verdade, o mais importante “principal” a ser considerado pelos gestores tende a ser um agente político que conta com uma assimetria de informação gigantesca comparativamente ao resto da população em relação à operação da estatal.

Este problema mais agudo de agente/principal das empresas estatais as torna mais propensas à captura por organizações de interesses especiais, o que inclui os sindicatos dos próprios trabalhadores da empresa e os partidos políticos. O exemplo recente da Petrobrás é bastante eloquente quanto a isso. Será que tal empresa teria aceitado ser roubada por tanto tempo da forma que foi se fosse privada?

No caso da Petrobrás, estes agentes (ou principais) intermediários foram chave para entender todo o processo de captura da empresa pelos grupos de interesse, empreiteiros em geral, e dos esquemas de propina envolvidos no Petrolão.

O problema de agente/principal ensejou a discussão e promulgação de uma lei de responsabilidade em empresas estatais (Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016) no Brasil. Isto pode mitigar, mas dificilmente resolverá o problema.

 

VII) Baixa Capacidade de Planejamento e Execução do Estado

 

As dificuldades maiores com os problemas de agente/principal e grupos de interesse e corrupção fazem com que o governo defina um sem número de regras tanto dentro como fora das estatais para limitar a discricionariedade de seus gestores. A complicação de atuar com regras estritas de contratação (tal como as regras mais gerais da administração pública inscritas na Lei 8.666/93) é sobejamente conhecida, afetando significativamente a agilidade e competitividade da empresa. Quando uma estatal precisa de um insumo mais elaborado, abrir licitação com regras com muita ênfase na impessoalidade (típica da administração pública) e no “menor preço” pode comprometer a qualidade do produto ou serviço.

Se de um lado, regras mais estritas de contratação das empresas podem, em tese, dificultar a corrupção, elas também diminuem a margem de manobra dos gestores públicos, complicando excessivamente o processo de tomada de decisão relativamente às empresas privadas.

 

VIII) Impacto nas Finanças Públicas

 

Uma das motivações mais proeminentes, na prática, para privatizar é o impacto positivo sobre as finanças públicas, como observado por Adam Smith na ementa. Há mais de um canal possível dos efeitos da privatização sobre as contas do governo. Primeiro, quando se privatiza com base no maior valor de outorga, ou diluindo a participação acionária da União, como no caso proposto para a Eletrobrás, as receitas de privatização são usualmente utilizadas para abater dívida pública.

Segundo, como a taxa de lucro das estatais é, em geral, inferior aos juros pagos no serviço da dívida pública, o efeito positivo da privatização não é apenas sobre o estoque de dívida, mas também sobre o superávit/déficit nominal do setor público[8]. Para se ter uma ideia, conforme o Boletim das Empresas Estatais Federais de 2019 do Ministério da Economia, foram distribuídos dividendos dos grupos Petrobras, Eletrobrás, Banco do Brasil, Caixa Econômica e BNDES no valor total de R$ 11,6 bilhões em 2018. No mesmo ano, a soma do patrimônio líquido destas empresas atingiu R$ 602,5 bilhões. A relação dos dividendos e patrimônio líquido deste grupo de empresas foi de 1,92% em 2018. Já a Selic média neste ano ficou entre 6,40% e 6,65%, dando uma ideia do custo de oportunidade das empresas estatais.

Mesmo que a empresa seja lucrativa, é frequente que a maior eficiência da empresa privada gere, em termos de impostos, mais do que os lucros obtidos. Assim, a privatização influencia as finanças públicas não só pelo lado do estoque (abatendo dívida) como pelo fluxo, reduzindo déficit pela redução de pagamento de juros da dívida mais incremento dos tributos relativamente à redução da transferência dos lucros para o Tesouro.

Como mostram Bortolotti e Siniscalco (2004), vários países vinculam as receitas de privatização com a amortização de dívidas, compensando a redução de um ativo do governo (a empresa) com a redução de um passivo (a dívida), inclusive com a criação de fundos específicos para tal propósito.

Os autores destacam que na Europa muito da motivação para privatizar esteve relacionada ao cumprimento das metas de equilíbrio fiscal do Tratado de Maastrich, podendo-se concluir até que a venda de estatais é mais frequentemente imposta por circunstâncias externas, como o equilíbrio fiscal, do que livremente escolhida por motivações de eficiência econômica.

 

  1. IX) Escassez de Recursos Públicos e a Crise do Investimento em Infraestrutura

 

Associado à questão do impacto da privatização sobre as finanças públicas, há o fato de que o modelo de investimento em infraestrutura baseado em recursos do Estado se esgotou pela crise fiscal. Simplesmente, não há mais recursos disponíveis para investimento público já há muito tempo, sendo indispensável aumentar significativamente a participação privada.

Há um grande consenso de que a retomada do crescimento econômico no Brasil passa obrigatoriamente pela recuperação dos investimentos em infraestrutura. Estache (2012), em um estudo do Banco Mundial, estima que os países da América Latina necessitam de uma proporção do investimento em infraestrutura como proporção do PIB entre 4 e 6% para a sustentação do crescimento econômico.

No entanto, como mostram Frischtak (2012) e Inter B (2016, 2018 e 2019), a proporção do investimento em infraestrutura em relação ao PIB no Brasil tem ficado muito abaixo disso, tendo alcançado uma média de 2,14% entre 2001 e 2012, mantendo-se no patamar de 2,3% no biênio 2013/14 e caindo desde então para 2,1% em 2015, 1,95% em 2016, 1,69% em 2017 e 1,82% em 2018, com estimativas de 1,87% do PIB para 2019. Inter B (2019) estima uma necessidade de investimento anual para modernizar a infraestrutura no Brasil em 4,15% do PIB. Ou seja, estamos mais de 2 pontos percentuais atrás do requerido.

Nesse contexto, o aporte de capital privado se torna fundamental para a urgente retomada dos investimentos em infraestrutura e a privatização constitui uma ferramenta de grande utilidade para tal propósito.

 

  1. X) Poder de Mercado

 

A principal crítica à privatização diz respeito, como destacam Beesley e Littlechild (1997), ao incentivo que uma firma privada tem de explorar todo o seu poder de mercado, o que é especialmente relevante nos setores de infraestrutura, com problemas de concorrência ou até monopólios naturais. Ou seja, a tendência de uma empresa privada cobrar preços de monopólio, com todo o seu custo em termos de perda de peso morto para a economia, seria maior do que em uma empresa estatal que não busca a maximização de lucros.

O problema do potencial exercício do poder de mercado foi talvez o principal ponto indicado pelas teorias do “interesse público” em favor da operação estatal dos serviços de infraestrutura. Esta linha de argumentação, no entanto, basicamente abstraiu os problemas de agente/principal e assumiu que o burocrata sempre agiria em favor do público, maximizando uma função de bem-estar social, a qual inclusive incorporaria objetivos distributivos e de universalização do serviço e geração de empregos, tal como mencionado em Vickers e Yarrow (1988).

A emergência de problemas relacionados ao poder de mercado, que podem também surgir em empresas estatais, indicam que a privatização tende a ser mais bem sucedida se for acompanhada de políticas regulatórias que corrijam a falha de mercado denominada “poder de mercado”, seja estimulando a competição, seja remediando suas consequências como por meio de controle regulatório de tarifas, inclusive de acesso à infraestrutura.

De fato, pode-se afirmar que privatização, regulação e competição são políticas complementares entre si. Como colocado por Vickers e Yarrow (1988)¸ “o impacto de mudanças de cada uma dessas (propriedade pública ou privada, competição e regulação) sobre a eficiência será, em geral, contingente às outras duas”. Conforme esses autores, a privatização e a competição tendem a ser tão associadas que, quando não há concorrência, tende a não existir diferença relevante no desempenho entre empresas estatais e privadas. A diferença significativa ocorreria quando há concorrência, em favor das empresas privadas.

De outro lado, a questão fiscal foi muitas vezes tão proeminente nas privatizações em todo o mundo que o próprio formato da privatização privilegiou a maximização da receita em detrimento da concorrência. Em alguns casos, vendeu-se a empresa como um monopólio (Telecomunicações na Argentina e México) ou com um poder de mercado razoável (duopólio nas telecomunicações no Reino Unido) para torná-las mais atrativas, incrementar os lances no leilão e obter mais receitas de privatização[9].

Há, no entanto, uma grande ineficiência gerada por esta estratégia, pois a privatização, como arguido, tende a tornar o setor mais eficiente quanto maior a concorrência. Newbery (2000), por exemplo, mostra que a produtividade da British Telecom (BT) privatizada, como proporção da produtividade da indústria inglesa, é constante entre o ano da privatização (1984) até o início dos 90s, quando se abre o setor plenamente à competição, após o fim da política de duopólio implementada inicialmente. Após a introdução da política de livre entrada, a produtividade da BT passa a se incrementar acima da produtividade da indústria inglesa, sendo um exemplo da conexão entre competição e eficiência em um ambiente pós-privatização.

 

  1. XI) Objetivos Diferentes de Maximização de Lucros e Comportamento Anticompetitivo

 

Sidak e Sappington (2003ª)[10] destacam que o fato de uma estatal perseguir outros objetivos que não o lucro tornaria, na realidade, o seu comportamento mais agressivo no sentido de empreender comportamentos anticompetitivos, como o preço predatório, por exemplo. Conforme os autores, dado que as estatais tendem a privilegiar o seu crescimento puro e simples e não o lucro, a empresa “se torna menos avessa aos altos custos que emergem de uma produção maior … definindo preços particularmente baixos para os produtos nos quais ela se depara com elevada competição”.

Por exemplo, os autores mostram que estatais possuem maiores incentivos a implementar políticas de preços predatórios, financiadas por subsídios cruzados oriundos de outras atividades da empresa. No caso desta conduta, utiliza-se usualmente na doutrina antitruste para empresas privadas que maximizam lucros, o teste de Joskow e Klevorick (1979) de dois estágios: primeiro avalia-se se a empresa possui capacidade de recuperação futura dos prejuízos incorridos; segundo, comparam-se os preços aos custos variáveis médios.

Defendem Sidak e Sappington (2003a) que, para estatais, seria desnecessário avaliar o primeiro estágio, pois o investimento em predação apenas objetiva a expansão no mercado e não o aumento de lucros. Os autores prosseguem, afirmando que estatais também possuem maiores incentivos para aumentar o custo do rival: “Dado que uma estatal deve ter um grande incentivo a promover práticas anticompetitivas e a desrespeitar relativamente mais a lei antitruste em relação às suas competidoras privadas, cabe implementar uma vigilância mais forte nas atividades de mercado das Estatais. Também é mais apropriado sujeitar uma Estatal a leis de concorrência mais severas, além de penas mais pesadas por sua violação”.

São interessantes, neste particular, as consequências enfatizadas por Brittan (1984), citado por Cave (1990), do problema de soft-budget para a estratégia hostil à concorrência de outras firmas, muitas vezes adotadas por estatais: “Com o Tesouro disposto a cobrir perdas, o autor argumentou que os entrantes provavelmente não entrariam para competir com uma empresa estatal incumbente … também, a atitude governamental de monitoramento da estatal deve certamente afetar a factibilidade de se incorrer em perdas de curto prazo para deter um possível entrante e, portanto, a credibilidade da estratégia de impedimento à entrada.”

 

XII) Abandono de Objetivos de Universalização e Geração de Empregos

 

Empresas privadas estariam menos dispostas que as estatais a, voluntariamente, realizar serviços para clientes ou áreas pouco atrativas economicamente, mas com valor alegadamente “social”. Em geral, a empresa estatal está mais disposta a promover subsídios cruzados das áreas e/ou clientes mais superavitários para os mais deficitários.

Este tipo de conduta da estatal tende a ser vista de forma positiva por alguns. Como as empresas privadas apenas se interessariam pelos serviços superavitários, a privatização poderia comprometer em alguma medida o objetivo de universalização dos serviços, um ponto particularmente relevante para um serviço como energia elétrica. Ademais, uma consequência usual da privatização é a demissão de trabalhadores, o que também pode ser mal visto, ainda que haja, de fato, excesso de trabalhadores e baixa produtividade na estatal.

Apesar de a menor atenção à universalização dos serviços e o possível enxugamento de pessoal serem tomados usualmente como subprodutos negativos da privatização, estes efeitos também têm um lado bastante positivo se considerado o custo de oportunidade da economia no uso dos recursos. De fato, a empresa privada é bem menos propensa a investimentos em projetos sem justificativa econômica, os chamados “elefantes brancos”, que dragam de forma excessiva recursos da economia que poderiam estar sendo utilizados de outra forma, inclusive para projetos de interesse realmente social. A contratação de um número excessivo de empregados nas estatais também drena a disponibilização de recursos humanos para outros setores da economia, onde seriam mais produtivos e/ou com maior impacto social.

De qualquer forma, o governo pode utilizar outros instrumentos para mitigar os problemas sociais decorrentes de demissões ou de abandono da perseguição de objetivos não econômicos pelas empresas privatizadas. Quando passa a regular por um contrato regulatório, o Estado pode impor objetivos de investimento, incluindo a universalização, como obrigações contratuais ou prover subsídios para tal fim, tornando mais transparente o custo do objetivo não econômico.

Programas de retreinamento e seguro desemprego também mitigam problemas relativos ao eventual desemprego de antigos funcionários das estatais. Como a folha de salários de estatais é, em geral, sobrecarregada, este enxugamento de pessoal seria economicamente eficiente e beneficiaria a sociedade como um todo pela provisão de um serviço menos custoso.

De fato, tanto a remoção do ônus dos setores deficitários quanto a demissão de trabalhadores tende a reduzir preços para os consumidores dos serviços superavitários pela eliminação do subsídio cruzado.

No caso da remoção do ônus dos setores deficitários, poderia haver uma redistribuição de renda dos consumidores em serviços/regiões mais deficitários para os mais superavitários. Como os primeiros em geral são mais pobres, haveria um impacto social líquido negativo da privatização.

Obviamente que a política de subsídio cruzado utilizada em empresas estatais para beneficiar setores socialmente vulneráveis pode ser perfeitamente replicada em empresas privatizadas reguladas. A questão é que na empresa estatal o subsídio cruzado para financiar clientes/regiões deficitários pode vir como parte de uma estratégia da própria companhia, enquanto na empresa privada deve sempre ser imposta por um regulador, tornando-se mais transparente, especialmente seu custo.

Laffont e Tirole (2000) criticaram a premissa de que a política de universalização do serviço por meio de subsídio cruzado gerou melhorias do ponto de vista social no caso de telecomunicações. Do ponto de vista teórico, os autores utilizam o resultado clássico de Atkinson e Stiglitz (1996) da teoria da taxação de que um subsídio direto para as atividades alvo é sempre melhor do que o subsídio cruzado viabilizado pela distorção dos preços relativos: “O teorema de Atkinson-Stiglitz simplesmente indica que a melhor forma de redistribuir renda seria a forma direta, por meio da taxação da renda, e que a manipulação (indireta) dos preços relativos de bens e serviços seria uma política ineficiente”.

O subsídio cruzado representa uma discriminação de preços induzida pelo Estado, seja por meio de estatais ou não, para atingir um objetivo de política pública usualmente ligado à universalização do serviço para populações/áreas menos atrativas economicamente. Isto tem um custo, em geral, maior que o benefício se não houver externalidades no serviço. Havendo externalidades, o que é o caso do setor de energia elétrica, cabe computá-las para avaliar se a política compensa ou não.

De qualquer forma, incorporando ou não as externalidades, o subsídio direto, via orçamento, tem a vantagem de ser mais transparente para a sociedade e evitar a perda de peso morto dos consumidores nas regiões superavitárias. Afinal, como não conhecem os custos de fornecimento do serviço, os usuários das regiões superavitárias que subsidiam as deficitárias não sabem usualmente o quanto pagam a mais no preço do serviço para financiar a área deficitária.

Mas talvez o principal problema de uma política de subsídios cruzados no setor de infraestrutura seja o advento da concorrência. Entrantes procuram logicamente mirar os segmentos, regiões e clientes mais lucrativos. Na medida em que em boa parte dos setores de infraestrutura passou-se a promover a competição, a base de financiamento das atividades deficitárias em um sistema de subsídios cruzados fica naturalmente erodida. Simplesmente, o lucro de monopólio dos segmentos lucrativos não mais existe, dada a concorrência dos entrantes, que, ainda por cima, não têm o ônus de operar nas áreas/clientes que geram prejuízo. Esta estratégia de entrar apenas nas áreas atrativas é o chamado cream-skimming. Este problema é ressaltado por Laffont e Tirole (2000): “este mecanismo de subsídios cruzados está acabando nos países desenvolvidos. De um lado, o regime de price caps encoraja as firmas a rebalancearem suas tarifas de uma forma mais empresarial. A firma não está mais disposta a servir áreas de alto custo a preços baixos ou subsidiar usuários de baixa renda … Enquanto a introdução de price caps levou a algumas mudanças na forma que o mecanismo de subsídios cruzados foi implementado, um obstáculo mais decisivo ao mecanismo existente de subsídio cruzado veio do movimento de liberalização. Dado que os operadores devem fazer lucros substanciais nos segmentos que subsidiam de forma a financiar os segmentos que são subsidiados, os entrantes tem um incentivo forte a entrar no primeiro (e negligenciar o último). Este ponto traz duas preocupações. Primeiro, mesmo entrantes ineficientes podem ser seduzidos pelo guarda chuva dos segmentos de altos preços do incumbente. Segundo, a base tarifária sobre a qual alguns serviços são subsidiados é erodida, destruindo todo o sistema de subsídios cruzados.”

 

XIII) Evidência Empírica Internacional e Brasileira Sobre Privatização

 

A evidência empírica internacional tende a validar a visão teórica de que a propriedade privada é mais eficiente que a estatal. Boardman e Vining (1989), em um estudo clássico sobre as 500 maiores firmas industriais não americanas, acharam que empresas estatais puras e mistas tiveram performance “substancialmente pior” que as companhias privadas similares.

Na resenha de Megginson e Netter (2001), comprova-se que a eficiência das empresas privatizadas em termos de produtividade e crescimento foi, na média, superior às empresas que não foram privatizadas.

Pinheiro (1996) apresenta uma tabela sintética sobre vários estudos comparando o desempenho de ambos os tipos de propriedade e, embora achando resultados mistos, conclui haver uma ligeira vantagem para as companhias privadas. Em particular, este autor achou para o Brasil que a privatização aumentou a produção, a eficiência, a lucratividade e o investimento, bem como melhorou outros indicadores de performance financeira. La Porta e Lopez de Silanes (1997) acharam para o México grandes aumentos da eficiência e lucratividade, sendo que os aumentos de preços responderam por apenas 10% do aumento dos lucros. Os autores concluíram que estes aumentos de preços não se deveram ao poder monopolista.

Anuatti-Neto, Barossi-Filho, Carvalho e Macedo (2005) mostram que, de forma geral, as empresas brasileiras tornaram-se mais eficientes com a privatização, com aumento da lucratividade e eficiência operacional. Um ponto importante foi a mudança da estrutura financeira das empresas em função da eliminação do problema de soft budget. As empresas privatizadas brasileiras tiveram sua liquidez corrente ampliada e redução de endividamento no longo prazo.

 

XIV) Privatização Parcial

 

Bortolotti e Faccio (2006) realizaram uma pesquisa ao final do ano 2000 e mostraram que “os governos continuam como os maiores acionistas ou detêm poderes de veto substanciais em quase 2/3 das empresas privatizadas”. Os autores mostram que o valuation das empresas privatizadas não depende de o governo abrir mão de todos os direitos de controle. Na verdade, a participação governamental resultou em valorização até maior das empresas privatizadas, o que os autores acreditam que pode ter se derivado do fato de que foi detectada também uma maior probabilidade de os governos proverem ajuda financeira (bailing-out) às empresas privatizadas que mantiveram participações governamentais do que àquelas em que isto não ocorreu. Ou seja, o maior valuation derivaria não de maior eficiência de empresas privatizadas com participações estatais remanescentes, mas sim de um maior soft budget. Afinal, qual acionista privado não deseja ser sócio de um agente que está disposto a bancar os prejuízos?

Um aspecto potencialmente positivo da manutenção de participações acionárias do governo nas empresas, enfatizada por Bortolotti e Siniscalco (2004), é que os investidores privados podem atribuir uma probabilidade menor de comportamentos oportunistas. Como tais comportamentos afetam não só os sócios privados como também o sócio estatal, os autores argumentam que o próprio Estado não deveria querer prejudicar a empresa: “como a expropriação também reduz o valor do investimento para o acionista público, vendas parciais parecem constituir uma estratégia de sinalização da disposição do governo em suportar o risco residual da atividade e não interferir na atividade operacional da empresa no contexto de alto risco de política”.

Na experiência recente da Eletrobrás, no entanto, a Medida Provisória 579/2012 teve um impacto muito negativo na empresa. Enquanto empresas de distribuição estatais estaduais recusaram a oferta do governo federal de reduzir tarifas em troca da antecipação da renovação da concessão, a Eletrobrás, por ser de propriedade do governo federal, fez o oposto, em claro desacordo aos melhores interesses da empresa. Sendo assim, não parece ser um argumento tão forte a justificar a manutenção de propriedade acionária parcial por parte do governo.

 

  1. XV) Conclusões

 

A privatização pode ser entendida como um meio para realizar uma verdadeira “revolução de incentivos” na gestão das empresas transferidas ao setor privado.

Como muitas outras coisas em economia, a questão dos incentivos diferenciados das empresas operadas pelo governo e pelo setor privado não passou despercebida por Adam Smith, cuja intuição sobre a dramaticidade do problema agente/principal nas estatais ocorreu há mais de dois séculos.

Isso sem negar que já pode ter havido vantagem em ter empresas estatais em setores de infraestrutura. Em geral, se atribui esta vantagem ao que seria a falta de apetite ao risco do agente privado em investimentos de grande vulto como os de infraestrutura. O mais provável, no entanto, é que a vantagem das empresas estatais na infraestrutura tenha sido relacionada à falta de condições institucionais dos países para o investimento do setor privado em infraestrutura. Ou seja, o problema para o agente privado foi menos o risco do negócio e mais o risco político representado pela falta de capacidade de comprometimento crível do governo em não adotar comportamentos oportunistas, expropriando o investimento, especialmente pela indução à queda forçada de tarifas politicamente sensíveis.

Note-se que a pressão por tarifas menores tende a ser mais eficaz em estatais, o que fez ampliar o suporte político ao uso deste tipo de empresas. Enquanto se acreditava que tarifas menores seriam um reflexo do fato de estatais não utilizarem seu poder de mercado contra os consumidores, a experiência revelou que a tentação populista dos governos prevalecia em tal magnitude que acabava comprometendo a saúde financeira da empresa. Além de se transferir o custo da provisão do serviço do consumidor para o contribuinte (por que isso seria sempre socialmente justo?), comprometia a capacidade de investimento da empresa. Muito da crise brasileira de infraestrutura se deve a isso. A experiência recente do uso da Eletrobrás pela Medida Provisória 579/2012 demonstra que este problema continua muito atual.

No momento atual, no entanto, acreditamos que o país esteja mais maduro institucionalmente, especialmente com um Judiciário independente e com um mínimo de consciência acerca dos efeitos nefastos da incerteza jurídica sobre o investimento. Na tentativa do governo que entrava de forçar a redução de tarifas telefônicas em 2003, por exemplo, o Judiciário deu ganho de causa às operadoras, respeitando os termos do contrato de concessão[11].

A privatização representa, antes de tudo, uma verdadeira “revolução de incentivos” na provisão do serviço público. Tanto gestores como empregados da empresa privada apresentam uma propensão a responder a estes incentivos com um trabalho de mais eficiência e excelência. O cuidado fundamental aqui é fazer uma regulação moderna e eficiente do serviço, mais voltada para incentivar os comportamentos desejados do que para os velhos mecanismos de “comando e controle”. Adicionalmente, é crucial uma regulação que promova o maior dos incentivos, o da competição, um elemento muito presente na privatização da Telebrás em 1998. O mix destes mecanismos de incentivos, passagem do direito de propriedade público para privado pela privatização, ambiente competitivo e regulação inteligente é o que poderá viabilizar esta essencial “revolução de incentivos” que permitirá expressivo incremento da produtividade nesses setores com transbordamentos por toda a economia brasileira.

Adiar a retomada da privatização representa um custo gigantesco tanto para os usuários dos serviços quanto para os contribuintes brasileiros. É fundamental que a privatização do maior número de empresas continue representando uma das diretrizes mais importantes do governo.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

[1] O Governo àquela época insistia na distinção entre privatização, palavra amaldiçoada por implicar transferência permanente do patrimônio público a privados (como se não se pagasse nada por isso), e concessão, que manteria a reversibilidade dos ativos ao Estado. Curiosamente, nos casos dos serviços públicos como telecomunicações, energia elétrica e ferrovias, ocorreram concessões, apesar de terem sido consideradas pela Oposição da época como privatizações. Já no caso da venda da Vale do Rio Doce ou da Embraer, não houve concessão, sendo privatização propriamente dita. Os governos Lula e Dilma, no entanto, chamaram tudo de dilapidação de patrimônio público, mesmo tendo concedido rodovias e aeroportos, mesmo regime de telecomunicações, energia e ferrovias. A grande parte da análise aqui procedida, de qualquer forma, é cabível para concessões.

 

[2] Ver Beesley e Littlechild (1997), Laffont (1995), Vickers e Yarrow (1988), e Pinheiro e Giambiagi (1994), dentre outros.

 

[3] Ministro da Economia Francês de Luis XIV conhecido pelas ideias mercantilistas que incrementaram a intervenção do Estado na economia.

 

[4] Utilizamos “expropriação” aqui no sentido mais amplo de Sidak e Spulber (1998), incluindo a encampação dos ativos, controle de tarifas em níveis irrealisticamente baixos, obrigação de investimentos além dos previamente contratados, entre outros.

 

[5] Ver a importante contribuição de Levy e Spiller (1996) sobre a importância da questão institucional no formato ótimo de regulação no setor de telecomunicações em vários países.

 

[6] Ver Mattos (2003).

 

[7] O conhecido ditado de “o olho do dono é o que engorda o gado” traduz precisamente este ponto.

 

[8] Ver Pinheiro e Giambiagi (1994).

 

[9] Ver Mattos e Coutinho (2005).

 

[10] Ver também sobre o mesmo assunto dos dois autores, Sidak e Sappington (2003b).

 

[11] O que não implica que não tenha imputado algum prejuízo às empresas. Ver https://www.conjur.com.br/2004-jul-01/decisao_stj_eleva_reajuste_tarifas_partir_sexta.

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Transporte público pode ser transporte privado? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3186&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=transporte-publico-pode-ser-transporte-privado Thu, 28 Jun 2018 20:48:01 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3186 São comuns os entendimentos de que o mercado privado é ineficiente no provimento de bens públicos e que o Estado tem o dever de prover transporte público não somente a fim de maximizar suas as externalidades positivas na economia, mas também garantir a maior inclusão social dos segmentos que não possuem meios próprios de locomoção1. Embora verdadeiras as premissas, elas não conduzem à conclusão de que apenas o Estado deve prover o transporte público, muito pelo contrário.

Inicialmente é preciso reconhecer que transporte público não é necessariamente um bem público. Bem público é aquele que tem de ser fornecido na mesma quantidade para todos os consumidores envolvidos. Uma vez ofertado um bem público, não é possível restringir o consumo, nem o consumir em diferentes quantidades. Exemplos clássicos de bens públicos são o meio ambiente e a defesa nacional. Não é possível a um determinado cidadão obter mais ou menos defesa nacional. Independentemente de sua propensão a pagar mais ou menos tributos para evitar uma invasão estrangeira, todo cidadão recebe a mesma quantidade de defesa nacional. Da mesma forma, o ar puro, o mar limpo são bens que não podem ser consumidos de forma individualizada, independentemente da utilidade que os consumidores precificam esses bens2,3.

Algumas infraestruturas de transportes como calçadas, ruas, estradas e rodovias podem ter comportamento de bens públicos. Entretanto, há exceções. Quando a demanda é muito maior que a oferta ou quando os sistemas são fechados desaparece o comportamento de bens públicos em sistemas de transportes. Estradas congestionadas e sistemas metroferroviários, em geral, não têm comportamento de bens públicos. Essas infraestruturas são aptas a serem providas pelo mercado privado, pois têm efeito carona negligenciável. Aliás, esse é um fenômeno econômico antigo que vem se tornando cada vez mais contemporâneo nos países desenvolvidos.

A Inglaterra foi a nação precursora dos investimentos privados na provisão de infraestrutura de transportes terrestres. Em 1695, o mercado obteve segurança jurídica para investir na construção e manutenção de estradas pavimentadas, por meio de Acts of Parliament, que autorizavam a cobrança privada de tarifas sobre o tráfego ao longo de certa extensão das estradas. No século XVIII, os Turnpike Acts, do Parlamento inglês, revolucionaram a provisão de infraestrutura rodoviária. Naquele século, cresceu a malha e reduziram-se, substancialmente, os tempos de viagem, pois o interesse econômico era predominante na definição dos traçados das novas estradas pavimentadas4.

A partir dos anos 1820, com o desenvolvimento da ferrovia e da locomotiva a vapor, diversas firmas privadas prosperaram na provisão de infraestruturas ferroviárias de transportes, tanto no transporte de cargas – que até hoje vigora nos Estados Unidos da América –, quanto no transporte de passageiros. Em 1933, seis firmas privadas distintas operavam em Londres no que hoje é conhecido como Underground ou Tube.

Naquela época – e ainda hoje – o transporte ferroviário privado se viabilizava em função de dois motivos: a alternativa mais econômica para o usuário e a alternativa mais rentável para o investidor.

O primeiro motivo vem do fato de o usuário em geral pagar o preço mais barato pelo transporte. Em São Paulo, por exemplo, o transporte de café por ferrovias privadas poderia ser seis vezes mais barato que o transporte convencional por estradas carroçáveis no fim do século XIX5. Nos EUA, a ausência de barreiras a entradas e vantajosidade da ferrovia em relação as alternativas fomentaram a construção de uma rede de mais de 400 mil km de trilhos. A rede ferroviária américa reduziu-se ao longo dos últimos cem anos, paulatinamente, à medida que o preço do frete ferroviário foi se tornando mais caro que sua alternativa: o aquaviário a partir de 1914, com a abertura do canal do Panamá; o rodoviário a partir dos anos 1930, com a construção de rodovias pavimentadas pelo poder público; e o aéreo a partir dos anos 1950, com a entrada da aviação civil comercial. Mesmo assim, ainda hoje, as firmas ferroviárias privadas que exploram mais de 200 mil km de trilhos sobrevivem sem subsídios no competitivo mercado de transporte americano porque têm o preço mais barato na longa distância no interior do país.

O segundo motivo tem relação com a primeira lição de Manheim em seu clássico Fundamentals of Transportation Systems Analysis (1979). “O sistema de transporte de uma região interage com o sistema socioeconômico alterando a demanda de origens, destinos, rotas, volumes de bens e de pessoas transportadas no sistema”6. Sempre que a firma de transporte pode se aproveitar dos ganhos econômicos dessa interação acumulando receitas não apenas de tarifas de transportes, mas de atividades socioeconômicas afetadas pelo transporte que provê, então são criados fortes incentivos para que o sistema de transporte se expanda naturalmente. Este foi exatamente o caso das ferrovias americanas e inglesas que promoveram os primeiros metrôs em Nova Iorque e em Londres. As firmas agiram nesses territórios como firmas de desenvolvimento urbanístico, comprando terras a preços mais baixos na periferia, provendo infraestruturas de transportes a partir do centro, e depois revendendo e alugando imóveis a preços competitivos, suficientes para gerar lucros, e, ainda assim, a preços menores que os praticados nos centros da cidade. Um negócio em que todos ganham.

O mesmo expediente ainda hoje é praticado na Ásia. No Japão, somente no entorno de Tóquio cerca de 50 firmas privadas construíram e operam trens de passageiros, além de, também, hotéis, residenciais, escritórios e shopping centers. Na Ásia, as empresas metroferroviárias arrecadam aproximadamente entre 30% e 60% de seu faturamento das receitas advindas das atividades socioeconômicas afetadas pelo transporte que oferecem7.

Aliás, essa prática foi recentemente retomada nos EUA, especificamente na Flórida, onde um grupo privado de exploração imobiliária8 construiu e está operando desde maio deste ano um trem de média velocidade, entre Miami, Fort Lauderdale e West Palm Beach, ao custo de U$ 20 (vinte dólares americanos) por pessoa, por uma viagem de cerca de 112 km em um tempo de 1h e 15min. Novamente, o negócio se viabiliza para o usuário pelo custo de oportunidade, mais conveniente que as alternativas, e, para o investidor, pelos ganhos com receitas assessórias vinculadas ao negócio de transportes, como os imóveis de escritório, lojas e residenciais sobre a estação central em Miami e no entorno nas demais estações em Fort Lauderdale e West Palm Beach.

O caso da Brightline9 é um exemplo concreto e atual de que o transporte público pode ser integralmente idealizado, financiado, construído e operado pelo mercado privado, sem a necessidade de subsídios, burocracia, ou despesas do contribuinte. Ao custo de U$ 3,6 bi esse projeto não foi planejado em Washington-DC, nem licitado pela agência reguladora, nem teve o preço das tarifas fixado pelo poder público. É integralmente privado10.

Se as barreiras jurídicas a entradas e saídas no mercado de transportes são baixas, firmas privadas terão interesse em investir por diferentes abordagens, desde aquelas com baixa criação de infraestruturas, como, por exemplo, o Uber, 99, Cabify, até aquelas com intensiva criação de infraestruturas e custos afundados, como Brightline, Keio11, MTR12.

Todas essas firmas atuam onde a demanda, a rentabilidade e os riscos são compatíveis com seus modelos de negócio. A diferença entre elas está nos efeitos socioeconômicos que provocam nas cidades. Enquanto as primeiras contribuem para a diminuição da demanda pelo transporte coletivo e de forma indireta fomentam o espraiamento do tecido urbano, as últimas contribuem para o aumento da demanda pelo transporte coletivo e de forma direta fomentam a densificação do tecido urbano, pois, são remuneradas não apenas pelo preço da viagem, mas pelas receitas assessórias do maior fluxo de passageiros que transitam a pé pelo entorno das estações, frequentando suas lojas, escritórios e residenciais.

Com a introdução das firmas metroferroviárias privadas no mercado, o Estado ganha de três maneiras: arrecada mais tributos, deixa de gastar com a provisão direta dos serviços, e, além disso, também economiza na provisão otimizada de bens públicos, como vias, escolas, delegacias, prontos-socorros, etc que podem ser localizados em posições mais eficientes do tecido urbano.

Toda essa economia pública poderá ser aplicada em transporte de cunho social, aquele em que o mercado não tem interesse de prover por ser antieconômico, mas que o Estado tem dever de garantir aos mais pobres. Novamente, todos ganham.

A discussão sobre o modelo de ferrovias privadas autorizadas é necessária não apenas no transporte de passageiros, mas também no mercado de cargas, em complementação ao atual modelo brasileiro de concessões. Nos Estados Unidos o modelo de ferrovias autorizadas tem sido bastante exitoso. Lá, por exemplo, existem 546 ferrovias locais (short lines) administrando uma rede de 52.800 km, i.e., com extensão média de 96,7 km por ferrovia.13 Somente essas ferrovias locais têm uma extensão superior a toda malha ferroviária brasileira de 29.075 km de ferrovias em concessão.

Essa discussão é crucial para o futuro do desenvolvimento econômico e social do Brasil, não apenas porque a realidade fiscal do Estado não permitirá a concretização dos investimentos públicos necessários em transportes, mas porque em países desenvolvidos não se discute mais se a iniciativa privada pode ou não pode prover infraestruturas de transportes, o que se discute lá é qual será a tecnologia que a iniciativa privada irá construir e operar, se a tradicional ferrovia ou a disruptiva tecnologia hyperloop.

Hyperloop é uma modalidade conceitual de transporte em que pessoas ou cargas são transportadas em um tubo de baixa pressão impulsionadas por um trilho eletromagnético. Devido à redução do atrito com o ar rarefeito dentro do tubo o veículo poderia, em teoria, alcançar velocidades de cruzeiro superiores a 1.000km/h, tornando-se mais competitivo que o transporte aéreo. Atualmente diversas firmas privadas competem internacionalmente no desenvolvimento dessa nova tecnologia já tendo sido autorizadas a prospectar soluções em Chicago14, Pittsburg15, Dubai16, entre outras.

Firmas privadas sempre realizaram transporte aberto ao público. Entretanto, no Brasil, o transporte mormente o ferroviário é de forma equivocada compreendido pela legislação ordinária como um serviço público, outorgado apenas pelo Estado, após morosos processos de licitação, que às vezes sequer ocorrem, às vezes resultam desertos, como foi o já esquecido trem-bala entre o Rio de Janeiro e Campinas.

As evidências da história, no entanto, ensinam que não existe razão econômica suficiente a recomendar que todos os ovos do transporte sejam colocados exclusivamente na cesta do Estado, muito pelo contrário. Quanto mais aberto o País e as cidades estiverem para o livre interesse do mercado em construir por sua conta e risco infraestruturas de transportes, melhor para a sociedade, para os contribuintes, e, principalmente, para os mais pobres.

____________

1 Justificação PEC nº 74, de 2013 (Emenda Constitucional nº90, de 2015)

2 VARIAN, H. (1947) Microeconomia: conceitos básicos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006 – 6ª reimpressão.

3 FELIX, M. K. R (2018) Exploração de infraestrutura ferroviária: lições de extremos para o Brasil.

4 BLANNING, T. C. (2007) The pursuit of glory: Europe, 1648-1815. Penguin.

5 SILVA, C. P. (1904). Política e Legislação de Estradas de Ferro. Volume I. São Paulo. Typ. Laemmert & Comp.

6 Tradução livre.

7 SUZUKI, H., MURAKAMI, J., HONG, Y. H., & TAMAYOSE, B. (2015) Financing transit–oriented development with land values: Adapting land value capture in developing countries. World Bank Publications

8 Florida East Coast Industries. http://www.feci.com/companies.html

9 https://gobrightline.com/

10 KENTON, M. M., & GIFFORD, J. (2015). Comparing Financing Models for US Intercity Passenger Rail Development. http://malcolmkenton.info/wp–content/uploads/2017/08/Kenton_PUBP–714_TermPaper.pdf

11 https://www.keio.co.jp/english/

12 http://www.mtr.com.hk/en/customer/tourist/index.php

13 Federal Railroad Administration (2014) Summary of Class II and Class III Railroad Capital Needs and Funding Sources.

14 https://www.bloomberg.com/news/articles/2018-06-14/how-musk-s-hyperloop-became-just-a-loop-in-chicago-quicktake

15 https://www.daytondailynews.com/news/hyperloop-ohio-two-firms-study-feasibility/BlZkziMTFoZsZ4cySOxxWJ/

16 https://www.economist.com/special-report/2018/06/23/how-dubai-became-a-model-for-free-trade-openness-and-ambition

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Quanto custa uma empresa estatal administrando aeroportos? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3053&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=quanto-custa-uma-empresa-estatal-administrando-aeroportos Mon, 02 Oct 2017 20:21:01 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3053 A administração de aeroportos públicos no Brasil é atualmente compartilhada entre uma estatal federal (a Infraero com 56 aeroportos e 49% do tráfego), concessões federais à iniciativa privada (6 aeroportos e 46% do tráfego) e demais aeroportos sob responsabilidade de Estados e Municípios (508 aeroportos e 5% do tráfego), mediante convênio de delegação da União.

As concessões federais tiveram início no ano de 2011, com o leilão do aeroporto de Natal. Após o sucesso da licitação, nos anos seguintes foram concedidos cinco dos maiores aeroportos do país: Guarulhos, Brasília, Viracopos, Galeão e Confins.

Os números de investimentos realizados e de satisfação da qualidade do serviço denotam que as concessões trouxeram novo padrão ao transporte aéreo no país.

De 2012 a 2015, foram investidos pelos concessionários privados nas 6 concessões federais o montante de R$ 12 bilhões, a preços de janeiro de 2016. Além dos ganhos para o setor, esses investimentos aliviaram o orçamento da União, permitindo que mais recursos fossem utilizados para atender outras necessidades da população. Para efeito de comparação, de 2003 a 2011, o montante investido pela Infraero em todos os aeroportos federais totalizou R$ 9,1 bilhões (também a preços de janeiro de 2016). São ganhos significativos e apontam para um elevado interesse público na continuação do processo de concessões aeroportuárias.

Todavia, se de um lado tais investimentos se mostram muito significativos, tanto do ponto de vista econômico como do ponto de vista social, por outro são limitados (apenas nos aeroportos concedidos) e não endereçam apropriadamente duas importantes questões em aberto do sistema aeroportuário brasileiro: (i) ainda há uma flagrante necessidade de realização de investimentos em expansão de capacidade dessas infraestruturas em diversas outras localidades e (ii) existe uma urgência de desenvolvimento de uma solução integrada e sustentável para os aeroportos de médio porte (abaixo de 1 milhão de passageiros), que, muitas vezes, não conseguem gerar recursos financeiros suficientes para pagar os investimentos necessários a sua expansão e modernização, e de pequeno porte (abaixo de 100 mil passageiros), que apresentam déficits operacionais estruturais.

Assim, considerando as características sistêmicas do problema, e tendo em vista a dificuldade de disponibilidade de recurso e de execução de investimentos diretamente pelo poder público, realizamos estudo a fim de analisar a viabilidade econômica de se conceder toda a rede de 56 aeroportos atualmente sob administração da Infraero, incluindo tanto aeroportos com tráfego acima de 1 milhão de passageiros por ano, como aeroportos muito pequenos, como Ponta Porã (3.100 pax/ano) e Bagé (1.700 pax/ano).

Em vista do baixo potencial de geração de valor de aeroportos de médio e pequeno porte, adotamos um modelo de concessões em blocos, em que grandes aeroportos são agrupados com aeroportos menores, realizando um subsídio cruzado entre ativos.

A alternativa de conceder em blocos apresenta-se mais conveniente e oportuna que a alternativa de conceder cada aeroporto individualmente, sobretudo em razão de menores riscos e custos de execução dos processos licitatórios e de regulação de contratos. As concessões patrocinadas, com contrapartidas financeiras pelo poder público (as chamadas Parcerias Público Privadas – PPP), se aplicariam para a concessão individual de dezenas de aeroportos menores, ensejando maiores riscos para o setor privado e custos de execução e planejamento para o setor público, motivo pelo qual se defende o modelo de concessão em blocos.

Ressalta-se que a escolha por um subsídio cruzado interno ao contrato (concessão em blocos) não é algo novo no país, podendo-se citar as concessões de distribuição de energia elétrica e saneamento básico (rede de água e esgoto): o custo da prestação do serviço em uma área rural ou afastada do núcleo urbano é subsidiado pelo consumidor de baixo custo de atendimento, por exemplo, a residência em um prédio de muitos andares.

Para além das fronteiras internas, é possível citar concessões para a iniciativa privada de aeroportos em blocos em países como Colômbia, Argentina, México, Portugal, Inglaterra, com diferentes modelagens e resultados.

Assim, além das premissas acima descritas, adotamos a formação de blocos de aeroportos que tenham áreas contíguas, a fim de facilitar a gestão por um administrador central1, e que em cada concessão haja pelo menos um grande aeroporto (acima de 3 milhões de passageiros ao ano), de forma a garantir atratividade para investidores e geração de valor suficiente para suportar o déficit operacional de aeroportos menores, assim como pagar os investimentos estimados para todos os aeroportos do bloco.

Para estimativa de investimentos, adotamos para os aeroportos de capitais os parâmetros de capacidade de infraestrutura adotados nos estudos de viabilidade econômica, técnica e ambiental (EVTEA) das concessões federais já realizadas, amplamente disponíveis no endereço eletrônico da Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC.

Por exemplo, um dos parâmetros para tamanho de terminal de passageiros é a referência de nível ótimo de área e tempo de filas adotados Airport Development Reference Manual – ADRM da International Air Transport Association2. Com base na comparação entre a infraestrutura necessária (para a demanda projetada) e a infraestrutura existente, alcança-se a infraestrutura a ser ampliada (em metros quadrados de terminal de passageiros, por exemplo) e, com base nos preços utilizados nas concessões anteriores, estimamos o valor dos investimentos ao longo da concessão de 30 anos de cada aeroporto do bloco.

Além da previsão de investimentos para cada aeroporto, consideramos referências de custos operacionais e receitas comerciais levantadas para os estudos de viabilidade das 6 concessões federais existentes, de operadores privados regionais e a carga tributária aplicada a aeroportos sob administração privada3. Ressalta-se que as tarifas aeroportuárias são definidas pela Agência Reguladora, constam em tabela fixada nos contratos de concessão e não são influenciadas pela oferta apresentada no leilão da concessão (diferentemente das concessões de rodovias). Portanto, a estimativa de receitas aeroportuárias (que não incluem as receitas comerciais) decorrem diretamente da projeção de crescimento da demanda de passageiros, aeronaves e cargas.

Para a projeção de demanda de passageiros, aeronaves e cargas, adotamos como premissa, e por simplificação, um crescimento igual para todos os blocos, a partir de 2018, equivalente à expectativa média do Brasil de 4% ao ano considerada nos EVTEAs apresentados pela Secretaria de Aviação Civil do Ministério dos Transportes, Portos e Aviação Civil – SAC/MTPA para a concessão dos aeroportos de Salvador, Porto Alegre, Fortaleza e Florianópolis4.

Tendo em mãos o fluxo de receitas, despesas operacionais, investimentos e tributos, a modelagem financeira adotada calcula o valor de outorga necessário para que o Valor Presente Líquido do fluxo do projeto seja igual a zero5. Para o desconto do fluxo, utilizamos a taxa de 9% ao ano, líquido de tributos e em termos reais, que se mostra acima da taxa de 8,5% considerada nos EVTEAs dos aeroportos da União em processo de concessão e em linha com a taxa utilizada em outros setores em leilões recentes.

O mapa dos blocos para concessão desenhados conforme os parâmetros acima descritos teria a seguinte configuração:

Nessa perspectiva, estimamos que os 56 aeroportos atualmente sob administração da Infraero necessitam de R$ 17,6 bilhões em investimentos pelos próximos 30 anos para que seja possível atender à demanda esperada a um nível compatível com a qualidade de serviço hoje ofertada nos aeroportos concedidos.

Nesse cenário, encontramos farta viabilidade econômica na concessão dos blocos que contemplam todos os 56 aeroportos. Além dos R$ 17,6 bilhões em investimentos, que teria o efeito de desonerar o orçamento da União, o concessionário privado pagaria um outorga mínima de R$ 14 bilhões (R$ 2 bilhões à vista) ao longo do período da concessão (30 anos).

Ademais, há tributos que, ao contrário do concessionário privado, a Infraero não recolhe, em razão da imunidade tributária atualmente reconhecida pelo Poder Judiciário. Tais tributos somariam pelo período da concessão o montante de R$ 16,5 bilhões, sendo R$ 3,4 bilhões recolhidos diretamente pelos municípios onde se localizam o aeroporto, e R$ 13,1 bi à União.

Assim, quando consideramos o total de recursos que a União deixaria de gastar (investimentos), juntamente com o montante que passaria a receber (outorga e tributos), o valor chega R$ 48 bilhões em um período de 30 anos, a preços de 2016. Esse valor representa a diferença entre conceder para a iniciativa privada ou manter os 56 aeroportos atualmente em operação com a Infraero, sem levar em consideração, ainda, o ganho de bem-estar a ser experimentado diretamente pelos usuários e os novos negócios que poderão surgir nas localidades atendidas.

Além disso, o montante de R$ 48 bilhões considera, como cenário contrafactual, que a Infraero estaria em situação de equilíbrio financeiro pelos próximos 30 anos caso não houvesse a concessão dos aeroportos, ou seja, com lucro/prejuízo operacional igual a zero, antes de depreciação e resultado financeiro. Tendo em vista que essa linha da demonstração financeira se encontra negativa desde 2012, com a estatal acumulando centenas de milhões de reais de prejuízo, é possível afirmar que o montante envolvido na decisão de conceder a rede de aeroporto (R$ 48 bilhões) seja conservador.

Em que pese as incertezas naturalmente envolvidas em um estudo que busque estimar a evolução do setor nos próximos 30 anos, não nos parece haver dúvidas de que a concessão em blocos dos aeroportos da Infraero é uma alternativa socialmente e economicamente superior à operação desses ativos por uma empresa pública.

Numa época em que o Estado enfrenta dificuldades fiscais consideráveis e a população reclama serviços de melhor qualidade, é necessário avançar em soluções que promovam a melhoria das condições de desenvolvimento do país e gerem recursos para o enfrentamento dos grandes desafios que temos pela frente.

 

________________

1 Por conservadorismo, não foi considerado na modelagem financeira dos blocos ganhos de escala de custos administrativos com a concessão conjunta de aeroportos. No entanto, a modelagem captura ganhos tributários da apuração agregada de impostos sobre a renda.

2 Disponível em: http://www.iata.org/publications/store/Pages/airport-development-reference-manual.aspx

3 Por conservadorismo, não foram considerados possíveis benefícios tributários, como isenções em impostos sobre a renda reconhecidas pela SUDENE e SUDAM, e tampouco isenções relativas ao PIS e Cofins concedidos no âmbito do REIDI.

4 Aeroportos em processo de concessão, com leilão agendado para dia 16 de março de 2017. Estudos de Viabilidade disponíveis em: http://www.aviacao.gov.br/assuntos/concessoes-de-aeroportos/novas-concessoes/pmi

5 Cabe destacar que a forma como a outorga será paga influencia no montante da própria outorga. Caso se pague 100% à vista, a outorga será equivalente ao próprio VPL do projeto. Na modelagem de blocos simulada, adotamos o perfil de pagamento semelhante ao utilizado na concessão dos aeroportos de Salvador, Porto Alegre, Fortaleza e Florianópolis: 25% à vista, 5 anos de carência e outorga e pagamentos anuais até o final da concessão.

 

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Produtividade para todos https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1404&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=produtividade-para-todos https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1404#comments Mon, 20 Aug 2012 12:20:45 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1404 O Governo Federal tem buscado proteger a indústria nacional. São isenções tributárias seletivas, barreiras à concorrência de importados, permissão legal para se pagar mais por produtos nacionais em licitações públicas, exigências de alto coeficiente de insumos nacionais em grandes empreendimentos, como o pré-sal e  a telefonia móvel 4G, além de crédito subsidiado do BNDES.

Ao adotar essas políticas o Governo está dizendo que vale a pena pagar mais caro por produtos nacionais de pior qualidade para preservar a indústria nacional. Os maiores beneficiários dessa política são parcelas específicas da população: empregados, proprietários e acionistas das empresas protegidas, sob a forma de salários e lucros mais altos. Temos, assim, claramente, benefícios privados e custos socializados.

Quando analisamos a política do Governo Federal em relação às concessões de infraestrutura o discurso governamental muda completamente. O argumento passa a ser o de que é preciso oferecer estradas, portos, aeroportos e ferrovias ao menor custo possível para toda a população. Nesses casos, não se está disposto a aceitar que a sociedade “pague mais caro”, para ter expansão rápida e de qualidade na infraestrutura.

Vimos isso no caso das concessões rodoviárias de 2007, em que as regras de leilão geraram pedágios baratíssimos. O fenômeno se repetiu no leilão dos aeroportos ao final de 2011 quando, em nome de estimular o máximo possível de concorrência, o Governo fixou normas muito brandas de qualificação técnica, o que resultou em forte concorrência e altos ágios pagos pelos vencedores.

A princípio, esses seriam resultados fantásticos. Os usuários seriam contemplados com pedágios rodoviários baratos e com maiores investimentos do governo nos aeroportos que continuam sob controle estatal, cujo financiamento se daria com o dinheiro dos ágios dos leilões dos aeroportos mais rentáveis.

Na prática, contudo, nas estradas de pedágio barato os investimentos realizados, após cinco anos de concessão, estão muito aquém do que fora inicialmente previsto, resultando em estradas ruins e acidentes em alta. As tarifas, que deveriam subir de acordo com a variação do IPCA, sofreram reajustes bem acima da inflação.

Nos leilões de aeroportos, os vencedores foram operadores aeroportuários sem experiência na gestão de grandes aeroportos e empresas com histórico não muito recomendável em outras concessões similares. Isso permite antever problemas futuros.

O que teria dado errado?

A questão é que a regulação de serviços públicos concedidos enfrenta um conhecido dilema entre: 1) estimular o empenho do concessionário, permitindo-lhe internalizar parte dos ganhos decorrentes de seus esforços, ou 2) oferecer serviços a baixos custos aos usuários finais, por meio de tarifas baratas ou extração de renda dos concessionários via ágio.

A opção pela primeira hipótese é fácil de justificar. Se os potenciais concessionários se deparam com regras que remuneram adequadamente tanto a qualidade do serviço prestado, como a ampliação da infraestrutura e os esforços de redução de custos, eles terão incentivos para serem mais produtivos e cumprirem as metas de investimento e qualidade. Se as regras da concessão não premiarem o esforço, o Governo, que não tem como medir o grau de empenho empreendido pelos concessionários, pouco pode fazer, e os concessionários tendem a se tornar mais relaxados.

Ao optar por pedágios baratos (nas rodovias) e por altos ágios (nos aeroportos), o governo sinalizou que não estava disposto a remunerar adequadamente os investimentos na ampliação dos serviços, ou a busca de qualidade e produtividade pelo concessionário.

Esse tipo de sinalização costuma atrair consórcios que já entram no leilão pensando em renegociar os termos do contrato após vencê-lo. Oferecem lances muito competitivos, ganham o certame e, depois, começam a atrasar os investimentos programados, a reduzir a qualidade do serviço e a pedir reajustes tarifários acima da inflação.

O Governo pode, a princípio, simplesmente cancelar o contrato e fazer outra licitação, buscando um melhor concessionário. Mas isso tem alto custo. Há um longo processo de preparação da nova licitação, demandas judiciais da empresa destituída por reparação de custos, e prejuízo eleitoral para o governante pela descontinuidade ou má qualidade do serviço prestado. Acaba sendo melhor para o governante – e não necessariamente para a população – renegociar os contratos e ceder às vantagens solicitadas pelo concessionário. O pedágio barato ou o ágio elevado acabam virando serviços de má qualidade, preços crescentes e insuficiente ampliação dos serviços.

Nossa infraestrutura é precária. Necessitamos urgentemente de gerar ganhos de produtividade, para acelerar o crescimento da economia, e o setor de infraestrutura é vital nesse esforço. Nossas agências reguladoras não são suficientemente independentes para impor a ferro e fogo o cumprimento dos contratos. Nosso judiciário não tem tradição de zelar pelo cumprimento de contratos.

Por isso, torna-se inevitável aceitar que os concessionários tenham uma margem de lucro maior. Forçar a mão em favor de tarifas mais baixas ou da geração de ágios para financiar outros investimentos públicos tende a afastar os concorrentes que se recusam a trabalhar com a hipótese de colocar a “faca no pescoço” do Governo após o leilão, exigindo renegociações. Aqueles que aparentemente aceitam as regras do jogo o fazem por acreditar que terão cacife político para renegociar o contrato a posteriori e mudar as regras a seu favor.

Ao contrário da política de proteção da indústria nacional, em que os custos são socializados e os benefícios apropriados por poucos, no caso da concessão de infraestrutura vale a pena pagar mais caro. Ou melhor: é imperioso pagar mais caro,  porque uma boa infraestrutura beneficiará a todos, mediante fortes externalidades, que aumentarão a produtividade de toda a economia, expandindo a renda e o crescimento. Entre os beneficiários da boa infraestrutura se inclui a própria indústria nacional, que ganhará competitividade de forma sustentável e não apenas artificial.

Texto publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 21 de maio de 2012.

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As receitas da Infraero são suficientes para garantir aeroportos de boa qualidade? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=701&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=as-receitas-da-infraero-sao-suficientes-para-garantir-aeroportos-de-boa-qualidade https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=701#comments Thu, 18 Aug 2011 12:23:19 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=701 Há quase cinco anos do “apagão” ocorrido em dezembro de 2006, são reiteradas e duradouras as manifestações para melhoria da prestação dos serviços aeroportuários brasileiros.

Seja por ascensão da chamada “classe C” ao mercado de transporte aéreo, seja por sucateamento da infraestrutura existente ou, mais recentemente, pela demanda de vultosos investimentos em virtude de grandes eventos esportivos (principalmente a Copa do Mundo de 2014), o tema constantemente ocupa a pauta dos noticiários jornalísticos.

De modo geral, em todas as análises empreendidas a Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero) é percebida como causa central de todos os males apontados. Por isso, diversas soluções vêm sendo apresentadas, sendo a principal delas associada à necessidade de aporte de capitais ao setor, seja por intermédio da abertura de capital da empresa, seja por venda do seu controle acionário, ou, mais recentemente por intermédio de concessões de aeroportos.

Independente de qual venha a ser a solução adotada, será fundamental a geração de receitas para remunerar a empresa prestadora dos serviços e para garantir investimentos em modernização e ampliação de aeroportos. Portanto, há que se responder uma questão central: as receitas geradas pela prestação de serviços hoje providos pela Infraero são suficientes para financiar investimentos em serviços aeroportuários de qualidade?

O que se mostra nesse artigo é:

(a) a Infraero gera um volume significativo de recursos (aproximadamente R$ 10 bilhões no período 2002-2010) que poderiam ser empregados em investimentos e serviços aeroportuários;

(b) esses recursos são, em sua maior parte, transferidos ao Tesouro e ao Comando da Aeronáutica, não revertendo em investimentos no setor;

(c) a Infraero obtém receita mediante a aplicação financeira desses recursos entre o momento da arrecadação e o momento da sua transferência ao Tesouro ou à Aeronáutica, o que gera distorção de foco na gestão da empresa, que passa a se preocupar mais com a gestão desse caixa do que propriamente com os serviços que deve prestar.

A infraestrutura aeroportuária pública no Brasil é explorada, com pequenas exceções, pela União por meio da Infraero, empresa pública criada pela Lei nº 5.862/72. Atualmente, a Infraero administra 67 aeroportos, opera 69 grupamentos de navegação aérea e 34 terminais de carga, e mantém 51 unidades técnicas de aeronavegação.

A Infraero é uma empresa de natureza comercial cuja função primordial é a de prestar serviços aos passageiros e às companhias aéreas operacionalizando embarques, pousos e oferecendo serviços de armazenagem e capatazia, entre outros.

A Infraero utiliza a infraestrutura aeroportuária da União para desempenhar suas atividades operacionais, aufere receitas a partir deste uso e realiza investimentos nesses ativos.

Parte dos recursos tarifários arrecadados, pagos por passageiros e por empresas aéreas, é classificada como receitas da Infraero, outra parte dos recursos é transferida para o Comando da Aeronáutica e para o Tesouro Nacional. A tabela abaixo apresenta os recursos que são classificados como receitas na Demonstração do Resultado do Exercício (DRE) da Infraero.

Receitas da Infraero

Receitas na Demonstração de Resultado do Exercício (DRE)
Aeronáuticas Comerciais
Tarifa de pouso e permanência, tarifa de embarque e 41% das tarifas de telecomunicação e auxílio à navegação aérea – TAN e TAT Tarifa de armazenagem e capatazia, concessão de áreas – esta especificamente registrada como ‘comerciais’ na DRE – e outros serviços

Fonte: demonstrações contábeis da Infraero disponíveis em www.infraero.com.br.

Os recursos tarifários que não são classificados como receitas da Infraero, enquanto não transferidos ao Comando da Aeronáutica e ao Tesouro Nacional, ficam registrados num grupo de contas do passivo chamado de ‘Recursos de Terceiros’. Este grupo é dividido em três contas: a) recursos de terceiros do Comando da Aeronáutica, b) recursos de terceiros do Tesouro Nacional, c) recursos de terceiros vinculados a investimentos.

Realizamos uma análise de rentabilidade da Infraero com base na fórmula de Dupont[1] e seus resultados foram cotejados com os fluxos de caixa gerados pelas atividades empreendidas.

A análise foi realizada como se os aeroportos fossem parte integrante do balanço da Infraero. A fórmula de Dupont revela que a rentabilidade da empresa é extremamente amplificada pelas receitas financeiras.

Observou-se que a alavancagem financeira e o spread são responsáveis por mais da metade da lucratividade da empresa na maioria dos períodos examinados. O retorno da atividade financeira da Infraero é tão preponderante que ajuda a sua rentabilidade a subir muito nos anos em que a atividade operacional gera lucro e impede que o prejuízo seja maior nos anos em que a atividade operacional gera prejuízos.

Ou seja, a empresa ganha muito mais, proporcionalmente, aplicando no mercado financeiro do que nas suas atividades finalísticas. Essa é uma grave distorção.

A explicação para a existência de receita financeira tão vultosa encontra-se no ganho de floating que a empresa aufere em virtude da atividade de administração dos recursos da conta “Recursos de Terceiros”, especialmente aqueles repassados à União, por intermédio do Tesouro Nacional e do Comando da Aeronáutica, e os relativos à Ataero vinculados a investimentos.

Qualquer incentivo a incrementar os serviços finalísticos de administração de serviços de embarque, capatazia e armazenagem, típicos do mercado aéreo, que gerariam mais receitas e a consequente eficiência operacional são minados em virtude da necessidade de a empresa repassar parcela considerável das tarifas para os “proprietários” controladores.

O incentivo, portanto, não é voltado à lucratividade operacional como forma de maximizar dividendos para os “proprietários” (a União, no caso), já que parcela considerável das tarifas que poderiam cobrir os custos operacionais, gerar uma boa rentabilidade operacional e fazer face às necessidades de investimento em infraestrutura aeroportuária é repassada ao Comando da Aeronáutica e ao Tesouro Nacional.

Como contrapartida, à empresa é concedido o direito de administrar esses recursos e obter receitas financeiras com seu floating. Assim, a empresa desvia-se da sua vertente operacional e concentra seus esforços na administração do fluxo de caixa dos “Recursos de Terceiros”. Com esses incentivos inversos, o modus operandi da empresa mais se assemelha ao de uma instituição financeira do que ao de uma administradora e prestadora de serviços aeroportuários.

A transferência dos recursos ao Tesouro e ao Comando da Aeronáutica não seria um problema se eles retornassem ao setor aeroportuário, por meio de investimentos públicos nos aeroportos. Mas não é isso que acontece. Para melhor entender o caminho dos recursos no setor, a figura abaixo apresenta o fluxo de recursos entre União e Infraero.

O Tesouro Nacional faz aportes de capital na Infraero, e dela recebe tanto dividendos quanto a transferência das receitas que são destinadas ao Comando da Aeronáutica ou à amortização da dívida pública.

Fluxo de recursos entre União e Infraero (veja tabela em versão pdf)

A tabela abaixo apresenta os valores desses fluxos.

Transações da Infraero com a União

Transações com a União 2010 2009 2008 2007 2006 2005 2004 2003 2002 Total
Aportes de Capital 3 3 91 573 350 0,7 192 2 1.215
Dividendos 7 19 38 76 503 2 24 140 52 861
Comando da Aeronáutica (a) 629 1.132 1.110 1.046 951 767 746 489 439 7.309
Tesouro Nacional 236 220 198 241 164 234 225 201 142 1.861

Nota. Em R$ milhão; (a) no Comando da Aeronáutica os recursos são repartidos entre Fundo Aeronáutico, Departamento de Controle do Espaço Aéreo (Decea) e Secretaria de Economia e Finanças (Sefa). Fonte: demonstrações contábeis e notas explicativas da Infraero de 2002 a 2010 disponíveis em www.infraero.com.br.

Somando os dividendos com as transferências ao Tesouro e à Aeronáutica, temos que, no período 2002-2010, a Infraero repassou ao Governo Federal R$11,5 bilhões. Deduzindo os aportes de capital feitos na empresa, o volume líquido transferido ao Governo foi de R$ 10,3 bilhões.

Os recursos repassados ao Tesouro Nacional são destinados à amortização da dívida pública federal, nos termos das Leis nos 9.825/99 e 10.744/2003. Os recursos repassados ao Comando da Aeronáutica, nos termos do art. 1º, §1º, da Lei nº 7.920/89, são destinados à “aplicação em melhoramentos, reaparelhamento, reforma, expansão e depreciação de instalações aeroportuárias e da rede de telecomunicações e auxílio à navegação aérea”.

Se o dinheiro transferido ao Comando da Aeronáutica fosse, efetivamente, investido nessas finalidades, teríamos o significativo valor de R$ 7,3 bilhões adicionais com destinação específica para investimentos em infraestrutura aeroportuária.

A questão é saber se esses recursos foram efetivamente empregados na sua destinação obrigatória prevista na Lei nº 7.920/89.

Nas demonstrações contábeis e no relatório de administração elaborados pela Infraero, não existem informações específicas sobre a realização desses investimentos compulsórios. Os dados disponíveis apresentam os investimentos com recursos próprios e de outras fontes que não os recursos do Comando da Aeronáutica, conforme descrito na tabela abaixo.

Fonte dos Recursos Total 2010 2009 2008 2007 2006 2005 2004 2003 2002
Recursos próprios 1771 320,1 71,5 63,8 241,7 209,9 228,8 260,2 96,9 278,1
Recursos do orçamento fiscal 781,4 117,7 72,7 145,3 95,8 96,1 253,8
Recursos Ataero (parte Infraero) 1651,9 205,8 71 62,4 101,6 225 198,1 241,1 407,2 139,7
Recursos de convênios 426,2 297,4 39,9 9,2 10,7 69
Total 4630,5 643,6 215,2 271,5 439,1 828,4 720,6 510,5 514,8 486,8

Nota. Em R$ milhões. Fonte: demonstrações contábeis e notas explicativas da Infraero de 2002 a 2010 disponíveis em www.infraero.com.br.

Vê-se que, no período de 2002 a 2010 foram realizados investimentos de R$ 4,6 bilhões em infraestrutura aeroportuária. Se aqueles outros R$ 7,3 bilhões, transferidos ao Comando da Aeronáutica, tivessem sido aplicados na sua destinação compulsória, o sistema aeroportuário teria realizado, nesse mesmo período, investimentos na casa de R$ 12 bilhões em nossos aeroportos.

A tabela abaixo apresenta o fluxo de recursos para o Fundo Aeronáutico e os dispêndios realizados pelo Comando da Aeronáutica.

Recursos do Fundo Aeronáutico e aplicações em despesas do Comando da Aeronáutica

2010 2009 2008 2007 2006
Fundo Aeronáutico
Receita do Fundo Aeronáutico 2.017,30 1.805,88 1.734,47 1.437,15 1.336,54
– Receita de Serviços (a) 1.333,60 1.200,41 1.246,12 973,99 858,91
– Receita Patrimonial (b) 323,64 318,38 189,54 222,29 259,47
– Outras (c) 360,06 287,09 298,81 240,87 218,16
Despesas do Fundo Aeronáutico 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00
Comando da Aeronáutica
Despesa do Comando da Aeronáutica (d) 621,48 990,54 787,62 670,96 700,41
– Adestramento e Operações Militares da Aeronáutica 0,00 0,00 3,41 4,37 3,55
– Proteção ao Voo e Segurança do Tráfego Aéreo 0,00 0,00 560,85 471,04 522,17
– Desenvolvimento da Infraestrutura Aeroportuária 114,31 320,14 196,68 176,54 146,87
– Apoio Administrativo 37,21 34,72 26,68 19,01 27,61
– Serviço de Saúde das Forças Armadas 0,00 0,00 0,00 0,00 0,21
– Segurança de Voo e Controle do Espaço Aéreo 469,84 631,21 0,00 0,00 0,00
– Preparo e Emprego da Força Aérea 0,12 4,47 0,00 0,00 0,00

Notas: Em R$ milhão. (a) Inclui as seguintes naturezas de receita: 1600.31.00 (tarifa e adicional sobre tarifa aeroportuária), 160031.01 (tarifa aeroportuária), 1600.31.02 (adicional sobre tarifa aeroportuária), 1600.31.03 (parcela da tarifa de embarque internacional), 1600.33.01 (tarifas de uso das comunicações e dos auxílios e navegação aérea em rota), 1600.33.02 (adicional sobre tarifas de uso das comunicações e dos auxílios à navegação aérea em rota). (b) Remuneração das disponibilidades aplicadas no “caixa” do fundo aeronáutico. (c) Inclui, entre outros, arrendamentos, taxas de ocupação de imóveis, convênios, etc. (d) Despesa realizada com recursos das fontes de recursos advindas da Infraero pelo Comando da Aeronáutica em nome do Fundo Aeronáutico. Fonte: balanços-gerais da União (BGU).

Pelas informações apresentadas, há um considerável volume de recursos arrecadados e um valor substantivamente menor de despesas realizadas. O constante e expressivo superávit somado aos recursos depositados no caixa e arrecadados em exercícios anteriores, conforme apresentado na próxima tabela, sugere que o sistema aéreo brasileiro, por meio da cobrança de tarifas, gera recursos suficientes para praticamente triplicar o montante de investimentos em sua infraestrutura aeroportuária.

Recursos do sistema aéreo e aplicações em despesas do Tesouro Nacional

2010 2009 2008 2007 2006
Caixa do Fundo Aeronáutico 3.043,42 2.693,24 2.271,56 2.091,08 1.878,69
– Depositados na Conta Única 209,06 570,47 143,79 238,98 24,89
– Aplicados (basicamente em LTN) 2.834,36 2.122,77 2.127,77 1.852,10 1.853,80

Notas: Em R$ milhão. Fonte: balanços-gerais da União (BGU).

Conclui-se, portanto, que a estrutura tarifária já garante recursos vultosos ao setor aeroportuário. Contudo, o atual sistema de partilha gera incentivos perversos: a Infraero é estimulada a maximizar receitas financeiras, em vez de se concentrar na gestão dos aeroportos; e o Tesouro é estimulado a reter recursos que deveriam financiar os investimentos aeroportuários.

Qualquer mudança no setor, seja ela no sentido de privatizar a Infraero, abrir seu capital ou fazer concessão dos aeroportos precisará corrigir esse sistema de partilha de recursos. O Tesouro precisa estar consciente de que perderá recursos hoje destinados à geração de superávit primário. Esse será o preço para buscar um sistema aeroportuário mais eficiente.

“O artigo expressa opiniões pessoais dos seus autores. Nenhuma responsabilidade é assumida pelos autores em razão das consequências da utilização das suas opiniões e/ou de qualquer informação contida neste artigo, que de forma alguma devem ser vistas como sendo as visões, posições ou opiniões institucionais do Tribunal de Contas da União.”

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[1] Método de análise financeira que decompõe o retorno sobre o patrimônio líquido (RSPL) em: retorno sobre o ativo operacional líquido (RSOL) + spread (diferença entre o RSOL e a rentabilidade do ativo financeiro) x alavancagem financeira (grau de endividamento da empresa).

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https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=701 4
Valeu a pena privatizar a Vale? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=431&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=valeu-a-pena-privatizar-a-vale https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=431#comments Wed, 06 Apr 2011 10:13:12 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=431 Baixada a poeira da campanha presidencial, talvez já seja possível avaliar de forma menos emotiva os efeitos da privatização. Antes tarde do que nunca. Inferir os efeitos da introdução de gestão privada no desempenho de uma empresa não é tarefa fácil. Exige que se compare o desempenho da empresa como ela é hoje com o desempenho de uma empresa que não existe: uma Vale do Rio Doce que não tivesse sido privatizada e estivesse funcionando hoje. Essa seria a situação ideal: duas empresas idênticas, enfrentando condições de mercado idênticas, no mesmo momento histórico e econômico, tendo como única diferença o fato de uma ser privada e a outra ser estatal. Nesse caso, se poderia atribuir a diferença dos retornos econômicos das duas empresas à única característica que as distingue: ser estatal ou privada. É o que os economistas chamam de  “exercício contra-factual”: qual seria o retorno da empresa privatizada se ela tivesse permanecido sob controle estatal?

Se as empresas de um mesmo setor fossem privatizadas aleatoriamente, compararíamos os retornos das empresas privatizadas com os das públicas, como fazem pesquisadores de um laboratório farmacêutico quando testam uma nova droga, trabalhando, de forma controlada, com dois grupos: um de tratamento (que recebe a droga) e outro de controle (que toma um placebo). Para o bem ou para o mal, o acesso a tais experimentos nas ciências sociais é limitado.  Empresas não são privatizadas aleatoriamente. Por exemplo, o setor privado tem mais interesse por empresas mal geridas porque os ganhos com a troca de controle são maiores. Assim, a melhora na gestão pode ocorrer tanto por reversão à média (como diria o Tiririca, ‘pior do que está não fica’), ou porque, de fato, a gestão privada é mais eficiente.

Tomemos o caso da VALE. Ao analisar seus retornos nos últimos anos, a primeira impressão é que a privatização melhorou espetacularmente seu desempenho. Entre junho de 1997 e janeiro de 2011, a ADR (American Depositary Receipts)[1] da VALE gerou um retorno nominal em dólar (incluindo distribuição de dividendos) de incríveis 3.019%. No entanto, no mesmo período, o principal produto vendido pela VALE, o minério de ferro, também se valorizou fortemente em decorrência do aumento da demanda advinda da China. Entre 2003 (primeiro ano para o qual há dados disponíveis) e 2010, o preço do minério de ferro CIF[2] na China subiu 750%, tendo a maior parte desse aumento ocorrido a partir de 2005 quando, coincidentemente ou não, o retorno da VALE se acentua. Como o aumento do preço do minério não tem a ver com a privatização, parte do retorno não pode ser atribuída à troca de gestão.

Resta perguntar o seguinte: a privatização explica a diferença entre os 3.019% de retorno do papel e a apreciação de 750% no preço do minério?

A quantidade produzida aumentou 70% entre 2003 e 2010. Para evitar qualquer alegação de que nossas conclusões dependem disso, faremos a suposição heróica de que a privatização em nada contribuiu para o aumento de sua produção. Ou seja, a capacidade adicional já estaria disponível ou seria facilmente adicionada mesmo sob controle estatal.

Também para simplificar a argumentação, suporemos que o custo unitário subiu proporcionalmente com o preço. Assim, a margem de lucro teria crescido os mesmos 750% do aumento de preços (se preços e custos de produzir uma unidade sobem na mesma proporção, o lucro por unidade, definido como a diferença entre preço e custo, também cresce nessa mesma proporção). Nesse caso, o lucro da empresa subiria 1.345%[3], devido ao aumento de 70% na quantidade vendida e ao aumento de 750% na margem de lucro.

Ou seja, há uma diferença substancial entre o aumento do lucro da empresa (acima calculado em 1.345%) e o retorno nominal dos ADR (de 3.019%). São  1.674 pontos percentuais (pp) do retorno do ADR que ainda não estão explicados por aumento de preços e de quantidades vendidas, sob a hipótese de que o custo unitário subiu junto com o preço.

Portanto, a nossa hipótese de que o custo unitário de produção havia subido tanto quanto o preço parece não se aplicar. Será que foi a troca para a gestão privada que derrubou os custos e aumentou o lucro e o retorno da empresa? Ou terão sido economias de escala[4] que geraram os ganhos?

Na ausência de experimentos controlados, que permitam comparar a Vale privada a uma inexistente Vale estatal, emulamos o que seriam grupos de tratamento e controle. As três maiores empresas de mineração são listadas em bolsas de valores: BHP, Rio Tinto (RIO) e VALE. As duas primeiras sempre foram privadas. Já a VALE, como sabemos, foi privatizada em 1997. A RIO é mais comparável com a VALE porque sua exposição ao minério de ferro é maior do que a da BHP (62% versus 34% da margem EBITDA em 2010).

A lógica do argumento para inferir o efeito da gestão privada na VALE é simples. A menos da privatização, RIO e VALE foram basicamente expostas aos mesmos choques (por exemplo., aumento de demanda na China). É razoável, portanto, atribuir diferenças de rentabilidade à mudança de gestão na VALE.  A Figura 1[5] mostra a evolução dos retornos das ADRs de RIO e de VALE desde maio de 1995 (incluindo dividendos). Entre junho de 1997 e janeiro de 2011, a diferença nos retornos é de impressionantes 1.696 pp. Sobre isso, cinco comentários:

1.      Antes da privatização, o retorno da RIO aumentou mais do que o da VALE. Portanto, a diferença não pode ser explicada por diferentes tendências pré-privatização. Como os retornos são muito baixos em relação aos atuais, não fica muito evidente no gráfico que a RIO tinha maior retorno que a VALE no período.

2.      O frete transoceânico aumentou 400% entre setembro 2005 e setembro de 2008. A base de operações da RIO é na Austrália, mais perto da China. Portanto, o aumento no preço do frete prejudica mais o lucro da VALE do que da RIO (o que torna o nosso argumento ainda mais robusto: a Vale privatizada teve retorno maior que a RIO, mesmo enfrentando maiores custos de transporte).

3.      A exposição da RIO ao minério de ferro é menor, mas, incorporando-se a operação de cobre, as exposições agregadas em cobre e ferro são parecidas e o preço do cobre subiu tanto quanto o do minério.

4.      Quaisquer ganhos de escala que a VALE possa ter tido são parecidos com os que a RIO teve, pois ambas trabalham com processos produtivos similares.

5.      Os múltiplos[6] pagos por empresas brasileiras aumentaram porque o Brasil melhorou institucionalmente; como Austrália já era um país organizado em 1997, os múltiplos não aumentaram muito por lá. Por isso o Ibovespa subiu mais do que o AUS 200 (principal índice australiano), e isso não é mérito da privatização da Vale. Entre junho de 1997 e janeiro de 2011, o Ibovespa teve um retorno real de 210%, contra 28% do AUS 200. Ou seja, 182 pontos percentuais da diferença se devem à melhoria do Brasil em relação à Austrália.

Tirando esses 182 p.p. que diferenciam os dois países da diferença de retorno entre as duas empresas (1.696 p.p), restam ainda impressionantes 1.514 p.p. de valorização do ADR da Vale em relação ao da RIO. A explicação para tal  diferença é a privatização;  a mudança que afetou apenas a Vale.

Por fim, considerando apenas o período “pré-China”, a diferença de retornos foi de 231 pontos percentuais.

Os benefícios da privatização foram amplificados durante o boom, fenômeno não surpreendente para os especialistas em Economia das Organizações. As mudanças de gestão dificilmente são contínuas. Em geral, são necessários choques exógenos significativos (inovações tecnológicas, aumento substancial do preço de um insumo relevante, ou elevações de preços dos produtos vendidos) para que tais mudanças sejam iniciadas. Além disso, as mudanças de gestão envolvem várias dimensões que apresentam complementaridades e geram sinergia. Portanto, como sugerem Milgrom e Roberts (“The Economics of Modern Manufacturing: Technology, Strategy and Organization”, American Economic Review, 1990), mudanças tendem a ocorrer em todas as dimensões complementares, amplificando seus benefícios. Em decorrência da retro-alimentação, o efeito total é maior do que a soma das partes. Por já ser privada, a RIO não pôde explorar a mesma gama de ganhos gerenciais que beneficiaram a VALE.

Estabelecer relações causais em ciências sociais é missão espinhosa. Tendo essa ressalva em mente, a evidência disponível sugere que a gestão privada adicionou enorme valor à VALE. Não é demais lembrar que tais ganhos de gestão foram, em grande parte, apropriados pelo contribuinte através de tributos e dos dividendos recebidos pelo BNDES e PREVI (através da geração de superávits reconhecidos no resultado do Banco do Brasil) em decorrência de sua participação na VALEPAR (empresa que controla o Conselho de Administração da VALE e detém a maioria do capital votante).

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[1] Certificados representativos de ações da Vale, negociados no exterior, lastreados em ações da Cia depositadas no Brasil junto a um custodiante. Equivale a ações da empresa negociadas no exterior.

[2] O chamado preço CIF (de Cost, Insurance and Freight – custo, seguros e frete, em português), como o nome sugere, significa o preço final de uma mercadoria importada, incluindo as despesas de frete e seguros até o local de entrega da mercadoria.

[3] Variação da quantidade * Variação da margem de lucro = (1+70%)*(1+750%) – 1 = (1,7)*(8,50) – 1=13,45 =1345%

[4] Ocorrem economias de escala quando o aumento da produção gera um aumento de custos menos que proporcional ao aumento da produção, o que tende a elevar o lucro da empresa.

[5] A figura é apresentada na versão pdf do texto, disponível na parte inferior desta página.

[6] O portal de investimentos infomoney assim define múltiplos: “Os múltiplos de mercado são calculados dividindo variáveis como valor de mercado da empresa por uma série de indicadores presentes nos demonstrativos financeiros, como valor patrimonial, lucro estimado, fluxo de caixa. Estes múltiplos são equivalentes aos que você calculou para o seu imóvel: Preço/Quartos, Preço/Vagas, Preço/Área etc. Assim como no exemplo do imóvel, você deve comparar os múltiplos de mercado da empresa com os múltiplos de empresas similares. Por empresas similares entendemos empresas que atuem no mesmo segmento de mercado (estejam no mesmo bairro), tenham rentabilidade comparável (mesmo número de quartos), etc. A comparação entre os múltiplos de empresas é chamando Análise Comparativa, no caso das empresas pertencerem ao mesmo setor chamamos de Análise Setorial”.

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