política monetária – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Thu, 04 Nov 2021 14:04:34 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 “Eu sou você amanhã”. De novo? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3526&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=eu-sou-voce-amanha-de-novo Thu, 04 Nov 2021 14:04:34 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3526 Brasil e Argentina: “Eu sou você amanhã”. De novo?

 

Por Luiz Alberto Machado*

 

“Enquanto o Brasil sonha com um futuro que não chega, a Argentina sonha com um passado que não volta”.

Roberto Macedo

 

Houve um período relativamente longo, na década de 1980, em que as economias do Brasil e da Argentina se alternavam em situações críticas, ora com uma em situação mais difícil, ora com outra nessa indesejável posição. Numa analogia com um memorável comercial de uma marca de vodca, costumava-se utilizar a expressão “eu sou você amanhã”, para se referir a essa triste alternância.

Nesse período, as equipes econômicas, tanto no Brasil como na Argentina, fizeram diversas tentativas, lançando mão de planos para conter a inflação que assolava os dois países.

Na Argentina, o Plano Austral, de junho de 1985, optou pelo congelamento de preços, tarifas e salários. O congelamento acabou por distorcer os preços relativos da economia e afetar o abastecimento de produtos básicos, entre os quais a carne, produto essencial na dieta dos argentinos. Alguns ajustes ao plano foram feitos em fevereiro de 1986, mas já em agosto do mesmo ano estava claro que o congelamento de preços não funcionara. Em 1987, houve o agravamento da crise econômica, com a inflação se acelerando rapidamente, o que levou o governo argentino  a enfrentar grandes dificuldades fiscais. Em agosto de 1988, foi lançado o Plano Primavera, última tentativa do governo de Raúl Alfonsín de controlar a inflação, mas também sem sucesso.

Quase ao mesmo tempo, o Brasil seguia uma trajetória muito parecida com a dos hermanos. No final de fevereiro de 1986, foi anunciado o Plano Cruzado, que também congelava preços e salários. Assim como na Argentina, a desordem provocada nos preços relativos gerou graves distorções e desabastecimento. Ajustes ao Plano Cruzado foram feitos em novembro de 1986 (Plano Cruzado 2) e, depois da troca da equipe econômica, um novo plano foi adotado em junho de 1987 (Plano Bresser), repetindo a estratégia do controle de preços, igualmente sem resultado. A crise econômica se agravou em 1987 e o governo brasileiro, com dificuldades para pagar a dívida externa, recorreu a uma moratória. Depois de nova troca da equipe econômica, em janeiro de 1989, foi anunciado o Plano Verão, última tentativa do governo de José Sarney para controlar a inflação pela via do controle de preços, novamente sem sucesso[1].

Como o Brasil demorou mais do que outros países sul-americanos para conseguir reduzir a inflação[2], os planos heterodoxos adentraram a década de 1990 com o Plano Brasil Novo (mais conhecido como Plano Collor), anunciado logo a posse do presidente Fernando Collor em março de 1990, e o Plano Collor 2, de janeiro de 1991.

A sequência de insucessos compartilhados pelos dois países ficou conhecido como efeito Orloff: “Eu sou você amanhã”.  Ou seja, para saber o que iria acontecer no Brasil, bastava ver o que tinha acontecido na Argentina ou vice-versa. Em realidade, no comercial o alerta “eu sou você amanhã” vinha seguido da recomendação “pense em você amanhã, exija Orloff hoje”. A mensagem da propaganda de vodca vinculada na década de 1980 era evitar a ressaca do dia seguinte.

A partir do êxito obtido com o Plano Real, que, ao contrário dos planos heterodoxos anteriormente tentados, conseguiu estabilizar consistentemente a nossa moeda, a diferença com a situação econômica da Argentina foi se tornando cada vez mais nítida. Embora o Brasil também tenha testemunhado oscilações em sua economia nas duas últimas décadas e o crescimento médio esteja muito abaixo do observado entre 1870 e 1986[3], a inflação foi mantida sob controle em níveis considerados baixos para nossos padrões. Enquanto isso, a economia argentina passou a maior parte desse tempo envolvida em grave crise, com a perversa combinação de baixo crescimento, elevada inflação, alto desemprego e forte endividamento, tanto interno quanto externo, fazendo com que o país fosse obrigado a recorrer mais de uma vez ao Fundo Monetário Internacional.

Para favorecer uma comparação mais ampla entre o Brasil e a Argentina, vou me estender no exame da longa deterioração do país vizinho.

Nasci em 1955 e, graças ao basquete, a partir dos 13 anos de idade tive oportunidade de realizar uma série de viagens ao exterior, numa época em que tal prática não era tão comum como é nos dias de hoje. Mesmo tendo conhecido diversos outros países antes de conhecer a Argentina, o que aconteceu apenas em 1977, ouvi diversas referências ao elevado nível de desenvolvimento do país que, em meados do século passado, ostentava indicadores socioeconômicos superiores inclusive aos de diversos países da Europa.

Quando estive na Argentina pela primeira vez, o quadro já não era o mesmo e o processo de deterioração já se encontrava em curso. De lá para cá, tive a chance de retornar ao país mais de uma dezena de vezes e, a cada nova visita, constatava o agravamento da situação.

Embora, a exemplo do que ocorreu também no Brasil, tenham se observado algumas oscilações, a tendência declinante foi uma característica marcante da economia argentina nos últimos 60 anos. Marcos Aguinis, brilhante sociólogo argentino, descreve de forma contundente essa trajetória declinante num livro intitulado ¡Pobre patria mía!:

Fomos ricos, cultos, educados e decentes. Em poucas décadas nos convertemos em pobres, mal educados e corruptos. Geniais! A indignação me tritura o cérebro, a ansiedade me arde nas entranhas e enrijece todo o sistema nervoso. Adoto hoje [neste livro] o subgênero do panfleto – elétrico, insolente, visceral – para dizer o que sinto sem ter que por notas de rodapé ou assinalar as citações. O que quero transmitir é tão forte e claro que devo esculpir. Ao leitor que já me conhece só peço, como sucedia com os panfletos do século XIX, que considere minha voz como a voz dos que não têm voz. Ou que, se a tem, não sabem como nem onde transmiti-la. Não se trata de arrogância, mas sim de pedir permissão.[4]

Mais adiante, numa clara manifestação de inconformismo pela pouca importância que a comunidade internacional atribui atualmente a um país que já foi considerado o mais desenvolvido da América do Sul, Aguinis assinala:

Cada vez que regresso de uma viagem ao estrangeiro, alguém me pergunta: “Que opinam a nosso respeito?” Existe ansiedade por obter a aprovação alheia, como se fôssemos conscientes da culpa que carregamos por haver corrompido o presente argentino. Minha resposta, por muitos anos, tratava de refletir os conceitos que haviam chegado a meus ouvidos. Agora já não preciso me esforçar. Respondo sem anestesia: “Crês que opinam mal? Não te iludas! Nem sequer mal: já não falam de nós”.

O casal Kirchner ocupa posição de destaque no rol dos responsáveis pela situação ter chegado até o ponto em que se encontra. O trecho que se segue, extraído já da parte final do livro deixa isso claro:

Nunca o casal K entendeu que o mundo é uma imensa oportunidade, onde nossos produtos seriam avidamente devorados. Que teríamos tudo para abastecer o mercado. Nunca entendeu que se devem respeitar os direitos da propriedade privada porque, ao contrário do que supunha o desinformado Proudhon, constituem a raiz da riqueza e um estímulo ao respeito pelo outro e por si mesmo. Aristóteles demonstrou que “o que é de todos, não é de ninguém”. A carência de hierarquia da propriedade privada permite o avanço da depredação. O famoso “modelo K”, apesar de obscuro, pelo menos deixa entrever que ama a depredação.

A conclusão de Aguinis não deixa margem a qualquer dúvida. É dentro, e não fora do país, que se encontram as razões dessa prolongada decadência.

A firme defesa dos princípios defendidos pelo socialismo bolivariano e o fortalecimento das relações com a Venezuela, a Bolívia e o Equador que se verificaram nos últimos anos serviram apenas para agravar uma situação que já era difícil.

Considerando um horizonte temporal mais reduzido, é possível afirmar que a economia argentina encontra-se em recessão desde 2011. Conseguiu, graças a alguns resultados iniciais obtidos pelo governo do presidente Mauricio Macri, levar a situação com altos e baixos por algum tempo. Porém, quando ficou claro que as metas prometidas por Macri não seriam atingidas, a situação se deteriorou, obrigando o país a contrair um empréstimo de US$ 56,3 bilhões junto ao FMI em 2018. A vitória do peronista Alberto Fernandez no primeiro turno das eleições de outubro de 2019 trouxe alguma esperança a uma parcela da população argentina.  A falta de resultados imediatos e a chegada da pandemia, em março do ano passado, tornaram as coisas ainda mais difíceis.

Não é fácil enumerar todos os problemas que afligem a nação vizinha. Alguns deles, porém, chamam a atenção: (i) a economia argentina permanece dependente da exportação de produtos agrícolas, de baixo valor agregado, enquanto seu parque industrial apresenta sinais alarmantes de obsolescência; (ii) a inflação segue num patamar elevado para os padrões internacionais, apesar de sucessivas tentativas de mantê-la controlada por meio de congelamento e/ou tabelamento dos preços de determinados produtos; (iii) continua existindo na Argentina uma perigosa convivência da moeda local com o dólar, com um ativo mercado paralelo que reflete enorme desconfiança na moeda local; (iv) o país apresenta forte vulnerabilidade por não dispor de reservas internacionais suficientes para lhe permitir condições favoráveis no enfrentamento das pressões ou mesmo na negociação com os credores.

Em conversa recente com Norberto Vidal, ex-cônsul da Argentina em São Paulo,  sobre problemas vividos por nossos países, ele revelou que em consequência da derrota nas primárias realizadas em 12 de setembro, o governo argentino passou a adotar ações desesperadas, com farta distribuição de recursos públicos, com o objetivo de tentar evitar uma derrota ainda maior nas eleições legislativas que serão realizadas no próximo dia 14 de novembro.

Considerando a gravidade da situação vivida pela Argentina e esse comportamento descontrolado do governo, imaginei que a diferença com a situação da economia brasileira se ampliaria ainda mais.

Ledo engano. Num prazo muito mais curto do que eu poderia supor, deparei-me com uma série de ações que, também por motivos eleitoreiros, comprometeram rapidamente nossos indicadores econômicos, com elevação da inflação, deterioração do câmbio e violação do teto de gastos. O argumento, falacioso em minha opinião, foi a necessidade de priorizar aspectos sociais, como se houvesse incompatibilidade entre responsabilidade social e responsabilidade fiscal.

As medidas adotadas provocaram, entre outras coisas, a demissão de dois dos mais importantes assessores do ministro Paulo Guedes, num raro exemplo, nos dias de hoje, de obediência aos padrões de decência por parte de integrantes do Executivo[5].

Com isso, além de nos aproximarmos da situação da Argentina, estamos caminhando celeremente para um passado em que, diante do descontrole na área fiscal, toda a responsabilidade pela contenção da inflação fica com a política monetária. Em outras palavras, com o Banco Central e sucessivas elevações da taxa de juros.

Como bem observa Affonso Celso Pastore, ex-presidente do Banco Central:

Quando um governo irresponsável eleva os gastos sem ter os recursos, impõe ao Banco Central uma dura escolha. Ou este exerce sua independência, elevando a taxa de juros o que for necessário para cumprir seu mandato, ou se submete aos objetivos políticos do governo, tornando-se prisioneiro da dominância fiscal.

Sua conclusão é bem objetiva: “O que resta, diante da irresponsabilidade fiscal do governo e de sua base de apoio no Congresso, é a esperança de que o Banco Central exerça sua independência e cumpra seu mandato”.

 

 

Referências e indicações bibliográficas e webgráficas 

AGUINIS, Marcos. O atroz encanto de ser argentino. São Paulo: Editora Bei, 2002. 

_______________ ¡Pobre patria mía!: Panfleto. 9ª ed. Buenos Aires: Sudameris, 2009.

CHAGUE, Fernando. Eu (não) sou você amanhã. Folha de S. Paulo, 26 de dezembro de 2019. Disponível em https://porque.com.br/eu-nao-sou-voce-amanha. 

DEPOIS das pedaladas, a obscenidade fiscal. O Estado de S. Paulo, 23 de outubro de 2021, p. A3.

FRANCO, Gustavo. O teto e o precipício. O Estado de S. Paulo, 31 de outubro de 2021, p. B6.

GOLFAJN, Ilan. ‘Responsabilidade social não significa irresponsabilidade fiscal’. Entrevista a José Fucs. O Estado de S. Paulo, 31 de outubro de 2021, p. B4.

KUNTZ, Rolf. Bolsonaro e a privatização do Orçamento. O Estado de S. Paulo, 24 de outubro de 2021, p. A8.

MEIRELLES, Henrique. ‘Estou vendo uma volta para trás. Um retrocesso’. Entrevista a Adriana Fernandes. O Estado de S. Paulo, 24 de outubro de 2021, p. B4.

MENDONÇA DE BARROS, José Roberto. Descendo a ladeira. O Estado de S. Paulo, 31 de outubro de 2021, p. B3.

MING, Celso. O Brasil. Mais parecido com a Argentina. O Estado de S. Paulo, 24 de outubro de 2021, p. B3. 

PASTORE, Affonso Celso. Só restou o Banco Central. O Estado de S. Paulo, 24 de outubro de 2021, p. B2. 

RICUPERO, Rubens. O Brasil e o dilema da globalização. São Paulo: Editora SENAC. Série Livre Pensar, 2001. 

SCHUETTINGER, Robert Lindsay; BUTLER, Eamonn. Quarenta séculos de controles de preços e salários: o que não se deve fazer no combate à inflação. Tradução de Anna Maria Capovilla. São Paulo: Visão, 1988.

 

 

[1] Lamentavelmente, os responsáveis pela condução da política econômica do Brasil e da Argentina jamais leram o livro Quarenta séculos de controles de preços e salários, que tem o sugestivo subtítulo o que não se deve fazer no combate à inflação.

[2] Em 1992, a inflação anual na Argentina foi de 17%, enquanto no Brasil atingiu 1.178%. Em 1993, ano anterior ao da adoção do Plano Real, a inflação brasileira foi de 2.567%, ao passo que a inflação média no continente foi de 22%.

[3] No consagrado trabalho World Economic Performance Since 1870, Angus Maddison, um dos mais respeitados analistas de ciclos longos de desenvolvimento, identificou o Brasil como o país que apresentou melhor desempenho de 1870 a 1986, numa amostra que reunia os cinco maiores países da OCDE (EUA, Alemanha, Reino Unido, França e Japão) e os cinco maiores de fora da OCDE (Rússia, China, Índia, México e Brasil). Nesse estudo, publicado em 1987 e apontado pelo embaixador Rubens Ricupero (2001, p. 103) como “o mais impressionante de todos, por comparar grandes economias, portanto entidades pertencentes mais ou menos à mesma ordem de grandeza, e por cobrir duração de tempo tão extensa”, Maddison concluiu que “o melhor desempenho tinha sido o brasileiro, com a média anual de 4,4% de crescimento; em termos per capita, o Japão ostentava o resultado mais alto, com 2,7%, mas o Brasil, não obstante a explosão demográfica daquela fase, vinha logo em segundo lugar, com 2,1% de expansão por ano”.

[4] Todas as citações do livro ¡Pobre patria mía! foram traduzidas para o português pelo autor.

[5] Os dois assessores que pediram exoneração de seus cargos no dia 21 de outubro foram Bruno Funchal, secretário especial do Tesouro e Orçamento, e Jeferson Bittencourt, secretário do Tesouro Nacional.

 

* Luiz Alberto Machado é economista pela Universidade Mackenzie (1977), mestre em Criatividade e Inovação pela Universidade Fernando Pessoa (Portugal, 2012), assessor da Fundação Espaço Democrático e conselheiro do Instituto Fernand Braudel.

 

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O Copom e a Dominância Fiscal https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2594&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-copom-e-a-dominancia-fiscal https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2594#comments Wed, 02 Sep 2015 12:17:07 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2594 Nesta semana, o Banco Central irá se reunir para definir a taxa de juros básica da economia, que atualmente se encontra em 14,25% ao ano. A maior parte do mercado espera que o Copom mantenha inalterada a taxa de juros nesta reunião, assim como não faça qualquer alteração até o final do ano. Neste ano, o Banco Central elevou a taxa Selic de 11,75% para 14,25% ao ano, uma alta de 2,5 pontos percentuais. Em relação aos indicadores de atividade, com a divulgação do péssimo resultado do PIB do 2º trimestre, o mercado reduziu a projeção do PIB para retração de 2,3% do PIB neste ano e de retração de 0,4% em 2016. Além disso, foi divulgada a elevação da taxa de desemprego para 8,3% no 2º trimestre, maior taxa desde o início da série em 2012.

Em condições normais, a decisão de elevação das taxas de juros pela autoridade monetária promove efeitos sobre a economia para combater a inflação por pelo menos três canais. O primeiro é o impacto da Selic sobre as taxas de crédito ao consumidor e às empresas. Por esse canal, o aumento tende a reduzir o consumo e os investimentos e, por conseguinte, o nível da atividade econômica. O segundo canal é sobre o câmbio, onde o aumento da Selic torna as aplicações financeiras no país mais atrativas para o capital estrangeiro, incentiva o ingresso de capitais, tende a valorizar o real e, por conseguinte, reduz a pressão inflacionária. Por fim, existe o componente das expectativas. Por meio da credibilidade da autoridade monetária e seu comprometimento em alcançar as metas estabelecidas, a elevação da taxa de juros diminui as expectativas de inflação futura e, consequentemente, reduz a pressão sobre reajustes de preços.

Existe uma situação, no entanto, em que a efetividade de parte dos canais da política monetária deixa de funcionar. Trata-se da dominância fiscal. O termo cunhado pelos economistas para descrever a circunstância onde a política monetária perde liberdade e a efetividade de sua estratégia por causa dos seus efeitos sobre as contas públicas. Em uma situação onde o nível de endividamento é elevado, há alto custo de carregamento e as contas públicas não estão equilibradas, o aumento da taxa de juros pode elevar a probabilidade de default da dívida pública, tornar o mercado de títulos menos atrativo ao investidor estrangeiro ou local, causar depreciação cambial e pressão inflacionária. Nessa circunstância, a política fiscal (e não a política monetária) é o melhor instrumento para controlar a inflação por meio da redução das despesas públicas.

Olivier Blanchard, Economista Chefe do FMI, publicou o artigo Fiscal Dominance And Inflation Targeting: Lessons From Brazil em 2004, onde indica que o país se encontrou na situação de dominância fiscal na crise enfrentada pelo país em 2002 e 2003, após as incertezas do processo eleitoral. De acordo com o autor, o fator determinante para a formação da dominância fiscal do período foi o elevado nível de endividamento, sua composição, com alta participação de títulos atrelados ao dólar, e o ambiente de aversão ao risco de investidores. Nessa circunstância, o aumento dos juros provavelmente levou a uma depreciação cambial.

O tema da dominância fiscal está muito presente das discussões econômicas no pós-crise 2008. Como vários países tiveram que se endividar fortemente para evitar o colapso do sistema econômico, há preocupação sobre a solvência das contas públicas no momento em que os bancos centrais tiverem que aumentar juros novamente. Michael Woodford no seu artigo Fiscal Requirements for Price Stability analisa o papel da política fiscal na determinação da estabilidade inflacionária. Chega-se a um regime ótimo em combinar uma regra de Taylor (regra que define a política de juros com base no desvio da inflação em relação à meta e no hiato do produto) para a política monetária com uma meta de comprometimento para o déficit nominal como regra fiscal.

Analisando a atual conjuntura do Brasil, observa-se que, em relação a alguns indicadores, o país está mais preparado para enfrentar crises que no ano de 2002. Primeiro, o Tesouro Nacional realizou um importante trabalho de reduzir a participação da dívida atrelada ao dólar nos últimos anos, o que deixou a dívida menos vulnerável a variações cambiais. Ademais, o montante de reservas internacionais acumuladas hoje é bem superior. No caso da política monetária, o choque de juros implementado pelo Banco Central para o processo de retomada da convergência da inflação à meta, neste ciclo, foi bem inferior ao necessário em 2003, quando a Selic chegou a atingir 26,5% a.a.

No entanto, há outros fatores fiscais que são mais desafiadores neste ciclo em relação à crise de 2002. Primeiramente, a situação fiscal brasileira se encontra em um processo contínuo de deterioração desde 2011, sem que se tivesse tomado medidas efetivas para mitiga-lo. Acumulou-se um montante enorme de despesas represadas que teve seu processo de regularização iniciado no final de 2014. Em relação às receitas, o baixo dinamismo econômico traz um cenário futuro desafiador para esse componente. Quanto ao perfil do gasto público, as despesas obrigatórias assumiram uma tendência expansionista recente que surpreendeu vários analistas. Destaco as despesas previdenciárias, que muitos imaginavam que era um problema apenas de médio-prazo, mas que resolver bater em nossa porta já neste ano.

Por fim, e talvez o mais importante, a forte crise política que vivemos neste momento é um fator de forte instabilidade. Por um lado, o regime “presidencialista de coalisão” mostra sinais de esgotamento, por outro, a baixa popularidade do governo faz com que os parlamentares se distanciem da agenda governamental, votando, inclusive, medidas que deterioram a situação fiscal, como na votação do fim do fator previdenciário e nas propostas de aumento salarial dos servidores públicos. Dessa forma, o necessário processo de ajuste fiscal torna-se extremamente custoso e eleva o nível de incerteza dos agentes econômicos.

É nesse ambiente de deterioração fiscal, com o déficit nominal atingindo 8,8% do PIB em 12 meses, sem perspectivas de o Congresso cooperar e elevado nível de incerteza dos agentes econômicos que a situação de dominância fiscal pode ocorrer. Essa é uma avaliação que deve estar na mesa na reunião do Copom desta semana. Como a atividade econômica já se encontra em retração e o desemprego em alta, será que o aumento ou manutenção da taxa Selic neste patamar irá contribuir para reduzir as expectativas de inflação ou para gerar mais incertezas sobre as condições de solvência da política fiscal? No meu ponto de vista, essa é a questão mais importante da agenda monetária nos próximos meses.

 

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Por que a economia brasileira foi para o buraco? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2585&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-a-economia-brasileira-foi-para-o-buraco https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2585#comments Tue, 25 Aug 2015 18:12:38 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2585 Até poucos anos atrás havia grande otimismo em relação à economia brasileira. Chegamos a crescer 7,6% em 2010. Os salários cresciam, o desemprego ia para zero, a pobreza e a desigualdade caiam. A ascensão da classe C era festejada com a ampliação do consumo. De repente tudo mudou: a economia entrou em recessão em meados de 2014. As previsões para os próximos anos, coletadas junto ao mercado pelo Banco Central, são sombrias: uma recessão de 2% esse ano e crescimento zero em 2016. E mesmo quando a luz no final do túnel aparecer, o que se espera são medíocres taxas de crescimento do PIB de, no máximo, 2% ao ano. A taxa de desemprego calculada pelo IBGE não para de subir, passando de 4,3% em dezembro de 2014 para 7,5% em julho de 2015. Os dados sobre o déficit e a dívida do Governo Federal só mostram deterioração: festejados programas de governo, como o Fies e o Pronatec, tiveram que ser encolhidos por falta de dinheiro. A inflação disparou. Alguns governos estaduais não conseguem sequer pagar o funcionalismo, e estão parcelando os contracheques. Afinal, o que aconteceu para que caíssemos do nirvana para o buraco tão rapidamente?

A crise econômica atual tem causas antigas, que remontam ao início do atual  período democrático (iniciado em 1985), bem como causas recentes, ligadas a uma política econômica equivocada e inconsistente, adotada por volta  de 2005/2006 e aprofundada a partir de 2011.

As causas antigas

Quando o Brasil transitou de um regime ditatorial para uma democracia, em 1985, surgiram fortes pressões sociais para expansão do gasto público. Isso levou ao aumento do déficit público e exigiu a expansão da carga tributária. Esses fatos estão na base da nossa crise atual, como veremos a seguir. Vejamos, primeiro, porque o gasto público passou a crescer após à transição para a democracia.

Houve um acúmulo de necessidades sociais não atendidas ao longo dos 21 anos de regime militar. Praticamente não havia políticas públicas para atendimento aos mais pobres. Os indicadores sociais e educacionais estavam em níveis africanos.

Durante a ditadura os governantes não se sentiam premidos a atender a população mais pobre pelo simples fato de que o direito de voto era restrito. Havia eleição direta apenas para os cargos de senador, deputado e prefeitos de pequenas cidades. Ter uma carreira política de sucesso em muitos casos não dependia de ter votos. Com a redemocratização e a instituição de eleições diretas em todos os níveis, a sobrevivência de um político no poder passou a depender diretamente do voto.

Sendo os pobres a maioria do eleitorado (lembrando que até mesmo os analfabetos passaram a ter direito a voto), nada mais natural de que os políticos no poder passassem a oferecer políticas públicas a favor dos mais necessitados. Houve uma explosão de políticas de assistência social, educação e saúde pública. Diversos indicadores sociais passaram a melhorar, ainda que muito dessas políticas sejam caras e pouco eficientes.

Ocorre que não apenas os pobres se beneficiaram. A classe média também encontrou maior espaço para reivindicação. Afinal, com a redemocratização recobrou-se o direito de greve e o direito de associação em sindicatos e outras instituições formadas por pessoas com interesses comuns (associações de aposentados, de consumidores, de pacientes de doenças raras, etc.). Esses grupos passaram a ter grande poder de pressão para reivindicar políticas públicas a seu favor.

Frente ao ganho de poder político dos pobres e da classe média, seria de se esperar que os mais ricos perdessem espaço no orçamento público, com o governo direcionando os recursos antes gastos em favor deste para programas voltados aos pobres e à classe média. Mas isso não aconteceu. Os mais ricos também ganharam poder de reivindicação. Afinal, eleições custam caro, e alguém tem que financiá-las. Por meio do financiamento eleitoral, grandes empresas (em especial aquelas que têm contrato com o poder público) passaram a garantir o atendimento de seus interesses.

Ou seja, com a redemocratização, o Estado brasileiro passou a ser pressionado para atender aos pobres, à classe média e aos ricos. Com vários segmentos sociais tendo acesso aos recursos públicos, instituiu-se um cenário de forte disputa pelos recursos orçamentários. Para que isso não resultasse em expansão da despesa pública, teria sido necessário criar regras eficazes de limitação do gasto público: um orçamento consistente, que refletisse a real expectativa de receitas e despesas; limites legais para o déficit público; vedação ao financiamento do Tesouro pelo Banco Central.

Essas regras fiscais ou não foram instituídas, ou foram contornadas. Criaram-se, também, regras na direção contrária ao controle fiscal. Na nossa frágil democracia, pressionada por diferentes grupos sociais e de interesses, foram sendo construídas regras que protegiam a fatia do bolo dos grupos que conseguiam fazer mais pressão sobre instâncias decisórias do poder público. Assim, foram criadas regras que instituíam despesa mínima para os setores de educação e saúde, regras benevolentes de aposentadoria, crédito subsidiado para grandes empresas por meio de bancos públicos, regras de aumento real para o salário mínimo, etc.

Ou seja, em vez de haver regras fiscais que impusessem um limite ao gasto público total e forçassem os políticos a fazer escolhas entre beneficiar o grupo A ou o grupo B, o que se criou foram regras que obrigavam o setor público a beneficiar todo mundo, ao mesmo tempo, o tempo todo. Como bem sabe qualquer pessoa que administra um orçamento doméstico, uma hora a despesa fica maior que a receita e o endividamento explode.

No caso de governos, ao contrário dos orçamentos domésticos, há uma saída (perigosa) para evitar o endividamento: emitir moeda para pagar a despesa. E foi isso que se fez entre 1985 e 1994. O resultado foi a hiperinflação. Como os grupos sociais não conseguiam chegar a um consenso sobre o controle dos gastos públicos e como não havia regras fiscais que garantissem um orçamento equilibrado, a inflação fazia o serviço, corroendo o valor real dos gastos públicos e da renda das pessoas.

O problema é que a inflação tem efeitos perversos: além de incidir mais fortemente sobre os mais pobres (que não têm acesso a bancos, para proteger seu dinheiro por meio de aplicações financeiras), ela cria um ambiente de incerteza e insegurança que desestimula o investimento, levando a baixo crescimento econômico. Tivemos uma década perdida, em que tentamos nos livrar da inflação. Tentávamos fazê-lo sem abrir mão da prodigalidade fiscal. Queríamos resolver o problema (inflação) sem extinguir a causa (déficit público).

O esgotamento fiscal induziu a realização de algumas reformas. A principal delas foi o Programa Nacional de Desestatização, iniciado em 1990, que afastou o setor público da gestão de empresas então deficitárias e operadas de forma ineficiente em vários setores, como siderurgia, telefonia e mineração. Essas empresas funcionavam como um segundo cofre do Tesouro e como ferramenta de política econômica, muitas vezes sendo induzidas a tomar decisões que prejudicavam seu desempenho. Tomavam empréstimos no exterior quando era necessário fechar as contas do balanço de pagamentos; tinham os preços de seus produtos congelados, para segurar a inflação; etc.

Embora importantes, as privatizações não foram capazes de mudar o deficitário regime fiscal brasileiro. Passamos quase uma década, de 1985 a 1994, em que sete planos de estabilização da moeda falharam, porque não conseguiram impor limites ao gasto público. Somente em 1994 tivemos um plano de sucesso. O Plano Real correu o mesmo risco de dar errado, como os seus antecessores, pois não foi acompanhado de medidas para controlar os gastos públicos. Mais uma vez os esforços de ajuste fiscal não foram suficientes para equilibrar as contas públicas. Destaca-se nesse período a criação, em 1994, do Fundo Social de Emergência (posteriormente rebatizado de “Desvinculação de Receitas da União” – DRU), para tornar a despesa orçamentária menos rígida e viabilizar a redução de despesas obrigatórias (Emenda Constitucional de Revisão nº 1, de 1994). Esse é o exemplo típico de ajuste fiscal limitado, fazendo-se aquilo que as restrições políticas permitiam fazer: ajustes marginais, jamais reformas amplas, que assegurassem o equilíbrio fiscal e a solvência de longo prazo das contas públicas.

Novas crises de balanço de pagamentos surgiram em 1997 e 1998, nas quais a frágil situação fiscal brasileira somou-se ao contágio de crises ocorridas em outros países emergentes. Naquele momento ficou claro que o sucesso da estabilização dependia de mudanças profundas no regime fiscal brasileiro. As crises econômica e política forçaram os agentes políticos a aceitar limitações fiscais. Ajudou o fato de que um empréstimo do FMI ficava condicionado a medidas de ajuste fiscal: se os diversos grupos sociais e políticos do país não conseguiam se entender sobre como conter o gasto público, uma imposição externa ajudava a formar o consenso.

O ajuste fiscal “meia boca”

O país começou, então, a trilhar um caminho de mais responsabilidade fiscal. Assim, aprovou-se a Lei de Responsabilidade Fiscal no ano 2000. Um pouco antes, entre 1997 e 1998, fez-se uma importante renegociação da dívida dos estados e municípios junto ao mercado financeiro. Essa dívida era impagável e alimentada por déficits crônicos desses governos. O Governo Federal assumiu a dívida e passou a pagá-la em dia aos credores privados. Em troca disso, os estados e municípios se comprometeram a pagar o débito de forma parcelada ao Governo Federal ao longo de trinta anos. Para conseguir pagar essa dívida, foram forçados a ajustar suas contas. Quem não pagasse em dia, tinha as suas receitas confiscadas pelo Governo Federal. O esquema deu certo, e os estados e municípios se ajustaram rapidamente. Pela primeira vez na história recente começamos a ouvir palavras como “eficiência”, “gestão” e “equilíbrio fiscal” no âmbito dos governos estaduais e municipais. Tudo isso porque estava fechada a porta ao socorro federal: ou os estados e municípios se ajustavam ou quebravam.

Mais medidas foram tomadas visando ao equilíbrio fiscal. Estabeleceram-se metas de resultado primário e de redução da dívida nos três níveis de governo. Pouco depois se propôs uma reforma da previdência, com foco no regime dos servidores públicos (Emenda Constitucional nº 20/1998).

A aprovação dessas reformas ajudou bastante, mas não alterou o modelo instaurado nos anos 1980: continuava a pressão por aumento dos gastos públicos. A aprovação de cada reforma representava grande custo político para o Governo, em especial devido à aguerrida resistência dos interesses estabelecidos, apoiada pelos partidos de oposição da época. Não havia nada próximo a um consenso social em torno da reforma do Estado. Somente a visão da beira do precipício, representada pelas ameaças e concretizações de crises cambiais, é que davam estímulo e cacife ao Poder Executivo Federal para propor, e ao Legislativo para aceitar, pequenos avanços na agenda de reformas.

Em função dessa resistência, não  se reformou a previdência do setor privado ou o processo de elaboração e execução do orçamento federal. Para piorar, foram tomadas medidas fiscais em direção contrária, das quais se destacam a aceleração dos reajustes do salário mínimo (que tem grande impacto na despesa da previdência) e a vinculação das despesas em saúde ao ritmo de crescimento do PIB (Emenda Constitucional nº 29, de 2000). O apelo eleitoral desse tipo de medida é evidente.

Naquele momento a carga tributária ainda não era tão elevada. Em 1998, por exemplo, estava na casa de 27% do PIB. Por isso, havia espaço para fazer o ajuste fiscal via aumento de receitas. E assim se fez, com a criação de novos tributos e a majoração dos antigos, para dar conta do crescimento acelerado da despesa. Para a classe política era mais fácil dispersar o custo entre todos os contribuintes do país, do que comprar brigas com grupos organizados que defendiam seu quinhão no orçamento. Ademais, cada aumento de impostos vinha embalado com uma nobre causa a ser atendida: a CPMF era para financiar a saúde, o aumento das contribuições sociais era para financiar as aposentadorias, etc.

Passamos, então, de um regime cronicamente inflacionário (devido ao alto déficit público) para um regime de gastos públicos altos financiados por alta carga tributária. Já não tínhamos mais a hiperinflação, mas a economia não conseguia crescer, sufocada pela alta carga tributária.

Outra característica do nosso ajuste fiscal foi o radical corte nos investimentos públicos. A criação de regras de despesas obrigatórias em diversos setores, como educação, previdência e saúde, não foi acompanhada de regras de despesa mínima em infraestrutura. Estas ficaram expostas a cortes, para que se pudesse ampliar despesas que beneficiavam diretamente grupos bem organizados. A infraestrutura do país tornou-se cada vez mais precária, passando a representar um gargalo adicional para o crescimento econômico.

E o problema não estava só nas contas públicas

O fato de a nossa jovem democracia não ter conseguido construir instituições para conter o poder de influência dos diferentes grupos de interesse (ricos, pobres e de classe média) sobre as decisões públicas criou outros problemas além do desequilíbrio fiscal crônico, que passaram a minar a nossa capacidade de crescimento. Assim como reivindicavam gastos públicos ou benefícios tributários a seu favor, cada um desses grupos organizados também lutava por regulação econômica que protegesse suas rendas. E isso se fazia à custa da eficiência e competitividade da economia, resultando em menor potencial de crescimento.

A indústria conseguiu influenciar a política comercial do país, mantendo altas barreiras à entrada de produtos estrangeiros. Isso diminuiu a entrada de novas tecnologias no país, reduzindo o ritmo de inovação e de ganho de produtividade. Ademais, deu sobrevida a empresas ineficientes que, não tendo que competir com estrangeiros, conseguiram se manter vivas. Essas empresas utilizam recursos produtivos (mão de obra, capital, financiamentos) que poderiam ser mais bem empregados em empresas mais produtivas, gerando mais renda e produto.

Os sindicatos de empregados de empresa do setor formal conseguiram manter regras trabalhistas rígidas, que garantem benefícios a quem está empregado, mas que induzem as empresas a contratar menos. Assim, tais benefícios têm, como contrapartida, perdas para os trabalhadores que não conseguem emprego formal, e se mantêm no setor informal, sem acesso aos benefícios. Com regras trabalhistas rígidas, as empresas não têm flexibilidade para se ajustar a variações no ritmo da economia. Muitas, para evitar entrar no radar dos órgãos de fiscalização, optam por se manter pequenas, sem registrar seus trabalhadores. Perde-se oportunidade para que empresas talentosas cresçam, pois empresas informais não têm acesso a crédito e têm poucos incentivos a treinar seus trabalhadores. Mais uma vez, prejudica-se o crescimento econômico.

Os servidores públicos e seus sindicatos, com crescente influência, conseguiram obter ou manter diversos benefícios para as diferentes categorias, colocando em segundo plano o interesse dos usuários de serviços públicos. Greves intermináveis, nunca punidas com demissões ou desconto de remuneração, passaram a paralisar escolas, universidades, policiamento, vigilância sanitária, justiça e serviços de saúde. Os serviços públicos terceirizados, em uma comunhão de interesses das empresas concessionárias e de seus empregados, passaram a paralisar frequentemente os transportes públicos, a coleta de lixo e serviços funerários.

A justiça morosa sempre beneficiava quem tinha mais tempo e dinheiro para ingressar em juízo e manter causas de longa duração. O respeito aos contratos, em tal situação, fica ameaçado, o que desestimula investimentos.

Em função dessas dificuldades, o país navegou, entre 1994 e 2003, com baixa capacidade de crescimento, mas com estabilidade de preços, garantido pelo ajuste fiscal precário, baseado em aumentos de impostos.

As sucessivas crises externas, associadas a esse equilíbrio instável das contas públicas, infraestrutura deficiente e regulação econômica ineficiente, não abriam muito espaço para o crescimento.

E o ajuste fiscal necessário não se concretizava

Nos primeiros anos do novo século já estava clara a necessidade de reformas que mudassem o padrão de crescimento do gasto público. Projeções de especialistas em previdência social mostravam que os sistemas dos servidores públicos e do setor privado estavam em rota de déficit crescente. Os gastos em programas sociais cresciam de forma acelerada. A rigidez da despesa com pessoal, saúde e educação também aumentava. O processo de elaboração do orçamento era frágil: as receitas superestimadas, as despesas subestimadas e o controle fiscal feito “na boca do caixa”. Tornou-se lugar comum a frase segundo a qual “o orçamento público, no Brasil, é uma peça de ficção”.

Ou seja, mais de uma década atrás já era evidente que o regime fiscal brasileiro não seria sustentável no longo prazo. Obviamente, a carga tributária não poderia crescer para sempre, pois chegaria um momento em que sufocaria os contribuintes e as possibilidades de crescimento econômico e da própria receita. A crônica falta de investimento em infraestrutura reduzia o potencial de crescimento do PIB e da receita pública. Enquanto isso a despesa crescia, sempre a taxas superiores ao PIB, como pode ser visto no gráfico abaixo. Em 2001, já havia rompido, no caso específico do governo central (Tesouro Nacional, Banco Central e Previdência Social), a barreira dos 15% do PIB. Tudo isso projetava um futuro em que a dívida pública cresceria mais que o PIB e, em algum momento, se tornaria impagável.

Gráfico 1 – Despesa Primária do Governo Central: 1997-2014 (% do PIB)

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Chegamos, então, a 2002 com um regime fiscal capenga e insustentável. A associação desse fato com a eleição de Lula para a Presidência da República desencadeou um movimento de temor sobre qual seria a política econômica do PT. O passado recente de oposição à Lei de Responsabilidade Fiscal, às reformas da previdência e a toda e qualquer medida de controle de gastos indicava que se teria um governo populista, que aceleraria o ritmo de deterioração das contas públicas. Em função desse temor, houve fuga de capitais e, mais uma vez, o país se viu em uma crise de balanço de pagamentos, sem dólares para pagar os compromissos externos do governo e das empresas privadas. A cotação do dólar ultrapassou a marca dos R$ 4,00 e  a inflação acelerou-se: nos três últimos meses de 2002 o IPCA acumulou 6,5%, equivalente a uma taxa anualizada de 29%.

Ao tomar posse em meio a forte crise econômica, o Presidente Lula surpreendeu e adotou um conjunto de medidas de ajuste fiscal que confrontava todo o discurso oposicionista do PT. Mandou para o Congresso e aprovou, ainda que de forma mitigada, uma reforma da previdência do setor privado (Emendas Constitucionais nº 41/2003 e nº 47/2005). Controlou com mão de ferro as despesas não obrigatórias e os reajustes do funcionalismo público. Manteve a escalada da carga tributária. Ou seja, intensificou o padrão de equilíbrio fiscal do governo anterior: algumas reformas, supressão do investimento público e elevação da carga tributária.

Assim como no caso do Governo FHC, não conseguiu abrir mão de políticas de alto retorno eleitoral, como os aumentos reais para o salário mínimo. Tampouco reformou o frágil processo orçamentário. O controle da despesa continuava na boca do caixa, a base de “decretos de contingenciamento”. Obteve-se alguma melhoria na qualidade do gasto público ao se reformar um conjunto de programas sociais, criando-se o Bolsa Família.

Outras reformas, fora da área fiscal, foram realizadas com o objetivo de aumentar a eficiência da economia. Destaquem-se a Lei de Falências, a introdução do sistema de crédito consignado e a melhoria das garantias em operação de crédito, facilitando a execução de garantias. Isso melhorou o ambiente de negócios e estimulou o crédito e o investimento.

Já se começava a discutir o aprofundamento das reformas fiscais, visando zerar o déficit público. Aí veio o Mensalão…

O Mensalão e o Maná que Caiu do Céu

Essa orientação de política econômica duraria pouco. Em 2005 estourou o escândalo do Mensalão e a popularidade do Presidente Lula caiu fortemente, ameaçando a sua reeleição. Para costurar uma nova rede de apoio político, o Presidente deu uma guinada na política fiscal. Os cofres públicos foram abertos e generosos aumentos de remuneração foram concedidos a praticamente todas as carreiras do funcionalismo federal. Foram ampliadas as verbas públicas destinadas à UNE, aos sindicatos e confederações de trabalhadores, às universidades, aos estados e municípios, às emendas parlamentares, às campanhas publicitárias do governo.

Tudo indicava que teríamos uma recaída fiscal e voltaríamos para o padrão de crises cíclicas. Porém um fenômeno externo veio em socorro ao Brasil. O forte crescimento da economia chinesa elevou a demanda por commodities no mercado internacional. Os preços de nossos produtos de exportação, como minério de ferro e soja, cresceram sobremaneira. Do final de 2002 até o final de 2010 o preço médio das exportações brasileiras, em dólares, subiu 146%, enquanto o das importações cresceu apenas 85%. Um “maná vindo dos céus” (ou melhor, da China) aumentou fortemente as receitas de exportações e barateou as nossas compras de produtos industrializados – produzidos, em sua maioria, na própria China.

O Brasil, assim como todos os demais exportadores de commodities do mundo e, em especial, da América Latina, passou a acumular grandes superávits comerciais. As reservas internacionais cresceram. O fantasma da crise cambial foi afastado. O aumento de renda nacional decorrente das exportações a preços elevados se traduziu em ganhos de arrecadação de tributos. A receita do Governo Federal passou a crescer a inacreditáveis 7% ao ano, em termos reais. O desemprego caiu. A criação de regimes tributários simplificados estimulou a formalização do emprego, o que contribuiu para melhoria das contas da previdência.

Paralelamente, havia um excesso de liquidez no mercado financeiro internacional. Investidores estrangeiros passaram a aplicar seus recursos nos países emergentes. O Brasil, com boas perspectivas econômicas e uma taxa de juros atraente, passou a ser destino preferencial. Essa entrada de poupança externa, somada às melhorias institucionais no mercado interno de crédito, ajudou na forte expansão dos financiamentos de imóveis e bens de consumo.

Essa lufada de boas notícias afastou o inferno astral político do Presidente Lula, que recobrou a sua popularidade e se reelegeu. O ambiente de bonança abriu espaço para que o PT finalmente adotasse os seus ideais históricos de política econômica, baseados na crença de que é possível estimular o crescimento econômico através de um governo grande, que tenha ingerência nas decisões dos agentes privados, para orientar o mercado em direção ao crescimento.

O governo tomou como sendo permanente o ganho de renda proporcionado pelo boom de commodities. Qualquer pessoa que já gastou trinta segundos olhando um gráfico da evolução histórica da cotação de commodities sabe que esse mercado se caracteriza por alternar períodos de alta e de baixa, com a transição de um para outro se dando de forma abrupta. No entanto, a crença era de que a melhoria do quadro econômico era consequência da política interna, nada tendo a ver com o presente vindo da China. Assim, não havia que temer qualquer reversão do quadro externo.

A ordem, agora, era estimular a economia, acelerando-se o gasto público. Trocou-se a equipe econômica e criou-se, em 2007, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), baseado no desarquivamento de projetos de investimento do setor público e de empresas estatais, que passaram a ter prioridade e não seriam contabilizados como despesa pública para fins de apuração do déficit público.

Esse mecanismo de não contabilizar investimentos como desepesas, para fins de apuração do déficit público, havia sido instituído anteriormente, a partir de um acordo com o FMI. Nesse acordo criou-se o Programa Piloto de Investimentos (PPI), no qual alguns projetos, previamente selecionados com base em sua qualidade e retorno econômico, ganhavam esse privilégio. A ideia era que bons projetos de infraestrutura tendem a acelerar o crescimento e, com isso, melhorar as contas fiscais no longo prazo.

Com o advento do PAC, generalizou-se a prática de retirar os investimentos do cálculo do déficit. Não importava se os projetos fossem antigos e de baixa qualidade, tampouco se teriam algum impacto econômico relevante. Subverteu-se, portanto, um mecanismo que, se fosse usado com temperança, poderia ajudar a melhorar a infraestrutura e o crescimento econômico.

Não havia foco, nem prioridade nos investimentos: tudo teria que ser feito ao mesmo tempo. Certamente o Brasil precisava ampliar seus investimentos públicos, após décadas de supressão desses gastos em nome do equilíbrio fiscal. Mas fazê-lo dessa forma dificilmente colaboraria para melhorar a eficiência da economia.

Em 2006 o Brasil foi escolhido para ser a sede da Copa do Mundo de 2014. Em 2007 candidatou-se para sediar os jogos Olímpicos. Duas empreitadas de vulto, que exigiriam fortes investimentos em arenas esportivas, previsíveis elefantes brancos de alto custo de construção e manutenção.

A primeira rodada de aumentos reais de remuneração dos servidores públicos, ocorrida em 2006, desencadeou um movimento de reivindicação por parte das carreiras inicialmente não contempladas. Houve aumentos generalizados e os servidores nunca ganharam tanto. Em 2007, os gastos primários do governo central, retratados no gráfico 1 acima, já se aproximavam dos 17% do PIB, quase dois pontos percentuais acima do nível de 2005. Mas não se via problema nisso, pois a receita estava “bombando” e a carga tributária, reforçada pelos aumentos de impostos do período 2002-2004 e pelo crescimento da base de arrecadação, já chegava a 33,2% do PIB.

Os erros de política econômica que agravaram os problemas estruturais

Em 2008 eclodiu a crise no mercado financeiro norte-americano, com a quebra do banco Lehman Brothers. A atividade econômica mundial caiu fortemente e isso, obviamente, teve consequências sobre o Brasil. No ano de 2009 o PIB brasileiro caiu 0,23%. A equipe econômica decidiu, então, que precisava fazer uma “política anticíclica”: aumentar os gastos públicos e reduzir tributos para estimular o consumo e reativar a economia.

Política anticíclica é, por definição, algo passageiro: expande-se o gasto apenas enquanto a economia está precisando de incentivos. À medida que a economia sai da crise, e a capacidade ociosa das indústrias diminui, o governo deve retirar os estímulos.

Porém, a política anticíclica aqui adotada aumentou gastos difíceis de reverter posteriormente, como, por exemplo, a remuneração do funcionalismo e o salário mínimo. E as desonerações tributárias, que poderiam ser revertidas, não o foram em função da pressão política de seus beneficiários. Tornaram-se, isso sim, definitivas, mediante a edição de uma medida provisória posteriormente convertida na Lei nº 13.043, de 2014.

Já em 2010 a economia apresentava forte crescimento, mas os estímulos fiscais não foram retirados. Na verdade, o boom de commodities continuava intenso, pois a China manteve elevado ritmo de crescimento e continuou fortemente compradora no mercado internacional, apesar da crise que afetava os EUA e a Europa.

A partir de 2011, animado com o elevado crescimento de 2010 (que nada mais foi que a recuperação da queda de 2009 e não o prenúncio de um novo patamar de crescimento), a política anticíclica transmutou-se em um conjunto de medidas que veio a ser batizado de “Nova Matriz Econômica”.

Essa “nova” política consistia em forte intervenção governamental na economia visando estimular o investimento privado e o consumo. A ideia básica era de que, havendo mais consumo, as empresas se interessariam em investir e produzir mais. Ao mesmo tempo, se os investimentos fossem incentivados e subsidiados, o ciclo se fecharia, com as empresas ampliando investimentos e produção. A taxa de crescimento se aceleraria. Não seria preciso se preocupar com equilíbrio fiscal, pois o crescimento decorrente da política de estímulos faria a receita pública crescer e fechar as contas do governo.

Também fazia parte do cardápio a redução da taxa de juros básica da economia. Considerada pelos gestores da política econômica como instrumento ineficiente de controle da inflação, ela precisaria ser reduzida para diminuir os custos financeiros das empresas e dos consumidores. A queda dos juros no mercado internacional, em função da crise financeira de 2008, parecia uma oportunidade e tanto para baixar as taxas domésticas.

Outro pressuposto da Nova Matriz era de que o governo sabia melhor do que as empresas quais seriam os bons investimentos para o país. Partia-se do pressuposto de que era preciso proteger e subsidiar as empresas nacionais, para que novos setores produtivos, escolhidos pelo governo, florescessem no país e/ou se tornassem multinacionais de sucesso. Com isso, deixaríamos de ser um simples exportador de commodities e agregaríamos valor à produção nacional.

Essa política estava baseada em diagnósticos errados. Sua pressuposição básica era de que o aumento do consumo das famílias e do governo desencadearia imediato aumento dos investimentos e, consequentemente, do crescimento econômico. Porém, entre o aumento do consumo e a ampliação da capacidade produtiva há grandes obstáculos: o país tem sérios problemas de infraestrutura; o custo do trabalho subiu muito desde o início do século (aumento do salário mínimo e redução da oferta de trabalho decorrente de mudança na composição etária da população); os trabalhadores têm baixa qualificação; fornecedores não conseguem ofertar insumos de qualidade e no prazo demandado (em função da política de proteção e exigência de conteúdo local); a justiça é lenta e o cumprimento dos contratos sistematicamente desrespeitado; há um excesso de burocracia para se abrir e gerir uma empresa; as regras trabalhistas são rígidas; as regras tributárias complexas e requerem alto custo para serem cumpridas. Ou seja, produzir no Brasil é caro, arriscado e não resulta em produtos de qualidade.

Ademais, há uma inconsistência entre aumentar o déficit público e aumentar o investimento privado ao mesmo tempo. Ambos são financiados pela poupança agregada da economia. Se o déficit público aumenta, o seu financiamento (a venda de títulos pelo Tesouro) vai absorver uma parcela maior da poupança disponível, sobrando menos recursos para financiar o investimento privado.

É verdade que podemos recorrer à poupança externa. Mas a entrada de capital externo acaba gerando um excesso de dólares na economia, valorizando o real. Quando o câmbio se valoriza, a indústria nacional fica menos competitiva em relação aos produtos importados. O aumento do consumo, em vez de estimular mais produção doméstica, vai estimular mais importações. E foi o que ocorreu. Apesar de todo discurso de incentivo ao investimento da indústria nacional, essa teve a sua participação no PIB sistematicamente encolhida nos últimos anos. Em 2010 ela estava na faixa de 15% do PIB, chegando a apenas 11% em 2014.

Não bastasse isso, é preciso reconhecer que, entre o aumento do consumo e a ampliação da produção, existe um hiato de tempo, no qual as empresas precisam constatar que o consumo subiu, acreditar que isso é permanente, tomar a decisão de investir e, finalmente, construir e começar a operar as novas unidades produtivas.

Por todos os motivos acima, apesar dos estímulos e desonerações fiscais, a indústria não conseguiu suprir a expansão do consumo. Os ganhos de renda, advindos da expansão fiscal e da bonança no comércio exterior, levaram ao aumento do consumo de bens importados, dada a incapacidade da indústria em prover bens com preço e qualidade capazes de concorrer com os produtores internacionais. Viajar a Miami, para comprar pela metade do preço, virou esporte nacional.

Ao mesmo tempo, os ganhos de renda elevaram o consumo de serviços (construção e reforma, serviços pessoais, refeições fora de casa). Como esses serviços não podem ser importados, os produtores nacionais não enfrentam concorrência externa, e o aumento de demanda elevou seus preços. Isso teve impacto sobre a inflação e sobre a competitividade da indústria: a absorção de mão de obra pelo setor de serviços aumentou os salários de equilíbrio em toda a economia, reduzindo a margem de lucro da indústria. Aumentou, também, o custo de outros serviços consumidos pela indústria, como alugueis, logística, consultoria e fretes.  Ainda que houvesse incentivo fiscal ao investimento, a menor margem de lucro e a baixa eficiência não permitiam à indústria vislumbrar oportunidades de negócios. Ademais, o crédito barato não era para todos, mas apenas para os escolhidos do Governo.

A redução da taxa Selic “na marra” levou ao descontrole da inflação. Ficou evidente mais um erro de diagnóstico: uma política monetária prudente tem sim efeito sobre a taxa de inflação. A atuação sobre os juros não se fez apenas via taxa básica. Houve determinação política para que os bancos públicos reduzissem os juros cobrados em suas operações de crédito e expandissem os seus empréstimos. A ideia era de que isso acirraria a concorrência com os bancos privados e os induziria a reduzir os juros de seus financiamentos. Na prática, os bancos privados não entraram nessa disputa. A carteira de crédito de instituições públicas, como Caixa Econômica e Banco do Brasil, se expandiu e perdeu qualidade (aumento do risco de inadimplência). O custo dessa maior inadimplência já aparece nas perdas provisionadas por esses bancos e, cedo ou tarde, virará gasto público, quando o Tesouro for chamado a fazer um aumento de capital para compensar as perdas. Criou-se um “esqueleto fiscal” a ser pago no futuro. Como, aliás, já aconteceu em diversos momentos da história do país.

O subsídio ao crédito teve sua expressão máxima nos empréstimos subsidiados do Tesouro Nacional ao BNDES, em montante que atingiu inacreditáveis 10% do PIB. A ideia, mais uma vez, era conceder crédito subsidiado a empresas e estimular o investimento. Ocorre que, para emprestar ao BNDES, o Tesouro tem que tomar emprestado dos poupadores nacionais. Afinal, o Tesouro é deficitário e não tem dinheiro sobrando para emprestar a ninguém. Ao tomar dinheiro em mercado, o Tesouro tirou a oportunidade de que aquele dinheiro fosse emprestado por outros bancos a outros tomadores. Ou seja, os créditos criados via BNDES não eram créditos novos dentro da economia. Eram simples realocações da poupança privada, em que o Governo decidiu, via BNDES, escolher quem receberia os créditos, na suposição de que o Governo tem mais capacidade que o mercado para alocar o crédito de forma eficiente.

Há pelo menos dois problemas nessa política. Primeiro, o crédito não é concedido aos melhores projetos (aqueles que têm mais chance de sucesso e de gerar crescimento econômico), mas sim aos projetos que têm maior conexão política. Segundo, o subsídio embutido no crédito aumenta o déficit público e, com isso, a pressão do Tesouro para se financiar no mercado, reduzindo a poupança disponível para financiar outros investimentos. A taxa de juros (preço da poupança disponível) sobe, prejudicando a viabilidade de todos os outros projetos que não têm acesso a juros subsidiados.

Efeito similar tiveram as diversas medidas de proteção das empresas nacionais. A cadeia produtiva de óleo e gás, por exemplo, foi submetida a crescentes exigências de compra de insumos fabricados internamente. Houve grandes estímulos para a instalação de estaleiros em território nacional. Isso se traduziu em insumos mais caros, de pior qualidade e entregues fora do prazo. E tudo isso bancado por mais subsídios públicos. Também daí decorrem baixa produtividade e redução da capacidade de crescimento.

Sempre que o Governo tenta proteger um dos elos da cadeia produtiva (por exemplo, a indústria naval), ele desprotege o elo seguinte (produção de petróleo), pelo simples fato de que obrigará esse setor a comprar insumos mais caros e piores. Não é possível proteger todos os setores da economia nacional ao mesmo tempo. A menos que importemos o modelo econômico da Coréia do Norte.

Numa demonstração de que o controle fiscal era secundário e que o importante era estimular a empresa nacional, a Lei de Licitações foi alterada, para permitir aos órgãos públicos pagar até 25% a mais nas licitações, quando o ofertante fosse empresa nacional. A aquisição de medicamentos pelo SUS deixou de ter como objetivo único atender as necessidades dos pacientes. Acoplou-se a ela uma política industrial de produção de medicamentos nacionais, mantida a base de fortes subsídios públicos, que, obviamente, consumiam recursos que poderiam ir para o atendimento final dos pacientes. Aguardemos para ver os resultados em termos da expansão da tecnologia e da capacidade nacional para produzir medicamentos…

Não menos problemática foi tentativa de induzir a Vale (empresa privada, mas com grande participação de entidades estatais) a investir no beneficiamento de minério (atividade de baixo retorno e excesso de produção internacional) em vez de se concentrar na mais lucrativa atividade de exploração e exportação de minério. A Petrobras fez uma série de maus negócios, desde compra de refinaria a preço superfaturado até construção de refinarias sem viabilidade econômica. Tudo a título de migrar da exploração de recursos naturais para atividades supostamente mais sofisticadas.

No conjunto de interferências equivocadas no processo produtivo merece destaque a mudança do marco regulatório do petróleo. A título de extrair maiores rendas de petróleo para o governo, e reduzir o lucro das petroleiras, foi proposta a mudança do regime de concessão (que vinha funcionando bem) para o regime de partilha (ver mais sobre esse tópico aqui). Aproveitou-se para estabelecer uma reserva de mercado para a Petrobrás, que seria a operadora única dos campos e sócia obrigatória, com pelo menos 30% do capital em cada campo.

A discussão do novo marco regulatório paralisou o setor. Foram quatro anos sem novas licitações para exploração de petróleo. Bilhões de reais de investimentos deixaram de ser feitos, em um período em que o preço do barril superava os US$ 100 e, portanto, as petroleiras estavam dispostas a dar lances elevados pelas concessões. Agora, com o petróleo a US$ 50, o interesse por investir nos campos (de alto custo) do pré-sal caíram bastante. Enquanto o Brasil gastava quatro anos discutindo as regras do pré-sal, o desregulamentado mercado dos Estados Unidos viu florescer o óleo de xisto, tornando-se o maior produtor de petróleo do mundo.

Ademais, a reserva de mercado concedida à Petrobrás se tornou um veneno para a empresa. Endividada, em função de inúmeros investimentos equivocados, interferência governamental e má governança decorrente de corrupção, a empresa não tem capital para participar com 30% de todo o capital da exploração do pré-sal. Por conta disso, atrasa-se ainda mais o cronograma de investimentos do setor, freando o crescimento econômico.

Ainda no setor de combustíveis, destaca-se o congelamento do preço da gasolina. A medida teve por objetivo controlar, “na marra”, a expansão da inflação, após o equívoco em se tentar controlar, “na marra”, a taxa de juros fixada pelo Banco Central. Ou seja, lançou-se mão de uma medida errada (o controle de preços), para corrigir outra medida errada (o controle dos juros). Os efeitos não se compensaram: somaram-se a amplificaram seus efeitos negativos sobre a economia. Como diz o velho ditado: um erro não justifica o outro.

De fato, a intervenção teve diversos efeitos negativos. Em primeiro lugar, arruinou as finanças da Petrobras, que foi obrigada a importar gasolina a um preço mais alto do que vendia no mercado interno (o que também prejudicou o balanço de pagamentos). Em segundo lugar, inviabilizou todo o setor de produção de etanol, que ficou menos competitivo em relação à gasolina, levando usinas à falência. Em terceiro lugar, criou uma inflação reprimida, que os agentes econômicos sabiam que iria aparecer (como de fato apareceu) em 2015, no momento em que se permitisse um reajuste corretivo dos preços: as expectativas inflacionárias ficaram mais rígidas, exigindo política monetária mais restritiva.

A expressão mais evidente do fracasso do novo marco regulatório do petróleo foi o leilão do megacampo de Libra, em 2013. Com reservas estimadas entre 8 e 12 bilhões de barris, o maior campo já licitado no Brasil e um dos maiores do mundo obteve o interesse de apenas um consórcio, que o arrematou pelo preço mínimo. O que gerou esse resultado pífio foram as regras de exploração, que espantaram os potenciais investidores.

No setor elétrico, a intervenção do governo não foi mais feliz. Às vésperas de um período seco, com os reservatórios das hidrelétricas em nível crítico, foi decretada uma redução de tarifas de energia. Estimulou-se o consumo quando se sabia que a oferta não daria conta de maior demanda. O risco de racionamento elevou-se e só não se concretizou porque a economia entrou em recessão e o consumo caiu. Mas não escapamos de uma correção de preços que, em poucos meses, aumentou em 50% a tarifa de energia.

O desarranjo no setor elétrico foi além do problema das tarifas. Uma medida provisória (MP 579) buscou induzir as geradoras de energia a dar desconto no valor da energia produzida. Para tanto, prometia a renovação antecipada das concessões que estavam para vencer nos próximos anos. As geradoras ligadas à Eletrobrás foram induzidas a aceitar o acordo e tiveram perdas de receitas (criando mais “esqueleto fiscal” a ser transferido para o Tesouro no futuro). Outras importantes geradoras não aceitaram o acordo. O seu suprimento de energia deixou de ser vendido em contratos de longo prazo, a crise de abastecimento se agravou e os preços explodiram. Para quem desejava reduzir o custo da energia, o governo conseguiu um belo resultado, porém com o sinal trocado!

A tão necessária recuperação da infraestrutura não escapou do equivocado pressuposto de que o governo conhece e pode mais que as empresas e o mercado. Ao mesmo tempo em que ofereceu ao setor privado a oportunidade de construir e administrar concessões de estradas e aeroportos, o governo decidiu tabelar o lucro máximo que essas empresa poderiam obter. A ideia era fornecer infraestrutura barata para que os usuários pudessem deslocar sua produção a baixo custo e as famílias não fossem oneradas pelos custos de pedágio. Ocorre que esse tabelamento de lucros atraiu empresas de baixa qualidade para a gestão das estradas, inviabilizou a concessão de outras tantas rodovias e diminuiu a concorrência nas concessões aeroportuárias.

Ainda no setor aeroportuário, a insistência em manter forte intervenção governamental, por meio da participação da Infraero como sócia de todos os consórcios, reduziu a agilidade dos consórcios administradores e onerou o erário, uma vez que a Infraero tem que participar com 49% (sua participação no negócio) de todo o custo de investimento na reformulação e ampliação dos aeroportos.

Outra conta que foi jogada para o contribuinte, no âmbito das concessões, foi o subsídio creditício dado nos financiamentos aos consórcios vencedores. Para que a tarifa aos usuários não fosse elevada, dava-se crédito barato aos concessionários. Ou seja, a conta que o usuário dos serviços (eletricidade, rodovias e aeroportos) não pagava, era repassada ao contribuinte. Mais despesa pública em um país com as contas estressadas.

Não menos desastrada foi a política de desoneração da mão de obra. Com o intuito de reduzir os custos das empresas, substituiu-se a base de cálculo da contribuição para a previdência social. Em vez de se calcular a tributação com base na remuneração de cada empregado, passou-se a calculá-la com base no faturamento das empresas. O resultado imediato foi a indução de contratação de mais mão de obra, pois agora a inclusão de mais empregados na firma não aumentava o custo de contribuição previdenciária. Para um mesmo nível de faturamento, não importava se a empresa tinha 10 ou 100 funcionários, a contribuição seria a mesma. Mas isso foi feito em um momento em que o país estava em pleno emprego. Estimular a contratação em uma situação como essa significa induzir aumentos de salários, pois a demanda por mão de obra cresce e a oferta de mão de obra não acompanha, pois há poucos desempregados buscando colocação. Em vez de reduzir custo das empresas, a medida representou aumento salarial: mais uma estocada na capacidade competitiva das empresas frente aos concorrentes externos, que também gerou perdas substanciais de arrecadação tributária.   (em outro artigo há mais detalhes sobre isso).

A falsa sensação de que o Brasil estava engrenando um longo período de crescimento (criada pela renda extra vinda de fora, sob a forma de altos preços e alta demanda por commodities e pelo dinheiro barato circulando no mercado financeiro internacional) levou a grande relaxamento da política fiscal. Um país que, como vimos, permaneceu por  décadas na corda bamba do déficit, equilibrando-se à base de aumento de carga tributária e cortes de investimentos, de repente descobriu-se sem restrições fiscais. Na educação, por exemplo, os gastos federais aumentaram de R$ 14 bilhões em 2004 para R$ 94 bilhões em 2014: um crescimento real de 294%! (mais sobre esses números aqui)

Como um contágio da baixa responsabilidade fiscal, o Governo Federal passou a estimular os estados e municípios a se endividar. Estes aproveitaram a oportunidade para expandir suas folhas de pagamento.

Em suma, houve uma primeira guinada de política econômica em 2005-2006, motivada pelo Mensalão e custeada pelo boom de commodities. Em seguida estabeleceu-se uma política de expansão fiscal com o pretexto de se fazer política anticíclica, posteriormente transformada em “Nova Matriz Econômica”. Tal “matriz”, além de aprofundar a lassidão fiscal, introduziu novos elementos que prejudicariam o bom funcionamento da economia e sua capacidade de crescimento: escolha pelo governo dos setores a serem estimulados, proteção a empresas nacionais ineficientes, interferência na estratégia de investimento das grandes empresas, congelamento de preços de insumos básicos (energia elétrica e gasolina), relaxamento da política monetária, paralisia das licitações de campos de petróleo, elevação do risco de racionamento de energia elétrica e aumento do risco regulatório (a hiperatividade do governo, interferindo em vários mercados, tornava as empresas receosas de investir).

Esses efeitos negativos, contudo, não foram sentidos de imediato. O aumento da renda real, o baixo desemprego, a expansão do consumo ajudada pelo crédito barato, as estatísticas de redução da pobreza e da desigualdade, tudo isso fazia a população crer que seu nível de vida havia mudado definitivamente para melhor.

Como uma cigarra feliz, o Governo Federal estimulou os brasileiros a consumir com vontade toda a renda extra que veio dos ganhos do boom de commodities e do crédito barato vindo do exterior. Impossível não chamar a Nova Matriz Econômica pelo seu nome verdadeiro: “populismo”.

Em 2013 a maré baixou e os problemas começaram a aparecer

Em 2013 o ritmo de crescimento da economia chinesa começou a diminuir. Os mercados de commodities esfriaram. A atividade econômica no Brasil sentiu o baque e os problemas acumulados com os erros da nova matriz, somados à nossa histórica fragilidade fiscal e aos demais problemas estruturais, passaram a cobrar seu preço: o nível de endividamento dos consumidores brecou a expansão do consumo; a escalada da inflação corroeu a renda; acabou o dinheiro que estava bancando o crescimento  insustentável dos gastos primários; os subsídios creditícios dados pelo Tesouro elevaram a dívida bruta e o seu custo; a queda do preço do petróleo somou-se aos escândalos de corrupção e ao previsível fracasso dos produtores nacionais de equipamentos de exploração, colocando a Petrobras na berlinda; as expectativas se deterioraram; as desonerações fiscais ajudaram a derrubar a receita pública e ampliaram o déficit.

O governo passou a maquiar as contas para esconder o déficit, deteriorando ainda mais a confiança e as expectativas dos agentes econômicos em relação à consistência da política econômica. O gráfico abaixo mostra como o resultado primário despencou em 2014. Isso sinaliza para um rápido crescimento da dívida pública e descontrole da inflação.

Gráfico 2 – Resultado Primário do Governo Federal

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O Banco Central, que perdeu credibilidade ao baixar os juros e deixar a inflação escapar da meta, está se defrontando com taxas na casa de 10% ao ano. Para recobrar a credibilidade e fazer as pessoas acreditarem que pretende trazer a inflação de volta para a meta de 4,5% ao ano, ele precisa “comprar credibilidade”, e o faz com uma elevação de juros bem mais forte do que a que seria necessária caso os agentes econômicos não tivessem perdido a fé nas intenções da Autoridade Monetária. A recessão necessária para colocar os preços nos eixos terá que ser maior.

Diversos programas públicos estão sendo reduzidos ou extintos pela simples falta de dinheiro. Vedetes da propaganda oficial, como Fies, Pronatec, Minha Casa Minha Vida, Minha Casa Melhor e Ciência sem Fronteira estão encolhendo. Mas os desafios fiscais não param. A elevação da inflação fará com que os reajustes futuros do salário mínimo, corrigidos pelos índices passados mais o crescimento real do PIB, sejam altos, realimentando os gastos públicos e a pressão sobre as empresas.

Apesar da evidente crise fiscal, sucessivos aumentos de gastos presentes e futuros têm sido aprovados, com destaque para a meta de se gastar 10% do PIB na área de educação, a fixação de um piso para o gasto em saúde equivalente a 15% da receita corrente líquida da União, a obrigatoriedade de execução das emendas parlamentares ao orçamento, a substituição do fator previdenciário por critérios mais frouxos de acesso a aposentadorias.

A sociedade brasileira e as lideranças políticas parecem ter se acostumado com os anos recentes, em que a receita pública crescia a 7% ao ano, e não conseguem se adaptar à nova realidade, em que a receita está caindo em termos reais.

As agências de avaliação de risco já sinalizaram o iminente rebaixamento da nota de crédito do país. Esse rebaixamento iminente já está expresso nas elevadas taxas de juros cobrados de empresas e governos brasileiros que buscam crédito no exterior. Quando consumado, o rebaixamento fechará o acesso do país a recursos de fundos de investimento internacionais, cujos estatutos proíbem investimentos em países sem qualificação de crédito. A tendência será a desvalorização adicional do real, mais pressão inflacionária e maior dificuldade para equilibrar o balanço de pagamentos.

Só não vamos para uma crise clássica, de falta de liquidez para pagar nossos compromissos externos, porque acumulamos mais de US$ 350 bilhões em reservas internacionais. Entretanto, o uso extensivo de swaps cambiais está aumentando a exposição do governo ao risco cambial, bem como o custo de manutenção das reservas. Em um cenário de stress, o Banco Central pode ser obrigado a vender parte substancial das reservas, aproximando-nos de uma clássica crise de balanço de pagamentos.

Como toda política populista, a “nova matriz” era inconsistente e termina em crise. Tivemos a oportunidade de usar o período do boom de commodities para fazer reformas fiscais e regulatórias que removeriam fragilidades e entraves ao crescimento da economia. Preferimos a fórmula fácil de torrar a renda extra pela via do gasto público em políticas questionáveis ou de eficiência não comprovada, além de multiplicar o crédito subsidiado.

Temos problemas estruturais, que vêm de longe e precedem a política econômica dos últimos oito anos. Mas esta, sem dúvida, agravou em muito os fundamentos da economia brasileira.

Feita essa longa digressão, estamos em condições de discutir indagações que frequentemente surgem nesse momento de crise e de mudança de rota da política econômica. No próximo post será apresentado um F.A.Q. da crise.

 

O autor agradece os comentários de Alexandre Rocha, Paulo Springer de Freitas e Pedro Fernando Nery, isentando-os de responsabilidade por erros eventualmente contidos no texto.

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Deve o governo regular bitcoins? Riscos e limites no uso de moedas virtuais privadas https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2372&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=deve-o-governo-regular-bitcoins-riscos-e-limites-no-uso-de-moedas-virtuais-privadas https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2372#comments Tue, 20 Jan 2015 13:25:59 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2372 As moedas virtuais têm ganhado destaque na mídia como possível alternativa aos sistemas monetários tradicionais, com o bitcoin sendo a espécie mais proeminente do gênero. Ainda que esteja longe de constituir uma moeda factível, teria capacidade de prover estabilidade monetária associada à vantagem da privacidade financeira a seus usuários (veja Ulrich, 2014). Na esfera pública, a questão que se coloca é se é assunto relevante com potencial de constituir, de facto, moeda de uso e aceitação generalizada, em substituição à tradição construída por séculos com base nas moedas soberanas1. Este texto apresenta considerações a respeito.

 

Moedas virtuais: aspectos conceituais envolvidos

Algumas moedas virtuais são emitidas e intermediadas por entidades não financeiras, tipo ilustrado pelos tradicionais programas de milhagens das companhias aéreas, forma de fidelização de cliente como o Programa Smiles no Brasil. Nesse caso, ocorre a perfeita identificação do emissor do arranjo virtual de pagamentos2.

Outras não possuem entidade responsável por sua emissão. Nessa esfera, há a controversa e ainda desconhecida figura do bitcoin, moeda virtual ainda com pouca aceitação em sites de empresas no Brasil, baseada em um sistema descentralizado de criação de “moeda”.

Em ambos os casos, entidades e pessoas que emitem ou fazem a intermediação desses ativos virtuais não são reguladas nem supervisionadas por autoridades monetárias de qualquer país. Pode-se, portanto, qualificar tais meios de pagamento como instrumentos de uso privado e restrito. Ainda que não tenham garantia estatal ou lastro em uma moeda soberana, convivem em paralelo aos sistemas monetários oficiais, sem suscitarem regulação específica até o momento – até pela baixa relevância sistêmica corrente que apresentam.

Sua principal vantagem estaria na desintermediação financeira que proporcionaria. No momento em que impõem concorrência às transações financeiras cursadas pelo sistema financeiro regulado, arranjos de pagamento do tipo bitcoin podem permitir redução de custos de transação geralmente não desprezíveis, especialmente em operações de pagamentos transfronteiriços. Isso seria feito pela independência dos sistemas bancários tradicionais para a liquidação financeira.

Baseadas em unidades de referência alternativas às moedas nacionais, moedas virtuais privadas constituiriam meio de troca, mas com alcance restrito a um particular conjunto de agentes na esfera da internet. A função monetária básica de unidade de conta parece não existir ainda (até por sua baixa disseminação), pois se trata muito mais de um sistema de pagamento virtual do que propriamente de uma nova moeda com as três funções clássicas.

Na verdade, a modalidade de moeda criptografada parece, hoje, muito mais apenas um meio de transferir recursos, mas ainda calculados com base nas moedas nacionais correntes. Sua pequena disseminação não permite formação de preços em bitcoins na economia real. As bruscas oscilações de conversão nas moedas soberanas impedem basicamente constituir parametrização para o agente econômico avaliar se está caro ou barato um bem ou serviço referenciado naquela moeda.

Naturalmente, seu alcance está atrelado à credibilidade de seu instituidor e ao grau de confiança dos agentes para ter aceitação, assim como é o caso para qualquer moeda transacionada em uma economia de produção. É característico, todavia, que as chamadas moedas virtuais não sejam emitidas nem garantidas por autoridades monetárias, sendo livres de responsabilidade legal.

Com efeito, a emissão centralizada tem sido a regra das sociedades contemporâneas, com a história econômica mostrando ter suplantado sistemas anteriores desregulados de emissão monetária múltipla por bancos privados – o modelo free banking.

As próprias demandas sociais do pós-1929 mostraram ser necessário impedir a continuidade de sistemas bancários totalmente livres e sem nenhuma regulamentação, levando à criação de bancos centrais como regra nas economias modernas a partir de então. A garantia governamental aos bancos passou a ser fundamental para os sistemas monetários funcionarem com menor risco da contraparte bancária. O curso forçado legal, ao prover a sustentação inicial ao sistema monetário moderno, tradição disseminada de forma generalizada pelas economias centrais após a crise de 1929, permitiu a superação do padrão-ouro e de seu viés deflacionário.

Esse contexto institucional, construído ao longo de muitos anos e de forma generalizada nas economias modernas, torna difícil considerar factível uma mudança repentina de padrão monetário em direção a moedas virtuais. Outras razões apontam nesse sentido.

 

Riscos e limites à disseminação de moedas virtuais

Riscos inerentes a novos arranjos monetários, à margem de regulação do Estado, tornam o amplo uso de novas moedas uma difícil tarefa. Por definição, a existência de um mercado concorrencial de moedas virtuais, em substituição a uma única moeda soberana, pressupõe que não exista uma moeda predominante, o que compromete per se sua expectativa de vida – e a própria capacidade de universalização de apenas uma como padrão monetário. Isso é mais verdadeiro no âmbito virtual, onde é implícita a concorrência, pela liberdade e descentralização de comunicação pela própria internet.

Nada garante que uma moeda muito líquida em dado instante e lugar não seja substituída por outra, em um processo competitivo, podendo até mesmo ser desconsiderada, no futuro, como uma moeda propriamente dita. É plenamente plausível supor que surja uma nova moeda virtual com mais vantagem tecnológica do que o bitcoin. Daí passaria a ser apenas mais uma unidade que, como no passado, já foi empregada como bem monetário.

Também não há garantia alguma de conversão de bitcoins em dólar ou outra moeda soberana. Na verdade, seu objetivo é substituir as demais moedas e não voltar ao dólar ou a qualquer outra moeda (Ulrich, 2014).

Além disso, não há controle algum sobre ativos em bitcoins, que ficam a mercê das arbitrariedades de especuladores, diante da alta volatilidade de suas cotações para outras moedas. A determinação do valor da moeda virtual é prejudicada, pois não constitui mercado organizado com liquidez e uso mais amplo. Não há, portanto, reserva de valor, constituindo-se como um mix de sistema de pagamento e de mercado bursátil.

Esquemas de moedas virtuais, inerentemente instáveis, parecem funcionar como sistemas de pagamento de varejo apenas dentro de comunidades virtuais específicas e com alcance restrito – por isso não constituem risco corrente disseminado pela economia real. Todavia, à medida que e se adquirirem escala, eventuais perdas econômicas vultosas com tais novos ativos não raro podem afetar os demais mercados financeiros, inclusive a economia real. Logo, risco sistêmico fora dessas comunidades é esperado de se materializar apenas diante de volume expressivo operado por tais arranjos – caso que necessariamente requererá regulação, para fins de proteção da economia popular e do próprio funcionamento normal dos demais mercados. Daí que não perdurará um sistema monetário desregulamentado.

Além disso, um limite potencial no uso de moedas virtuais privadas está na sua capacidade de constituir nova unidade de conta básica de uma economia, com o risco de afetar a eficácia e eficiência da política monetária e sua implementação. Em tese, o aumento per se no uso de moedas virtuais levaria ao decréscimo no uso da moeda soberana, daí reduzindo sua circulação necessária para compensar as transações econômicas diárias, e prejudicando o alcance das políticas monetárias.

Isso implica que a própria transmissão das mudanças de juros pelos bancos centrais pela economia, e o controle sobre moeda e crédito, poderiam tornar-se menos efetivos. A própria capacidade de implementar políticas anticíclicas, que ajudaram a proteger o nível de atividade e de emprego domésticos diante de crises como a de 2008, seria reduzido. No limite, extinguir-se-iam instituições como bancos centrais, quando não existiria mais política monetária nem creditícia – diante de apenas uma oferta inelástica exógena de moeda – a la padrão-ouro –, e sem um sistema de reservas fracionárias. Ganhos de senhoriagem também seriam afetados.

A própria ideia da coexistência de várias moedas em paralelo em uma mesma economia é heterodoxa ao pensamento monetário convencional, especialmente pela limitação que impõe a políticas monetárias. Há uma tendência lógica de um único bem preponderar como moeda, sobre demais alternativas, de maneira a garantir a aceitação universal. No caso, moedas virtuais não representam alternativa consistente ao uso das moedas soberanas, pelo curso restrito e alta volatilidade impondo baixa qualidade monetária, e até pelo fato de que as economias não são totalmente virtuais. As pessoas precisam ainda carregar moeda no bolso, o cartão pré-pago do transporte ou o cartão magnético de acesso ao sistema financeiro convencional, para realizarem as transações diárias – sem falar no crédito, essencial para uma economia monetária funcionar.

 

É preciso regular bitcoins e assemelhados?

Dado seu restrito alcance atual, sobretudo no Brasil, não se vislumbra risco sistêmico para o funcionamento da economia doméstica ou mesmo para a poupança popular. Constitui, atualmente, assunto muito mais relacionado a preocupações com lavagem de dinheiro e a atividades ilícitas internacionais.

De qualquer forma, autoridades governamentais têm se manifestado a respeito da necessidade, ou não, de regular as moedas virtuais, até como resposta aos riscos implícitos relativos à lavagem de dinheiro e à segurança de seus usuários. Por não passarem pelo sistema financeiro regulado e, por isso, não serem regulados por nenhuma autoridade, há preocupações em vários países sobre o assunto. Organizações ilegais ou que tiveram seus recursos bloqueados nos sistemas financeiros, por exemplo, sem acesso a contas bancárias, podem se beneficiar das facilidades de transferências de dinheiro entre países ao não passarem pelos sistemas convencionais, em contraposição às autoridades domésticas. Isso tem suscitado estudos internacionais, especialmente de órgãos de prevenção à lavagem de dinheiro (veja FATF, 2014).

No Brasil, o Bacen já alertou a população sobre os riscos das moedas virtuais, ou criptografadas, especialmente sobre a grande volatilidade de seus preços em relação a moedas soberanas – comprometendo sua função de reserva de valor –, vis-à-vis sua baixa aceitação como meio de troca e a falta de percepção clara sobre sua fidedignidade, “podendo até mesmo levar à perda total de seu valor”3.

Na verdade, em decorrência de seu restrito alcance e aceitação como meio de troca, a circulação de moedas virtuais não se mostra capaz de oferecer riscos ao uso do Real ou a moedas conversíveis como o Dólar e o Euro.

De qualquer forma, a legislação brasileira já ampara novos arranjos de pagamentos. Ainda que seu uso no País seja prejudicado pelo curso legal do Real, permitiria sua utilização em operações com o exterior, como qualquer outro meio para efetuar transferências internacionais de recursos, envolvendo moedas distintas.

A Lei n° 12.865, de 2013, dá esteio a arranjos de pagamentos internacionais, justamente para darem curso às operações externas, necessárias para qualquer economia aberta cada vez mais integrada com o exterior. Por isso, não se vislumbra necessidade de se criar normativo legal específico adicional para amparar transações em meio eletrônico utilizando dólares, euros, pontos smiles ou bitcoins.

Além disso, a própria Lei já estabelece que sejam regulados apenas os arranjos de pagamentos que possam ter importância sistêmica. Em particular, o bitcoin não é grande o suficiente, ou sistemicamente relevante como meio de pagamento, para ser atualmente sujeito à regulação do Bacen.

Importa frisar também que, como já declarou, o Bacen tem acompanhado a evolução da utilização de tais instrumentos de pagamento e as discussões nos foros internacionais sobre a matéria – em especial sobre sua natureza, propriedade e funcionamento –, para fins de adoção de eventuais medidas no âmbito de sua competência “se for o caso”. Isso implica que, por ora, o emprego de bitcoins não é de relevância para o sistema financeiro brasileiro, por sua pequena disseminação na economia doméstica.

 

Considerações finais

Deve-se mencionar, por fim, que o verdadeiro potencial desse novo sistema de pagamentos ainda está por ser visto. Por constituírem arranjos de pagamento incipientes e em construção, ainda não existem conclusões mais robustas sobre o assunto, ainda que os bancos centrais estejam acompanhando seu desenvolvimento. Será sua magnitude que determinará a verdadeira relevância desses novos serviços financeiros.

(Este texto é baseado no estudo “É Crível uma Economia Monetária Baseada em Bitcoins? Limites à disseminação de moedas virtuais privadas” – Texto para Discussão nº 163 do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado, disponível em: http://www.senado.gov.br/estudos)

 

________________

1 Como meio de pagamento, levantou preocupações de autoridades públicas, com o registro de manifestação a respeito por autoridades e profissionais do mercado financeiro em várias jurisdições. Vide, por exemplo, Ali et al (2014), ECB (2012), Gans e Halaburda (2013), ICBA (2014).

2 Programas de fidelidade na forma de vouchers, cupons e pontos existem há muito tempo, e podem demandar uma série de outros bens e serviços que não apenas voos de avião, diárias em hotéis, ou aluguel de carros. Entretanto, não possuem relevância sistêmica como meio de pagamento e de demanda de bens e serviços. Não podem, em regra, ser convertidos novamente em moeda – apenas em mercado negro, ou não oficial, muito limitado e não organizado, o que lhes restringe, por definição, o alcance.

3 Comunicado Bacen n° 25.306, de 19 de fevereiro de 2014.

 

Referências

ALI, R.; BARRDEAR, J.; CLEWS, R.; SOUTHGATE, J. (2014). The Economics of Digital Currencies. Quarterly Bulletin 2014 Q3. Bank of England

ALI, R.; BARRDEAR, J.; CLEWS, R.; SOUTHGATE, J. (2014). Innovations in payment Technologies and the emergence of digital currencies. Quarterly Bulletin 2014 Q3. Bank of England

EUROPEAN CENTRAL BANK – ECB (2012). Virtual Currency Schemes. Oct, 2012. Disponível em: http://www.ecb.europa.eu/pub/pdf/other/virtualcurrencyschemes201210en. pdf. Acesso em: 26 nov, 2014

FINANCIAL ACTION TASK FORCE (2014). Virtual Currencies Key Definitions and Potential AML/CFT Risks. FATF REPORT. June 2014

GANS, J.; HALABURDA, H. (2013). Some Economics of Private Digital Currency. Currency Department, Bank of Canada. Working Paper 2013-38

INDEPENDENT COMMUNITY BANKERS OF AMERICA – ICBA (2014).  Virtual Currency: Risks and Regulation. June 23, 2014. Disponível em: http://www.icba.org/files/ ICBASites/PDFs/VirtualCurrencyWhitePaperJune2014.pdf. Acesso em: 26 nov, 2014

ULRICH, F. (2014). Bitcoin: a moeda na era digital. São Paulo: Instituto Mises Brasil. 1ª Ed, 100p

 

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O Banco Central deve ser independente? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2289&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-banco-central-deve-ser-independente Mon, 15 Sep 2014 13:37:29 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2289 O cenário político recente despertou novamente o debate sobre independência (ou autonomia) do Banco Central do Brasil (BCB). Uma diversidade de argumentos, teóricos ou ideológicos, vem sendo utilizada para defender, de um lado, um maior controle do Poder Executivo sobre as decisões do BCB, ou, de outro, um maior isolamento do órgão com respeito a oscilações políticas. Neste texto, entregamos uma análise sobre o papel do Banco Central na sociedade e esclarecemos argumentos em defesa da sua independência.

Primeiramente, é preciso clarificar o que é (e o que não é) independência do Banco Central.

Independência pode ser entendida como um arranjo institucional em que estão presentes mecanismos de insulação do órgão em relação a intervenções discricionárias do governo. Dito de outra forma, a independência representa um desenho das regras do jogo de modo a deixar o BC livre de influências políticas que prejudiquem o cumprimento da sua missão como guardião da estabilidade da moeda – leia-se, inflação sob controle.

Que mecanismos garantem independência na prática? Como exemplos, podemos citar:

  • Período de tempo predefinido para o mandato do presidente e da diretoria do órgão, assim como critérios alternativos de escolha da direção (que não a nomeação direta por parte do governo), são regras que evitam a interferência do governante.
  • A autonomia orçamentária é tida como outra forma de reforçar a independência do órgão, já que o governo poderia exercer pressão sobre o órgão retendo recursos orçamentários ou obstruindo contratação de funcionários.

Antes de discutirmos os benefícios de um BC independente, é preciso quebrar alguns mitos por vezes disseminados ao público geral a respeito deste tema.

Independência não é entregar o galinheiro a comando da raposa, como argumentam alguns veículos na mídia1. De fato, o quadro de funcionários do BC precisa de pessoas com experiência com bancos e com o mercado financeiro, inclusive na diretoria, devido ao nível técnico exigido pelo trabalho que é desempenhado no órgão. Todavia, o desenho de instituições como o BC certamente não ignora a possibilidade de conflitos de interesse, informação privilegiada, nem a possibilidade de captura da agência pública por interesses privados, os quais representam comportamentos abusivos em prejuízo da comunidade. Para esses problemas, há dispositivos especialmente criados no design institucional, como o período de quarentena profissional dos ex-diretores, a subordinação do presidente a conselhos de administração e a auditoria externa.

Independência não significa abrir mão da determinação dos objetivos de política pela nossa democracia representativa. Até mesmo um BC com operação independente precisa respeitar a lei existente e seguir as diretrizes de política estabelecidas por instâncias superiores, como o Congresso. Para prevenir condutas que se desviem dessas diretrizes, há dispositivos como a avaliação independente e incentivos para a responsabilização (accountability). Vide, por exemplo, o sistema de accountability do Banco Central Europeu, um BC independente com o desafio de harmonizar objetivos de política de dezoito nações2.

Mas por que a independência de uma instituição pode ser desejável?

  1. No caso de alguns órgãos, não é bom que o seu desempenho seja contaminado por preocupações de curto prazo do governo de situação. Seja porque o horizonte temporal relevante vai além dos ciclos eleitorais, seja porque o objeto da atuação do órgão é sensível politicamente (por exemplo, se trata de medidas impopulares ou medidas com benefícios somente para a geração futura).
  2. Em outros casos, o objetivo do órgão precisa de credibilidade para ser cumprido. Assim, o único modo de os agentes envolvidos acreditarem no comprometimento do órgão é se houver insulação dos humores da política. Dito de outra forma, em alguns setores a estabilidade das regras e dos procedimentos é peça central para se alcançar o objetivo almejado.

São exemplos de entidades cuja independência é desejável aquelas que lidam diretamente com a regulação dos agentes, como, por exemplo, o Poder Judiciário, as Agências Reguladoras, o CADE, a CVM. Outro exemplo são os órgãos de fiscalização da própria ação do governo, como o TCU, o Ministério Público e a Polícia Federal.

O Banco Central mistura elementos desses dois tipos de órgão. Sua missão, conforme declarada em seu estatuto, é dupla: (i) manter a estabilidade de preços e (ii) assegurar um sistema financeiro sólido e eficiente. A segunda tarefa está ligada à formulação de regras e à fiscalização da atividade bancária com o objetivo de controlar o risco sistêmico e evitar fraudes e crimes como lavagem de dinheiro. Só esta missão já justificaria a independência do banco para assegurar sua credibilidade e a segurança jurídica.

No entanto, a primeira missão é a mais sensível, especialmente no caso do Brasil. A estabilidade do poder de compra da moeda (ou seja, a inflação sob controle) tem no Banco Central o seu principal guardião, devido, principalmente, à eficácia da atuação desse órgão para influenciar a macroeconomia, por meio da política monetária.

O Brasil tem um histórico de coexistência com altos e persistentes níveis de inflação, um problema crônico denominado pelo historiador econômico Gustavo Franco como ‘inflacionismo’3. Este fenômeno consiste na incapacidade do governo de se financiar via aumento de impostos no presente ou no futuro (via emissão de dívida), e está intimamente relacionado com a instabilidade política do Estado aliada a uma estrutura extremamente desigual de distribuição de riqueza. Sendo assim, somente através do aumento da inflação o governo consegue expandir seus gastos politicamente direcionados e, dessa forma, garantir o apoio político de grupos diversos para se sustentar no poder. O lado perverso disso é que o financiamento inflacionário do Estado funciona como um imposto regressivo, incidindo de forma mais acentuada sobre os mais pobres e piorando a estrutura distributiva.

Entretanto, com a redemocratização dos anos 1980 e a consequente emergência das demandas sociais, o controle da inflação se tornou claramente uma prioridade de política pública. Após várias tentativas fracassadas nos primeiros governos democráticos, o Plano Real conseguiu, em 1994, lançar as bases para uma inflação estabilizada. Além de prescrever uma série de ajustes macroeconômicos, como controle do déficit público e âncora cambial, o Plano tinha um pilar central: a credibilidade do governo no compromisso com a estabilidade de preços.

Essa credibilidade afeta a raiz das expectativas dos agentes da economia (produtores, consumidores, bancos), os quais, tomando suas decisões de forma descentralizada, determinam conjuntamente a evolução dos preços. Porém, o Plano não poderia depender, para sempre, da credibilidade dos indivíduos à frente da condução da política naquela época. Seus proponentes estavam cientes da inconsistência de programas de controle da inflação que dependessem da discricionariedade do governo, fato consolidado na literatura econômica 4 5.

Por isso, o programa de controle da inflação inaugurado pelo Plano Real foi transformado, a partir de 1999, em um mecanismo de caráter institucional: o Sistema de Metas para a Inflação. Neste sistema, o BCB se compromete institucionalmente a utilizar os instrumentos à sua disposição para manter a inflação anual projetada dentro de uma meta centrada em 4,5%, com 2 pontos de tolerância para mais ou para menos (ou seja, entre 2,5 e 6,5). Além disso, para o sistema funcionar bem, é necessário que o BC opere com absoluta transparência e que seus objetivos de política sejam de amplo conhecimento do público. O resultado deste modelo é claro: os níveis de inflação foram consistentemente mais baixos desde 1994 [veja o gráfico].

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Inflação anual medida pelo IGP-DI (Fonte: BCB)

 

O funcionamento do Sistema de Metas, porém, depende criticamente da credibilidade do Banco Central. Apesar de operar com relativa autonomia, qual seja, uma relativa liberdade para decidir os meios e instrumentos para implementar as metas e diretrizes estabelecidas pelo governo, o BCB não possui independência de fato. As dúvidas quanto à credibilidade do Banco podem ser evidenciadas pelo fato de que, nos anos recentes, rumores de que o Governo estaria pressionando o presidente do BC no sentido de ser menos rigoroso com o cumprimento da meta, por si só, contribuíram para o aumento da expectativa de inflação, que hoje beira o teto da meta (6,5%) no acumulado de 12 meses.

A atual geração jovem pouco vivenciou o caos e a aflição causados pela inflação fora de controle, mas ouviu histórias sobre como era difícil o planejamento e a vida econômica naquela época. Os dados e a literatura também ensinam sobre os efeitos perversos da inflação sobre as camadas de menor renda, bem como sobre o potencial de desenvolvimento da nossa economia.

Esses fatos nos levam a crer que a estabilidade de preços figura como senão a mais valiosa conquista econômica da nossa jovem democracia.

 

Para saber mais:

Para uma abordagem didática sobre como funciona a política monetária, recomendamos o artigo de Carlos Góes sobre independência do BC para não-economistas: http://mercadopopular.org/2014/09/o-que-e-autonomia-do-banco-central-um-manual-para-nao-economistas/

Texto originalmente publicado em: http://economiadependrive.wordpress.com/2014/09/07/sobre-a-independencia-do-bc/

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1 http://www.cartacapital.com.br/economia/o-banco-central-independente-e-os-20-centavos-8002.html

2 Banco Central Europeu. Organização > Responsabilização. Acesso em 07/09/2014. Disponível em: https://www.ecb.europa.eu/ecb/orga/accountability/html/index.pt.html

3 Franco, Gustavo. “Auge e Declínio do Inflacionismo no Brasil.” In: Fábio Giambiagi, André Villela, Lavinia Barros de Castro e Jennifer Hermann (orgs.) Economia Brasileira Contemporânea 1945/2004, Capítulo 10, p.258-283. Rio de Janeiro, Editora Campus, 2004.

4 Kydland, Finn E.; Prescott, Edward C. “Rules rather than discretion: the inconsistency of optimal plans.” Journal of Political Economy Vol. 85 No. 3., p.473-492, 1977.

5 Bernanke, Ben S. “Central Bank Independence, Transparency and Accountability.” Speech at the institute for monetary and economic studies international conference, Bank of Japan, May 25th 2010. Disponível em: http://www.federalreserve.gov/newsevents/speech/bernanke20100525a.htm

 

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