orçamento – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Tue, 26 Jul 2022 14:50:29 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 Emenda Constitucional nº 123, de 14.7.2022: Aspectos Fiscais e Orçamentários¹ https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3659&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=emenda-constitucional-no-123-de-14-7-2022-aspectos-fiscais-e-orcamentarios%25c2%25b9 Tue, 26 Jul 2022 14:50:29 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3659 Emenda Constitucional nº 123, de 14.7.2022: Aspectos Fiscais e Orçamentários [1]

 

Por Eugênio Greggianin*, José Fernando Cosentino Tavares** e Marcia Rodrigues Moura***

 

1   Considerações Iniciais: Descrição do Conteúdo das PEC

1.1 A Emenda Constitucional  nº 123/2022

A EC nº 123/2022 é oriunda da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 15/2022, à qual foi apensada a PEC nº 1/2022. O trabalho, além de descrever o conteúdo das proposições, teve o propósito de verificar os pressupostos fáticos do estado de emergência reconhecido em 2022, bem como o impacto decorrente da fragilização dos princípios fiscais ao se prever, para o fim almejado (concessão de benefícios), o afastamento de praticamente todas as regras, limites e mecanismos de compensação fiscal atinentes à preservação do equilíbrio das contas públicas.

1.2 PEC nº 1/2022

A PEC nº 1/2022, de autoria do Senado Federal, tem por objetivo “reconhecer o estado de emergência, decorrente da elevação extraordinária e imprevisível dos preços do petróleo, combustíveis e seus derivados e dos impactos sociais deles decorrentes”. Para enfrentamento ou mitigação dos impactos decorrentes do estado de emergência, a PEC autoriza o pagamento, até 31.12.2022, de uma série de benefícios.

A tabela a seguir apresenta os benefícios previstos na PEC, acompanhados dos limites de gastos nela também previstos.

Dentre os benefícios, apenas três já existem: o Programa Auxílio Brasil, o Programa Alimenta Brasil – ambos criados pela Medida Provisória (MPV) nº 1.061, de 09.08.2021, convertida na Lei 14.284, de 29.12.2021 – e o Auxílio Gás dos Brasileiros – criado pela Lei nº 14.237, de 19.11.2021.

O Programa Auxílio Brasil é o que possui maior representatividade nos dispêndios totais previstos na PEC, de 63% (R$ 26 bilhões). A PEC assegura a extensão dos benefícios às famílias que ainda não fazem parte do Programa, mas que são elegíveis. Estima-se que o quantitativo de novas famílias seja em torno de 2,6 milhões. Considerando que atualmente o programa já atende 18,2 milhões de famílias[2], o quantitativo mensal de famílias atendidas poderá atingir 21 milhões.

Além disso, a PEC assegura um acréscimo extraordinário do benefício para todas as famílias, no valor de R$ 200,00, durante 5 meses. Atualmente o Programa Auxílio Brasil é composto pelos benefícios ordinários previstos nos incisos I a IV do art. 4º da Lei nº 14.284/2021, e pelo benefício extraordinário previsto na Lei nº 14.342, de 18.05.2022, originária da MPV 1.076, de 07.12.2021. Somados os benefícios, estes alcançam um valor médio mensal por família em torno de R$ 400,00[3]. Com a PEC, esse valor alcançará pouco mais de R$ 600,00.

Como previsto na PEC, o impacto da entrada de novas famílias no programa e o pagamento do acréscimo extraordinário de R$ 200,00 para todas as famílias implicará em um gasto adicional de R$ 26 bilhões, que, somados aos valores já previstos no orçamento para 2022, de R$ 89,1 bilhões, farão com que o dispêndio total com o Programa alcance a cifra de R$ 115,1 bilhões.

Apesar de a PEC limitar o pagamento dos benefícios nela previstos até 31.12.2022, a entrada das novas famílias no programa será sentida também nos próximos exercícios. Excluído o pagamento do acréscimo extraordinário de R$ 200,00, cujo pagamento está limitado a 31.12.2022, estima-se que o impacto da entrada das 2,6 milhões de famílias no programa pode atingir o montante de R$ 12,5 bilhões em 2023.

O Alimenta Brasil é um programa de aquisição de alimentos de pequenos produtores rurais e posterior distribuição a famílias carentes. O valor previsto na PEC é de R$ 500 milhões.

O Auxilio Gás dos Brasileiros é um programa de auxílio à compra do gás de cozinha, pago bimestralmente às famílias de baixa renda. O valor do benefício corresponde a 50% da média, verificada nos últimos 6 meses, do preço nacional de referência do botijão de 13 Kg[4]. No mês de junho do corrente ano, 5,7 milhões de famílias[5] receberam o benefício, no valor de R$ 53,00. A PEC prevê um dispêndio de R$ 1,05 bilhão, pago em 3 meses. O valor previsto na PEC e aquele já previsto no orçamento para 2022, de R$ 1,8 bilhão, farão com que o dispêndio total com o Programa alcance a cifra de R$ 2,85 bilhões.

Além do incremento financeiro de benefícios já existentes, a PEC prevê o pagamento de quatro outros benefícios que ainda não fazem parte do rol de despesas da União. São eles: auxílio aos Transportadores Autônomos de Cargas; auxílio financeiro a Estados e DF que outorgarem créditos tributários de ICMS aos produtores ou distribuidores de etanol hidratado; assistência financeira à União, Estados, DF e Municípios para concessão de transporte gratuito a idosos e auxílio a motoristas de táxis.

O auxílio aos Transportadores Autônomos de Cargas será pago durante 6 meses, com valor mensal por beneficiário de R$ 1.000,00 e dispêndio total de R$ 5,4 bilhões. Estima-se um atendimento mensal em torno de 900 mil transportadores autônomos de carga.

O auxílio financeiro a Estados e DF que outorgarem créditos tributários de ICMS aos produtores ou distribuidores de etanol hidratado será pago durante 5 meses, com um dispêndio total de R$ 3,8 bilhões. O benefício será proporcional à participação dos Estados e do DF em relação ao consumo total do etanol hidratado em todos os Estados e no DF no ano de 2021 sendo que o valor máximo mensal é de R$ 760 milhões por ente.

A assistência financeira à União, Estados, DF e Municípios para concessão de transporte gratuito a idosos tem um dispêndio total previsto na PEC de R$ 2,5 bilhões. A PEC não dispôs sobre a periodicidade de pagamento. O valor pago por ente dependerá de uma série de requisitos previstos no § 4º do art. 3º da PEC.

O auxílio a motoristas de táxi será pago a todos aqueles registrados até 31.05.2022, em 6 parcelas, com um dispêndio total de R$ 2 bilhões. O quantitativo de beneficiários dependerá da formação do cadastro para operacionalização do benefício (§ 7º do art. 3º da PEC). O valor por beneficiário também está sujeito a regulamentação posterior.

Destaca-se que o Substitutivo aprovado pela Comissão Especial não promoveu alterações de mérito na PEC, mantendo assim todos os benefícios e valores originalmente previstos.

1.3 PEC nº 15/2022

A PEC nº 15/2022, de autoria do Senado Federal, tem por objetivo assegurar ao setor de biocombustíveis destinados ao consumo final, na forma de lei complementar, tributação inferior à incidente sobre os combustíveis fósseis – com relação, especialmente, ao PIS/PASEP, Cofins e ICMS – capaz de garantir diferencial competitivo para os biocombustíveis. No Brasil, atualmente, o biocombustível destinado ao consumo final é o etanol hidratado.

A PEC não apresenta implicação sobre a receita, tendo em vista que a regra transitória nele prevista dispõe que deverá ser mantida a estrutura tributária vigente em 15.05.2022, em patamar igual ou superior. Alternativamente, quando o diferencial competitivo não for determinado pelas alíquotas, este será garantido pela manutenção do diferencial da carga tributária efetiva entre os combustíveis.

2       Aspectos Fiscais

2.1. Fragilização das regras fiscais

Do ponto de vista econômico, a fragilização continuada dos princípios fiscais talvez seja o aspecto mais preocupante decorrente da aprovação da PEC nº 1/2022 em análise. Regras fiscais servem para nortear o comportamento dos agentes políticos e refrear o desequilíbrio orçamentário. O ciclo político, na ausência de restrições, seria profundamente marcado pela concessão de mais e mais benefícios quanto mais próxima a data das eleições.

A meta de resultado primário foi a principal regra fiscal ao longo de quase 20 anos. Na medida em que passou a ser fixada com ampla folga, revista com frequência, e também a comportar número crescente de exceções, perdeu a credibilidade como instrumento de controle das finanças públicas. Para 2022 é previsto déficit primário de R$ 65,5 bilhões, enquanto a LDO do exercício admite saldo negativo de até R$ 170 bilhões.

Destaque-se, principalmente, a regra que se considerava a última e mais eficaz âncora fiscal no arsenal brasileiro, o teto de gastos. O teto foi criado em 2016, mediante Emenda Constitucional (EC nº 95/2016), para reverter o ritmo descontrolado das finanças públicas que levou à crise de 2015/2016. A regra deu alguma previsibilidade à política fiscal, permitiu a redução sustentável da taxa de juros, até a pandemia, e induziu reformas, como a previdenciária. Principalmente, tinha subjacente a obrigação de o governante escolher entre usos alternativos do dinheiro público.

Limites quantitativos, por poder e órgão, para a despesa primária tiveram o intuito de impor regras mais fortes, além de mais estáveis, visto que só poderiam ser alteradas com quórum qualificado. No entanto, desde então já houve seis alterações constitucionais e caminha-se para a sétima revisão[6].

2.2. Estado de Emergência

Com relação à decretação de estado de emergência como pressuposto para descumprimento de regras fiscais, há significativas objeções. Em primeiro lugar, regras fiscais costumam ter cláusulas de escape que permitem sua flexibilização em casos excepcionais. A regra do teto de gastos, por exemplo, prevê que créditos extraordinários abertos em razão de urgência e imprevisibilidade não precisam se submeter ao limite. A meta de resultado primário pode ser alterada durante o exercício com a modificação da Lei de Diretrizes Orçamentárias. A chamada regra de ouro, que impede o endividamento para atender despesas correntes, também pode ser excetuada mediante aprovação de crédito específico pelo Congresso Nacional, por maioria absoluta.

Ainda há que se considerar quais condições estariam dadas para a decretação de um estado de emergência ou de calamidade pública. Eventos climáticos extremos ou uma pandemia que inviabilizasse o funcionamento dos processos produtivos por um período considerável de tempo seriam os exemplos típicos. Crises econômicas por si só seriam um argumento bem mais frágil, visto que recorrentes e muitas vezes reforçadas por ações inadequadas ou intempestivas dos próprios agentes públicos.

Flutuação de preços de commodities e em especial do barril de petróleo não é novidade, como mostra gráfico a seguir. Tais variações não podem ser consideradas necessariamente imprevisíveis. Nem mesmo quando decorrem de guerra em outros países.

Processos inflacionários também não representam fator atípico na história recente do País. Para 2022, o prognóstico para o IPCA é de 7,67%, não muito distante da inflação apurada em 1996, 1999, 2001, 2002, 2003, 2004, 2015 e 2021.

Crises econômicas podem exigir medidas excepcionais de gastos, mas devem vir acompanhadas de estratégia robusta e crível de retorno à normalidade e de ajustes necessários para evitar ou mitigar eventos posteriores. A falta de um planejamento sobre a saída da situação de emergência e a fragilização do teto fiscal deixam o País sem uma âncora fiscal capaz de sinalizar retomada econômica consistente adiante.

2.3. Custo da renúncia fiscal

O custo da PEC nº 1/2022, já descrito no item 2, não pode ser analisado isoladamente. Outras tantas medidas vêm sendo tomadas nos últimos meses com impacto considerável e que não se restringe ao exercício de 2022.

O teto de gastos trouxe restrições à elevação de despesas. A redução de receitas, por outro lado, passou a apresentar-se como caminho mais curto para conceder benefícios. Assim reduções de alíquotas de impostos e desonerações tendem a alcançar R$ 130 bilhões em 2023, conforme Tabela 2.

Outros R$ 34,6 bilhões em impostos federais sobre combustíveis foram perdidos com a redução a zero das alíquotas até dezembro de 2022. Caso os preços de combustíveis sigam elevados, haverá pressão por prorrogação da renúncia em 2023, com impacto em doze meses de cerca de R$ 70 bilhões, o que elevaria a perda de arrecadação de quase R$ 200 bilhões, ou 2% do PIB. Antes das concessões mencionadas, os gastos tributários da União para 2023 estão estimados na LDO em R$ 368,9 bilhões ou 3,97% do PIB.

2.4. Propensão ao gasto

Às despesas criadas pela PEC acrescentem-se as postergadas pela Emenda Constitucional nº 114, de dezembro de 2021. Os precatórios devidos e não pagos em 2022 aproximam-se de R$ 30 bilhões, montante similar ao que não deve ser pago também em 2023. As sentenças devidas e não pagas entre 2022 e 2026, com correção monetária, possivelmente na casa de centenas de bilhões de reais, representam esqueleto a ser desembolsado em 2027 e salto significativo na dívida pública federal.

No auge da pandemia, as medidas de maior impacto, tais como o Auxílio Emergencial, deram-se por iniciativa do Congresso. Nos anos subsequentes, outros benefícios concedidos ou em análise, tais como pisos salariais e auxílios para categorias profissionais, pelo seu impacto nas contas públicas também elevam o risco fiscal a curto e médio prazo.

2.5. Indicadores econômicos

Os indicadores econômicos se deterioram, refletindo em particular a percepção de um maior risco fiscal no horizonte. Veio se elevando em torno da emergência do preço dos combustíveis um risco fiscal com consequências previsíveis para 2023. A administração subsequente enfrentará quedas de receitas, já contratadas ou decorrentes do arrefecimento da atividade econômica, e aumentos variados de despesas, além de um grau mais elevado de engessamento orçamentário, e terá que decidir entre retirar benefícios ou continuar a se endividar. Diante da necessidade do corte de despesas, o investimento público em obras e equipamentos será o primeiro a perder, afetando as perspectivas de crescimento.

O novo governo terá dificuldade de retirar ou reduzir benefícios, mesmo aqueles com vigência apenas até dezembro deste ano, em particular o Auxílio Brasil. Os Estados, desfalcados recentemente de R$ 90 bilhões de suas receitas sobre derivados de petróleo, por sua vez, poderão precisar do auxílio do governo federal.

Isso se dá, é bom lembrar, dentro de um cenário mundial que ruma agora em direção ao aperto monetário e talvez à recessão. Câmbio em alta, volatilidade dos preços de commodities, bolsas em queda, aumento do risco Brasil, todos esses indicadores se movem em desfavor do crescimento.

A contrario sensu do que se apresenta nas motivações que afastaram a incidência das regras fiscais durante o “estado de emergência”, a percepção do mercado quanto ao aumento do risco fiscal poderá levar o dólar para patamares de oscilação ainda mais elevados, o que influencia a precificação interna do petróleo. Adotam-se na PEC a compensação de gastos, sobretudo em relação ao Auxílio Brasil, a pressão sobre o câmbio e os prêmios de juros da dívida pública cobrados pelo mercado seriam menores. Ademais, as pressões inflacionárias, não apenas em relação ao petróleo, mas de todos os bens e serviços sensíveis ao câmbio tenderiam a apresentar melhor comportamento. Paralelamente, a menor pressão sobre a trajetória da dívida pública permitiria maiores espaços fiscais em um futuro próximo.

2.6. Juros

Juros aqui e no exterior aumentaram significativamente, e no Brasil a inflação persistente começa a indicar que a Selic poderá elevar-se acima dos 13,25% ao ano por conta do aumento do prêmio de risco. Os juros vão ficar por mais tempo em patamar de dois dígitos no Brasil.

O mercado financeiro está exigindo juros mais altos para adquirir títulos de longo prazo do governo. O Tesouro Nacional já aceita pagar juros reais de 6,17% para vender seus papéis atrelados ao IPCA, as NTN-B, com vencimento em 40 anos, o mais longo da dívida pública doméstica. Em janeiro de 2019, as taxas eram de 4,76%.  As NTN-F, com vencimento em 10 anos, alcançaram 13,21%.

2.7. Inflação

O Banco Central alerta, em seu último Relatório de Inflação (30 de junho), “que as medidas tributárias em tramitação e discussão podem reduzir sensivelmente a inflação no ano corrente, embora elevem, em menor magnitude, a inflação no horizonte relevante de política monetária. Contudo, políticas fiscais que impliquem sustentação da demanda agregada no curto prazo, mas que piorem a trajetória fiscal do país – assim como a incerteza sobre o futuro do arcabouço fiscal – podem pressionar os prêmios de risco e a confiança dos agentes, com impactos negativos, possivelmente defasados, sobre a atividade econômica e os investimentos em particular.”

O IPCA previsto no relatório Focus para 2023 já está em 5,1% e tem subido. As empresas, que estão trabalhando com alta de insumos e margem apertada, vão buscar reajustar os preços, sustentados pelo aumento da demanda.

2.8. Crescimento

A expectativa de um crescimento baixo da economia tem sido apenas adiada. Os analistas têm melhorado suas previsões para o terceiro trimestre e para o PIB em 2022 graças às reduções de impostos e aos aumentos de despesas públicas, com novas transferências como o aumento do Auxílio Brasil e de outros benefícios previstos na PEC. A reversão dessas medidas, no todo ou em parte, poderá fazer o PIB encolher adiante.

3          Aspectos Normativos e Orçamentários

3.1. A caracterização do Estado de Emergência da PEC nº 1/2022

A PEC 1/2022 cria e amplia benefícios sociais aproveitando-se da dispensa de várias regras fiscais voltadas ao equilíbrio fiscal – teto para as despesas primárias, resultados fiscais, regra de ouro e necessidade de compensação do aumento de gastos obrigatórios. Como fundamento, é reconhecida no País a existência de um “estado de emergência” decorrente de elevação extraordinária e imprevisível dos preços do petróleo, combustíveis e seus derivados e dos impactos sociais deles decorrentes.

A distinção entre estado de emergência e estado de calamidade pública pode ser encontrada no âmbito da política de defesa civil. Depende da intensidade da situação e do alcance dos danos provocados. No estado de emergência a capacidade de resposta do Poder Público é parcialmente comprometida, sendo que os danos são suportáveis e superáveis. No estado de calamidade pública o comprometimento é substancial (desastres).

De acordo com o Decreto nº 10.593/2020:

Art. 2º Para fins do disposto neste Decreto, considera-se:

(…)

VIII – estado de calamidade pública – situação anormal provocada por desastre que causa danos e prejuízos que impliquem o comprometimento substancial da capacidade de resposta do Poder Público do ente federativo atingido ou que demande a adoção de medidas administrativas excepcionais para resposta e recuperação;

(…)

XIV – situação de emergência – situação anormal provocada por desastre que causa danos e prejuízos que impliquem o comprometimento parcial da capacidade de resposta do Poder Público do ente federativo atingido ou que demande a adoção de medidas administrativas excepcionais para resposta e recuperação.

A autorização para que governos deixem de cumprir, de forma temporária, o conjunto de normas legais ou fiscais, sempre foi tratada como procedimento de exceção que exige fundamento fático e cautelas especiais.

O atendimento de situações excepcionais que exigem proteção especial já conta, no caso da calamidade pública, com um arsenal de medidas de enfrentamento. O art. 65 da LRF, além de suspender prazos de retorno aos limites de pessoal e dívida, dispensa o atingimento de metas fiscais e a adoção de medidas de compensação. Aplica-se, no entanto, exclusivamente aos atos de gestão orçamentária e financeira necessários ao atendimento das respectivas despesas.

De acordo com a Constituição, a abertura de crédito extraordinário pode ser feita por medida provisória quando se tratar de despesas imprevisíveis e urgentes, tais como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública. Sobre o tema, o STF esclarece que as despesas devem ser apenas aquelas necessárias para o atendimento de “realidades ou situações fáticas de extrema gravidade e de consequências imprevisíveis para a ordem pública e a paz social, e que dessa forma requerem, com a devida urgência, adoção de medidas singulares e extraordinárias”[7]. Assim, não deve haver dúvidas em relação às situações que ensejam a excepcionalidade.

Exemplo disso foi a situação vivenciada em função da pandemia da COVID-19 no exercício de 2020. Naquele ano foram editadas regras fiscais extraordinárias (EC nº 106/20, LC nº 173/2020 e LDO 2020) que dispensaram ou afastaram exigências do regime fiscal ordinário. De outra parte, as dispensas foram acompanhadas de várias ressalvas e cautelas, o que já refletia a preocupação do próprio Legislativo quanto ao impacto futuro no endividamento público e à necessidade de recuperação fiscal no período pós-pandemia.

Delimitou-se o regime extraordinário somente para 2020 e apenas naquilo em que a urgência viesse a se mostrar incompatível com o regime regular, e desde que não viesse implicar despesa permanente, prevenindo-se assim abusos e desvios na utilização das normas excepcionais. Ao mesmo tempo, a lei complementar estabeleceu proibições específicas para aumentos, criação de cargos, benefícios, concursos, reajustes, progressões etc., com algumas exceções, como forma de compensar, ao menos em parte, o aumento imprevisto de despesas.

Nem mesmo a continuidade dos efeitos da pandemia em 2021 foi motivo para a prorrogação do estado de calamidade pública, visto que já se contava então com a expectativa de recuperação a partir dos efeitos da vacinação.

Como visto, encontra-se implícito no regime de exceção, além da existência de um fundamento fático, a dispensa de requisitos sempre de forma restrita às medidas necessárias e suficientes[8].

De acordo com a redação da PEC nº 1/2022, o estado de emergência, reconhecido no ano de 2022, decorre da “elevação extraordinária e imprevisível dos preços do petróleo, combustíveis e seus derivados e dos impactos sociais deles decorrentes”.

Durante o estado de emergência assim definido, permitir-se-á atender as despesas criadas por crédito extraordinário, independentemente do atendimento do requisito de imprevisibilidade previsto no art. 167, § 3º da CF. Ademais, os novos gastos não serão considerados para fins de cumprimento da meta fiscal prevista na LDO, no limite de despesas primárias (teto), no limite estabelecido pela regra de ouro e serão dispensadas da necessidade de compensação.

Ou seja, ainda que a situação de “emergência” seja menos grave, adota-se na PEC praticamente as mesmas dispensas e privilégios concedidos para situações mais críticas que caracterizam o estado de calamidade pública, o que não parece razoável. Abre-se mão de praticamente todo mecanismo de defesa fiscal de forma desproporcional à situação que se vislumbra.

Segue-se ao caput do art. 2º da PEC o parágrafo único, o qual determina que os limites dos montantes devem constar de uma “única e exclusiva norma constitucional”. O texto, aparentemente, procura mitigar a falta de pressupostos fáticos dessa iniciativa pelo fato de não poder haver outra norma constitucional que amplie os limites, o que parece ser inócuo, porque nada impede que outra emenda constitucional altere o próprio parágrafo único.

 3.2. A compensação das despesas continuadas como princípio fiscal

Como comentado, o impacto da entrada de novas famílias no programa e o pagamento do acréscimo extraordinário de R$ 200,00 para todas as famílias implicará um gasto adicional de R$ 26 bilhões, que, somados aos valores já previstos no orçamento para 2022, de R$ 89,1 bilhões, farão com que o dispêndio total com o Programa alcance a cifra de R$ 115,1 bilhões.

Apesar de a PEC limitar o pagamento dos benefícios nela previstos até 31.12.2022, a entrada das novas famílias no programa será sentida também nos próximos exercícios. Excluído o pagamento do acréscimo extraordinário de R$ 200,00, cujo pagamento está limitado a 31.12.2022, estima-se que o impacto da entrada das 2,6 milhões de famílias no programa pode atingir o montante de R$ 12,5 bilhões em 2023.

Considerada a atual situação de déficit fiscal, a PEC, da forma como se encontra, em especial quanto ao fato de não prever compensação de despesas com caráter nitidamente continuado (Auxílio Brasil), atinge princípios basilares de equilíbrio das contas públicas e aumenta o risco fiscal, precedente que aparenta ser excessivo.

É sabido que crescentes demandas sociais tendem sempre a superar a capacidade tributária e as disponibilidades do Estado, razão pela qual princípios e regras[9] estabilizadores são formulados para conter a tendência de endividamento público crescente. De fato, a percepção quanto à falta de capacidade de solvência das contas públicas induz a elevação das taxas de juros e provoca o aumento dessas despesas, um círculo vicioso bastante conhecido.

No âmbito das finanças públicas existem diversas normas diretamente relacionadas à necessidade de se impor limites financeiros ao governo e aos agentes políticos, em especial no final de mandato.

A existência de um conjunto funcional e harmonizado de preceitos reduz a discricionariedade e o excesso de poder dos governantes, aumenta a transparência e, em especial, a segurança e a credibilidade da política fiscal. Neste desiderato, hipóteses de afastamento e dispensas podem até existir no sistema normativo, mas sempre como exceção amparada por elementos fáticos e jurídicos bem determinados e que devem ser interpretados de forma restritiva.

A relevância e o alcance dos princípios no conjunto normativo justificam o cuidado pela sua preservação, razão pela qual costumam ser inseridos de forma permanente dentro da própria Constituição, o que não impede normas de elevada densidade valorativa enunciadas em textos infraconstitucionais, como é o caso do equilíbrio orçamentário.

Um dos princípios fiscais mais conhecidos é o da busca do equilíbrio temporal das finanças públicas, que, em última análise, visa à justiça intergeracional na divisão dos benefícios e ônus do endividamento público. Nesse sentido, estabelece o art. 1º da LRF que ação fiscal responsável “pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas”. (grifo nosso).

Novas despesas que tendem a ser perpetuar somente podem ser aprovadas se indicada a fonte de financiamento, uma forma de mitigar o aumento da rigidez orçamentária e do déficit. De acordo com a legislação complementar (art. 16 e 17 da LRF), alterações que impliquem aumento de despesas obrigatórias de duração continuada devem ser compensadas[10], mantendo-se o equilíbrio implícito na lei orçamentária.

Essa regra de neutralidade orçamentária permite o controle difuso e prévio de proposições e demais atos que criam despesas obrigatórias. A restrição se justifica pelo fato de que, aprovada a legislação, cria-se um fato consumado, de difícil reversão.

Despesas obrigatórias, uma vez aprovadas, não se submetem aos limites do orçamento, como ocorre com as discricionárias. Ao contrário, é o orçamento que fica submetido às despesas obrigatórias. A necessidade de maior cuidado com a aprovação de despesas obrigatórias encontra-se expressa na Constituição que, ao tempo que cria tetos para as despesas primárias (ADCT, art. 107), estabelece mecanismo de controle dessas despesas quando seu montante ultrapassa 95% da despesa primária total (ADCT, art. 109). Adicionalmente, o art. 113 do ADCT exige a estimativa do impacto orçamentário e financeiro de toda proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória (ou renúncia de receita).

Não há dúvida acerca da importância do objetivo de atenuar o impacto do aumento dos preços dos combustíveis e dos preços em geral sobre a renda dos cidadãos.

Ainda que se admita tratar-se de despesa extraordinária – o que implicaria a dispensa automática do cumprimento da regra do teto (ADCT, art. 107, § 6º, III) – não se vislumbra, por outro lado, razão ou necessidade para afastamento da regra de compensação, em detrimento da preservação do princípio do equilíbrio temporal.

A compensação, ao atuar como freio e contrapeso político ao desejo dos governos de expansão orçamentária, em especial no final de mandato, preserva o nível atual de equilíbrio (já deficitário[11]) para, pelo menos, não agravar ainda mais a situação fiscal.

Não se justifica, portanto, a falta de indicação de fontes permanentes para o atendimento das despesas correntes continuadas criadas pela PEC (art. 2º, parágrafo único, III), em especial quanto ao Programa Auxílio Brasil, implantada aos moldes do Bolsa Família[12]. Tratando-se de benefícios sociais com natureza de despesa corrente continuada, é grande a dificuldade de sua posterior redução, seja do ponto de vista político ou mesmo jurídico (princípio do não retrocesso dos direitos sociais).

Por esse motivo, a extensão de tais benefícios deveria ter sido compensada, para que possa ser mantida, garantindo-se a neutralidade fiscal da medida e a preservação do princípio do equilíbrio temporal do orçamento.

3.3. Limitação das despesas em final de mandato

As regras que limitam despesas de final de mandato, ainda que em legislação infraconstitucional (LRF, arts. 21, 31, 42 e lei eleitoral), dão concretude, em seu conjunto, ao princípio que impõe aos agentes políticos, nos períodos de transição, disciplina fiscal ainda mais rigorosa do que aquela comumente adotada. O bem jurídico protegido é a igualdade da disputa eleitoral, reduzindo-se assimetria no exercício de direitos políticos em benefício de candidatura própria ou de terceiros.

Dentre outras condutas proibidas pela lei eleitoral, veda-se nos três meses que antecedem o pleito, “realizar transferência voluntária de recursos da União aos Estados e Municípios, sob pena de nulidade de pleno direito, ressalvados os recursos destinados a cumprir obrigação formal preexistente para execução de obra ou serviço em andamento e com cronograma prefixado, e os destinados a atender situações de emergência e de calamidade pública” (CF. art. 73, inciso VI, alínea “a”, da Lei nº 9.504, de 1997, grifo nosso). O § 10[13] do mesmo artigo proíbe, no ano de eleição, a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária.

Entretanto, entende-se que o estado de emergência reconhecido pela PEC em análise é peculiar, com aplicação restrita tão somente aos benefícios nela elencados. Desta forma, não deve ter o condão de afastar, de forma genérica, as vedações referidas na lei eleitoral.

 

____________________________________________________

[1] Este texto se baseia em Nota Técnica da Consultoria da Câmara dos Deputados elaborada pelos mesmos Autores (Subsídios à apreciação das PECs nº 1 e 15, de 2022).

[2] Disponível em https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/ri/relatorios/cidadania/index.php; Último acesso em 11/07/2022.

[3] Idem.

[4] Decreto nº 10.881, de 02.12.2021.

[5] Disponível em https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/vis/data3/data-explorer.php.

Último acesso em 11.07.2022.

[6] EC 102/2019, EC 108/2020, EC 109/2021, EC 113/2021, EC 114/2021 e EC 119/2022.

[7] https://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigo.asp?item=1634&tipo=CJ&termo=3#:~:text=Al%C3%A9m%20dos%20requisitos%20de%20relev%C3%A2ncia,de%20relev%C3%A2ncia%20e%20urg%C3%AAncia%20(art.

[8] É exemplo, no caso das despesas com pessoal durante o estado de calamidade pública de 2020, a viabilização da contratação de pessoal apenas nas áreas voltadas ao enfrentamento à pandemia, sendo que, de outra parte, houve restrições à contratação nas demais áreas.

[9] Consideram-se aqui como “regras”, fiscais ou orçamentárias, aquelas normas ou preceitos com maior grau de determinação, vinculantes e objetivas. E, como “princípios”, aqueles enunciados que fundamentam um conjunto de regras e o próprio regime jurídico. Apesar de mais genéricos, têm importância vital, pois estruturam valores que derivam da razão e do conhecimento normalmente aceito e consolidado, estabelecendo substrato que justifica, no caso, o conjunto específico de regras orçamentárias e fiscais criadas para desestimular déficits e atenuar ou reduzir o endividamento público.

[10]  De acordo com o art. 17 da LRF, o aumento de despesa obrigatória continuada exige a redução de outra despesa, ou o aumento de receita.

[11] A meta de resultado primário para 2022, conforme LDO, é de déficit.

[12] De acordo com a PEC, a extensão do programa é assegurada a todas as famílias elegíveis na data de promulgação da Emenda Constitucional.

[13] Em relação à legislação eleitoral, a lei nº 14.352 de 2022, alterou a LDO 2022, inserindo novo dispositivo no seu texto: Art. 81-A. A doação de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública a entidades privadas, desde que com encargo para o donatário, anterior a três meses que antecedem o pleito eleitoral, não se configura em descumprimento do § 10 do art. 73 da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997.

 

* Eugênio Greggianin é consultor de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados

 

** José Fernando Cosentino Tavares é consultor de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados

 

*** Marcia Rodrigues Moura é consultora de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados

 

]]>
Planejamento de Médio Prazo do Processo Orçamentário https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3596&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=planejamento-de-medio-prazo-do-processo-orcamentario Fri, 18 Mar 2022 19:56:10 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3596 Planejamento de Médio Prazo do Processo Orçamentário

 

Por Helio Tollini e Paulo Bijos[1]

 

Uma parte significativa das decisões relativas a receitas e despesas tem implicações que se prolongam bem além do habitual ciclo de uma lei orçamentária anual (LOA). O horizonte temporal curto da LOA, portanto, não estimula que o planejamento fiscal e o planejamento estratégico das despesas sejam consistentes, pois tende a desconsiderar o impacto plurianual das decisões tomadas no momento presente.

Quando o foco do processo orçamentário é apenas o exercício de referência, o interesse em propor modificações nas legislações que provocam rigidez orçamentária é menor, visto que os ganhos de flexibilidade tendem a ocorrer nos exercícios seguintes. Se o foco orçamentário for o médio prazo, haverá estímulos para que boa parte dos ganhos de flexibilidade seja incorporada ao novo processo alocativo.

Um instrumento adotado por diversos países, chamado Quadro da Despesa de Médio-Prazo – QDMP (em inglês, Medium-Term Expenditure Framework – MTEF)[2], permite ao governo ampliar o horizonte da alocação dos recursos públicos para além do calendário orçamentário anual. O QDMP compatibiliza as prioridades estratégicas de cada setor com limites alocativos plurianuais definidos conforme a capacidade fiscal do Estado. Para tal, estabelece com antecedência, para o médio prazo, tetos gerais anuais em consonância com os objetivos de longo prazo da política fiscal, e subtetos de gastos específicos por área temática conforme as prioridades definidas setorialmente.

O QDMP costuma ser construído com amparo em um Cenário Fiscal de Médio Prazo (CFMP), que dilata o horizonte da política fiscal ao apresentar a estimativa de evolução plurianual dos grandes agregados de receitas e despesas. Nesse modelo de planejamento de médio prazo, a limitação “de cima para baixo” (top-down) oriunda do CFMP interage com a programação setorial de gastos “de baixo para cima” (bottom-up), decorrente do cenário-base (baseline) e das novas iniciativas. Os objetivos da adoção conjunta de um CFMP/QDMP seriam impor, com antecedência, metas fiscais estabelecidas para o médio prazo, em consonância com os objetivos de longo prazo da política fiscal, e alocar recursos públicos em linha com essa restrição fiscal e com prioridades estratégicas definidas de antemão.

  • Há diferenças acentuadas entre modelos de QDMP adotados atualmente nos diversos países. Caso venha a ser utilizado no Brasil, tanto no governo federal quanto eventualmente em entes subnacionais, escolhas precisarão ser feitas no que diz respeito:
  • À abrangência (inclui ou não a seguridade social; considera ou não somente as despesas primárias; contempla ou não apenas as despesas correntes);
  • Ao horizonte temporal (dois, três, quatro ou até cinco exercícios financeiros);
  • Ao caráter dos limites impostos aos exercícios futuros (apenas indicativos ou impositivos; irreversíveis ou não);
  • À forma de se desdobrar limites (por função, por programa, por ministério, por setor ou por área);
  • Ao grau de detalhamento da programação objeto do teto (agregadas por grupo de despesa, desdobradas por programas ou por ações);
  • À atualização dos limites (se ajustados pela inflação ou outro critério);
  • Às reservas de programação (para atender mudanças na conjuntura econômica; para atender novas políticas públicas);
  • À previsão de “gatilhos” (para disciplinar o excepcional descumprimento de limites e suas respectivas consequências); e
  • Ao papel do Parlamento (exigência de aprovação; apenas requerimento de ser informado; ou nenhum papel).

Se adaptado com base na exitosa experiência sueca, o teto global de gastos seria de caráter impositivo e irretratável[3], fixado anualmente na LDO para o médio prazo (até o exercício “t+2”), em base móvel, por proposta do Poder Executivo. Os subtetos seriam definidos por área temática, e impositivos apenas entre a LDO recém-aprovada e o projeto de LOA a ser submetido ao Congresso dois meses depois (e de caráter indicativo para os exercícios futuros). As atribuições do Congresso Nacional na aplicação dos recursos públicos seriam reforçadas, pois passaria a definir antecipadamente o montante máximo de gastos e como se daria a divisão desse montante entre as áreas temáticas.

Dentre outras, destacam-se as seguintes vantagens de se elaborar um QDMP em relação à orçamentação anual tradicional:

  • Impor maior disciplina fiscal ao limitar a elaboração e a execução dos orçamentos nos anos seguintes a níveis consistentes com os objetivos fiscais e setoriais de médio e longo prazos;
  • Melhorar a priorização estratégica dos gastos ao discutir antecipadamente a programação setorial dos exercícios futuros, expondo de forma clara a evolução das despesas associadas às diversas políticas públicas vis-à-vis as limitações do espaço fiscal disponível;
  • Permitir a identificação antecipada de medidas corretivas a serem adotadas para contornar rigidezes, obstáculos e eventual degradação das contas públicas no médio prazo, de forma a viabilizar os subtetos indicativos pretendidos para os exercícios seguintes;
  • Fomentar maior eficiência no planejamento intertemporal dos gastos, ao proporcionar maior previsibilidade e transparência aos gestores setoriais quanto aos recursos de que disporão nos orçamentos futuros; e
  • Reforçar aspectos antes relegados a segundo plano num ambiente cujo foco é o curto prazo, fomentando melhorias para o planejamento setorial, a avaliação de desempenho, a responsabilização e a transparência do processo alocativo.

Ademais, o arcabouço CFMP/QDMP seria uma alternativa mais interessante do que o atual Novo Regime Fiscal (NRF) para nortear a política fiscal, pois manteria a rigidez fiscal no médio prazo, com a vantagem de ser flexível no longo prazo. Por ter horizonte temporal mais curto e base móvel, admitiria a correção de curso da política fiscal no médio prazo, em sintonia com a alteração dos indicadores econômicos.

Adicionalmente, informaria melhor o Congresso Nacional a respeito da evolução das contas públicas nos anos subsequentes, dotando-o de melhores condições para calibrar o impacto financeiro de suas decisões de acordo com a trajetória desejada de evolução da dívida pública. A participação de uma Instituição Fiscal Independente robusteceria esse modelo com apoio técnico na elaboração e no monitoramento de cenários fiscais.

A mudança fundamental é o deslocamento do foco do processo de elaboração orçamentária do curto para o médio prazo, com afetação direta da forma como os recursos públicos são alocados.

Quanto ao Plano Plurianual (PPA), dentro desse novo arcabouço ele se torna dispensável enquanto instrumento legal de planejamento orçamentário no médio prazo. O PPA possui limitações estruturais que o tornaram ineficaz. Apesar dos diversos formatos tentados desde o início da década de 1990, nunca conseguiu determinar a alocação plurianual dos recursos públicos. No novo modelo de planejamento orçamentário, a tríade de “leis orçamentárias” (PPA, LDO e LOA) cederia lugar a apenas duas – LDO e LOA. A LDO incorporaria as funções de CFMP/QDMP e a LOA continuaria aprovando despesas anuais à luz de uma estrutura fiscal de médio prazo. O planejamento plurianual, em suma, não mais assumiria a forma de “lei de PPA”, mas a atividade de planejamento, evidentemente, não deixaria de existir, sobretudo em nível setorial. O planejamento central, por sua vez, poderia materializar-se por meio do ainda pouco explorado “plano de governo” a que se refere o art. 84, inciso XI, da Constituição. Para esse instrumento já existente poderia ser canalizado todo aprendizado obtido a partir da experiência histórica com o PPA.

Adicionalmente, o modelo trazido à baila deveria ser idealmente complementado por um processo de Revisão do Gasto Público (em inglês, Spending Review), a fim de evitar o comportamento inercial da “base orçamentária” existente. É preciso institucionalizar um processo de reavaliação periódica de programas, ações, vinculações orçamentárias, gastos tributários e subsídios (financeiros e creditícios). A Revisão do Gasto Público teria o objetivo de aprimorar a alocação de recursos escassos em favor de programações que propiciem maiores benefícios à sociedade. Isso permite que a redução de gastos ineficientes abra espaço fiscal para incorporação de outros mais eficientes (evitando-se também os malfadados “cortes lineares”, que muitas vezes atingem despesas correntes essenciais e investimentos). Para tal, propõem-se revisões específicas (de um ou alguns poucos setores escolhidos) no âmbito de cada projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), e uma revisão mais abrangente apresentada juntamente com o projeto de LDO do último ano do mandato presidencial (para que suas conclusões eventualmente sirvam de base para discussões políticas dos candidatos à Presidência nas eleições do mesmo ano).

Por fim, a LOA precisa dialogar melhor com a abordagem da orçamentação por desempenho (em inglês, performance budgeting). Em sua estruturação moderna, por programas, a LOA deve ser encarada como leis de fins. Isso significa que as ações orçamentárias não são “peças soltas” no ambiente de planejamento governamental. As ações finalísticas do orçamento têm compromisso com entregas na forma de bens e serviços, que por sua vez visam contribuir para a melhoria das condições socioeconômicas do País. Por isso as ações finalísticas da LOA são expressamente dotadas de produtos e respectivas “metas físicas”, que quantificam as entregas associadas a cada dotação orçamentária. Essa informação deve ser levada mais a sério. A fixação e a execução das metas físicas precisam ser consistentes e transparentes, de forma a permitir o acompanhamento da eficácia das ações orçamentárias. A LOA já divulga metas físicas, desde 1987, mas não há qualquer justificativa para os valores fixados para as metas das despesas discricionárias, nem controle social sobre a execução delas. O ideal é que haja divulgação de justificativa específica para o valor de cada meta física fixada, assim como a publicização de sua execução ao longo do ano, de forma a permitir o controle social da eficácia da ação governamental. O argumento de que tal informação eventualmente “burocratizaria” o processo orçamentário não procede. No mundo contemporâneo, altamente digitalizado, não deveria haver óbices para a disponibilização dessas informações à sociedade.

 

Referências

ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE). Budgeting and public expenditures in OECD countries. Paris: OECD – Publishing, 2019.

Obs.: aos leitores interessados nos temas tratados neste artigo, sugerimos adiante algumas referências pertinentes, em caráter não exaustivo:

AFONSO, José Roberto; RIBEIRO, Leonardo. Revisão dos gastos públicos no Brasil. Revista Conjuntura Econômica, set. 2020.

ALMEIDA, Dayson P.B.; BIJOS, Paulo R.S. Planejamento e orçamento no Brasil: propostas de inovação. In: SALTO, Felipe S.; PELLEGRINI, Josué A. (org.). Contas públicas no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2020.

BIJOS, Paulo R.S. Spending Review e MTEF – caminhos para maior estabilidade? [Publicação preliminar]. In: Governança Orçamentária no Brasil. COUTO, Leandro F.; RODRIGUES, Júlia M. (org.). Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 2021.

COURI, Daniel V.; BIJOS, Paulo R.S. Subsídios para uma reforma orçamentária no Brasil. In: Reconstrução: o Brasil nos anos 20. SALTO, Felipe; VILLAVERDE, João; KARPUSKA, Laura (org.). Brasília: Série IDP/Saraiva, 2022.

FORTIS, Martin; GASPARINI, Carlos E. Plurianualidade: marcos de gasto de médio prazo. In: GIMENE, Márcio. (org.). Planejamento, orçamento e sustentabilidade fiscal. Brasília, DF: Assecor, 2020.

MACIEL, Pedro J.; ARAÚJO, Rafael C. Regras fiscais no Brasil: proposta de harmonização do arcabouço fiscal de médio prazo. In: GIAMBIAGI, Fábio. (org.). O futuro do Brasil. São Paulo: Atlas, 2021.

SALTO, Felipe S. O tripé orçamentário Couri-Bijos. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 15 mar. 2022.

TOLLINI, Hélio. Deslocando o foco orçamentário do curto para o médio prazo. In: GIAMBIAGI, F.; FERREIRA, S.G.; AMBRÓZIO, A.M.H. (org). Reforma do Estado brasileiro: transformando a atuação do governo. São Paulo: Atlas, 2020.

 

[1] Consultores de Orçamento da Câmara dos Deputados.

[2] Estudo da OCDE realizado em 2019 examinou 34 países membros e concluiu que 31 deles adotam o QDMP. Desses, 25 praticam um modelo de base móvel, em que anualmente o exercício financeiro transcorrido é retirado e outro futuro acrescido. Os demais seis países utilizam periodicidade fixa, normalmente coincidente com o ciclo político (OCDE, 2019).

[3] O que não se confunde com ausência de válvulas de escape no modelo.

]]>
Distorções das emendas parlamentares continuam se agravando https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3477&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=distorcoes-das-emendas-parlamentares-continuam-se-agravando Fri, 09 Jul 2021 15:49:56 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3477 Distorções das emendas parlamentares continuam se agravando

 

E o noticiário sobre esse assunto continua a revelar aberrações

 

Por Roberto Macedo

Volto e voltarei a escrever sobre essas emendas, pois constituem uma das grandes distorções do sistema político brasileiro. Refiro-me às verbas que parlamentares federais colocam no Orçamento, particularmente em benefício de prefeituras de cidades onde cultivam suas bases eleitorais, de olho em assegurar votos em futuras campanhas de reeleição.

O valor total dessas emendas cresceu ao longo do tempo, e elas foram objeto de emenda constitucional. Mas é possível argumentar que mesmo assim seriam inconstitucionais, assunto ao qual voltarei mais à frente.

Há quatro tipos de emendas: a individual, do próprio parlamentar, as apresentadas pelo relator-geral do orçamento, as oriundas de comissões e as de bancadas estaduais. O total das dotações alcançou as expressivas cifras de R$ 36,2 bilhões em 2020 e R$ 33,8 bilhões em 2021. É interessante verificar que são valores comparáveis às dotações do programa Bolsa Família, de R$ 29,5 bilhões em 2020 e R$ 34,9 bilhões em 2021. Mas esse programa tem reconhecidos méritos, chegando a perto de 15 milhões de famílias e a muito mais pessoas se contados os dependentes familiares.

As emendas atendem a interesses dos parlamentares e de seus beneficiários, e destinam-se principalmente a projetos municipais. São penduricalhos do Orçamento federal, já que não se destinam a finalidades típicas desse orçamento como, por exemplo, uma rodovia ou um porto marítimo que servisse a vários estados.

Volto novamente à avaliação dessas emendas por Cecília Machado, professora da Fundação Getúlio Vargas, em artigo na Folha em 13/4/21: “Na prática, a execução descentralizada e atomizada das emendas … pode encontrar … desafios na sua implementação … Primeiro, a discricionariedade individual dos parlamentares na escolha de projetos vem ao custo de uma avaliação mais ampla de alternativas para a aplicação dos recursos, e … é falha na identificação de ações prioritárias. … muitos municípios, especialmente os menores, não têm levantamento prévio de suas necessidades … com critérios técnicos … Inexistem critérios de necessidade ou custo-efetividade dos projetos, que passam a seguir lógica populista ou eleitoral … ainda que os maiores gargalos possam estar em outras regiões ou municípios”.

A autora apontou também outros defeitos das emendas. Uma implicação muito relevante de sua análise é que a pulverização, e a falta de critérios na distribuição das emendas, faz com que não atentem para o bem comum dos brasileiros, o que é indicativo de um comportamento aético dos parlamentares.

E o noticiário sobre o assunto continua a revelar aberrações. Uma tem sido objeto de reportagens deste jornal centradas no chamado orçamento secreto. Segundo a última matéria, que vi no site do jornal em 25/6, dos repórteres Breno Pires e André Shalders, recorrendo às emendas do relator “parlamentares aliados indicaram transferências em valores muito superiores àqueles aos quais têm direito pelas tradicionais emendas ao orçamento – que são as individuais e as de bancada. As indicações, definidas nos bastidores, são oficializadas por meio de ofícios ocultos ao público”. Assim, o destino final dos recursos não consta da lei orçamentária, mas só posteriormente pelo meio mencionado, o que é um absurdo.

Segundo a mesma matéria, o Tribunal de Contas da União considerou o procedimento inconstitucional. Uma das transferências realizadas dessa forma chama a atenção. A prefeitura de Tauá, sob comando de Patrícia Aguiar, mãe do relator-geral do Orçamento de 2019, Domingos Neto (PSD-CE), foi beneficiada com R$ 146 milhões em 2020, o que dá uma média de R$ 2.476,77 por habitante, enquanto a capital cearense, Fortaleza, teve valor per capita de R$ 77,85. E por aí vai o dinheiro do contribuinte…

Volto agora à minha visão da inconstitucionalidade das emendas em geral, apontada em artigo neste espaço em 21/4. A Constituição, no seu artigo 4.º, diz que todos são iguais perante a lei, uma de suas cláusulas pétreas, ou seja, que não podem ser alteradas por reformas constitucionais.

Há tempos tinha a curiosidade de saber se não haveria uma hierarquia de princípios constitucionais. Pesquisando o assunto na internet, encontrei um texto do jurista Douglas Cunha[1]  onde é dito o seguinte: “Embora não exista hierarquia entre normas constitucionais originárias (acrescento: como o artigo 4.º citado) … as emendas constitucionais (normas constitucionais derivadas) poderão, sim, ser objeto de controle de constitucionalidade”.

Está aí, portanto, um caminho para argumentar pela inconstitucionalidade das emendas, pois infringem o referido artigo 4.º, ao criarem duas categorias de candidatos: os incumbentes, que buscam a reeleição e usam as emendas como um instrumento de suas campanhas, e os candidatos sem mandato e sem acesso a elas.

 

Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 1° de julho de 2021.

[1] (https://douglascr.jusbrasil.com.br/artigos/616260325/a-piramide-de-kelsen-hierarquia-das-normas)

]]>
Congresso avança sobre o Orçamento https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3434&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=congresso-avanca-sobre-o-orcamento https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3434#comments Sun, 18 Apr 2021 00:28:50 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3434 Congresso avança sobre o Orçamento

Esse avanço é um procedimento aético, pois não tem como objetivo o bem comum

 Por Roberto Macedo

Quando redigia este artigo, prosseguia o impasse em torno do Orçamento federal de 2021, maquiado pelo Congresso. Abordei o tema no meu artigo anterior neste espaço (Sob comando do Centrão, Congresso corrompeu Orçamento de 2021, 1.º/4). Recorde-se que a Lei Orçamentária Anual (LOA) deste ano só veio no dia 25 deste mês, um atraso que já indicava problemas na sua elaboração.

O mais sério foi o “cancelamento” parcial de despesas obrigatórias (abono salarial, seguro-desemprego, previdência do INSS e outras menores), num total de R$ 26,5 bilhões, para abrir espaço (R$ 26 bilhões) para despesas discricionárias de emendas de interesse do relator do projeto e de parlamentares.

O noticiário anterior e subsequente à LOA e, em geral, sobre questões orçamentárias federais chama a atenção para o avanço político do Congresso no sentido de ampliar sua influência no destino dos gastos. Em entrevista ao jornal O Globo publicada em 21 de março, antes, portanto, da aprovação da LOA, o presidente da Câmara, Arthur Lira, já indicava como pretende lidar com o Orçamento federal. Disse ele: “… vamos buscar o comando do Orçamento. … O Orçamento vem pronto, todo prefixado, com 96% de despesas carimbadas. Defendo a desvinculação total do Orçamento. … Se o Congresso vai votar, se não vai votar… Aí a gente tem que ter o respeito de ouvir todos. A população tem de escolher o deputado: ‘Ah, eu quero que tenha no Orçamento 40% para educação. Então a população vai votar em deputados que defendam a Educação”. Ora, não é assim. O distanciamento entre congressistas e seus eleitores é imenso, em geral estes não são ouvidos. E mesmo se fossem, isso não levaria necessariamente o Orçamento pelos melhores caminhos.

Indagado sobre como buscar o comando do Orçamento, Lira respondeu: “Por que o Executivo é quem tem de tocar o Orçamento… Aí é o erro do Brasil. Onde as maiores democracias são fortes? Onde o Orçamento é do Legislativo. Quem vai executar é o Executivo. Mas quem diz onde vai executar, quanto vai executar e em que área é o Legislativo”.

É outro equívoco. Ele deveria acompanhar o caso dos EUA neste momento em que o presidente Joe Biden tratará com seu Congresso seu imenso programa de fortalecimento da economia e da sociedade americana. Esse programa partiu dele e é o Executivo que tem todo um enorme aparato de ministérios que cuidam de questões específicas e elaboram propostas de aprimoramento. O Congresso não tem esse aparato. Pode aprovar ou não, e até propor algumas mudanças, mas seu papel fundamental é o de legislar.

O que o nosso Congresso quer mesmo é executar ações de interesse de congressistas, voltadas principalmente para suas bases eleitorais nos municípios, o que se expressa claramente por meio das abomináveis emendas parlamentares. Tanto assim é que o grande impasse na discussão da LOA de 2021 diz respeito a essas emendas parlamentares. Em geral, destinam recursos em âmbito municipal a obras e serviços que, principalmente nos municípios pequenos, muito representam eleitoralmente. Essas emendas são aprovadas sem escrutínio pelos demais congressistas e pelas assessorias técnicas do Congresso. É um procedimento aético, pois não visa o bem comum. Como os municípios em geral carecem de mais recursos, estes deveriam ser buscados de forma a alcançar todos eles.

Cecília Machado, professora da Escola Brasileira de Economia e Finanças da Fundação Getúlio Vargas, em artigo na Folha, dia 13/4, fez uma avaliação de como essas emendas funcionam mal: “Na prática, a execução descentralizada e atomizada das emendas … pode encontrar … desafios na sua implementação… Primeiro, a discricionariedade individual dos parlamentares na escolha de projetos vem ao custo de uma avaliação mais ampla de alternativas para a aplicação dos recursos, e … é falha na identificação de ações prioritárias. … muitos municípios, especialmente os menores, não têm levantamento prévio de suas necessidades … com critérios técnicos. … Inexistem critérios de necessidade ou custo-efetividade dos projetos, que passam a seguir lógica populista ou eleitoral, … ainda que os maiores gargalos possam estar em outras regiões ou municípios”. A autora segue apontando outros sérios defeitos das emendas parlamentares.

O que fica claro é que a maioria dos congressistas quer mesmo é cevar suas clientelas políticas, de olho na reeleição. Tenho argumentado que se trata de um financiamento público e indireto de campanhas eleitorais em benefício de candidatos já com mandato, que não alcança quem não o tem. Apesar de as emendas estarem na Constituição por emenda constitucional, pode-se argumentar que seriam inconstitucionais por violarem um princípio originário e cláusula pétrea da Carta Magna, o de que todos são iguais perante a lei.

Seria importante que o assunto fosse levado ao Supremo Tribunal Federal. Dada a disposição do deputado Arthur Lira, do lado do Congresso o problema das emendas só tende a se agravar.

 

Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 15 de abril de 2021.

]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=3434 1
Os problemas da PEC do Orçamento Impositivo https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3209&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=os-problemas-da-pec-do-orcamento-impositivo Mon, 22 Apr 2019 14:53:18 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3209 O principal objetivo da PEC do orçamento impositivo é tornar obrigatória a execução de emendas de bancadas estaduais , em valor equivalente a 1% da Receita Corrente Líquida (RCL). Atualmente, já é obrigatória a execução de emendas individuais dos parlamentares, aquelas que direcionam verbas para pequenas obras nos municípios. Com a PEC, tornam-se obrigatórias também as emendas de bancada que, a princípio, representam o acordo entre parlamentares de cada estado para destinar recursos a obras estruturantes, de impacto em todo o estado.

Há na PEC um mecanismo de aumento gradual para o máximo de recursos que pode ser aplicada obrigatoriamente em emendas de bancada: inicia-se com 0,8% da RCL e caminha-se para 1% da RCL. Também há uma adaptação à PEC dos gastos: os percentuais da RCL são apenas uma referência inicial. Depois de fixado o montante com base nesse parâmetro, nos anos futuros a correção do valor é pelo IPCA, para que a despesa cresça no mesmo ritmo do teto de gastos criado pela Emenda Constitucional nº 95, de 2016.

Da mesma forma que já funciona para as emendas individuais, há possibilidade de as emendas obrigatórias serem contingenciadas na mesma proporção das demais despesas discricionárias, para fins de cumprimento de meta fiscal. Nos casos em que há impossibilidade técnica de execução, há um rito para verificar tal impossibilidade e suspender a obrigatoriedade de execução.

Por que é inadequado dar prioridade a emendas que destinam recursos a estados e municípios

O orçamento é da União. Portanto, deve conter, prioritariamente, despesas de interesse de toda a coletividade nacional. O atendimento das necessidades de municípios e estados deve ser atribuição daquelas respectivas esferas da federação, pagos com os seus respectivos tributos. A utilização de verbas federais em investimentos de impacto local, objeto principal das emendas parlamentares, deve ser a exceção, e não a regra. Quando se garante o espaço das emendas, menos recursos sobrarão para as despesas de interesse geral do País que não sejam obrigatórias e que não estão protegidas por vinculações de receitas.

Os argumentos usualmente utilizados para justificar a obrigatoriedade de execução de emendas são:

(a) as emendas são a forma de participação dos parlamentares no orçamento, e o seu contingenciamento significa que o Executivo interfere na escolha do parlamento, o que deve ser evitado;

(b) não seria correto dizer que as emendas geram gastos de pior qualidade do que as programações sugeridas pelo Executivo, pois os parlamentares escutam suas bases e sabem qual a demanda do eleitor melhor que o Executivo.

As duas afirmações são passíveis de contestação. A participação do parlamento no orçamento é muito maior que aprovar emendas individuais e de bancada. Cabe ao Congresso discutir todo o orçamento, e não apenas direcionar verbas e investimentos para as bases eleitorais dos parlamentares. Pode-se argumentar que o orçamento já está fortemente comprometido com despesas obrigatórias de previdência e pessoal, entre outras, e com vinculações orçamentárias. Assim, pouco sobra, além das emendas, para influenciar o perfil do gasto público.

Nesse caso, defender as prerrogativas do Congresso em relação ao orçamento não é reforçar o status das emendas de bancada. Mas sim votar reformas que freiem a expansão da despesa obrigatória e flexibilizem vinculações. Optar pelo atalho da obrigatoriedade de emendas dispersa poder e apequena a missão do parlamento.

Com relação à qualidade do gasto gerado pelas emendas, há elementos suficientes para dar suporte à ideia de que elas têm efeito negativo. Não por serem propostas por parlamentares, mas por dificuldades práticas do processo decisório.

Em primeiro lugar, há uma tendência à pulverização dos recursos em pequenas intervenções, em prejuízo de obras estruturantes. Em segundo lugar, não é simples coordenar a ação de 513 deputados e 81 senadores propondo milhares de investimentos distintos. Não são poucos os casos de prefeitos que “recebem um hospital” que não é necessário e que não têm verba para manter; de escolas agrícolas que, em vez de um, recebem três equipamentos iguais. ou de tomógrafos que sequer saem da caixa porque o município não tem condições de construir um prédio nas especificações adequadas para a operação do aparelho. Em terceiro lugar, as iniciativas não são sujeitas a prévia avaliação de custo-benefício ou avaliação de viabilidade técnica e econômica. Muitas vezes inicia-se uma obra sem os projetos adequados, o que leva à paralisação e estouro dos custos previstos.

Tendo em vista que o interesse maior do parlamentar é tipicamente buscar suporte junto aos prefeitos de sua base eleitoral, e com isso reforçar sua base de votos para a próxima eleição, há uma natural tendência à fragmentação da despesa em pequenos investimentos. Quando as emendas de bancada se tornam obrigatórias, ganhando força dentro do orçamento, haverá incentivos para se realizar o gasto de impacto municipal por meio da emenda de bancada, levando à chamada “rachadinha”: em vez de a bancada apresentar uma emenda para uma obra estruturante, como a pavimentação de uma rodovia estadual, utiliza-se a dotação para uma finalidade que pode ser distribuída para vários municípios (por exemplo, ambulâncias, quadras esportivas, calçamento de ruas, etc.). Ou seja, a obrigatoriedade das emendas de bancada corre o risco de se transformar em uma expansão das emendas individuais, aprofundando os problemas acima descritos.

Note-se que o próprio sistema já adotado para a execução das emendas contém elemento de ineficiência. Primeiro aprova-se a emenda. Depois é que se verifica se é possível executá-la em termos técnicos. Essa verificação ex-post gera uma série de custos: (a) deixa-se de alocar recursos escassos para outras finalidades que seriam viáveis, empoçando recursos que não poderão ser liberados; (b) corre-se o risco de começar uma determinada despesa e não concluí-la, por inviabilidade constatada durante a execução.

O ideal é que não houvesse a obrigatoriedade de emendas, sejam elas individuais, sejam de bancadas. Porém, parece inevitável a aprovação da PEC em análise. Para que o seu impacto seja minimizado, o que se propõe é que se tornem obrigatórias apenas as emendas voltadas a acrescentar recursos a dotações já contidas na proposta orçamentária encaminhada pelo Executivo ou para investimentos que estejam relacionados em um banco de projetos.

Esse banco de projetos conteria aquelas propostas de investimento que já tivessem projeto executivo, certificado de adequação ambiental e demais requisitos técnicos que demonstrem que a obra não só é viável como também gerará benefícios superiores a seus custos. Trata-se de mudar o momento em que se faz o controle da viabilidade. Substitui-se o atual controle ex-post (incluir a obra no orçamento para depois ver se é viável) por um controle ex-ante (só incluir aquelas que já se sabe que são viáveis). Essa seria uma oportunidade para melhorar a qualidade do gasto público.

Pode-se até mesmo pensar em um sistema misto: o orçamento aceitaria emendas para investimentos não depositados no banco de projetos. Mas para esses a execução não seria obrigatória. O parlamentar e as bancadas estaduais teriam a opção: escolher um investimento do banco de projetos, com certeza de execução, ou propor um investimento que não esteja no banco, que terá que disputar espaço com outras despesas do orçamento.

Obrigatoriedade da despesa para além das emendas

O segundo grande problema da PEC está relacionado ao seguinte dispositivo, que vai além das emendas e se aplica a todo o orçamento, inclusive a estados e municípios:

§10. A administração tem o dever de executar as programações orçamentárias, adotando os meios e as medidas necessários, com o propósito de garantir a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade.

Esse dispositivo pode ser lido de duas formas distintas. Na primeira, partindo-se do princípio de que tudo o que a administração pública faz é para, direta ou indiretamente, “entregar bens e serviços à sociedade”, pode-se concluir que a administração terá que executar todas as programações orçamentárias. Nesse caso, toda a despesa orçamentária se torna obrigatória.

É evidente que isso enrijece o orçamento. Ficará difícil fazer ajuste fiscal pelo controle da despesa. Só restará o ajuste pelo aumento de impostos. Cedo ou tarde o teto de gastos será  revogado, usando-se o argumento jurídico de que a própria Constituição impede a limitação da despesa . Frente à limitação para aumento da já elevada carga tributária e da dívida pública em trajetória insustentável, não temos cenário bonito para o futuro.

Até porque não há qualquer cláusula de escape, nem mesmo em caso de frustração de receitas. Ao contrário da obrigatoriedade de execução das emendas parlamentares, em que há a possibilidade de contingenciamento ou de não execução em caso de inviabilidade técnica, o presente § 10 apenas estabelece o dever de executar, sem qualquer margem para ajuste.

Pode-se interpretar que a expressão “adotando os meios e medidas necessários” abre margem para que o gestor apresente uma justificativa dizendo que fez o que pôde, mas não conseguiu. Mas quem julgará se efetivamente foi feito todo esforço possível?

Cada auditor de controle interno ou externo terá o seu próprio juízo sobre o que é o conjunto de “meios e medidas necessários”. A insegurança para o CPF do gestor crescerá signficativamente, afastando dos cargos gerenciais aqueles mais avessos ao risco, abrindo espaço para outros de espírito mais aventureiro. Dado que a regra se aplica a estados e municípios, o problema se multiplica.

A segunda forma de ler esse dispositivo é aquela que traça uma divisão entre programações orçamentárias “finalísticas”, que resultam em efetiva entrega de bens e serviços à sociedade (campanha de vacinação, aluno em sala de aula, etc.), e atividades “meio” (serviços  administrativos, limpeza, vigilância, etc.). Se for esta a interpretação correta, então entramos no campo da insegurança jurídica. Certamente não existe uma definição clara do que é atividade fim e atividade meio. Basta ver o longo histórico de judicialização que ocorreu na legislação trabalhista, quando se considerava que somente as atividades meio poderiam ser terceirizadas. Em um país no qual não se consegue chegar a um consenso sobre o que é “despesa de pessoal”, para fins de aplicação da LRF, imagine-se a dificuldade para definir o que é “entrega de bens e serviços à sociedade”.

Ainda que se conseguisse regulamentar claramente quais são as rubricas orçamentárias de caráter finalístico, o resultado seria o maior engessamento do orçamento. A tendência à contabilidade criativa, para tirar ou colocar uma despesa no rol das finalísticas, ao sabor das conveniências, deterioraria a qualidade do processo orçamentário.

Não há dúvida que esse dispositivo precisa ser retirado do texto ou, pelo menos, submetido a uma cláusula de escape, para os casos de frustração de receitas. Nesse segundo caso, também seria importante melhorar a redação do dispositivo, para deixar claro quais despesas estariam sujeitas à regra. Se só as finalísticas, definir quais são essas despesas.

Na sua nova análise pela Câmara, o texto dessa PEC precisa ser analisado com cuidado técnico e sem a pressa de se criar fatos políticos. Será elevado para o País o custo de um texto que gera problemas tão graves, em um contexto de contas públicas deterioradas e de incerteza quanto as reformas necessárias para saneá-las. Não há dúvida de que essa PEC é um tiro no pé, que vai cobrar um preço caro em termos de qualidade do gasto público, produtividade da economia e possibilidade de equilíbrio das contas públicas.

 

Download

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
O conceito de austeridade se aplica ao Brasil? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3153&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-conceito-de-austeridade-se-aplica-ao-brasil Wed, 31 Jan 2018 13:58:45 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3153 Muitos economistas brasileiros ainda insistem em apontar uma eventual política de austeridade fiscal como uma das causas de nossa crise. Acreditam que um corte de gastos, ou não expansão das despesas, contribuiu bastante para o tamanho e duração da recessão. Alguns mais ousados vão além: comparam a situação brasileira com a dos países avançados (sobretudo europeus) no pós-crise, sugerindo o uso da política fiscal como solução para os nossos problemas. Teriam eles razão?

 

A resposta dos países desenvolvidos após a crise de 2008

Uma das grandes controvérsias em economia de fato diz respeito aos efeitos da política fiscal na atividade econômica. Em que condições um aumento do gasto público se traduz em aumento do produto?

Essa discussão esteve em segundo plano nas décadas de 80 e 90. À época, o consenso macroeconômico dizia que a política monetária – mudanças nos juros, crédito e moeda – seria a mais adequada para estabilizar uma economia. Esse consenso mudou com a crise de 2008. Desde então, muitas economias desenvolvidas chegaram ao mínimo histórico em suas taxas de juros.

Nos EUA, a resposta à crise veio com um pacote fiscal. Ao American Recovery and Reinvestment Act, aprovado em fevereiro de 2009, se atribui papel importante em impedir que a recessão se transformasse em depressão.

Na Europa, uma união monetária, a discussão era mais quente, assim como a divergência. Em alguns países, os defensores da austeridade argumentavam que, com déficit e dívida elevados, cortes de despesas seriam a solução para a retomada.

Em teste, a austeridade via gastos aumentaria a confiança dos agentes. Esse discurso tinha por base os trabalhos do economista italiano Alberto Alesina, um dos proponentes da tese da “contração fiscal expansionista”. Ou seja, uma contração da despesa pública poderia funcionar como um estímulo à economia.

Pouco a pouco, contudo, essa controvérsia foi se desfazendo, em favor daqueles contrários à austeridade.

 

O que a experiência pós-crise ensinou aos economistas

Novas evidências surgiram com os ajustes realizados na Europa. Um trabalho importante nesse sentido foi o de Blanchard e Leigh (2013)1. O artigo mostra que países com maior corte de gastos foram aqueles com maior diferença entre o crescimento previsto e o efetivo. Os ajustes pareciam duros demais.

Com uma revisão mais cuidadosa dos trabalhos de Alesina e seus colegas, diversas críticas metodológicas ganharam força. Uma delas diz respeito ao problema de variável omitida. Após um ajuste fiscal “de sucesso”, a economia poderia ter se recuperado não pelo ajuste em si, mas por qualquer motivo exógeno, como um aumento no preço de commodities. Levando essas críticas em consideração, o resultado mais geral da pesquisa de Alesina se perdia, como já mostrava em 2010 um importante texto do FMI2.

Durante este período, ocorreu uma explosão de trabalhos teóricos e empíricos para examinar os efeitos da política fiscal. Chistina Romer, uma das principais especialistas mundiais no tema, afirmou em 2011 que provavelmente havia mais estudos nessa área entre 2008 e 2011 do que nos 25 anos anteriores3.

A literatura acadêmica aprimorou rapidamente seus instrumentos para medir o impacto de gastos fiscais, através de novas técnicas para identificação de choques. Grande parte dos resultados sugeria que esse impacto (o multiplicador fiscal) varia de acordo com o momento do ciclo econômico, do regime de câmbio adotado e da política monetária4. E, quase sempre, apresentam valores positivos – ou seja, cortes de gastos geralmente impactam negativamente a economia, e vice-versa.

Diante de toda essa pesquisa no assunto, a maioria dos economistas reconhece, hoje em dia, que os defensores da austeridade perderam o debate na Europa5.

Aumentar o nível de gastos pode, em determinadas circunstâncias, desempenhar um papel importante para a saída de uma crise econômica, ajudando a recuperar a produção no curto prazo. Restaria, então, saber se podemos generalizar estes resultados para qualquer economia em qualquer contexto.

 

O que esse debate tem a ver com a crise brasileira?

Alguns economistas brasileiros erroneamente acreditam que podem generalizar as conclusões do debate sobre a Europa.

Quando a economia do Brasil começou a se desacelerar fortemente, a interpretação majoritária foi de que a crise tinha sólidas raízes fiscais. Mas alguns economistas passaram a se manifestar fortemente contra o ajuste das contas públicas, afirmando que seria um “austericídio”. Um exemplo desse discurso está exposto no relatório “Austeridade e Retrocesso”, lançado em 2016.

Um dos textos mais citados para justificar essa visão heterodoxa foi escrito por técnicos do FMI, em 2016, denominado “Neoliberalism: oversold?”. Nele, afirmava-se que a despeito de alguns sucessos da agenda neoliberal, alguns pontos não haviam tido bons resultados, como a consolidação fiscal. O problema é que o texto do FMI focava em países avançados com custos de financiamento de dívida muito baixos.

No próprio texto do FMI, admitia-se que muitos países tinham pouca escolha além de um ajuste fiscal, pois os mercados não permitiriam que continuassem se endividando. Esta última ressalva se aplica ao Brasil.

Outro artigo usado como argumento pelo grupo de economistas brasileiros foi Ball et al (2013)6. Trata-se de um trabalho empírico, cuja amostra é formada por 17 países da OCDE. O resultado principal indicava que uma consolidação fiscal de 1% do PIB poderia aumentar o desemprego e a desigualdade, respectivamente em 0,6 e 1,5 pontos percentuais. O problema é que, assim como no caso anterior, o trabalho se baseava em países desenvolvidos, com conclusões não facilmente aplicáveis a contextos distintos.

O terceiro trabalho bastante utilizado como argumento contra o ajuste foi o “The Permanent Effects of Fiscal Consolidation”, de Fatás e Summers, de 2016. De maneira geral, encontrava evidências de efeitos negativos de longo prazo da política fiscal no pós-crise, sendo um dos canais a histerese no mercado de trabalho. Como consequência, tentativas de reduzir a dívida via consolidação fiscal poderiam aumentar a relação dívida/PIB devido aos impactos negativos do ajuste no produto. Afirmavam, desta maneira, que políticas de austeridade poderiam ser extremamente custosas.

Mais uma vez, os próprios autores foram bastante claros ao negar que esta fosse uma conclusão padrão para todos os governos e em todos os momentos. Afirmavam estar olhando para um episódio bastante particular, quando circunstâncias “especiais e severas” estavam presentes: ou bem a política monetária estava restrita pelo limite inferior da taxa de juros ou bem havia amarras institucionais impostas pela união monetária da Europa.

 

O erro fatal na tese do ‘austericídio’: não houve austeridade no Brasil

 A tese do ‘austericídio’ carece de sustentação teórica adequada para explicar a situação atual da economia brasileira. Os textos nas quais se baseia não estudaram o contexto brasileiro, mas países avançados com baixo custo de financiamento de dívida e alguma forma de impedimento de política monetária. Certamente, não é o caso do Brasil, que tinha espaço tão amplo para uso da política monetária (o qual vem corretamente aproveitando), além de uma dívida bastante elevada e cara frente aos seus pares emergentes.

Além disso, a própria qualificação do debate de ajuste fiscal no Brasil é controversa: os indicadores fiscais brasileiros falham em mostrar que tenhamos vivido um forte ajuste nas contas públicas.

Tomemos o exemplo de Portugal para comparação. O gasto público luso diminuiu 7,2% entre 2010 e 2012, em valores reais. De acordo com dados do FMI, só em 2020 voltará ao patamar de gastos de 2010.

No Brasil, em contrapartida, o nível real de gastos de 2016 ficou acima do nível de gastos de 2014. Percebe-se facilmente que tal dinâmica é bastante distinta daquela verificada na Europa após a crise: o que se chamou de austeridade por lá não parece ter nenhuma correspondência por aqui.

O que ocorre de fato no país, e pode causar certa confusão, é uma mudança na composição do gasto federal. Enquanto avançam os gastos com pessoal e, principalmente, benefícios previdenciários, sobra cada vez menos espaço para outras despesas. Apesar de grandes cortes em áreas específicas, como no apoio à pesquisa acadêmica, o volume total de gastos não diminuiu.

Em 2014, a soma das rubricas pessoal, benefícios previdenciários e assistências acumulava um volume de 63% da despesa total. Para o orçamento de 2018, esse mesmo volume está em 69%. O resultado é que as despesas discricionárias vêm sofrendo um forte ajuste, mas sem que possamos dizer o mesmo da despesa total. É por isso que a reforma da Previdência é tão importante, objetivando amenizar essa tendência.

Em suma, é natural que a macroeconomia, frente aos novos desafios, repense algumas de suas velhas ideias. Alguns países vivem situações inéditas, como taxas de juros no limite inferior e utilização de mecanismos não convencionais de política monetária. Parte dos países avançados convive ainda com baixo crescimento crônico, sem saber se voltarão um dia a crescer a taxas mais elevadas. Ignorar essas questões e aplicar a lógica de “one size fits all” para a política fiscal é um caminho bastante equivocado para seguir.

 

Publicado originalmente no Instituto Mercado Popular em 4 de janeiro de 2018 sob o título “A crise brasileira não foi causada por austeridade”.

 

_______________

1 Blanchard e Leigh (2013) – Growth Forecast Errors and Fiscal Multipliers.

2 IMF. Will it hurt? Macroeconomic Effects of Fiscal Consolidations, 2010.

3 Romer, C. (2011). What do we know about the effects of fiscal policy? Separating evidence from ideology.

4 Ver, por exemplo, texto de Nicoletta Batini e coautores, denominado “Simple Method to Compute Fiscal Multipliers”, de 2014.

5 Como afirmou, por exemplo, o chileno Andres Velasco: “Europe’s austerians lost the argument” em Velasco (2017) – Can Fiscal Contraction Ever Boost Growth?

6 Ball et al (2013) – The Distributional Effects of Fiscal Consolidation. Ele é citado, por exemplo, em http://www1.folha.uol.com.br/colunas/laura-carvalho/2016/06/1777343-e-preciso-muita-fe.shtml.

 

Download

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
Princípio da vedação de retrocesso social: o caso da vinculação de recursos para a saúde https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3135&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=principio-da-vedacao-de-retrocesso-social-o-caso-da-vinculacao-de-recursos-para-a-saude https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3135#comments Wed, 13 Dec 2017 14:58:59 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3135 A judicialização da política e a consequente politização da justiça são fenômenos conhecidos da opinião pública, cujas causas são geralmente procuradas nas disfunções do sistema político ou na cultura compartilhada por juízes e promotores. A essência do problema encontra-se, no entanto, na própria teoria jurídica, que desenvolveu uma série de justificações para a atuação do Poder Judiciário em matérias anteriormente consideradas de competência exclusiva dos Poderes Legislativo e Executivo.

1. O princípio da vedação de retrocesso

Um exemplo desse tipo de justificação é o chamado “princípio da vedação do retrocesso social”, segundo o qual os patamares já alcançados na provisão de direitos sociais não poderiam ser posteriormente reduzidos, mas apenas mantidos ou ampliados. Tal argumento tem sido sistematicamente empregado contra todo tipo de legislação tida por seus defensores como “neoliberal”, por supostamente reduzir algum direito social “conquistado” no passado. Alega-se, por exemplo, que a reforma trabalhista e o Código Florestal seriam inconstitucionais por representarem um “retrocesso” na defesa dos direitos dos trabalhadores e na defesa do meio ambiente.

Uma versão mais atenuada do princípio considera que o retrocesso, por si só, não é necessariamente inconstitucional; apenas cria uma presunção de inconstitucionalidade, que pode ser superada mediante demonstração de que a medida é necessária ao atingimento de outro valor constitucional ou direito fundamental e que a redução operada não foi excessiva1. Admite-se levar em consideração o contexto econômico e político por que passa o país, assim como a chamada “reserva do possível”, ou seja, a disponibilidade de recursos. Tal modulação é excluída, no entanto, do chamado “núcleo essencial” do direito fundamental “atacado”, que, no caso dos direitos sociais, traduz-se em um “mínimo existencial”, que deve prevalecer, inclusive, sobre a “reserva do possível”. Ou seja, admite-se o “retrocesso” apenas no que exceder ao “mínimo existencial” e desde que demonstrada sua necessidade e proporcionalidade com relação a outro valor constitucional.

Em Portugal, um importante marco no reconhecimento do princípio foi o Acórdão 39/84 do Tribunal Constitucional, que considerou inconstitucional a revogação de dispositivos legais instituidores do Serviço Nacional de Saúde. No Brasil, os precedentes mais relevantes são o voto minoritário do Ministro Celso de Melo na ADI 3105/DF, contrário à contribuição previdenciária para inativos e pensionistas instituída pela Emenda Constitucional 41/2003, e o acórdão da Segunda Turma do STF no ARE 639337, relatado pelo mesmo Ministro, relativo à matrícula de crianças em creches próximas a sua residência. Na América Latina, há registro de emprego do princípio também em outros países, podendo ser citada a Sentença T-1318/2015 da Corte Constitucional da Colômbia, relativa a contrato celebrado no âmbito da política habitacional.

Não há na Constituição brasileira qualquer menção expressa ao princípio da vedação de retrocesso. Seus defensores indicam como fundamento os arts. 1º, III, e 3º, III, da Carta Magna, que consagram a dignidade da pessoa humana como fundamento e a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades regionais e sociais como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.

2. O princípio da vedação de retrocesso na ADI 5595

Encontra-se na pauta do Plenário do STF a ADI 5595, proposta pela Procuradoria Geral da República, que pede a declaração de inconstitucionalidade de dispositivos da Emenda Constitucional nº 86, de 2015, por violação do “princípio da vedação de retrocesso social”, decorrente da redução dos recursos vinculados à saúde. O relator do caso, Ministro Lewandowski, concedeu liminar acatando o pedido na íntegra.

A ADI 5595 pode ser considerada a mais radical formulação do princípio da vedação de retrocesso já submetida à apreciação do STF. Nela, a PGR pede ao Tribunal que declare a inconstitucionalidade dos arts. 2º e 3º da Emenda Constitucional nº 86, de 2015, que estabeleceram normas sobre a vinculação de recursos da União à política de saúde.

A Constituição de 1988, em sua redação original, não vinculava recursos para a saúde, mas para a seguridade social, conceito mais amplo, que abrange também a previdência e a assistência.

A Emenda Constitucional nº 29, de 2000, instituiu vinculação de recursos para “ações e serviços públicos de saúde” em todos os entes da Federação. No caso da União, atribuiu à lei complementar a fixação dos recursos mínimos a serem aplicados (CF, art. 198, § 2º, I, e § 3º, IV), o que acabou por ser feito pela Lei Complementar nº 141, de 2012. O art. 5º dessa Lei estabeleceu como piso de aplicação o montante empenhado no ano anterior, acrescido do crescimento do PIB, caso este tenha sido positivo. Posteriormente, a Lei nº 13.858, de 2013, destinou à saúde, em acréscimo a esse piso, 25% dos royalties e da participação especial da União oriundos da concessão de campos de petróleo na região do pré-sal (art. 2º, § 3º, e art. 4º).

A Emenda Constitucional nº 86, de 2015, substituiu a remissão à lei complementar pela fixação de um piso de aplicação de recursos na própria Constituição, correspondente a 15% da receita corrente líquida (CF, art. 198, § 2º, I). Estabeleceu, ainda, uma transição de cinco anos para o atingimento desse patamar, partindo de um percentual de 13,2%, e incluiu os recursos dos royalties do petróleo nesse piso (arts. 2º e 3º).

Essa transição foi subsequentemente revogada pela Emenda Constitucional nº 95, de 2016, que instituiu o Novo Regime Fiscal. O patamar de 15% foi antecipado para 2017, passando o valor resultante a ser rejustado pela inflação nos vinte anos seguintes.

A ADI 5595 insurge-se contra a transição instituída pela EC 86/2015 e a inclusão dos royalties do petróleo no piso de aplicação de recursos em saúde, sob o argumento de que o novo critério resultaria em patamar inferior de despesa, o que violaria o princípio da vedação de retrocesso. Alega-se, em síntese, que o direito à saúde é um direito fundamental garantido pela vinculação de recursos e protegido por cláusula pétrea (CF, art. 60, § 4º, IV). Embora o quadro de recessão econômica seja explicitamente reconhecido, alega-se que esse fato seria irrelevante diante da essencialidade da política de saúde.

3. Os equívocos da ADI 5595

O eventual provimento da ADI 5595 constituiria um precedente de grande impacto, que consagraria definitivamente o princípio da vedação de retrocesso, em sua versão mais radical, no direito constitucional brasileiro. O ineditismo da tese é múltiplo: contesta-se uma Emenda Constitucional em face de uma lei complementar e uma lei ordinária; o critério de aferição do “retrocesso” é puramente financeiro; a versão do princípio defendida é absoluta; e a abrangência da cláusula pétrea relativa aos direitos e garantias individuais (CF, art. 60, § 4º, IV) é estendida não apenas aos direitos sociais, mas aos recursos orçamentários a eles vinculados. Sua aceitação pelo STF representaria um enorme impulso à judicialização das políticas públicas e colocaria em risco não apenas a responsabilidade fiscal, mas o próprio direito à saúde. Sua repercussão não se limitaria a um maior aporte de recursos federais para a saúde, mas se estenderia a todas as eventuais realocações de recursos orçamentários, em todas as esferas da Federação.

3.1. Comprometimento da responsabilidade fiscal

A promoção dos direitos econômicos, sociais e culturais depende da condição econômica de cada país. Daí porque os documentos internacionais que os consagram se referem sempre aos “recursos disponíveis”2. A progressividade de seu atendimento decorre da expectativa de que o desenvolvimento econômico elevaria as condições de vida da população e a receita dos governos. Ocorre que o desenvolvimento não é linear. Diversos fatores podem levar os países à recessão ou mesmo à depressão econômica: guerras, catástrofes naturais, crises políticas, má gestão da política econômica, etc. Além disso, a economia de mercado apresenta ciclos de crescimento e recessão que atingem mesmo os países desenvolvidos.

A manutenção do patamar de despesas na fase descendente do ciclo econômico, quando há uma redução das receitas, somente pode ser feita mediante endividamento. No atual contexto brasileiro, contudo, a dívida pública já é muito elevada e cresce aceleradamente, em função dos elevados déficits nominais e primários verificados a partir de 2014. Um congelamento de despesas inviabilizaria qualquer tipo de ajuste fiscal capaz de recompor o equilíbrio das contas públicas. No limite, o governo seria obrigado a dar um calote nos credores, fornecedores e servidores públicos, o que comprometeria a continuidade dos serviços públicos e causaria um retrocesso de proporções catastróficas para as políticas sociais, a exemplo do que já ocorre no estado do Rio de Janeiro.

3.2. Prejuízo para os demais direitos sociais e para o próprio direito à saúde

A vinculação de recursos para uma política se dá sempre em prejuízo das demais políticas. O direito à saúde não se limita, no entanto, ao atendimento pelo SUS; abrange também as “políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos” (CF, art. 196). No mesmo sentido, o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais inclui entre as medidas de promoção do direito à saúde a redução da mortalidade infantil, a higiene do trabalho e do meio ambiente e a prevenção de doenças3. Ocorre que a Lei Complementar nº 141, de 2012, explicitamente exclui essas medidas da aplicação dos recursos vinculados à saúde (art. 4º).

Nesse contexto, o ajuste fiscal recairá desproporcionalmente sobre outras políticas igualmente necessárias à promoção da saúde, o que pode, no limite, inviabilizá-las por completo. Haverá recursos para o tratamento de doenças e o atendimento de acidentados ou vítimas da violência, mas não para o saneamento básico, a segurança alimentar, a fiscalização do trânsito e a segurança pública, políticas capazes atacar os problemas que estão na origem da demanda pelos serviços de saúde.

3.3. Violação da separação dos poderes

As vinculações de recursos são uma exceção à regra geral de livre alocação da receita de impostos pela Lei Orçamentária (CF, art. 167, IV). Ao impedir o Congresso Nacional de revê-las, a ADI 5595 “petrifica” o “congelamento” do orçamento, substituindo o juízo de 3/5 dos deputados e 3/5 dos senadores (quórum de aprovação das Emendas Constitucionais) pelo de 6 ministros do STF (quórum de julgamento das ADI) ou apenas do relator do caso (no caso de liminar).

Nesse contexto, a única alternativa disponível para o atendimento das políticas não vinculadas será a reclassificação de suas despesas, de modo que elas sejam enquadradas no âmbito das vinculadas. Isso obrigará, em um segundo momento, o Tribunal a se pronunciar sobre o que é ou não “saúde”, ou seja, a adentrar cada vez mais o universo da legislação ordinária.

4. Comprometimento da autodeterminação das futuras gerações

Os conceitos de “progresso” e “retrocesso” em matéria de legislação e políticas públicas é bastante subjetivo. O que é progresso para uns pode ser considerado um retrocesso para outros. Além disso, havendo trade-offs entre objetivos legítimos, faz-se necessário estabelecer prioridades, atividade eminentemente política.

É próprio da democracia o conceito de alternância no poder. Quem perdeu as eleições hoje pode vencê-las amanhã e vice-versa. A imposição da vontade do grupo político atual sobre as futuras gerações equivale a uma ditadura cujo dirigente recursa-se a sair do poder quando derrotado nas eleições.

A vedação de retrocesso congela, no entanto, a alocação de recursos feita em algum momento do passado e impede sua revisão pelas gerações subsequentes.

5. Conclusão

A aplicação do princípio da vedação de retrocesso, tal como proposta na ADI 5595, seria catastrófica. É certo que se trata de uma versão extrema do princípio, que desconsidera por completo o contexto econômico do país. Mesmo uma versão atenuada seria, no entanto, igualmente questionável, na medida em que levaria o Tribunal a revisar decisões alocativas de recursos financeiros próprias dos Poderes Executivo e Legislativo, que foram eleitos para isso.

Em realidade, o princípio da vedação de retrocesso, enquanto tal, parece-nos inadmissível, pois pretende impor à administração pública uma concepção linear de progresso, incompatível com a realidade econômica e com o direito das gerações futuras de eleger suas próprias prioridades4.

______________

1 Nesse sentido, SARLET, Ingo Wolfgang, Notas sobre a assim designada proibição de retrocesso social no constitucionalismo latino-americano. Rev. TST, Brasília, vol. 75, nº 3, jul/set 2009.

2 O artigo 2º do Pacto Internacional sobre Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, por exemplo, assim dispõe: “Cada Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas”. A mesma abordagem foi adotada nos demais documentos internacionais de proteção dos direitos humanos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção Americana de Direitos Humanos e seu Protocolo Adicional em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

3 “Art. 12. 1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental. 2. As medidas que os Estados Partes do presente Pacto deverão adotar com o fim de assegurar o pleno exercício desse direito incluirão as medidas que se façam necessárias para assegurar: a) A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como o desenvolvimento das crianças; b) A melhoria de todos os aspectos de higiene do trabalho e do meio ambiente; c) A prevenção e o tratamento das doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras, bem como a luta contra essas doenças; d) A criação de condições que assegurem a todos assistência médica e serviços médicos em caso de enfermidade.

4 Vale registra que, em seus escritos mais recentes, Canotilho, um dos principais defensores do princípio, revisou seu entendimento e considerou a vedação de retrocesso insustentável em face na realidade econômica. No mesmo sentido, o Tribunal Constitucional de Portugal deixou de aplicá-lo no julgamento de diversas medidas de ajuste fiscal adotadas naquele país.

 

Download

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=3135 3
Novos Pilares de Responsabilidade Fiscal https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2767&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=novos-pilares-de-responsabilidade-fiscal https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2767#comments Mon, 18 Apr 2016 13:07:46 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2767 A flexibilização da austeridade e a concomitante deterioração das contas públicas demonstram que a manutenção do equilíbrio fiscal ainda depende de novos avanços orientados ao fortalecimento do ambiente institucional público. Trata-se não de medidas conjunturais de contingenciamento de gastos, mas do estabelecimento de marcos complementares aos inicialmente introduzidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

Na nossa história econômica recente, a LRF constitui um dos mais relevantes marcos para o equilíbrio das contas públicas. A partir dos anos 2000, a busca pelo equilíbrio das contas públicas deixou de ser apenas um discurso e passou a estar efetivamente institucionalizada como um próprio código de conduta fiscal de observação cogente pelos gestores públicos em todos níveis federativos, com destaque para os limites de despesas de pessoal e de endividamento que passaram a ser regra rígida.Contudo, pilares institucionais como o conselho de gestão fiscal não foram ainda constituídos. Da mesma forma, a indefinição quanto ao limite do montante da dívida consolidada da União, exigido pelo art. 48, XIV, da Constituição, coloca em relevo a atuação do Legislativo nesse assunto.

 

Conselho de Gestão Fiscal e Instituição Fiscal Independente

A LRF estatuiu que o acompanhamento e a avaliação, permanente, da política e da operacionalidade da gestão fiscal devem ser realizados por um conselho de gestão fiscal (CGF). Esse seria constituído por representantes de todos os Poderes e esferas de Governo, do Ministério Público e de entidades técnicas representativas da sociedade, nos termos de lei ordinária (§ 2º do art. 67 da LRF). Referida lei, contudo, não foi editada e o CGF não foi instituído, passados mais de 15 anos após a edição da LRF.

Isso se explica pela composição do Conselho. Nos termos definidos pelo Projeto de Lei (PL) nº3.744, de 2000, de iniciativa do Poder Executivo1, em tramitação na Câmara dos Deputados desde sua apresentação, os potenciais conflitos de interesse entre partes interessadas na expansão e controle do gasto acabariam afastando uma formatação técnica, como esperado para esse tipo de instituição de controle. Tamanha abrangência e diversidade de participantes poderia ser problemática do ponto de vista da convergência de interesses, tendo em vista, ainda, que a responsabilidade precípua pelo desempenho fiscal é do governo federal. De fato, no lado do governo, a composição deveria estar restrita a quadros do Executivo, que é o responsável por consolidar e apresentar as peças orçamentárias2 – lembrando que essa é a lógica observada na política monetária, desde a edição do Plano Real em 1994, para a composição do Conselho Monetário Nacional, cujos membros são agentes do Executivo Federal.

Recentemente, entretanto, a concepção de conselho de gestão fiscal acabou perdendo força,diante dos debates em torno da Instituição Fiscal Independente (IFI). Essa alternativa passou a ser discutida pelo Senado Federal, em 2015, e foi recentemente aprovada em 2016, nos termos do Projeto de Resolução do Senado nº 61, de 2015. Esta terá caráter técnico e auxiliará o Senado em sua competência de fiscalização do Executivo, reforçando o acompanhamento legislativo das contas públicas, que hoje carece de uma institucionalidade mais efetiva, como demonstra o não funcionamento, ainda que regimentalmente previsto, dos subcomitês permanentes de Fiscalização da Execução Orçamentária e da Avaliação da Receita no âmbito da Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO), vis-à-vis a existência de constrangimento político e de conflito de interesse na relação entre parlamentares e Governo.

No sistema presidencialista, essa autonomia da IFI em relação ao Executivo pode ser considerada mais adequada do que a instituição de um conselho de gestão fiscal composto por quadros do próprio Executivo, composição que conflitaria com o princípio básico de gestão de recursos financeiros, que impõe a execução das funções de execução e controle em pessoas distintas. A IFI pode efetuar controle just in time sobre as contas públicas, em complementação às prerrogativas do Tribunal de Contas da União (TCU), cuja atuação possui ótica essencialmente ex post, ou de julgamento de contas efetivamente realizadas pela União, e à própria CMO.Além disso, a IFI pode ocupar papel central não apenas no controle das contas pelo Legislativo, como também na própria etapa de aprovação das peças orçamentárias anuais, seguindo o exemplo do veterano Congressional Budget Office dos EUA.

De fato, no âmbito global, o estabelecimento de instituições fiscais independentes tem representado uma das principais tendências, tendo sido criadas para controlar a expansão ampla do setor público, como resposta anticíclica que caracterizou o pós-crise 2008 nas economias centrais. Visam robustecer o arcabouço institucional para garantir o equilíbrio duradouro das contas públicas, bem como sinalizar um compromisso tempestivo em prol da sustentabilidade fiscal – finalidades que são aplicáveis e apropriadas também para o setor público brasileiro. No atual momento fiscal doméstico, a constituição de uma instituição técnica como a IFI representa uma possibilidade de elevar a qualidade do debate público sobre a política fiscal, a partir da promoção de maior grau de adequação orçamentária, prestação de contas e accountability.

Isso decorre de sua competência, dentre outras, em estimar parâmetros e variáveis relevantes para a construção de cenários fiscais e orçamentários, com base técnica e não política – por definição, mais crível –, reduzindo a politização em torno das projeções orçamentárias de receitas e despesas. No limite, pode até contrapor a reiterada superestimativa de receitas orçamentárias, que ocorre tanto no âmbito do Executivo quanto no próprio Legislativo, até como meio para dar margem à introdução das emendas impositivas. Com caráter técnico e apartidário, a IFI pode impor maior custo político à eventual indisciplina fiscal,já a partir do processo legislativo orçamentário, estimulando a adoção de políticas fiscais mais sólidas com base em peças orçamentárias mais críveis. Isso pode até evitar casos de revisão de meta fiscal como a que estamos vendo, decorridos apenas poucos meses de execução orçamentária – não que a revisão ao final de um exercício proporcione alguma credibilidade à gestão pública.

Quando falamos em responsabilidade fiscal, o foco sempre esteve voltado à execução financeira da programação orçamentária, mas o ciclo fiscal é mais amplo e começa já a partir das definições e estimativas das peças orçamentárias. Na verdade, a falta de sinceridade na fixação da despesa e na previsão da receita é um grande desafio do orçamento público – por isso o processo legislativo orçamentário deve ser tutelado por um sistema adequado de freios e contrapesos. A integridade e a qualidade das projeções orçamentárias, do planejamento fiscal e, posteriormente, da execução orçamentária devem ser promovidas mediante rigorosa aderência ao conceito de qualidade do gasto público, partindo da reestimativa séria de receitas anuais no Congresso. No presidencialismo de coalizão, a IFI pode mitigar o descompromisso dos parlamentares com o ciclo fiscal, muito mais afetos a ganhos políticos de curto prazo do que com o efetivo controle fiscal-orçamentário.

 

Limite Constitucional para a Dívida Consolidada da União

A responsabilidade fiscal em muito se sustenta em “regras de teto”, que estabelecem limites ou metas quantitativas claras para agregados relevantes como despesas de pessoal, resultados primário ou nominal e dívida pública. São mecanismos de gestão que visam atender à preocupação clássica que diz respeito ao controle de dívida e déficits excessivos.

Ao lado do que já ocorre para os outros entes federados, a regra de “convergência” da dívida da União constitui limitação prudencial e ao mesmo tempo terminativa para o endividamento público federal, nos termos do projeto de Resolução do Senado Federal (PRS) nº 84, de 2007, ainda em tramitação, que propõe a fixação delimite para a dívida federal. A proposição, gestada logo após a introdução da LRF, nada mais constata que há limites para o financiamento do Estado, que precisa estar dentro de uma trajetória crível. Naturalmente, o efeito esperado do indicador proposto é a limitação dos gastos públicos, caminho que o próprio mercado já apontou pelo rebaixamento do grau de risco da dívida soberana brasileira – custo com externalidade negativa para a economia brasileira como um todo, que teria sido evitado diante de um limite já posto legalmente.

Uma preocupação refere-se à factibilidade e ao impacto do nível de endividamento definido – de 4,4 RCL para a dívida bruta –, ainda que seja bem mais amplo do que o estabelecido para os Estados e Municípios (de 2 e 1,2 RCL, respectivamente), para comportar suas atribuições de gestão macroeconômica.Ainda que a definição do indicador envolva incerteza, trata-se de um número crível, que é bem superior ao valor inicialmente apresentado na proposta inicial do Executivo, de 3,5 RCL quando o endividamento estava na ordem de 2 RCL e a preocupação era de ser muito elevado e estimular ainda mais o endividamento da União. O cenário, hoje, é outro, com a deterioração do estoque da dívida para o patamar de 6 vezes a RCL, mostrando a conveniência e a necessidade do novo limite legal.

A sistemática para alcançá-lo mitiga eventual descompasso maior ao setor público, pois, de acordo com a proposta em tramitação, a convergência da dívida com a implementação da regra será gradual em horizonte temporal amplo de 15 anos, com o limite proposto sendo atingido apenas após 2030.Essa sistemática é consistente ao indicar um caminho longo de convergência fiscal, com a proporção de redução de 1/15 por ano,que equivale a menos de 1,5% do PIB – o próprio histórico de esforço fiscal e geração de superávit primário (com valores chegando a 3% do PIB) mostra capacidade de adequação e convergência do setor público.Além disso, traz ressalvas e condições de flexibilização fiscal em situações adversas, uma sistemática que já encontra respaldo na própria LRF.

De fato, há uma tendência global de estabelecimento de regras fiscais múltiplas, controlando mais de um agregado de política fiscal não apenas no curto prazo, como se observa nas economias centrais. O mais comum são regras que controlam o resultado fiscal e a dívida pública simultaneamente, mas, no caso da Europa, mergulhada em grave situação fiscal a partir da crise de 2008, o descontrole orçamentário e da trajetória de endividamento forçou a imposição de um novo conjunto de regras para a convergência e disciplina fiscal, especialmente nos países do Sul, voltadas para a própria estabilização e manutenção do regime monetário da zona do Euro. O Pacto Fiscal Europeu,complementou, em 2012, as regras do Tratado de Maastricht (1992) – que estabeleceu limite de endividamento bruto de 60% do PIB e restringiu o déficit nominal nos países-membros a 3% do PIB. Assim, estipulou limite de 1% do PIB para o chamado déficit nominal estrutural (um indicador de balanço fiscal de médio prazo, ajustado a variações do ciclo econômico), se o estoque da dívida é inferior a 60% do PIB, ou 0,5% do PIB, caso maior. Também faz parte desse pacto fiscal um mecanismo automático de correção, caso seja detectado desvio significativo da meta ou da respectiva trajetória de ajustamento – o que reforça o comprometimento, ex ante, dos governos em cumpri-las, na mesma linha do que está sendo proposto no PRS nº 84, de 2007.

Endividamento público é salutar tanto para o Estado quanto para o agente superavitário e a própria economia, mas encontra limite no tamanho e na trajetória da dívida.Daí que o limite de endividamento proposto pode ser benéfico para corrigir a trajetória de gastos, especialmente se indicadores de esforço primário e, mais ainda, resultado nominal, estabelecidos anualmente, estão sendo reiteradamente desconsiderados ou revisados. Por estar na competência privativa de controle do Senado, esse indicador terá maior estabilidade institucional para equacionar a dívida em uma trajetória sustentável no médio e longo prazo.

O projeto original dessa regulamentação, de 2000, do Executivo, foi desdobrado, no Senado, em duas proposições[3], uma que cuida da União e outra, dos demais entes federados. Esta segunda parte se transformou na Resolução nº 40, de 2001. Assim como o PL nº 3.744, de 2000, que tramita na Câmara, esta também se encontra praticamente no estágio em que foi apresentado – o que sugere uma simetria entre Senado e Câmara evidenciando que os impedimentos à tramitação desses temas não têm cores partidárias.

 

Nova Lei de Finanças Públicas

Também tramita no Senado Federal o Projeto de Lei Complementar (PLS) nº 229, de 2009, que visa introduzir nova lei geral de finanças públicas. O texto estabelece normas sobre orçamento, controle e contabilidade pública, além de contemplar temas como planejamento e orçamento; execução orçamentária; contabilidade e classificação da receita e da despesa. Também abrange aspectos relativos ao reconhecimento e pagamento de obrigações de exercício anterior, e diretrizes contábeis aplicáveis a fundos públicos.

Sua introdução deverá beneficiar o próprio processo legislativo orçamentário nacional, à medida que incorporará várias regras de cunho normativo geral, isto é, aplicáveis também para as demais esferas federadas, além de normas já aplicadas na esfera federal,que são, a cada ano, inseridas nas leis de diretrizes orçamentárias e que já deveriam estar consolidadas como regramento perene.

É relevante a nova regra de que a estimativa de receita orçamentária que o Poder Legislativo aprovar na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) deverá ser mantida tanto nesse projeto quanto no texto da Lei Orçamentária Anual (LOA) enviado para sanção presidencial – mecanismo que visa tornar mais crível o processo de previsão orçamentária das receitas, contrapondo-se ao viés altista não só do Executivo como do Legislativo para abarcar as emendas impositivas. O projeto também reformula o Plano Plurianual (PPA) para simplificá-lo com base no programa de governo eleito com o novo Presidente da República, acabando com o descasamento entre mandato presidencial e PPA.

Na esfera do planejamento, o Sistema Nacional de Projetos de Investimento agregará os dados dos sistemas dos municípios com mais de 200 mil habitantes, constituindo banco de dados único de projetos, cuja inclusão será pré-requisito para inserção no orçamento de cada ente federado. Esse mecanismo reforçará o papel da LDO, com a finalidade de os governos de todas as esferas federadas passarem a fazer um planejamento fiscal de médio prazo consistente, deixando de assumir obrigações futuras sem fontes de financiamento definidas. Para isso, prevê a projeção de todas obrigações já contratadas ou esperadas para os anos seguintes e, a partir da meta fiscal definida, a determinação do espaço disponível para novos projetos, contemplando que os projetos anteriormente aprovados sejam adequadamente observados. Esse detalhamento maior permitirá aprovar somente o que seja efetivamente viável em ser iniciado na prática.

 

Medidas Legislativas Complementares

A responsabilidade fiscal tem na apreciação das contas do Presidente da República pelo Congresso importante pilar institucional, mas a prerrogativa parlamentar acaba esvaziada se for intempestiva – como mostra as contas do governo Collor (1990-1992) que ainda aguardam parecer. A falta de prazos para apreciação de contas destoa do prazo fixo de 60 dias para apresentação das contas pelo Presidente da República e do prazo de 60 dias para emissão de parecer pelo TCU. O estabelecimento de prazo específico é uma necessidade para o exercício tempestivo da função fiscalizadora do Congresso Nacional, uma de suas prerrogativas básicas. Isso porque eventual reprovação de contas, por exemplo no primeiro semestre do ano seguinte ao ano de prestação das contas, pode constituir fato político relevante, além de subsidiar a sociedade sobre a qualidade do gestor público, permitindo-lhe formar melhor julgamento acerca da conveniência da reeleição de um político ou não. Trata-se de importante omissão de controle fiscal.

Também decorre daí a necessidade de sanção mais efetiva a políticos com contas reprovadas. Sanções de baixo custo ao agente político são ineficazes para coibir crime de responsabilidade, ou o desvio da conduta esperada do gestor público. No caso,a sanção de inelegibilidade política do mandatário com contas reprovadas não afeta o curso do próprio mandato, o que não gera uma preocupação tempestiva de curto prazo para o político, nema concomitante aderência às normas de finanças públicas. Talvez seja a hora de aprimorar as regras de gestão com foco nesse horizonte temporal.

O equacionamento da prática de contingenciamento e do uso da rubrica de Restos a Pagar (diante da falta de limite quantitativo específico) também merece avaliação, para valorizar a função de planejamento dos gastos. Se, por uma via, o contingenciamento é medida preventiva que favorece o equilíbrio das contas, sua utilização excessiva compromete a qualidade do gasto, distorcendo o planejamento das ações públicas, em especial por congelar, prioritariamente, despesas de investimentos, o que emperra o desenvolvimento. Sua prática reiterada mostra um enfraquecimento do PPA, que é o instrumento estratégico de investimentos. Hoje, o abuso do contingenciamento desarticula a execução orçamentária ao longo do exercício, que acaba, muitas vezes, concentrada no final do ano, quando sobra pouco tempo para se realizarem as despesas de forma eficiente e racional. Na prática, o Executivo costuma reter os recursos durante o exercício para, após a certeza do cumprimento das metas, pela realização da receita estimada, já próximo ao fim do ano, liberá-los em grandes quantidades para que sejam realizados. Este procedimento leva a sérias dúvidas quanto à qualidade do gasto e à observância do planejamento orçamentário, ensejando licitações aceleradas e preços oportunamente elevados pelos fornecedores.

Um aspecto importante do contingenciamento e da acumulação de contas a pagar no exercício fiscal seguintes é que acaba constituindo um segundo orçamento para competir com o novo orçamento aprovado. A existência de valores expressivos em Restos a Pagar indica, por definição, que será feito novo contingenciamento no ano fiscal seguinte, o que é ruim não apenas para o setor público como para a organização do próprio setor produtivo privado que é contratado. Nesse caso, a prática reiterada e abusiva do poder de contingenciamento e a não execução das despesas orçamentárias previstas acaba transformando o orçamento em uma peça de ficção, pois muitas das despesas previstas simplesmente deixam de ser executadas, ou apenas pagas. Ainda que o contingenciamento seja uma resposta do Executivo ao excesso de autorizações orçamentárias do Legislativo com base em superestimação da arrecadação, o fato é que Congresso Nacional e sociedade acabam não contando com o planejamento orçamentário para direcionar as ações públicas que serão efetivamente realizadas.O processo de planejamento precisa trazer previsibilidade dos gastos e resgatar a credibilidade e a importância do orçamento como mecanismo central da ação pública, que acaba sendo chamado, de forma pejorativa, como mera “carta de intenções”.

O ciclo fiscal é mais complexo do que apenas a etapa de execução dos gastos, pois parte do planejamento orçamentário, de receitas e despesas em equilíbrio, quando da elaboração das peças orçamentárias (com observação das regras de teto), e vai até a fiscalização e aprovação posterior das contas pelo Legislativo. Daí a capacidade de pilares como instituição fiscal independente,limite de endividamento federal e a introdução de novas normas de controle de finanças públicas,como citado, constituírem mecanismos institucionais críveis, que complementarão o arcabouço normativo atinente à gestão fiscal e conduzirão a gestão pública a uma trajetória de maior qualidade e sustentabilidade.

_____________

1http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=20145
2Nesse sentido, o projeto de lei do Senado nº 141, de 2014, tramita para corrigir a fixação de uma composição geral excessivamente extensa ao CGF, com vistas a definir a composição do conselho de forma mais simples.
3http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/44833

 

Download:

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2767 2
O que é orçamento impositivo? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2224&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-que-e-orcamento-impositivo https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2224#comments Mon, 12 May 2014 13:17:52 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2224 A legislação e a execução prática do orçamento da União, no Brasil, consideram a despesa fixada na lei orçamentária como uma “autorização para gastar”, e não como uma “obrigação de gastar”. Isso abre espaço para que o Poder Executivo não realize algumas despesas previstas no orçamento. Trata-se do chamado “orçamento autorizativo”, no qual parte das despesas pode ser “contingenciada”.

A ideia de “orçamento impositivo” é mudar essa prática, tornando obrigatória a execução de todo o orçamento nos termos em que ele foi aprovado pelo Congresso Nacional.

A Lei nº 4.320, de 1964, já facultava ao Poder Executivo a prerrogativa de limitar a realização do gasto em função das necessidades de controle de caixa, mediante a programação de cotas trimestrais de despesa.

A Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF (Lei Complementar nº 101, de 2000), por sua vez, em seu art. 9º, prevê o contingenciamento1 com regras para adequação da despesa ao efetivo fluxo de receitas. Enquanto na Lei nº 4.320, de 1964, a programação tinha o objetivo de “manter, durante o exercício, na medida do possível o equilíbrio entre a receita arrecadada e a despesa realizada”2, na LRF o objetivo é o de assegurar “o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais”.

Trata-se, portanto, de garantir ao Poder Executivo instrumento para controlar a despesa e gerar resultado primário compatível com a estabilidade macroeconômica.

Está tramitando na Câmara dos Deputados uma Proposta de Emenda à Constituição que foi apelidada de “PEC do orçamento impositivo”. Apesar do apelido, o objetivo daquela proposição não é tornar obrigatória a execução de toda a despesa do orçamento. A proposta ali contida é tornar obrigatória a execução de parte das despesas agregadas ao orçamento pelo Congresso Nacional, sob a forma de emendas individuais de parlamentares.

Segundo o texto, seria obrigatório liberar os recursos para pagar essas emendas até o limite de 1,2% da Receita Corrente Líquida (RCL) da União, realizada no exercício anterior. Metade desses recursos deverá ser aplicada em ações e serviços públicos de saúde.

Outra inovação relevante trazida pela PEC é a fixação da obrigatoriedade de aplicação, pela União, de pelo menos 15% de sua receita corrente líquida em ações e serviços públicos de saúde. Pela regra atual, fixada no art. 77 do ADCT, as despesas no setor de saúde devem crescer no mesmo ritmo de variação nominal do PIB.

Este texto analisa as possíveis consequências da aprovação da PEC, principalmente no que diz respeito à obrigatoriedade de execução das emendas parlamentares, em termos fiscais e políticos.

I – A rigidez do OGU

Não obstante haja a possibilidade de contingenciamento das despesas pelo Poder Executivo, o Orçamento Geral da União (OGU), que contempla o Tesouro Nacional, a Previdência Social e o Banco Central, caracteriza-se por elevada rigidez de despesas. No orçamento para 2013, por exemplo, 84% da despesa primária é de caráter obrigatório, havendo pouco espaço para contingenciamento. Tal obrigatoriedade decorre de dispositivos constitucionais ou legais. Por exemplo: todos os aposentados têm direito a receber seus benefícios, não podendo haver cortes para contenção de despesas; por sua vez, os servidores públicos efetivos são estáveis e seus salários irredutíveis. De forma similar, há obrigações legais de gastos mínimos em saúde e educação. As principais despesas obrigatórias por determinação constitucional ou legal são aquelas referentes a:

  • benefícios da previdência social;
  • pessoal e encargos sociais;
  • despesas correntes associadas à despesa de pessoal (auxílio alimentação, auxílio transporte, salário família, etc.)
  • despesa mínima obrigatória em saúde e educação;
  • sentenças judiciais;
  • seguro desemprego e abono salarial;
  • benefício mensal aos deficientes e idosos de baixa renda (LOAS).

A Tabela 1 mostra a composição da despesa primária do governo central, destacando os itens mais relevantes:

img_1_2224

Há um segundo grupo de despesas que, embora seja passível de contingenciamento, por não constituir obrigação legal, tem alto grau de rigidez, seja por constituir prioridade política absoluta, seja porque é necessária para manter o funcionamento de serviços essenciais. Podem ser citados:

  • subvenções financeiras do Programa Minha Casa, Minha Vida;
  • gastos em educação acima do mínimo obrigatório, em programas como merenda escolar, livro didático, sistema de avaliação de alunos, transporte de estudantes, custeio das escolas, etc;
  • funcionamento mínimo de órgãos e programas essenciais: controle de voo, arrecadação pela Receita Federal, socorro a comunidades atingidas por desastres, etc.

Acrescentando-se esse segundo grupo de despesas ao conjunto dos dispêndios não passíveis de contingenciamento, chega-se a um total de despesa de alta rigidez da ordem de 90% da despesa total.

A emenda constitucional em análise tende a ampliar a rigidez orçamentária à medida que torna obrigatória a execução das emendas parlamentares. A seguir analisa-se esse ponto.

II – As emendas parlamentares e seus limites

As emendas parlamentares individuais estão usualmente incluídas dentro daqueles 10% da despesa orçamentária sujeita a contingenciamento. Tornando-se de execução obrigatória, elas tornarão a despesa orçamentária ainda mais rígida a cortes.

O limite anualmente estabelecido pelo Congresso para a apresentação de emendas individuais de parlamentares ao orçamento, em 2013, foi de R$ 15 milhões por parlamentar3. O uso pleno desse limite por todos os parlamentares, o que geralmente acontece, leva a um acréscimo de despesas da ordem de R$ 8,9 bilhões. Em 2013, 24,4% desse valor foram na área de saúde.

De acordo com a PEC em análise, o limite de execução obrigatória das emendas passaria a ser de 1,2% da RCL. Tomando-se por base uma RCL de R$ 639 bilhões em 20124, a execução obrigatória de emendas, se vigente em 2013, equivaleria a R$ 7,69 bilhões. Isso significa que, se estivesse em vigor em 2012, a execução obrigatória alcançaria 87% do potencial máximo de emendas. Tais despesas, que antes eram discricionárias, passariam a ser obrigatórias.

Nessa nova situação, as despesas obrigatórias passariam de 87,9% para 88,7% do orçamento.

Contudo, a regra proposta na PEC é de que 50% das emendas terão que ser obrigatoriamente utilizadas no setor saúde. As despesas do setor saúde tendem a ser de caráter obrigatório (a menos que estejam extrapolando o limite mínimo obrigatório por lei, o que assumiremos, por simplificação, não ser o caso). Assim, com essa hipótese de que toda despesa em saúde é obrigatória, apenas metade das emendas parlamentares converterá despesas discricionárias em obrigatórias, pois a outra metade será feita em uma categoria de despesa já obrigatória. Em consequência, o impacto efetivo da PEC será o de levar as despesas obrigatórias de 87,9% para 88,5% do total.

Ao se direcionar 50% das emendas para o setor saúde, no qual a despesa já é obrigatória, reduziu-se o potencial da PEC de aumentar a rigidez do orçamento em valor em torno de R$ 4 bilhões.

Do ponto de vista do controle fiscal, a ideia de direcionar parte das emendas para a saúde é perfeita para o Executivo, pois se evita um enrijecimento adicional do orçamento. O problema surge quando se considera a qualidade da despesa. Se as emendas não forem adequadamente peneiradas na fase de apreciação no Congresso, corre-se o risco de substituir despesas em programas planejados e estruturados do Ministério da Saúde por despesas avulsas e pouco articuladas decorrentes das emendas, sem impacto significativo nos indicadores de saúde da população. Isso ressalta, mais uma vez, a necessidade de o Executivo encontrar mecanismos de incentivar os parlamentares a designar verbas para programas previamente estruturados. Dessa forma todos ganham: os parlamentares têm o crédito junto aos eleitores pela alocação da verba, enquanto o Ministério da Saúde não sofre uma pulverização em seu orçamento.

Em suma, dos R$ 7,69 bilhões de emendas parlamentares, a metade (R$ 3,84 bilhões) vai deixar de ser despesa discricionária e passar a ser obrigatória. Para um orçamento já extremamente engessado, o engessamento adicional promovido pela PEC não chega a ser de grande impacto.

Ademais, em caso de haver necessidade de contingenciar a execução de despesas não obrigatórias, a PEC prevê que o percentual de contingenciamento que incidir sobre tais despesas poderá ser aplicado às emendas parlamentares de execução obrigatória. Ou seja, as emendas poderão ser contingenciadas, porém na mesma proporção das demais despesas contingenciadas. Não se poderá, como ocorre atualmente, eleger as emendas parlamentares como alvo principal do contingenciamento, protegendo-se outras despesas do orçamento.

Outra mudança relevante promovida pela PEC é que as emendas parlamentares deixam de ser consideradas como “transferências voluntárias” da União a estados e municípios, passando a ter o status de despesa obrigatória.

Isso tem grande repercussão quando se leva em conta as regras da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) acerca de transferência voluntárias, contidas no art. 25 dessa Lei. Esse artigo determina o bloqueio de transferências voluntárias para os estados e municípios que não cumprirem limites impostos pela lei relativos a: pagamento de tributos, aplicação mínima de recursos em educação e saúde, observância dos limites de endividamento e de despesa de pessoal, entre outros.

Ou seja, ao transformar as emendas em despesas obrigatórias, a PEC livra os estados e municípios de terem os recursos das emendas bloqueadas nos casos em que não cumprirem obrigações impostas pela LRF.

Os estados e municípios também poderão receber os recursos das emendas mesmo que não prestem informações fiscais e financeiras ao Poder Executivo Federal para fins de consolidação das contas públicas (art. 51 da LRF) ou que não instituam e cobrem todos os impostos de sua competência (art. 11 da LRF).

Há, portanto, um enfraquecimento dos mecanismos de imposição de responsabilidade fiscal aos estados e municípios.

III – Implicações de ordem política da obrigatoriedade de execução das emendas parlamentares individuais

O contingenciamento de emendas parlamentares, em especial das emendas individuais, é normalmente referido como um instrumento de barganha política à disposição do Poder Executivo Federal. Sempre que precisa reforçar a sua base de apoio no Congresso, o Executivo descontingencia parte das emendas em retribuição a voto ou posicionamento favorável do parlamentar.

Pelo lado do parlamentar, as emendas são usualmente consideradas importante instrumento eleitoral porque permitem o atendimento de demandas da sua base eleitoral.

Uma primeira interpretação que pode ser dada ao se amarrar as mãos do Executivo, e impedir a barganha do voto parlamentar em troca da liberação de emendas, é de que aumentaria a independência do Legislativo. Isso fortaleceria a democracia, uma vez que um Poder perderia capacidade de se impor sobre outro.

Não obstante, a necessidade de formar maiorias continuará a existir. Também continuará a ser prevalente o “poder financeiro” do Executivo. O mais provável é que o mecanismo de barganha por meio de emendas seja substituído por outro tipo de barganha. O perigo é que os novos mecanismos sejam menos transparentes ou lesivos à eficiência da ação pública. Não havendo como barganhar via liberação de emendas, pode-se barganhar por meio da oferta de cargos públicos, de financiamentos subsidiados em bancos federais, etc.

Ainda que sujeito a várias críticas, o processo de barganha Executivo-Legislativo baseado em emendas parlamentares é transparente. Qualquer jornalista tem acesso às emendas apresentadas por cada um dos parlamentares, pode acompanhar a sua execução, bem como pode ver como votou cada um dos Deputados e Senadores.

Fechar essa janela transparente de barganha cria o incentivo a se abrir outras janelas menos transparentes.

 Por outro lado, é possível que, sabendo a priori que as emendas individuais serão efetivamente executadas, o Poder Executivo passe a se mobilizar para fazer uma seleção mais criteriosa das emendas a serem aprovadas. Para isso, mobilizaria sua base no Congresso para fazer um pente fino nas emendas. Pela sistemática atual, as emendas individuais não são submetidas a qualquer análise de custo-benefício. São tratadas como uma verba que provavelmente não será liberada e, se o for, trata-se mais de um dinheiro que se paga para se ter a fidelidade parlamentar do que para se ter o serviço público que será prestado pela obra ou programa instituído.

É possível que a execução obrigatória leve a um tratamento mais criterioso das emendas, inclusive pela definição, na lei de diretrizes orçamentárias, de critérios rígidos para apresentação de emendas, vinculando-as a programas preexistentes do Executivo, inserido em um planejamento de ações que evitaria a dispersão de recursos.

Pelo exposto acima, temos que a aprovação da PEC elevará a rigidez do orçamento, embora em proporções não alarmantes, seja porque as emendas parlamentares não representam um valor elevado em relação ao gasto primário total, seja porque o Executivo conseguiu que parte das emendas fosse direcionada para despesas já obrigatórias, na área de saúde.

Do ponto de vista político, há o risco de o processo de barganha no parlamento, atualmente feito de forma transparente, por meio da liberação de emendas, passe a se dar com base em procedimentos menos transparentes e, portanto, fora do poder de fiscalização da mídia.

____________________

1No jargão técnico, o procedimento é conhecido como “limitação de empenho e movimentação financeira” (LRF, art. 9º).

2 Art. 48, alínea “b”, da Lei nº 4.320, de 1964.

3 Parecer preliminar ao PL nº 24, de 2012, p. 44. Disponível em: http://www12.senado.gov.br/orcamento/loa?ano=2013&categoria=3.1.3&fase=elaboracao.

4 Fonte: Relatório Resumido de Execução Orçamentária – Secretaria do Tesouro Nacional.

Download:

  • veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2224 4
O que são “instituições fiscais independentes”? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2221&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-que-sao-instituicoes-fiscais-independentes https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2221#comments Mon, 05 May 2014 13:58:43 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2221 O Estado brasileiro passa por um processo de deterioração fiscal que tem componentes de curto e longo prazo. No curto prazo observa-se a queda dos resultados primários do setor público, que passaram de 3,8% do PIB em 2008 para 1,9% em 2013. Há, também, uma deterioração na qualidade deste superávit e das contas públicas, em que procedimentos contábeis pouco usuais têm sido utilizados com o intuito de mascarar parte da deterioração fiscal (sobre tal ponto ver, neste site, “O que é contabilidade criativa?”).

É forçoso, contudo, reconhecer que, mesmo quando o setor público apresentava superávits primários robustos e contabilidade mais clara, a qualidade da nossa política fiscal já não era das melhores. Ano após ano a despesa total cresce e, com ela, a carga tributária. A despesa primária do governo central pulou de 14% do PIB para 19% do PIB entre 1997 e 20131, e a carga tributária nos três níveis de governo saltou de 28% para 34% do PIB no mesmo período2. Os superávits primários têm sido feitos não apenas por meio de aumento de tributos, que sufocam os contribuintes e desestimulam o crescimento econômico, mas também com base em repressão dos investimentos públicos, tornando a infraestrutura do país precária. Este é o componente de deterioração de longo prazo da política fiscal.

O processo orçamentário se dá de uma forma em que os poderes Executivo e Legislativo têm interesse em fixar receitas superestimadas e despesas elevadas. O Executivo o faz porque, dispondo do poder de contingenciar gastos, pode escolher quais despesas executará ou não. Assim, quanto mais amplo o espectro de despesas disponíveis, mais espaço tem para distorcer o orçamento a favor de suas prioridades. Já o legislativo tem interesse em ampliar as despesas para encaixar os gastos de interesse dos parlamentares e de suas bases. O controle fiscal se faz na boca do caixa, sem transparência ou ordenamento de prioridades sociais.

No campo da qualidade do gasto público, inexiste no país a prática de se avaliar benefícios e custos gerados pelos programas patrocinados pelo governo. Os programas são postos em prática, o gasto se eleva ano após ano, mas pouco se avalia se eles constituem benefício para a sociedade como um todo ou apenas mais uma fonte de renda para grupos específicos com poder de pressão política. Os investimentos públicos não passam por planejamento cuidadoso, sua execução usualmente estoura os orçamentos prévios e, depois de prontos, têm manutenção deficiente, o que reduz a vida útil de estradas, portos e equipamentos urbanos (mais sobre isso, em outro texto neste site: “Por que é importante investir em infraestrutura?”).

Não será simples corrigir todas essas distorções. Um caminho promissor, contudo, pode ser a criação de uma “instituição fiscal independente” ou “conselho fiscal” – doravante chamados de IFI – nos moldes de instituições que já funcionam em vários países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A mais famosa dessas instituições é o Congressional Budget Office (CBO) dos Estados Unidos. Mas há também o Office for Budget Responsibility (OBR) no Reino Unido, o Conselho de Finanças Pública (CFP) em Portugal e mais outras vinte e seis instituições similares em países tão distintos entre si quanto Quênia e Coréia do Sul. A expansão desses órgãos ganhou impulso especialmente na Zona do Euro, com a necessidade de promover ajustes fiscais estruturais após a crise de 2008, que afetou fortemente a Europa.

Tais instituições são órgãos de Estado, com estrutura similar a de agências reguladoras (dirigentes com formação técnica, com mandatos predefinidos e protegidos de pressões políticas). Sua função é a de ser uma espécie de cão de guarda da estabilidade fiscal e da qualidade do gasto público. Devem fazer análises técnicas isentas, tornando-as públicas, buscando dar o máximo de transparência possível a suas avaliações.

Certamente uma agência com essa natureza ajudaria a melhorar a qualidade da política fiscal no Brasil, pois atuaria sobre pontos críticos que precisam ser aperfeiçoados. Em primeiro lugar, poderia fazer estimativas independentes da receita orçamentária, que colocaria em xeque as estimativas usualmente superestimadas feitas pelo Executivo e o Legislativo. Estes teriam que, no mínimo, explicar porque suas receitas esperadas estariam acima daquela estimada pela IFI. Não conseguindo fazê-lo, seriam forçados a moderar a fixação da despesa orçamentária.

A IFI também poderia atuar avaliando a qualidade de políticas públicas. Estudos de custo-benefício, que requerem grande quantidade de informações e alta especialização técnica para que sejam bem feitos, poderiam indicar à sociedade quais são os programas públicos que merecem ter continuidade e quais deveriam ser extintos por trazerem mais custos que benefícios.

Isso permitiria não apenas melhorar a qualidade do gasto público, introduzindo no país uma cultura de avaliação dos gastos, como também permitiria conter a expansão do gasto agregado. Menor carga tributária seria necessária para dar conta de despesas em menor nível. As avaliações de custos e benefícios poderiam ser feitas, inclusive, antes de os projetos serem postos em prática, por meio de avaliação de impacto de proposições em tramitação no Congresso que visem instituir novos gastos, conceder isenções tributárias ou outros tratamentos preferenciais a grupos específicos.

Outra área de relevante atuação desta instituição independente seria na fixação de critérios contábeis de alta qualidade, o que deixaria explícito os casos em que os governos estariam tentando iludir a população com o uso de contabilidade criativa.

É importante notar que a criação de uma IFI não significa retirar do Executivo e do Legislativo o poder para programar e executar a política fiscal. Não se trata de aplicar, na área fiscal, princípio similar ao de independência do Banco Central, pelo qual o governo amarra suas mãos e dá à autoridade monetária o poder para gerir a oferta de moeda à sociedade. A política fiscal não pode ser executada dessa forma, pois ela é a essência da atividade de governar. O que a instituição fiscal independente deve fazer é, como dito acima, funcionar como um “cão de guarda” das finanças públicas, apontando excessos, ineficiências e distorções; oferecendo parâmetros para avaliar a trajetória de longo prazo da política fiscal; estabelecendo critérios contábeis lastreados na transparência das contas públicas.

Ela deve usar a sua comunicação com o público, em especial com a imprensa, para divulgar o que se espera do governo em termos de adoção de boas práticas fiscais. Deve explicitar custos e benefícios dos programas públicos. Mas jamais deve determinar o corte ou expansão desta ou daquela despesa, a interrupção deste ou daquele programa.

Não se deve confundir, também, a ação de uma instituição fiscal independente com a de instituições voltadas à auditoria e controle, como os tribunais de contas. Estes atuam avaliando o passado, estudando o resultado de programas em andamento ou já encerrados, aprovando ou rejeitando as contas públicas. As instituições fiscais independentes atuam olhando para o futuro: avaliam os prováveis cenários para a receita e a despesa, estudam benefícios e custos de programas visando seu aperfeiçoamento, definem critérios de qualidade para a contabilidade pública.

O Brasil já tem, na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), um embrião de instituição fiscal independente. Trata-se do Conselho de Gestão Fiscal (CGF), instituído pelo art. 67 daquela Lei. Todavia, o CGF não foi instituído até hoje.

Tal demora deve-se a dificuldades envolvidas na regulamentação. Isso porque a LRF exige que o CGF tenha representantes de todos os poderes, em todos os níveis de governo, além de representantes de entidades técnicas da sociedade civil. Surgem aí alguns problemas práticos e algumas incongruências com a ideia de entidade independente. Em primeiro lugar, o CGF teria número excessivo de representantes, dificultando a obtenção de quorum e o processo decisório. Em segundo lugar, a participação de membros do poder público, eles próprios executores de políticas que seriam avaliadas pelo conselho, reduziria o grau de independência e imparcialidade nas avaliações feitas pela entidade. Em terceiro lugar, é muito difícil estabelecer critérios práticos para se escolher, por exemplo, quem seria o representante de todos os legislativos municipais do país, Como fazê-lo? Uma eleição na qual votariam todos os vereadores do Brasil? Dificuldade similar surgiria para escolher o representante dos judiciários estaduais ou para definir quais seriam as entidades da sociedade civil contempladas com o direito de participar do CGF.

Para que o CGF pudesse ser convertido em uma verdadeira instituição fiscal independente, seria necessário alterar a LRF com vistas a dar ao Conselho um perfil similar ao das agências reguladoras: nomeação de um pequeno número de diretores, com perfil técnico, evitando-se dar representação a entidades, órgãos governamentais ou poderes públicos. Deve-se, ademais, prover a entidade com equipe técnica qualificada e abrir a possibilidade de atuar em conjunto com universidades e outras instituições capacitadas para fazer as análises que se espera de uma IFI.

Este seria um grande passo no sentido de se mudar o perfil expansionista de nossa política fiscal, de melhorar a qualidade da intervenção do governo na economia e, com isso, elevar o potencial de crescimento do país.

Já há evidências empíricas de que as IFI têm efeito concreto. Um estudo do FMI3 mostra que países com IFI que atendem a alguns requisitos básicos apresentam desempenho fiscal mais sólido e orçamentos mais realistas. Esses requisitos são: ter independência operacional, realizaranálise de projeções fiscais, estar presente na mídia e monitorar metas fiscais.

O Brasil, sem dúvida, carece de um aperfeiçoamento institucional dessa natureza. O que não falta é literatura sobre o tema, conforme lista apresentada abaixo, e possibilidade de assistência técnica por parte do FMI, da OCDE e das próprias IFI já em funcionamento.

 

Para ler mais sobre o tema:

Bos, F., Teulings, C. CPB and Dutch fiscal policy in view of the financial crisis and ageing. http://www.cpb.nl/en/publication/cpb-and-dutch-fiscal-policy-view-financial-crisis-and-ageing

Calmfors, L. (2010) The swedish fiscal policy council – experience and lessons. http://people.su.se/~calmf/Wipol_2011_Calmfors.pdf

Calmfors, L., Kopits, G., Teulings, C. (2010) A new breed of fiscal watchdogs. EVRO Inteligence. http://www.finanspolitiskaradet.se/download/18.55431e1f13f86263d6a1c5a/1377195290368/Calmfors,+Kopits+%26+Teulings+(2010).pdf

Debrun, X. (2011) Democratic accountability, deficit bias, and independent fiscal agencies. FMI – Working Paper WP/11/173.

Debrun, X., Kinda, T. (2014) Strengthening post-crisis fiscal credibility: fiscal councils on the rise – a new dataset. FMI – Working Paper WP/14/58.

Eichengreen, B., Hausmann, R., von Hagen, J. (1999) Reforming budgetary institutions in Latin America: the case for a National Fiscal Council. Open Economies Review, 10: 415-442.

FMI (2013) The functions and impacts of fiscal councils. http://www.imf.org/external/np/pp/eng/2013/071613.pdf

Hagemann, R. (2011) How can fiscal councils strengthen fiscal performance? OECD Journal: economic studies, vol. 2011/1, http://dx.doi.org/10.1787/19952856

Kopits, G. (2011) Independent fiscal institutions: developing good practices. 3rd Annual Meeting of OECD Parliamentary Budget Officials – Estocolmo, Suécia.

Marinheiro, C.F. (2011) Fiscal sustainability and the accuracy of macroeconomic forecasts: do supranational forecasts rather than government forecasts make a difference? International Journal of Sustainanble Economy, v. 3, n. 2

OCDE (2013) OECD principles for independent fiscal institutions. http://acts.oecd.org/Instruments/ShowInstrumentView.aspx?InstrumentID=301&InstrumentPID=316&Lang=en&Book=False

Szpringer, Z. (2013) A parliamentary view of Poland’s plans to enhance the role of existing institutions in place of establishing an independent fiscal institution. Mimeo – Varsóvia, Polônia. http://www.pbo-dpb.gc.ca/files/files/D1-AM%20-%20Roundtable%20-%20Zofia%20Szpringer%20-%20POLAND.pdf

_______________

1 Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional
2 Fonte: Receita Federal do Brasil
3“Strenghening Post-Crisis Fiscal Credibility: Fiscal Councils on the Rise – A New Dataset”, de Xavier Debrun e Tidiane Kinda.

Download:

  • veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2221 4
Vale a pena fazer o recadastramento biométrico eleitoral? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1939&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=vale-a-pena-fazer-o-recadastramento-biometrico-eleitoral https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1939#comments Mon, 05 Aug 2013 13:08:45 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1939 A decisão do TSE de levar à frente o recadastramento biométrico para “modernizar” nosso processo eleitoral demonstra que nós resistimos a tudo, menos à tentação de um gadget reluzente. Essa iniciativa irá custar pelo menos R$ 6 bilhões, quantia suficiente para fazer investimentos relevantes em transporte coletivo em qualquer das megalópoles brasileiras.

A decisão é completamente injustificável frente à inexistência de riscos relevantes de fraude em nossas eleições e à necessidade de priorizar carências urgentes em outras áreas, como saúde e transporte. Mas é apenas mais um exemplo de irracionalidade no País em que o cálculo de custos e benefícios é uma ideia tão exótica quanto a arte plumária indígena e as aves tropicais pareceram aos europeus do Séc. XVI.

A decisão de levar à frente de modo praticamente irreversível o recadastramento biométrico – coletar eletronicamente as impressões digitais e as assinaturas dos eleitores para uso esporádico, a cada dois anos – foi tomada por meio da Resolução do TSE nº 23.335, de 22 de fevereiro de 20111.

A Resolução, sua justificação e votos anexos têm características que repetem o padrão prevalecente nas decisões de gasto público no País: a) linguagem vaga e genérica quanto aos objetivos a alcançar; b) imprecisão das metas quantitativas e dos prazos – observando que não se determinaram precisamente nem os municípios nem os Estados que deveriam ser objeto da fase de recadastramento biométrico que ela previa como etapa imediata; c) ausência de análise de custo e benefício, o que leva, também seguindo um padrão comum na prática brasileira, a realçar os benefícios, a desconsiderar os custos e, principalmente, a omitir os possíveis usos alternativos que se poderia dar aos recursos que serão gastos; d) imprecisão na estimativa de custos, que é incompleta e não exaustiva para cada fase do programa, especialmente pela não consideração dos custos sociais não orçamentários (o custo de deslocamento do eleitor para recolher a impressão digital no cartório eleitoral e as horas de trabalho perdidas nessa operação exemplificam os custos sociais não orçamentários; tais perdas não serão bancadas pelo Orçamento da União, mas serão, respectivamente, uma despesa para o trabalhador e uma perda de receita para os patrões e os autônomos, sendo conjuntamente um custo social); e) ausência de estimativa dos custos globais do projeto caso venha a ser expandido para o resto do país, apenas a apresentação de cálculos frágeis e potencialmente subestimados de cada etapa, que, posteriormente, já como fatos consumados, servirão como argumento a mais para conclusão do programa: “tudo bem que o programa é ineficiente; mas com os gastos já feitos nas etapas anteriores seria irracional não levá-lo a termo. Essa crítica deveria ter sido feita antes”.

Na página 11 da Resolução, na seção em que constam a justificação e os votos, encontra-se a única referência a custos financeiros da medida. Não são apresentadas ali estimativas elaboradas pelo Tribunal para os custos globais da empreitada, mas tão somente o valor da disponibilidade orçamentária do programa para o ano de referência – 2011. Essa dotação, por sinal, não é assumida como um valor reivindicado, disputado ou negociado pelo TSE, mas como uma espécie de determinação discricionária da Secretaria de Orçamento Federal (SOF) e tomada passivamente pelo Tribunal. Considerando uma meta física de 10,8 milhões de eleitores, o TSE estimou que o custo do recadastramento seria de R$ 4,00 por eleitor2.

Entretanto, nem mesmo essa meta de eleitores a recadastrar – pouco detalhada e para a qual não havia qualquer compromisso de cumprimento – foi executada, o que tornaria difícil saber quanto efetivamente tem custado o recadastramento, caso a única fonte de informação fossem as estimativas constantes dos documentos oficiais. Segundo o site do TSE (consulta feita no dia 9 de julho de 2013), apenas 7 milhões de eleitores haviam sido recadastrados (com inserção de dados biométricos) até o fim de 20123. Como já haviam sido cadastrados 1 milhão de eleitores antes da projeção, pode-se concluir que apenas 6 milhões foram cadastrados entre 2011 e 2012, o que representa 60% da meta estabelecida para o exercício de 2011, de 10 milhões.

Ainda que a meta tivesse sido cumprida, as despesas diretamente incorridas pelo TSE e pelos TRE com a dotação orçamentária específica para o recadastramento nem de longe correspondem ao efetivo custo total (fiscal e social) da iniciativa. Esses custos vão muito além desse limite, como irá se demonstrar. No mínimo, os vencimentos dos servidores efetivos destacados para a tarefa deveriam ter sido computados.

O custo não orçamentário mais significativo do recadastramento – não previsto nas justificações oficiais – é a perda de horas de trabalho decorrente do comparecimento do eleitor ao cartório eleitoral. A própria legislação reconhece implicitamente esse custo ao conceder abono de a quem for se recadastrar4. No total da iniciativa, o recadastramento irá atingir, em tese, o universo dos hoje 140 milhões de eleitores brasileiros. Evidentemente, nem todos os eleitores fazem parte da População Ocupada (PO), que é um subconjunto da População Economicamente Ativa (PEA). Tomando-se os dados do IBGE da PO das Regiões Metropolitanas, mês-base abril de 2013, o custo desse absenteísmo seria de R$ 1,9 bilhão5.

Essa perda deve ser somada àquela referente aos trabalhadores de regiões urbanas não metropolitanas e regiões rurais. Segundo dados de 2009, últimos disponíveis de série descontinuada, a relação entre a PO das regiões metropolitanas e a das demais regiões era de aproximadamente 50%, enquanto a renda média do último grupo era 20% inferior à da PO das regiões metropolitanas. Supondo-se que essas relações se mantiveram até hoje, o custo total do absenteísmo em todo o País ao final do programa pode ser estimado em R$ 5,0 bilhões.

Uma crítica justa poderia ser feita a esse cálculo: o de que o tempo total para o recadastramento (agendamento, deslocamento ao cartório e efetivação da operação) não toma toda a jornada de trabalho. Se assim é, a legislação não deveria conceder abono integral para quem se recadastra, mas apenas do tempo efetivamente gasto para realizar a tarefa. De todo modo, em razão das crescentes dificuldades de deslocamento nas grandes cidades, muitos dos que participarem do recadastramento perderão, de fato, um dia de trabalho. Pode-se ainda argumentar que, em média, as tarefas que deixariam de ser feitas no dia abonado acabariam por ser realizadas nas jornadas seguintes. Essa recuperação do tempo perdido ocorreria porque trabalhadores e empresas acabam administrando a porosidade das jornadas de trabalho ao longo de uma semana ou de um mês, de modo a realizar um dado quantum de trabalho, independentemente de intercorrências como feriados, atrasos no transporte, consultas médicas, solução de pendências em horário de trabalho, etc.

Com base nesse tipo de argumento, o cálculo da perda não equivaleria exatamente àquele que efetivamente se verificará na economia. Ainda que essa crítica possa estar em parte correta, a administração da porosidade na jornada de trabalho tem limites e, em certas atividades, o argumento simplesmente não vale. Em muitos ramos de atividade, a produção não realizada em determinado momento não pode ser recuperada. Um atendimento médico de emergência, por exemplo, não pode ser feito depois, exceto, em poucos casos, com considerável prejuízo na qualidade. O mesmo vale para as inúmeras atividades em que há produção em série. Ainda assim, a imposição de um fator a mais de perda a ser ajustado na porosidade da jornada é sempre um problema para a produtividade geral. O fato é que a perda é significativa, embora não seja possível estimar com precisão o seu valor. A melhor estimativa deve ser mesmo o valor correspondente ao abono concedido em lei, até em obediência ao princípio contábil do conservadorismo.

Além disso, a página eletrônica computerworld.com.br6 informa que foram compradas 117 mil urnas eletrônicas com dispositivo de leitura biométrica para uso em 2012, ao custo de R$ 143 milhões, o que implica custo unitário de R$ 1.214,00. A compra de novas urnas só foi necessária em função dos dispositivos de leitura biométrica, pois não há notícia de que o modelo anterior de urna teria sofrido qualquer obsolescência para as funções específicas, repetitivas – e bienais – que desempenha. Quando todas as aproximadamente 450 mil urnas do País forem substituídas pelo modelo com leitura biométrica, o custo total será de R$ 546 milhões.

Somente os R$ 5,5 bilhões relativos à soma do custo do absenteísmo e das novas máquinas seriam suficientes para construir e equipar toda a Linha Amarela do metrô de São Paulo, que terá, quando concluída, extensão de 12,8 Km, 11 estações e demanda de mais de um milhão de passageiros por dia7.

A análise de custos e benefícios não deveria parar por aí. Seria necessário incluir ainda os custos da redundância representada pelo TSE estar capturando um dado – características biométricas – que também é recolhido por outros órgãos estatais – como a Polícia Federal, na emissão de passaportes8; e as secretarias de segurança estaduais, na expedição de carteiras de identidade. Aliás, chama a atenção o fato de que dois órgãos federais não tenham procurado eliminar redundâncias – e consequente prejuízo – desobrigando quem já é portador de passaporte do incômodo de comparecer mais uma vez para a coleta do dado.

Voltando ao tema central, outro custo relevante do recadastramento é o custo da campanha publicitária em rádio e televisão – também não orçamentário, mas fiscal, pois leva à renúncia de receita de tributos. O cronograma de divulgação de comerciais em rádio e TV para o ano de 2013 é bastante generoso9 e, pelo critério de tempo de divulgação, não deve ficar atrás de produtos e empresas campeãs de audiência. Sabe-se que a isenção fiscal recebida pelas rádios e TV equivale exatamente ao valor de mercado do tempo cedido.

Restaria ainda incluir os custos de redundância, os salários e diárias dos próprios servidores do TSE envolvidos na tarefa e o custo de eventuais terceirizações. Tampouco se considerou o custo de deslocamento – ida e volta – ao cartório eleitoral, equivalente a duas passagens de ônibus ou metrô. Esse custo é igual ao produto do número de eleitores – 140 milhões – por um custo médio nacional de deslocamento de ida e volta de, provavelmente, R$ 3, o que faria a conta subir mais R$ 420 milhões.

Atualmente há grande preocupação com o potencial vazamento de informações de caráter privado armazenadas em bancos de dados de uso público, estatais ou não. Mesmo nos países com atuação relevante na espionagem e na contraespionagem, têm sido comuns os casos de quebra de confiança e de hierarquia e consequente perda de confidencialidade de documentos. Quando os próprios órgãos estatais – Justiça Eleitoral, Polícia Federal e secretarias de segurança – se acotovelam para colher e armazenar os mesmos dados de identificação em bancos de dados distintos, aparentemente sem coordenação estratégica10 e sem cronograma comum, o risco de vazamento e mau uso da informação só faz crescer, ameaçando a privacidade dos cidadãos, sem qualquer vantagem perceptível.

A tabela a seguir sintetiza os argumentos e estimativas precedentes.

Nesse ponto, à vista dos elevados custos totais incorridos – alguns intangíveis, como o risco aumentado de perda de privacidade – é de se perguntar: que benefícios o TSE estaria procurando alcançar ao introduzir a identificação biométrica nos sistemas eleitorais?

De todas as críticas – e não são poucas – usualmente feitas ao sistema eleitoral brasileiro, não figura a de que seja vulnerável a fraude sistemática de identificação do eleitor. Ao contrário, o País se orgulha do modelo operacional que o TSE implantou no País, de fato muito eficaz – o que não significa eficiente, pois a eficácia não leva em conta os custos necessários para se cumprir uma tarefa. O próprio TSE se preocupou primeiramente em garantir a fidedignidade dos resultados e a rapidez das apurações, o que fez principalmente com a introdução da urna eletrônica. Essa opção se deu, provavelmente, porque não julgou necessário combater antes uma eventual tendência a significativas fraudes de identificação – que seria muito mais grave e cujo combate deveria ter sido prioritário. Garantir a lisura dos pleitos teria sido muito mais importante do que acelerar a divulgação de seus resultados.

Além disso, não são comuns, para não dizer inexistentes, denúncias por atores ou grupos relevantes – de dentro ou de fora do establishment político – de fraudes de identificação em volumes capazes de adulterar o resultado de eleições, mesmo em pequenos municípios. Ao contrário, e até ironicamente, o que se ouve cochichar por aí é a desconfiança, alimentada por teorias conspiratórias, de pequenos grupos que acreditam que os avanços tecnológicos – em especial as urnas eletrônicas – aumentam, em vez de reduzir, as chances de fraude sistemática nas eleições.

A verdade é que não há, de fato, interesse público relevante no recadastramento biométrico eleitoral. Somente a estrutura de incentivos prevalecente no setor público brasileiro pode explicar tal escolha orçamentária. Mas esse tema, bastante complexo, mereceria outro artigo.

_____________

1 O documento pode ser encontrado na página www.tse.jus.br, seguindo as abas legislação e pesquisa à legislação eleitoral.

2 Nos termos da justificação da Resolução: “A SOF informou existir no Projeto de Lei Orçamentária Anual – PLOA 2011, para o presente exercício, dotação de R$ 51.000.000,00 para as ações envolvendo a biometria, dos quais R$ 43.475.324,00 destinados ao custeio administrativo e R$ 7.524.676,00 a investimento. Acrescentou que “a meta física constante do PLOA 2011 para o referido projeto é cadastrar 8% do eleitorado nacional, representando 10,8 milhões de eleitores, o que possibilitaria um dispêndio médio da ordem de R$ 4,00 por eleitor”.

3 Segundo página do TSE: “A biometria garante ainda mais segurança aos eleitores brasileiros na hora de votar. Nas Eleições 2014, mais de 22 milhões serão identificados pelas digitais. Por isso, de 2012 a 2014,  o programa de identificação biométrica da Justiça Eleitoral recadastrará cerca de 14 milhões de eleitores (até o momento, 11,5 milhões de eleitores já foram convocados), que se juntarão a outros 7 milhões já recadastrados”. (http://www.tse.jus.br/eleitor/recadastramento-biometrico/recadastramento-biometrico).

4 Na verdade, tanto a CLT quanto a Lei nº 8112, de 1990 (que regulamenta as relações de trabalho para os funcionários públicos federais), preveem dois dias de abono para o recadastramento eleitoral. Nesse artigo, entretanto, decidiu-se pela hipótese de que apenas um dia será utilizado. A ideia é de que, mesmo tendo o direito legal de usar dois dias de abono, o trabalhador do setor privado teria imensa dificuldade de justificar na prática o uso de período tão longo de abono, podendo, inclusive, sofrer retaliações informais. Embora os servidores públicos nem estejam sujeitos a qualquer sanção no caso de utilização dos dois dias, o seu peso relativo no universo total justifica desconsiderar a possibilidade de uso dos dois dias de abono. Uma observação lateral interessante: a legislação que prevê dois dias de abono para o alistamento eleitoral prevê apenas um dia para a doação de sangue.

5 Esse valor corresponde ao produto da PO metropolitana por seu rendimento médio mensal, dividido pela relação (8 horas / 180 horas de trabalho mensal) = [23,007 milhões * R$ 1.863 / (8 dias/180 dias)].

6 http://computerworld.uol.com.br/tecnologia/2010/12/23/tse-compra-117-mil-urnas-para-eleicoes-municipais-de-2012/ último acesso em 11/07/2013.

7 Ver http://www.metro.sp.gov.br/noticias/acontecendo/governador-geraldo-alckmin-inicia-2a-fase-da-linha-4amarela.fss. Último acesso em 14/07/2013.

8 A esse respeito é interessante observar lateralmente que a prática internacional nos países desenvolvidos mais populosos que adotam passaporte com informação biométrica eletrônica é renovar passaportes com registro biométrico de dez em dez anos e de cinco em cinco para crianças. No Brasil, cuja renda per capita é bem inferior à dos países citados e em que há reclamações de falta de mão-de-obra para a emissão de passaportes, estabeleceu-se o intervalo de apenas cinco anos para adultos, o que dobra os custos sociais e demanda o dobro de servidores da Polícia Federal para o cumprimento da tarefa. O pior caso é o das crianças brasileiras, cujo prazo de renovação é igual à da idade na data de emissão. Desse modo, uma criança de um ano receberá passaporte com validade de apenas um ano!

9 http://www.tse.jus.br/internet/recadastramento-biometrico/Plano-midia-tv-radio-biometria-2013.pdf

10 A impressão de improviso e falta de articulação estratégica é reforçada pelo fato de que, poucos meses após a aprovação da Resolução nº 23.335, em fevereiro de 2011, foi aprovada em junho do mesmo ano a Resolução nº 23.345, que revogou o art. 12 da primeira Resolução. A providência teve de ser tomada, segundo a justificação, porque o matéria coletado até então não atendia às especificações técnicas do convênio assinado: “(…) em recente análise das imagens fornecidas por este Tribunal para composição dos cartões RIC, observando o acordo citado, o Instituto Nacional de Identificação – INI/DPF/MJ rejeitou 99,67% das assinaturas dos eleitores, digitalizadas por ocasião do Acordo de Cooperação Técnica 1212010, celebrado entre este Tribunal e a Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia em Identificação Digital. Essa rejeição ocorreu em uma amostra de 8.988 imagens, ficando demonstrado que o procedimento de digitalização das assinaturas dos eleitores, contidas nos documentos RAE (Requerimento de Alistamento Eleitoral), é inadequado para a emissão do cartão RIC e, portanto, desaconselhado pela STI”.

Download:

  • veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=1939 6
O que é e para que serve a desvinculação de receitas da União (DRU)? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=906&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-que-e-e-para-que-serve-a-desvinculacao-de-receitas-da-uniao-dru https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=906#comments Mon, 05 Dec 2011 14:19:28 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=906 A desvinculação de receitas da União (DRU) foi adotada em 1994, quando da implementação do Plano Real. Os seus objetivos principais são:

a)     aumentar a flexibilidade para que o governo use os recursos do orçamento nas despesas que considerar de maior prioridade;

b)    permitir a geração de superávit nas contas do governo, elemento fundamental para ajudar a controlar a inflação.

A necessidade de criação da DRU decorre de algumas regras estipuladas pela Constituição. A primeira delas é a divisão do orçamento do Governo Federal em duas partes: o orçamento fiscal e o orçamento da seguridade social. A seguridade social compreende as atividades do governo nas áreas de saúde, assistência social e previdência social. As demais áreas têm seus gastos programados no orçamento fiscal.

Além de segmentar o orçamento em duas partes, a Constituição também segmentou as receitas que deveriam financiar cada um dos orçamentos. Para o orçamento da seguridade foram reservadas as chamadas “contribuições sociais”, que são tributos que incidem, principalmente, sobre a folha de pagamento das empresas, o lucro, o faturamento ou a receita[1]. São exemplos dessas contribuições: as contribuições para a previdência social, COFINS, CSLL e a extinta CPMF.

Para o orçamento fiscal ficaram os impostos tradicionais, como os impostos sobre renda, sobre produtos industrializados, sobre exportação e importação, as taxas e as contribuições econômicas como a Cide-combustíveis.

Ocorre que a Constituição também determinou que a maioria dos impostos deve ter sua receita repartida com os estados e municípios, enquanto as contribuições não estão sujeitas a tal partilha.

Quando o Governo Federal se viu na necessidade de elevar a arrecadação para promover uma redução do déficit público e poder pagar a elevada dívida pública, ele percebeu que estava em um beco sem saída.

Se elevasse os impostos, parte da receita arrecadada teria que ser dividida com estados e municípios, de modo que restaria apenas em torno de 50% da receita adicional nos cofres da União. Se elevasse as contribuições sociais, estas teriam que ser direcionadas para os gastos com saúde, assistência social e previdência, não havendo a possibilidade de se carrear a nova receita para o pagamento da dívida pública.

Foi aí que se criou a DRU, que nada mais é do que uma regra que estipula que 20% das receitas da União ficariam provisoriamente desvinculadas das destinações fixadas na Constituição. Com essa regra, 20% das receitas de contribuições sociais não precisariam ser gastas nas áreas de saúde, assistência social ou previdência social.

Isso abriu um caminho para que o Governo Federal promovesse forte elevação da tributação via contribuições sociais, que não precisavam ser divididas com estados e municípios e, graças à DRU, poderiam ser usadas para pagamento da dívida pública ou pagamento de outras despesas fora do orçamento da seguridade social.

De fato, a partir da introdução da DRU em 1994, podemos notar um crescimento da carga tributária, em sua maior parte decorrente da criação ou majoração das contribuições sociais, como mostrado no Gráfico 1.

A receita de impostos e taxas, integrante do orçamento fiscal, manteve-se no patamar de 6 a 8% do Produto Interno Bruto (PIB); já a receita de contribuições, em sua maior parte integrante do orçamento da seguridade social, passou de 8,1% do PIB, em 1995, para 12,9% em 2010.

A DRU trazia também outra vantagem. A Constituição não criou apenas a vinculação entre as receitas de contribuição e o orçamento da seguridade. Existe um grande número de outras vinculações. Por exemplo: os recursos arrecadados pelo PIS/PASEP devem ser entregues ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), 18% da receita de impostos devem ser gastas em manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE), as taxas cobradas por órgãos públicos em geral são vinculadas ao financiamento das despesas desses órgãos (por exemplo: taxa de serviços aeroportuários devem financiar o custeio da Infraero[2]).

As vinculações de receitas, somadas a gastos em boa medida incompressíveis – despesas com pessoal, benefícios previdenciários, serviço da dívida etc. –, dificultam a capacidade de o governo federal alocar recursos de acordo com suas prioridades sem trazer endividamento adicional para a União.

Com a DRU, 20% das vinculações caía por terra e o Governo ganhava mais flexibilidade para usar os recursos nas finalidades que considerasse necessárias.

O mecanismo, que era para ser provisório, foi renovado diversas vezes.

Contudo, como veremos adiante, a sua importância foi se reduzindo ao longo do tempo. Primeiro, porque as despesas da seguridade social, em especial da saúde e da previdência, cresceram fortemente. As despesas da previdência aumentaram muito devido aos seguidos reajustes do salário mínimo acima da inflação. Como o salário mínimo é referência para os benefícios previdenciários, a despesa da previdência cresceu muito[3].

As despesas com saúde cresceram devido à regra instituída pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000, que determinou que o gasto da saúde deve crescer no mesmo ritmo de crescimento do PIB. Como o PIB cresce acima da inflação, as despesas com saúde acompanham esse ritmo.

Se esses dois setores passaram a demandar cada vez mais dinheiro, passaram a sobrar menos recursos de contribuições sociais para serem remanejados para o pagamento de outras despesas e a amortização da dívida pública.

Outro fator que enfraqueceu o poder da DRU de gerar recursos para livre alocação é o exercício de pressão por parte dos grupos que se consideram prejudicados pelo mecanismo. A cada renovação da DRU a sua abrangência torna-se mais restrita.

FUNDAMENTO LEGAL

O mecanismo foi criado em 1994, com o nome de Fundo Social de Emergência (FSE). Desde então, esse instrumento foi prorrogado, com algumas alterações, com o nome de Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) e, atualmente, Desvinculação de Receitas da União (DRU). Em 2007, foi aprovada pelo Congresso Nacional sua prorrogação, até 31 de dezembro de 2011, pela Emenda Constitucional (EC) nº 56, de 20 de dezembro de 2007.

O fundamento legal da DRU, atualmente em vigor, é a Emenda Constitucional nº 56, de 2007, que a prorrogou nos mesmos termos da EC nº 42, de 2003. O dispositivo desvinculou de órgão, fundo ou despesa, até 31 de dezembro de 2011, 20% da arrecadação de impostos, contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico, já instituídos ou que vierem a ser criados, seus adicionais e respectivos acréscimos legais.

Em 2011 o Poder Executivo encaminhou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 61, de 8 de junho de 2011, prorrogando mais uma vez a DRU, desta vez até 31 de dezembro de 2015. A proposta mantém a atual redação do art. 76 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, apenas prorrogando o seu prazo e atualizando a sua redação.

Comparando-se o texto atual da DRU com aquele vigente na sua primeira versão (FSE de 1994) percebe-se que foram excluídos do alcance da DRU as transferências aos estados, ao Distrito Federal (DF) e aos municípios previstas na Constituição Federal[4] (ou seja, a desvinculação não afeta essas transferências constitucionais, de forma que estados, DF e municípios, nesses casos, não sofrem perdas com a DRU como sofriam com o FSE).

Por outro lado, foram incluídas as contribuições de intervenção no domínio econômico (CIDE) entre as receitas sujeitas à desvinculação. Com isso, a contribuição incidente sobre combustíveis (CIDE-Combustíveis) foi desvinculada, resultando em perdas para os estados e municípios[5]. Essa perda foi contornada com o aumento da participação dos governos subnacionais de 25% para 29% da receita da CIDE, por força da Emenda Constitucional nº 44, de 2004[6].

A versão atual da DRU também exclui da desvinculação a contribuição social do salário-educação, devida pelas empresas, ao financiamento do ensino fundamental público.

Em relação à desvinculação de recursos para a manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE), a Emenda Constitucional nº 59, de 11 de novembro de 2009, determinou a redução progressiva do percentual da DRU incidente sobre esses recursos. Assim, para efeito do cálculo dos recursos para MDE, o percentual de desvinculação passou para 12,5%, em 2009, 5%, em 2010, e nulo no exercício de 2011. Portanto, a partir deste ano, a DRU deixará de afetar as vinculações para MDE e, portanto, não mais implicará aumento dos recursos de livre alocação decorrente da desvinculação de impostos.

Por fim, as leis de diretrizes orçamentárias têm ressalvado da desvinculação as contribuições sociais do trabalhador e do empregador ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e ao Plano de Seguridade Social dos Servidores Públicos, em observância ao disposto no inciso XI do art. 167 da Constituição Federal.

GASTOS SOCIAIS

A principal controvérsia suscitada pela desvinculação de recursos refere-se a seu possível efeito de reduzir os gastos sociais. Desde a aprovação do FSE, em 1994, essa polêmica é renovada a cada proposta de prorrogação do mecanismo. De um lado, a oposição em geral critica a desvinculação[7], pois defende o aumento dos gastos ditos sociais[8]. De outro, o governo federal, pelos motivos já apontados, defende a desvinculação.

Esse último busca negar o impacto negativo da DRU sobre os gastos da área social. Argumenta que não há redução de recursos destinados à previdência social, porque o gasto com aposentadorias e pensões é incompressível. Para responder a suspeitas de que a DRU desvia recursos de suas finalidades sociais, demonstra que, desde 1996 até 2010, as despesas nas áreas de saúde e educação vêm crescendo. Por fim, afirma que a DRU não implica elevação no montante de receitas disponíveis para o governo federal em detrimento dos estados e municípios.

De fato, as despesas com determinadas funções sociais do governo não deixaram de ser atendidas em decorrência da existência DRU, em especial, as despesas obrigatórias da seguridade social.

No entanto, a DRU evita que a disponibilidade de recursos vinculada ao orçamento da seguridade, em valores superiores àqueles necessários para cobrir os gastos determinados pelo reajuste do salário mínimo ou pelo crescimento do PIB, venha a gerar pressão política para expansão ainda mais acelerada dos gastos da seguridade. Com isso, a DRU impede a aceleração dos gastos e gera excedentes para a redução do déficit público e a amortização da dívida.

Impacto da DRU sobre o orçamento da seguridade social

Do ponto de vista do orçamento da seguridade social, a maior parte dos recursos desvinculados de contribuições sociais acaba voltando para esse orçamento. Portanto, com o crescimento das despesas da seguridade, atualmente o Tesouro Nacional realiza aportes significativos, de forma que não se pode afirmar que a DRU implique perdas significativas para a seguridade social.

TABELA 1
SEGURIDADE SOCIAL – DESPESA¹ POR FONTE – 2010
R$ milhões
Fontes Valor
INSS 206.843
Cofins 107.974
Recursos Livres (Fonte 100) 37.626
CSLL 33.967
PIS-Pasep 17.179
CPSS – Patronal 12.681
Royalties do Petróleo 11.614
Recursos Próprios Financeiros 9.776
Outras 37.417
Total 475.075
Fonte: SIAFI/Prodasen.
1: Despesa liquidada.

Dos R$ 46,6 bilhões desvinculados das contribuições sociais (vide Tabela 1), em sua quase totalidade receitas do orçamento da seguridade social, R$ 37,6 bilhões retornam como recursos de livre alocação (Fonte 100) para pagamento de despesas desse orçamento. Ou seja, a área da seguridade social cede recursos líquidos de cerca de R$ 8,9 bilhões, que poderiam expandir suas despesas.

TABELA 2
SEGURIDADE SOCIAL – DESVINCULAÇÕES E APORTES
R$ milhões
2006 2007 2008 2009 2010
1 Desvinculação de Contribuições Sociais¹ 34.175 38.908 39.570 39.176 46.557
2 Aporte de Recursos Livres (Fonte 100)² 14.532 20.395 31.208 37.132 37.626
3 Líquido (1-2) 19.643 18.513 8.362 2.045 8.931
4 Percentual (2/1) 43% 52% 79% 95% 81%
Fonte: Balanço Geral da União e SIAFI/Prodasen.
1: Não inclui multas, juros e dívida ativa.
2: Despesa liquidada.

Vemos na Tabela 2 que o aporte de recursos ordinários do Tesouro Nacional ao orçamento da seguridade social tem aumentado nos últimos anos. Esses aportes passaram de R$ 14,5 bilhões, em 2006, para R$ 37,6 bilhões, em 2010, correspondentes a 43% e 81% da desvinculação de contribuições sociais. Isso mostra que os recursos desvinculados pela DRU, atualmente, retornam em sua maior parte para o orçamento da seguridade social. Esse fato é explicado pela expansão das despesas com benefícios previdenciários e assistenciais (especialmente devido a aumentos reais do salário mínimo), e pelo aumento dos gastos na área de saúde (vinculados ao crescimento do PIB).

Em 2009, especificamente, o menor crescimento do PIB e das receitas tributárias levou a que o Tesouro Nacional realizasse aporte de recursos ordinários quase equivalente à desvinculação de contribuições sociais.

Impacto da DRU sobre as despesas com educação

Cabe esclarecer que não existe maneira inquestionável de aferir até que ponto a desvinculação impõe diminuição de recursos a órgão, fundo ou despesa. Isso só seria possível se apenas uma fonte de recursos financiasse cada ação de governo ou órgão. Se, ao contrário, retiram-se recursos de fontes vinculadas, mas se aportam montantes de outras fontes, como dizer se essas outras fontes estariam presentes caso não tivesse havido a desvinculação?

Para efeito do cálculo dos recursos para MDE, por força da Emenda Constitucional nº 59, de 2009, o percentual de desvinculação passou para 12,5%, em 2009, 5%, em 2010, e nulo no exercício de 2011. A tabela abaixo mostra o efeito da DRU sobre os recursos destinados à MDE:

TABELA 3
REDUÇÃO DE RECURSOS VINCULADOS A MDE – 2008 a 2011
R$ milhões
2008 2009 2010 2011¹
Percentual de Desvinculação (A) 20,0% 12,5% 5,0% 0,0%
Receita de Impostos (B) 256.147 244.071 280.141 347.713
Desvinculação (C) = (B)*(A) 51.229 30.509 14.007 0
Redução de Recursos de MDE (D)=18%*(C) 9.221 5.492 2.521 0
Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional.
1: Lei Orçamentária para 2011

Vê-se que a redução de recursos destinados à MDE decresce de R$ 9,2 bilhões, em 2008, quando o percentual de desvinculação era de 20%, e passa a ser nulo a partir de 2011. Cabe considerar que a PEC nº 61, de 2011, que propõe nova prorrogação da DRU, mantém explicitamente o fim da desvinculação desses recursos, em consonância com a EC nº 59, de 2009.

No entanto, a área de educação como um todo é custeada por diversas fontes de recursos. Assim, um aumento dos recursos vinculados para MDE poderia ser simplesmente compensado pela diminuição de recursos livres e outros. Portanto, a conclusão de que a área de educação perde com a desvinculação (ou ganha com o fim desta), embora aparentemente evidente, não é necessariamente correta.

TABELA 4
FUNÇÃO EDUCAÇÃO – DESPESA¹ POR FONTE – 2010
R$ milhões
Fontes Valor
Recursos Vinculados a MDE 26.911
Recursos Livres (Fonte 100) 10.791
Salário-Educação 4.725
Outras 6.018
Total 48.446
Fonte: SIAFI/Prodasen.
1: Despesa liquidada.

Em 2010, por exemplo, foram alocados recursos do Tesouro Nacional de R$ 10,8 bilhões na área de educação, face à redução de recursos destinados à MDE de apenas R$ 2,5 bilhões.

Impacto da DRU sobre o FAT

No caso do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), ao contrário dos recursos da MDE, há efetivamente uma perda de recursos com a DRU. Isso ocorre porque o FAT é custeado, quase integralmente, por recursos próprios:

TABELA 5
FAT – DESPESA¹ POR FONTE – 2010
R$ milhões
Fontes Valor
PIS/Pasep 28.765
Recursos Próprios Financeiros 11.088
Recursos Livres (Fonte 100) 1.133
Outras 212
Total 41.198
Fonte: SIAFI/Prodasen.
1: Despesa liquidada.

As fontes de recursos do FAT são a arrecadação do PIS/Pasep e recursos financeiros próprios, constituídos pelo retorno dos financiamentos do BNDES. Esses recursos só podem ser aplicados no FAT. Ademais, o aporte de recursos ordinários do Tesouro Nacional é pouco significativo, no valor de R$ 1,1 bilhão, bem inferior ao valor desvinculado da arrecadação do PIS/PASEP de R$ 8,0 bilhões.

Assim, a DRU efetivamente retira recursos que poderiam ser aplicados em ações do FAT ou em financiamentos do BNDES. Também cabe notar que parte das receitas do PIS/Pasep alimenta saldo positivo na conta única do Tesouro Nacional, não sendo efetivamente despendida.

CONCLUSÕES

São válidas as seguintes conclusões: (1) atualmente, a maior parte dos recursos desvinculados de contribuições sociais retorna ao orçamento da seguridade social, de forma que a redução de seus recursos é hoje muito menos relevante que no passado; (2) não se pode afirmar que a área de educação tenha perdas de recursos e, a partir de 2011, não haverá mais desvinculação de recursos de MDE; (3) o FAT abre mão de recursos para gastos com o seguro-desemprego e outras ações a seu encargo e de seu patrimônio aplicado no BNDES.

A possibilidade de troca de fontes de recursos enfraquece o argumento de que a DRU reduz os gastos sociais: o que se retira por meio da DRU pode voltar para aquela área por meio de alocação de recursos orçamentários livres.

Ademais, cabe observar que os gastos da seguridade social não são determinados pela disponibilidade de recursos vinculados e, sim, pelas decisões de criação ou aumento de despesas públicas. Na área de educação, a criação de cargos e o aumento de sua remuneração determinam parte substancial da despesa. Em relação ao FAT, suas despesas dependem do valor do salário mínimo e das regras de concessão do seguro-desemprego.

Por outro lado, se não houvesse a DRU, a diferença entre a arrecadação total de contribuições sociais e a despesa total da seguridade geraria a impressão de que estaria “sobrando” dinheiro na seguridade, o que estimularia o aumento de gastos na área.

Esse raciocínio, contudo, não é correto. Como visto acima, o Governo Federal elevou fortemente a tributação por meio de contribuições sociais para gerar recursos não só para a seguridade, mas também para o financiamento do orçamento fiscal. O foco no aumento de contribuições, em vez de impostos, foi para evitar partilhar as receitas com estados e municípios.

Se a DRU for simplesmente extinta, e toda a receita de contribuições tiver que ser alocada no orçamento da seguridade, os R$ 9 bilhões que atualmente são transferidos liquidamente do orçamento da seguridade para o orçamento fiscal (vide Tabela 1) se converterão em gastos públicos, aumentando o déficit público e exigindo a elevação de impostos para o custeio das despesas do orçamento fiscal.

O mesmo ocorrerá com os R$ 7 bilhões líquidos que a DRU retira do FAT.

A extinção da DRU também retira do Governo a possibilidade de promover novas elevações de tributação via contribuições sociais nos momentos em que desejar reforçar o caixa da União.

Podemos concluir que a DRU ainda é necessária, embora talvez menos que no passado, devido à progressiva redução de sua base de cálculo.

As sucessivas prorrogações da DRU mostram a necessidade desse mecanismo, ainda que como alternativa a uma ampla reforma nas finanças públicas brasileiras. A Constituição Federal de 1988 incorporou inúmeras demandas da sociedade, especialmente nas áreas de saúde, assistência e previdência social. Muitas dessas demandas assumiram a forma de vinculações de receitas a órgão, fundo ou despesa. A DRU surge como uma forma de reduzir essas vinculações, dada a dificuldade política de realizar uma reforma fiscal abrangente. Em visão mais ampla, a desvinculação representa um mecanismo para compatibilizar o arcabouço da Constituição de 1988 com a bem-sucedida estabilização econômica de 1994.

Downloads:

  • veja este artigo também em versã o pdf (clique aqui).

Para ler mais sobre o tema:

Dias, F.A.C.(2011) Desvinculações de receitas da União, ainda necessárias? Núcleo de Estudos e Pesquisas do Senado Federal. Texto para Discussão nº 103. Disponivel em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao.htm


[1] Vide art. 195 da Constituição.

[2] A respeito da arrecadação e despesas da Infraero ver, neste site, o texto As receitas da Infraero são suficientes para garantir aeroportos de boa qualidade?

[3] Para uma análise do impacto do salário mínimo sobre as despesas da previdência, ver neste site o texto O aumento do salário mínimo e dos benefícios a ele vinculados favorece ou dificulta a eliminação da miséria no Brasil?

[4] Conforme o § 1º do art. 76 do ADCT.

[5] Com essa alteração, também há perdas referentes a vinculações de menor importância, como a Cota-Parte Adicional do Frete para Renovação da Marinha Mercante e outras.

[6] Equivalente a 23,2% da receita integral.

[7] Não toda a oposição ou somente ela. Há membros da bancada da saúde e da educação tanto na oposição quanto na situação.

[8] Deve-se observar que nem sempre os gastos nas áreas de educação e previdência social favorecem as camadas mais pobres da população, o que torna o termo “gasto social” um tanto impreciso.

]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=906 9
Por que a intervenção do governo pode gerar prejuízos à sociedade? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=510&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-a-intervencao-do-governo-pode-gerar-prejuizos-a-sociedade https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=510#comments Thu, 05 May 2011 12:36:05 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=510 Já foi postado neste site um texto, de minha autoria, com o título “Por que o governo deve intervir na economia?”, em que argumento que existem “falhas de mercado”, como externalidades, assimetria de informações ou restrições à competição que reduzem o nível de bem-estar da sociedade. Uma intervenção do governo para solucionar essas “falhas de mercado”, se bem executada, pode elevar o nível de bem-estar da população. No presente texto vou discutir o outro lado da moeda: as “falhas de governo”, ou seja, os fatores que podem fazer com que as intervenções do governo gerem distorções maiores que aquelas que ele se propõe a resolver. Assim, toda ação governamental deveria ser precedida de uma análise prévia sobre as suas vantagens (correção de falhas de mercado) e desvantagens (possíveis falhas de governo decorrentes daquela ação).

Problemas de escolha coletiva

O processo de decisão governamental é feito de forma diferente do processo de decisão individual. Se pretendo comprar um carro, faço uma análise dos custos dessa compra e dos benefícios que ela vai me proporcionar. Ao fazer isso, uso minha escala de valores individuais para avaliar os custos e benefícios (se dou muito ou pouco valor a ter um carro bonito; ou se prefiro um carro mais barato que não seja tão bonito; avalio quanto estou disposto a pagar por um câmbio automático ou um banco de couro; etc.). As minhas preferências podem ser diferentes das preferências do meu vizinho, mas nesse processo decisório apenas as minhas preferências são relevantes.

Nas decisões governamentais temos um processo de escolha coletiva, em que os valores e preferências de todos os eleitores devem ser levados em consideração, o que torna o processo decisório muito mais complicado. Além disso, não há uma votação direta de todos os eleitores cada vez que uma decisão de governo tem que ser tomada. As pessoas votam em representantes (deputados, governadores, etc.) que passarão a representá-las nas decisões públicas. Esses representantes votam um orçamento, para que o dinheiro público seja gasto.

O representante político, ao votar por este ou aquele gasto público, terá dois problemas. Primeiro, ele não conhece inteiramente as preferências de seu eleitorado. No máximo ele tem uma idéia de que, por exemplo, o seu eleitor está demandando mais segurança pública e menos educação pública, ou que prefere menos impostos com menos serviços do que a expansão dos serviços financiada por mais impostos. Segundo, o seu eleitorado não é homogêneo, e ele terá que encontrar uma forma de atribuir pesos às diversas preferências.

Mesmo que as pessoas sejam perguntadas, em pesquisa de opinião, sobre as suas preferências por serviços públicos, elas não terão incentivo para revelar suas verdadeiras preferências. Suponhamos que se faça uma pesquisa em que se pergunte a cada eleitor que tipo de serviço público ele deseja, e que se avise a esse eleitor que ele terá que pagar impostos proporcionalmente aos serviços que queira receber (quem escolher mais serviços públicos pagará mais impostos). Esse tipo de consulta incentivará os eleitores a dar respostas que subestimem a sua real demanda por serviços públicos, para evitar pagar por eles. Eu não vou dizer que gostaria de ter mais policiais nas ruas. Vou esperar que outra pessoa dê essa resposta e arque com esse custo. Uma vez que haja mais policiais nas ruas eu também vou me beneficiar disso sem precisar pagar a conta.

Por outro lado, se for feita a mesma pesquisa, avisando-se ao eleitor que, independentemente da lista de serviços públicos que ele elencar como desejáveis em resposta à pesquisa, ele pagará um imposto prefixado (não relacionado com a quantidade de serviços públicos desejados), então ele terá incentivos a superestimar suas verdadeiras demandas. Afinal, já que vai pagar a mesma coisa por 5 ou 10 policiais nas ruas, o eleitor prefere ter 10 policiais.

Note que a resposta do eleitor depende da maneira como é feita a pergunta, isso, em Economia, é estudado pela Teoria de Desenho de Mecanismos.

Mesmo que se considere possível em um sistema democrático conhecer as preferências de cada eleitor, e que seja possível consultá-los a cada decisão, o processo decisório pode ter um viés na direção da expansão do gasto público e da intervenção do governo na economia.

Tal viés acontece porque na maioria das economias, e a economia brasileira não é uma exceção, a distribuição de renda não é simétrica em torno da média. Há uma concentração maior de pessoas abaixo da média, dado que umas poucas pessoas muito ricas puxam a média para cima. Isso significa que a renda mediana[1] será menor que a renda média. Se a tributação for proporcional à renda, então o eleitor com renda igual à mediana pagará menos impostos que o eleitor com renda igual à média.

Pagando menos impostos que o restante da sociedade, todos os eleitores com renda igual ou inferior à mediana tenderão a preferir mais serviços públicos (pois são subsidiados pelos demais eleitores), enquanto os eleitores com renda igual ou superior à media tenderão a  preferir menos serviços públicos (pois pagam proporcionalmente mais impostos). Porém, como o primeiro grupo é mais numeroso, ele tende a ganhar as eleições e o resultado será uma tendência à expansão do gasto público.

Basicamente o que se tem é um grupo (eleitores de renda igual ou inferior à mediana) pegando carona no gasto financiado pelos eleitores de renda mais alta. Esse mesmo fenômeno pode ter manifestações distintas. Por exemplo, em um país organizado sob a forma de federação, os governos estaduais terão incentivos a buscar recursos federais (impostos pagos por contribuintes de todo o país) para investir em projetos que beneficiem principalmente os moradores do estado. É o que ocorre, por exemplo, com as famosas emendas parlamentares, em que os deputados e senadores de um estado têm incentivos a colocar despesas em favor de seus estados no orçamento federal. Afinal, os eleitores desses estados estariam recebendo benefícios sem ter de pagar integralmente por eles.

Outra manifestação comum desse tipo de problema é a sobreposição de programas públicos executados pelo governo federal, estadual e municipal. Digamos que os políticos percebam que um determinado programa (por exemplo: distribuição de leite a famílias de baixa renda) gera muitos votos. Então tanto o presidente da república, quanto o governador e o prefeito desejarão obter esse ganho eleitoral para seus respectivos partidos, e introduzirão programas semelhantes, gerando um excesso de oferta daquele serviço público.

Sintetizando, o problema da escolha coletiva gera tendência ao aumento dos gastos públicos e consequente aumento dos impostos. Daí a necessidade de regras e instituições que ponham limites a essas pressões, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, limitações a emendas parlamentares e possibilidade de contingenciamento de despesas.

Problema principal-agente e informação assimétrica

Os eleitores não têm como monitorar plenamente os políticos eleitos. E os políticos eleitos não têm como monitorar os servidores que nomeiam para gerenciar as políticas públicas. Por isso, servidores e políticos podem, no exercício da função, buscar os seus objetivos individuais (ampliar poder político, enriquecer, trabalhar pouco, etc.) em vez de buscar os objetivos da comunidade, uma vez que não há informação suficiente para que se conheça a real eficácia de sua gestão.

O problema do principal–agente surge em condições de informação assimétrica, ou seja, quando os atores envolvidos não possuem a mesma quantidade ou qualidade de informação. No caso, o “principal” contrata o “agente” numa situação em que pode haver conflito de interesses, de forma que o “agente”, por deter informação privilegiada, e terá incentivos para tirar proveito pessoal do negócio do “principal”. Por exemplo, um eleitor (principal) não conhece todos os detalhes contratuais  e de custos de uma compra pública, o que abre espaço para um agente (gestor público) superfaturar a compra e obter ganho privado.

Diversos fenômenos conhecidos surgem desse problema. Suponha uma empresa pública que preste serviço de abastecimento de água. A intenção inicial do governo, ao criar essa empresa, foi lidar com uma falha de mercado conhecida como “monopólio natural”. Não é eficiente que várias empresas fornecedoras de água instalem encanamentos pela cidade para distribuir água às residências. O custo seria muito alto. É mais barato ter uma única rede de distribuição. Mas, nesse caso, a empresa operadora será monopolista e poderá cobrar muito caro pela água. Uma solução possível é prestar o serviço por meio de uma empresa estatal que, não tendo fins lucrativos e sendo voltada para o bem coletivo, irá estabelecer um preço justo para a água.

Ocorre que os políticos e servidores nomeados para gerenciar a empresa (agentes)  podem resolver usar o poder de monopólio em proveito próprio. Aproveitando-se da menor informação que os eleitores (principais) têm sobre custos e receitas da empresa, os “agentes”, em vez de fixar um preço da água que apenas cubra os custos operacionais e de investimento, fixarão preço mais elevado e usarão o excedente em seu favor (altos salários, participações no lucro, baixo esforço para ser eficiente, contratação de pessoas de seu grupo político, etc.).

Outro exemplo interessante: uma conhecida falha de mercado (associada à falta de informações relativas a garantias para empréstimos) faz com que alguns setores da sociedade (como pequenos agricultores, micro e pequenos empresários) não tenham acesso ao crédito oferecido pela rede bancária tradicional. Essa falha de mercado justificou a criação de bancos estaduais no Brasil, voltados a ofertar crédito a tais segmentos. Mas o resultado foi uma falha de governo. Os governadores e gestores dos bancos estaduais (agentes) passaram a gerir tais bancos em desacordo com os objetivos anunciados aos eleitores (principais): os bancos estaduais viraram, em sua maioria, financiadores de campanhas eleitorais e de “empresários amigos”, deixando grandes rombos financeiros que acabaram sendo pagos pelo governo federal. O resultado final, em termos de bem-estar social, foi negativo.

Inexistem incentivos à eficiência.

Atribui-se ao economista Milton Friedman[2] um interessante raciocínio sobre o incentivo a analisar custo e qualidade dos produtos ao se decidir por uma compra. Quando eu compro um produto com o meu dinheiro para o meu uso, eu me preocupo em analisar tanto o preço quanto a qualidade do produto. Afinal, tanto os custos quanto os benefícios do produto vão recair sobre mim.

Porém, quando compro alguma coisa com o meu dinheiro, para o uso de outra pessoa, me preocupo mais com o preço que pagarei do que com a qualidade. Nessa situação, não serei o usuário do produto, logo minha preocupação recai mais sobre os custos (que pagarei) do que sobre os benefícios (que recairão sobre outra pessoa). Pense no seu processo de decisão ao escolher um presente para o seu amigo oculto na festa de fim de ano no trabalho: você certamente sabe que seu colega gostaria mais de ganhar um IPAD, mas acaba concluindo que ele ficará feliz com um CD ou um livro.

Quando vou comprar alguma coisa para o meu uso, pagando com o dinheiro dos outros, vou olhar mais para a qualidade e me preocupar menos com o preço. Pense em um adolescente fazendo compras com o cartão de crédito do pai.

Na situação em que vou comprar alguma coisa para ser usada por outra pessoa, pagando com um dinheiro que não é meu, não vou me preocupar nem com o preço que pago, nem com a qualidade do produto. Essa é a situação de um funcionário público que está adquirindo bens e serviços a serem usados pela população.

Ou seja, o incentivo do agente governamental para buscar o menor preço é baixo, pois não é ele que está pagando diretamente pela compra. Também não vai fazer grande esforço para buscar qualidade, se o serviço público é para atender a população em geral e não ao servidor em particular.

Há, também, pouco incentivo à inovação no serviço público. Em geral, a inovação é estimulada e bem remunerada no setor privado, pois ela é fonte de geradora de lucros. Já no serviço público impera a regra da obediência ao regulamento e da responsabilização individual em casos de fracasso. Nesse contexto, por que devo inovar, se corro o risco de errar e ser responsabilizado? Prefiro cumprir os regulamentos e esperar pelas promoções por tempo de serviço. O resultado é a aversão ao risco e o apego a procedimentos burocráticos.

Associe-se a isso a estabilidade no emprego e estará completo o quadro de desestímulo ao esforço. No caso brasileiro, do ponto de vista do servidor, a competição ocorre antes (no concurso) e não durante o exercício profissional. As pessoas fazem esforço colossal para serem aprovadas em concorridos certames de seleção para o serviço público. Mas, uma vez aprovadas, não correndo risco de demissão por baixo esforço, nem vislumbrando ganhos salariais decorrentes do esforço individual, reduzem seu nível de dedicação ao trabalho.

Além disso, o setor público é monopolista na prestação de muitos serviços (infraestrutura urbana, policiamento, controle de poluição, justiça, etc.), logo não há o estímulo à eficiência gerada pela competição.

Alto custo de transação nas decisões públicas

Imaginemos que o parlamento está prestes a votar uma lei que autoriza um aumento de 0,5% na tarifa de telefonia. Uma empresa telefônica que fature, digamos, R$ 2 bilhões por ano, tem uma expectativa de ganho de R$ 10 milhões com a aprovação da lei. Para ela será lucrativo gastar, digamos, R$ 1 milhão em pagamento a lobistas para pressionar pela aprovação da lei. Além disso, como são poucas as empresas de telefonia operando no país, será fácil, para elas, juntarem-se para financiar o lobby em favor do projeto.

Olhemos, agora, o lado de um consumidor que gaste R$ 2 mil por ano em sua conta de telefone. Para ele, o custo adicional da aprovação da lei será de R$ 10. Vale a pena para ele fazer esforço e se mobilizar com vistas a economizar R$ 10? Quanto tempo e dinheiro ele irá gastar para conclamar os milhares de usuários de telefone a se organizarem para protestar em conjunto?

Ou seja, os lobbies em favor de interesses específicos, de grupos restritos, levam vantagem nas decisões políticas, pois têm menor custo de transação e maior resultado financeiro esperado nas decisões tomadas pelo governo; enquanto que, para a maioria que paga a conta, não vale a pena o custo de se mobilizar para brecar a demanda do lobby (o custo é dividido por todos e o benefício é concentrado).

Todos os grupos que conseguirem arcar com os custos de mobilização tendem a levar vantagem no processo de decisão política em detrimento do contribuinte: sindicatos de trabalhadores, movimentos de trabalhadores sem terra, federações empresariais, clubes de futebol, etc.

Um custo de transação adicional está na inércia das regras e na dificuldade para se alterar leis. A agenda do parlamento é congestionada e os projetos de lei devem esperar na fila a oportunidade para serem votados. Assim, um projeto de lei que revogue um privilégio injustificado de um grupo social pode simplesmente não ser aprovado porque o lobby dos beneficiários obtém sucesso em mantê-lo no final da fila.

Conclusões

As falhas de governo aqui apontadas não devem ser interpretadas como uma apologia ao estado mínimo, nem devem levar à falsa ideia de que as decisões de governo são sempre equivocadas ou enviesadas. É inconcebível, nas sociedades modernas, prescindir da ação estatal.

O que se pode concluir, após a constatação de que as “falhas de governo” existem e representam grandes distorções, custos e perda de bem-estar, é tentar minimizá-las. Isso pode ser feito de duas formas.

A primeira delas é sempre procurar questionar quais são os benefícios e custos de uma política estatal antes de implementá-la. A discussão acerca da oportunidade de se criar um novo programa público deve sempre buscar responder às seguintes questões: (a) qual é a falha de mercado que se está procurando resolver? (b) que falhas de governo podem vir a ser criadas pelo novo programa? (c) como minimizar as possíveis falhas de governo? (d) o risco de criar falhas de governo compensaa possível correção das falha de mercado que se pretende combater?

A segunda abordagem seria no sentido de reduzir o espaço para a ocorrência de falhas de governo, buscando-se:

  • transparência e prestação de contas pelas instituições públicas e imprensa livre;
  • entidades de controle externo (como o TCU, a Controladoria Geral da União ou o Conselho Nacional de Justiça) são instituições de supervisão cuja função é justamente induzir as instituições públicas a perseguir objetivos públicos, penalizando os agentes que buscam benefícios privados (sempre havendo o risco de que as próprias instituições de controle passem a ser utilizadas em favor dos interesses de quem as controla);
  • uma legislação que limite a prática do lobby;
  • regras eleitorais que reflitam o melhor possível as preferências do eleitor mediano e tornem as eleições baratas, evitando que os eleitos se tornem reféns de seus financiadores de campanha;
  • restrições ao gasto, à carga tributária, à dívida e ao déficit público, como as que estão estabelecidas na Lei de Responsabilidade Fiscal, reduzem o espaço de manobra para aqueles que querem usar o orçamento público como veículo para interesses privados;
  • organização das carreiras do serviço público com incentivos ao esforço e ao mérito, como promoções por bom desempenho, minimização da influência política e regras salariais baseadas na remuneração do setor privado;
  • manter a economia aberta à competição externa, o que cria um clima de competição e menor espaço para criação de privilégios legais. Em uma economia aberta e competitiva, o governo não pode sobretaxar as empresas (sob pena de reduzir sua competitividade) o que limita o tamanho do estado; o judiciário é induzido a ser rápido e eficiente (para solucionar controvérsias comerciais sem demora); e sobra pouco espaço para políticas de subsídios a setores privilegiados.

Downloads:

  • veja este artigo também em versã o pdf (clique aqui).

Para ler mais sobre o tema:

Arvate, P., Biderman, C. (2006) Vantagens e desvantagens da intervenção do governo na economia. In: Mendes, M. (Org.) Gasto público eficiente: 91 propostas para o desenvolvimento do Brasil. Instituto Fernand Braudel/Topbooks. São Paulo, p. 45-70.

Stiglitz, J. (1999) Economics of the public sector. W.W. Norton & Company, 3rd edition. Capítulos 1 e 4.


[1] Se ordenarmos a população da menor para a maior renda, a renda mediana será a daquele indivíduo que se encontra exatamente na metade da lista.

[2] Não foi possível confirmar a autoria.

]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=510 7