multilateralismo – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Tue, 01 Feb 2022 09:51:56 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 O Novo Multilateralismo em uma Ordem Internacional em Transformação https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3573&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-novo-multilateralismo-em-uma-ordem-internacional-em-transformacao Tue, 01 Feb 2022 09:13:42 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3573 O Novo Multilateralismo em uma Ordem Internacional em Transformação[1]

 

Por Eiiti Sato[2]

 

Multilateralismo e regimes internacionais

O multilateralismo passou a ser uma componente importante na política internacional apenas no século XX, com o estabelecimento da Liga das Nações em 1919. A partir de então, a prática do multilateralismo ganhou crescente importância em especial depois da Segunda Guerra Mundial. A criação Organização das Nações Unidas (ONU) em 1945 serviu, em larga medida, de padrão e de referência para levar o multilateralismo para esferas regionais e também para áreas específicas das relações internacionais como a economia, a saúde, o trabalho e mais tarde para as questões ambientais e para os temas sociais. Algumas organizações formadas no período eram derivadas de iniciativas anteriores, como foi o caso da União Panamericana, criada na esteira das Conferências Pan Americanas iniciadas 1889. Em 1948 a União Panamericana foi substituída pela Organização dos Estados Americanos (OEA). A Organização Internacional do Trabalho nascera juntamente com a Liga das Nações, na esteira do Tratado de Versailles (1919) e, na esfera econômica, as principais instituições foram criadas em 1944, em Bretton Woods (FMI e Banco Mundial). O General Agreement on Tariffs and Trade (GATT), por sua vez, só foi criado em 1947. Observa-se que, apesar das datas e das peculiaridades individuais, é possível afirmar que a criação dessas instituições ocorreu dentro do mesmo espírito que havia levado à criação da Liga das Nações (1919) e da ONU (1945) e também no entendimento de que uma parte considerável das relações internacionais passava a ser organizada e conduzida de forma regular por meio de práticas e de padrões regulares que, mais tarde, os estudiosos de relações internacionais passariam a chamar de regimes internacionais[3]. Dessa forma, após a Segunda Guerra Mundial, sob a inspiração dessas iniciativas e da ideia de que em muitos aspectos a integração regional e global poderia facilitar o entendimento e a prosperidade econômica, o multilateralismo tornou-se uma prática regular nas relações internacionais.

Com efeito, foi a partir de 1945 que houve a disseminação mais ampla do entendimento de que as relações internacionais apresentavam uma crescente regularidade, e que as relações econômicas e sociais tornavam-se cada vez mais integradas, demandando arranjos multilaterais mais organizados e mais permanentes. Na realidade, na criação desses arranjos, as experiências vividas no entreguerras foram marcantes e reveladoras do fato de que no mundo já havia se formado um verdadeiro “sistema internacional”, isto é, a Grande Depressão da década de 1930 havia mostrado que alguns fenômenos como a inflação, o crescimento e a recessão podiam se propagar como ondas, de país para país. De fato, a grande crise havia mostrado que, até mesmo uma economia tão grande e tão generosamente dotada de recursos naturais, como a dos EUA, não estava isenta de sofrer as consequências da crise que se desencadeara em 1929 e que se estendera por toda a década de 1930. Mesmo no plano das teorias, já emergiam abordagens como a dos ciclos econômicos que argumentava que a evolução das economias ocorria alternando períodos de crescimento e de estagnação e, por vezes, de recessão. A hipótese dos ciclos econômicos foi primeiramente associada à própria natureza do capitalismo sendo, depois, associada a mudanças tecnológicas[4].

Após a dolorosa experiência da Segunda Guerra Mundial, as iniciativas de criação de organizações internacionais foram também fortemente impulsionadas pelo desejo de paz. Nesse entendimento, a criação de organizações internacionais de todos os tipos era uma forma de traduzir em iniciativas esse desejo de paz e de cooperação internacional. Esse ambiente largamente favorável ao multilateralismo começou a ser questionado com a crise do petróleo desencadeada em 1973. Em termos de tendência, a crise no mercado de petróleo foi um evento revelador de que a ordem econômica e política, que por três décadas havia orientado as ações dos atores no cenário internacional, chegava aos níveis de seu esgotamento. A dependência do petróleo havia se estendido tanto para as economias avançadas quanto para as economias em desenvolvimento e os padrões de exploração dessa commodity, dramaticamente, mostravam seus limites. Além disso, por sua complicada vinculação com o mundo da política e da segurança internacionais o petróleo possuía um cunho estratégico sem paralelo com outras commodities.

Conceitos e terminologia

Para a compreensão adequada da questão do multilateralismo parece oportuno recuperar e dar maior precisão no entendimento de alguns termos. Começando pelo próprio termo multilateralismo, é preciso lembrar que não são apenas as organizações mais amplas e gerais como ONU e OMS que podem ser caracterizadas como “multilaterais”. Organizações regionais como União Europeia e Banco Interamericano do Desenvolvimento também são instituições multilaterais, muito embora não sejam globais, isto é, não estejam abertas à participação de todas as nações organizadas. Assim, o multilateralismo é uma prática diplomática que pode envolver a participação de toda a comunidade internacional de nações como a ONU ou pode envolver apenas um particular grupo de nações reunidas geograficamente – como a União Europeia – ou em torno de algum objetivo compartilhado – como é o caso da OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica).

Embora a difusão do multilateralismo tenha ocorrido associada a iniciativas de paz e de cooperação internacional, é apenas uma modalidade ou recurso utilizado pela diplomacia. Instâncias multilaterais podem ser procuradas ou podem ser vistas com desconfiança tanto por grandes potências quanto por nações mais frágeis. Para as grandes potências, instâncias multilaterais podem ser necessárias para a organização de regimes internacionais de seu interesse, mas podem ser problemáticas quando seus interesses não coincidem com boa parte da comunidade internacional. Por outro lado, para as nações menos poderosas, inclusive para as chamadas potências médias, as instâncias multilaterais podem ser úteis para construir alianças em torno de questões que não sensibilizam as grandes potências, mas, ao mesmo tempo podem ser problemáticas para os casos em que seus interesses específicos estejam em jogo. Ou seja, a diplomacia multilateral não é um recurso aplicável a todas as questões e circunstâncias e, além disso, o multilateralismo para ser eficaz precisa levar em conta outras variáveis inerentes à política internacional, em especial o poder.

Problemas desse tipo foram notavelmente visíveis no estabelecimento da ONU. Com efeito, nas negociações para a criação da instituição quando a Segunda Guerra Mundial chegava ao fim, as grandes potências não se sentiam à vontade com a perspectiva de que as questões internacionais pudessem ser decididas a partir do princípio “one country, one vote”, especialmente a URSS que, à época, claramente, tinha muito menos países membros que a apoiavam, mas as demais grandes potências também tinham divergências que as dividiam, como era o caso dos EUA e da Grã-Bretanha, que divergiam quanto ao destino do sistema colonial britânico que ainda se mantinha vivo sob muitos aspectos[5]. O fato é que a introdução do direito de veto foi importante na solução dos impasses no processo de criação da ONU. O entendimento foi o de que uma ONU sem qualquer uma das grandes potências seria uma instituição sem a eficácia, tal como havia ocorrido com a Liga das Nações, que excluíra a Alemanha e da qual os EUA se abstivera de participar, muito embora o presidente Woodrow Wilson tenha sido o proponente de sua criação na Conferência de Versailles.

Mais recentemente, pode-se apontar o caso da UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), que foi criada em 1964 para tratar dos problemas de comércio e desenvolvimento. Diferentemente do GATT, em que as questões de comércio eram tratadas de forma negociada em bases praticamente bilaterais ou pelo consenso, na UNCTAD as questões de comércio internacional seriam tratadas politicamente sob o princípio do “one country, one vote”. O fato é que a UNCTAD viveu seu apogeu na segunda metade da década de 1970, quando as nações exportadoras de petróleo (OPEP) desfrutaram, por um breve momento, de um papel bastante decisivo no comércio internacional. Naquele breve momento, a maioria dos países identificados como “Terceiro Mundo” passou a atuar ativamente na UNCTAD, enquanto potências como a Grã-Bretanha e os EUA mantinham-se à margem uma vez que, de qualquer modo, como órgão da ONU, qualquer resolução proposta no âmbito da UNCTAD só teria eficácia se aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU, onde as cinco grandes potências tinham o direito de veto.

Outro entendimento importante a respeito de conceitos, é que na política internacional o oposto de cooperação não é conflito, mas sim o unilateralismo. Ou seja, cooperação internacional não significa, necessariamente, ações coletivas consensuadas em todos os casos e circunstâncias. Na política internacional, cooperação significa que as potências – grandes ou pequenas – que participam de um arranjo internacional seguirão as regras do regime vigente e não deixarão os arranjos de que fazem parte, ainda que não concordem com o curso dos acontecimentos e das eventuais decisões. O unilateralismo se configura quando um país passa a tomar decisões e a agir em matéria de política internacional sem consultar outros países e sem levar em conta princípios e normas vigentes nos regimes internacionais. O mundo da política não é feito de verdades indiscutíveis de validade universal. Alianças, prioridades, escolhas e políticas de ação não têm o mesmo significado para todos os países, e os fatos e interesses correntes na política internacional afetam cada país de modo diferente tanto em termos de implicações quanto em termos de intensidade dessas implicações. O consenso é sempre desejável, mas na maioria das questões raramente se revela possível e, assim, o que cabe à diplomacia evitar é a configuração de situações agressivamente inaceitáveis para as potências – grandes ou pequenas.

Organizações internacionais são entidades vivas e se transformam acompanhando a ordem internacional

As organizações internacionais que formam o ambiente por excelência dentro do qual a prática do multilateralismo se desenvolve são entidades vivas, isto é, são criadas dentro de circunstâncias econômicas e políticas definidas e, ao longo do tempo, passam por transformações acompanhando as mudanças na ordem internacional. Tomando como exemplo as organizações na área da economia, esse fato é visível inclusive em cifras. O Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial foram criadas em Bretton Woods, em 1944, como iniciativas para orientar a reconstrução da economia internacional quando a Segunda Guerra Mundial chegasse ao fim. Cabe lembrar que, na altura em que a Conferência de Bretton Woods se realizava (julho/1944), a guerra atingia seu auge em termos de ações militares. O desembarque da Normandia havia ocorrido no início de junho, mas o avanço das tropas aliadas na Europa se fazia por meio de combates difíceis que implicavam pesadas perdas de ambas as partes. Apenas do lado americano, à época da Conferência de Bretton Woods, havia mais de 6 milhões de tropas combatentes, a maior parte nos teatros de operações militares na Europa e no Pacífico. O International Bank for Reconstruction and Development (Banco Mundial) foi estabelecido em 1944 com o objetivo de financiar a reconstrução econômica, sobretudo da Europa, onde a destruição por meio de combates e bombardeios em cidades importantes ainda era crescente em meados de 1944. A guerra chegou ao fim em 1945 e a reconstrução na Europa avançara rapidamente não com recursos do Banco Mundial, mas do Plano Marshall[6]. Em 1958, no âmbito do Banco Mundial, foi criada a Corporação Financeira Internacional (IFC, sigla em inglês) com o objetivo de canalizar investimentos internacionais privados para os mercados de capitais que retomavam seu vigor. Após a reconstrução do pós-guerra, o tema do desenvolvimento foi estendido para as nações pobres, sendo criada em 1960 a Associação Internacional para o Desenvolvimento (IDA, sigla em inglês) para avaliar e autorizar a concessão de créditos para propostas de projetos de desenvolvimento de governos de países pobres. Em 1966, pela Convenção para a Resolução de Controvérsias sobre Investimentos entre Países e entre Residentes em Países Estrangeiros foi estabelecido o Centro para Resolução de Controvérsias sobre Investimentos com o objetivo de proporcionar segurança jurídica e estimular os fluxos de investimentos internacionais. Em 1988, ainda no âmbito do Banco Mundial, foi criada a Agência Multilateral de Garantia de Investimentos (MIGA, na sigla em inglês) com o objetivo de prover seguro e garantias financeiras contra riscos decorrentes de turbulências no ambiente político em países em desenvolvimento.

Essas cinco instituições passaram a formar o que hoje é chamado de Grupo Banco Mundial e a criação progressiva de cada uma dessas instâncias refletiu as mudanças vividas pela ordem econômica internacional desde 1944. Nessa evolução do Banco Mundial é possível observar também a substancial mudança de sua “carteira de projetos”. Nos primeiros anos da sua criação, a motivação mais imediata do Banco Mundial era a reconstrução econômica do pós-guerra, em seguida, quando a reconstrução se completava, surgiu a preocupação em orientar o fluxo internacional de capitais públicos e privados para a promoção do desenvolvimento das nações pobres. Nesse processo, as rivalidades da guerra fria desempenharam papel importante nas decisões estratégicas do governo americano. Mais tarde, no período geralmente referido como era da “globalização”, os projetos financiados pelo Banco Mundial passaram a se concentrar em temas como boa governança, inclusão social e igualdade de gêneros, inclusive porque os fundos disponíveis tornaram-se incompatíveis com os volumes que seriam necessários para continuar financiando investimentos em grandes projetos de desenvolvimento de infraestrutura econômica pelo mundo. Na realidade, um traço marcante da “globalização” foi a perda de relevância dos recursos públicos diante da enorme expansão da poupança privada[7].

Quanto ao Fundo Monetário Internacional (FMI), também criado em 1944 como um fundo de estabilização e baseado na hipótese básica de que o dólar americano seria capaz de servir como “âncora” para o sistema monetário internacional, também sofreu profundas modificações à medida que a economia mundial se recuperava dos impactos e das restrições impostas pela Segunda Guerra Mundial. A retomada do dinamismo e do crescimento ocorreu com muito mais vigor do que até mesmo os estrategistas mais otimistas podiam prever. Além do dólar como a única moeda conversível ao ouro, o FMI fora criado tendo como principais mecanismos para administrar a liquidez de moeda internacional o compromisso das nações de observar a regra geral de utilizar as taxas cambiais como recurso de ajuste do balanço de pagamentos somente diante de desequilíbrios considerados “estruturais” (variações cambiais bem acima de 1%) e com a anuência dos governadores do FMI. Outro instrumento de ação do FMI, que definia o próprio nome da instituição, era seu papel como fundo de estabilização, isto é, os recursos financeiros do FMI deveriam ser suficientes para prover empréstimo para países em dificuldade de balanço de pagamentos.

A história da instituição é conhecida. Com o passar do tempo, essas características do FMI foram sendo abandonadas. A conversibilidade em ouro do dólar americano foi abandonada em 1971, mas tratava-se de um processo inevitável que, na realidade, refletia o sucesso das políticas de recuperação e desenvolvimento lideradas pelos EUA. Com efeito, ao longo da década de 1950, as reservas em ouro da economia americana já eram declinantes e, ao final dessa década, ultrapassou a marca simbólica de 50% das reservas mundiais de ouro. No início da década de 1960 o economista Robert Triffin identificou o que ficou conhecido como o “Dilema de Triffin” que consistia no fato de que a economia americana, em virtude de seu papel de provedor de recursos para os programas de desenvolvimento da economia mundial, inevitavelmente incorria em déficits continuados no balanço de pagamentos, o que significava perder reservas de ouro e, assim, a interrupção desse processo significaria reduzir a disponibilidade de dólares para os programas de desenvolvimento[8]. O fato é que, em agosto de 1971, o governo americano oficialmente suspendeu a conversibilidade do dólar em ouro, diante da clara incapacidade de a economia americana acompanhar a expansão da liquidez internacional que, na essência, significava que a expansão da economia mundial ocorria a taxas maiores do que as taxas de crescimento da economia americana, o que, aliás, era um pressuposto das políticas de desenvolvimento.

No que se refere à disposição de o FMI funcionar como fundo de estabilização para as economias com problemas no balanço de pagamentos, também ocorreu o processo de crescente incapacidade de o FMI desempenhar esse papel. Já na década de 1960 os déficits, sobretudo das economias em desenvolvimento, eram crescentes e o FMI havia passado a publicar periodicamente um boletim intitulado World Debt Tables, que trazia a evolução do endividamento internacional que se acumulava, ultrapassando de muito a capacidade financeira do FMI de prover recursos para todas essas nações endividadas. Com o desencadeamento da crise do petróleo em fins de 1973, houve uma verdadeira explosão de liquidez e do endividamento internacional. O resultado foi que as nações endividadas ao invés de procurar o FMI – como era previsto nos acordos de Bretton Woods – passaram a procurar os mercados privados de crédito que, de fato, possuíam recursos financeiros em proporção muito maior do que os disponíveis no FMI[9].

O resultado, obviamente, foi o abandono pelo FMI de seu papel de provedor de recursos financeiros para economias endividadas como estabeleciam os acordos de Bretton Woods, que definia o FMI como um fundo de estabilização. Nesse processo, o FMI passou a ser demandado como avalista de empréstimos nos mercados privados feitos por governos endividados. Ao assumir essa condição de avalista, o FMI passou a atuar como instância de monitoramento do endividamento internacional e também como uma espécie de “corregedor” das políticas de ajustamento praticadas pelos governos endividados. Em outras palavras, nos fins da década de 1970, o perfil de atuação do Fundo Monetário Internacional havia mudado de forma bastante substancial em relação aos acordos originais de 1944.

Outras organizações internacionais, notadamente a ONU, também sofreram mudanças substanciais ao longo do tempo. Quando foi criada em 1945, a ONU contava com apenas 51 países-membros, hoje os países-membros da ONU somam um total de 193. Apenas essas cifras já indicam que a entidade passou por grandes mudanças, mas há muitas outras mudanças importantes. Instâncias da ONU como a CEPAL, a UNCTAD e a UNIDO, viveram momentos de grande relevância na política internacional, mas enquanto o interesse por essas instâncias declinava, outras instâncias associadas a novos temas como aquelas voltadas para temas como o meio ambiente, o clima e a saúde pública ganharam relevância. Na trajetória da ONU, vale observar que há pouco mais de 10 anos houve uma tentativa fracassada para alterar a constituição do Conselho de Segurança. Houve debates e muita movimentação diplomática, mas, ao final, embora tenham sido organizados debates e estratégias que envolviam campanhas estruturadas, inclusive de grandes potências, na demanda por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, a proposta de alteração da composição e das funções do Conselho de Segurança não prosperou, sendo abandonada. A respeito dessa tentativa frustrada e das dificuldades de se mudar a composição política de uma organização internacional, parece instrutivo o fato de que, ao final da Segunda Guerra Mundial, ao invés de retomar a Liga das Nações, que já estava formalmente estruturada, decidiu-se criar a Organização das Nações Unidas cujos objetivos eram praticamente os mesmos da Liga das Nações. Percebeu-se que retomar o funcionamento da Liga das Nações significaria, entre outras coisas, introduzir mudanças significativas na composição do Conselho da Liga, o que inevitavelmente resultaria em retomar as intermináveis controvérsias e disputas políticas como aquelas ocorridas em 1926, quando a Liga das Nações decidiu incorporar a Alemanha, inclusive como membro permanente do Conselho da Liga – uma posição que a diplomacia brasileira falhara em conseguir, e que custou a retirada do Brasil como país-membro da Liga das Nações[10].

Outro desenvolvimento importante nas práticas do multilateralismo, especialmente após a década de 1970, foi a crescente relevância das organizações regionais, em especial da Comunidade Econômica Europeia, que no início da década de 1990 foi transformada em União Europeia, com várias instâncias decisórias supranacionais e até mesmo com uma moeda comum que passou a ser adotada pela grande maioria dos países-membros. Fora da Europa, várias iniciativas de integração regional também foram postas em prática tais como o NAFTA, o MERCOSUL, o Pacto Andino e até mesmo esse estranho arranjo que é o BRICS.

Outro desenvolvimento importante no período foi a emergência de arranjos informais (G-7, G-20, Fórum Econômico Mundial de Davos etc.) como instâncias para informar, debater e, eventualmente, ajudar na construção de consensos internacionais. Em outras palavras, o multilateralismo assumiu uma feição completamente diferente da tradicional concepção de organizações formalmente estruturadas. Na realidade, a esse respeito, vale lembrar a experiência do GATT, que apareceu como solução para orientar o regime de comércio internacional diante das dificuldades de se estabelecer uma Organização Internacional para o Comércio com estatutos, instâncias e normas bem definidas como uma organização internacional em sua plenitude jurídica. O GATT acabou permanecendo por décadas (1947-1994) como uma “proto-organização internacional” baseada em um acordo executivo e não em um tratado internacional. Isto é, enquanto uma organização internacional exige como base um estatuto na forma de um tratado internacional que demanda as formalidades de ratificação, o acordo executivo exige apenas a assinatura dos governantes, pois, em princípio, não significa assumir formalmente direitos e obrigações de Estado dos países participantes. Nesse quadro, é possível compreender o modus operandi do GATT baseado nas rodadas de negociação comercial, e não a tomada de medidas e providências comerciais de acordo com regras e condições estabelecidas em estatuto (Carta da ONU, Carta da Liga das Nações etc.) De certo modo, é o que vem sendo praticado pelas conferências sobre o clima, nas quais são debatidas propostas sobre possíveis medidas e objetivos que se transformam em compromissos de governos e não em obrigações de Estado.

O multilateralismo em um mundo mais integrado

Ao se observar a cena internacional chama a atenção o crescente nível de integração política, econômica e social em escala mundial. Salvo algumas exceções como Coreia do Norte e Cuba, que, por razões muito particulares, ainda mantêm políticas de isolamento em suas práticas e instituições. Hoje é impossível pensar em nações isoladas. O mundo se transformou em uma verdadeira coletividade que, embora não seja uma coletividade homogênea, não há qualquer dúvida de que existe um verdadeiro sistema internacional. O avanço das tecnologias, notadamente nas comunicações e nos transportes, tornou as relações políticas, econômicas e sociais profundamente integradas. Por exemplo, os dados mostram que o movimento de turistas no mundo em pouco tempo evoluiu de forma exponencial no século XXI. Em 2005 foram registrados 809 milhões de turistas internacionais e, em 2018, esse número havia se elevado para 1.407 milhões de turistas que viajaram através de fronteiras. Embora a metade desses turistas tenha tido por destino a Europa, a grande maioria dos países passou a receber anualmente milhares de turistas oriundos de todo o mundo. Quando se olha a evolução das transações comerciais e qualquer outra atividade nos negócios, na ciência e na cultura, as cifras revelam a mesma crescente integração internacional. Ou seja, a integração internacional ultrapassa de muito, e é muito mais dinâmica do que a integração por meio de organizações internacionais formalmente estabelecidas.

Usava-se a expressão “integração regional” para designar a formação de sistemas regionais como a Comunidade Econômica Europeia ou o MERCOSUL, por meio dos quais se estabeleciam facilidades comerciais e políticas entre os países que integravam esses arranjos. Surgiram até mesmo “teorias da integração” para explicar a existência e as vantagens decorrentes da formação de sistemas regionais de integração[11]. No entanto, de forma crescente, a integração formal, isto é, a criação de organizações internacionais de integração juridicamente estruturadas foi dando lugar ao entendimento de que há hoje um avanço de uma integração real, cada vez menos dependente de tratados internacionais em seu sentido pleno. Vale observar que esse desenvolvimento ocorreu, em larga medida, em decorrência das possibilidades que foram abertas por essas organizações formais tanto regionais quanto globais. Isto é, nações como o Brasil e a Argentina são hoje muito mais integradas do que o eram há três ou quatro décadas, independentemente de mudanças que possam ser introduzidas no MERCOSUL, ou até mesmo, eventualmente, de sua extinção. Outro exemplo é o caso do Reino Unido que, apesar de ter deixado de integrar a União Europeia, não significa que, sob muitos aspectos, deixará de continuar sendo uma economia, uma cultura e um país, profundamente integrado à Europa. Algumas facilidades sobretudo comerciais, obviamente, deixarão de existir mas, em aspectos essenciais da cultura, dos padrões sociais, e até mesmo das práticas econômicas, o Reino Unido continuará tendo os países da Europa como seus principais parceiros. Na realidade, nas questões mais importantes, desde a Idade Média o Reino Unido sempre fez parte do mundo político, econômico e social europeu.

Esses casos retratam mudanças importantes nas relações internacionais, inclusive na prática diplomática. Nesse sentido, parece oportuno lembrar o processo de abertura do comércio do Japão no século XIX. Ao longo do período de cerca de 250 anos, iniciado com a instauração do xogunato de Ieyasu Tokugawa, no início do século XVII, o Japão permaneceu fechado às relações políticas e comerciais com o mundo. Foi somente a partir do Tratado Kanagawa assinado em 31 de março de 1854 entre o Comodoro Mathew G. Perry e os representantes do Shogun que as relações entre o Japão e os EUA puderam ter início. Em 1858 foi assinado um Tratado de Amizade e Comércio entre o Japão e os EUA, ao qual se seguiu a assinatura de tratados semelhantes com outras potências do Ocidente. Foi somente depois dessas ações diplomáticas que o comércio e a cooperação em outros domínios entre o Japão e as potências ocidentais puderam florescer garantidas pelo estabelecimento de escritórios e de representações comerciais permanentes nesses países sob a garantia de acordos e de mecanismos de proteção mútua de direitos a estrangeiros residentes.

Esse caso serve para ilustrar a mudança bastante radical ocorrida na prática diplomática e no seu papel nas relações entre nações desde o século XIX. Com efeito, mesmo sem a dramaticidade do caso das relações políticas e comerciais entre os EUA e o Japão, até as primeiras décadas do pós-Segunda Guerra Mundial a assinatura de acordos diplomáticos eram essenciais para dar início à cooperação comercial e política entre as nações. Ou seja, antes da globalização, em larga medida, as relações comerciais somente se estabeleciam depois de um processo diplomático formal, frequentemente difícil e complicado. Na realidade, no caso relatado da abertura comercial do Japão, houve até mesmo a ameaça do uso do poder de fogo da frota comandada pelo Comodoro Perry. Nos dias de hoje, por diversos meios, iniciativas no comércio e em ações cooperativas internacionais frequentemente são tomadas pelos próprios atores, isto é, por empresas e mesmo por organizações civis porque, de algum modo, os acordos necessários simplesmente já existem na forma de algum arranjo multilateral que contempla essa possibilidade, ou porque nenhum governo irá contestar ou criar dificuldade a qualquer iniciativa que pode beneficiar seus nacionais. Uma clara manifestação dessa nova realidade tem sido o crescente ativismo do que tem sido chamado de “paradiplomacia”, na qual instâncias subnacionais tomam iniciativas de fazer avançar os interesses internacionais de municípios ou de outras categorias que hoje compõem as estruturas políticas das nações. Em outras palavras, se em meados do século XIX as relações comerciais entre os EUA e o Japão só poderiam se iniciar após uma ação diplomática do governo americano apoiado até pela Marinha de guerra, hoje, em um mundo já bastante integrado, a diplomacia pode ser acionada para regularizar ou aprimorar alguma iniciativa em curso, mas raramente será chamada para iniciar um processo de aproximação internacional, excetuando casos excepcionais como os da Coreia do Norte ou de Cuba.

É nessa perspectiva que eventuais movimentos diplomáticos na esfera multilateral devem ser vistas. Na realidade, o novo multilateralismo valoriza cada vez mais arranjos informais como o G-8 e o G-20, ou ainda os pactos firmados em conferências internacionais como têm sido o caso das conferências sobre o clima. Enquanto, por outro lado, instâncias como a Organização Mundial do Comércio (OMC) atuam em áreas já estabelecidas e organizadas nas quais o trabalho diplomático pode ser requerido apenas para resolver questões pontuais que, eventualmente, podem incluir o acionamento do mecanismo de solução de controvérsias. Além disso, questões envolvendo petróleo ou produtos industriais são tratadas por regimes próprios.

Em relação às organizações internacionais formais, vale refletir também sobre sua eficácia, que continua dependendo muito mais das condições e dos recursos do próprio país participante do que de ativismo diplomático de qualquer tipo. Na realidade, organizações como a OCDE, por exemplo, funcionam principalmente como instâncias que oferecem formas de reconhecimento ou certificação internacional de “qualidade” tais como o cumprimento em bases regulares de cláusulas ambientais, o respeito aos direitos humanos e à liberdade de imprensa e, na economia, depende do sistema fiscal e dos indicadores de segurança jurídica, que devem ser compatíveis com os indicadores dos demais países integrantes do bloco. Ou seja, em termos práticos, o país ao tornar-se membro da OCDE pode ser incluído nos estudos e nos relatórios produzidos pela instituição e para quaisquer iniciativas na esfera internacional, inclusive para receber investimentos de outros países, a posição que o país ocupa nesses estudos e relatórios serve como uma espécie de “certificação de qualidade”. De forma mais específica, pode-se mencionar a importância dos efeitos sobre as agências internacionais de classificação de risco financeiro que, na realidade, são organizações privadas, mas cujas avaliações refletem o conjunto da imagem que as nações e as grandes companhias desfrutam na esfera pública. Nesse caso, relatórios e estudos oficiais produzidos por organizações como a OCDE desempenham importante papel na construção dos conceitos de confiabilidade e segurança atribuídos a empresas e à economia das nações.

Considerações finais: o Brasil e o multilateralismo

Finalmente, cabe uma breve consideração sobre a participação de governos em instâncias multilaterais. É possível classificar como participação bastante ativa quando governos propõem a criação de uma nova organização internacional ou toma medidas efetivas para o estabelecimento e para o funcionamento regular de uma organização internacional. A motivação para esse tipo de atitude deve ser o interesse desse governo no sentido de criar um novo regime internacional ou modificar de alguma forma um regime vigente no sentido de melhor atender seus interesses e suas visões sobre princípios entendidos como adequados para orientar o comportamento dos atores na cena regional ou global. Essa forma de atuar em relação a instâncias multilaterais é característica de grandes potências cujos interesses tendem a ser amplos e se estendem para muitas esferas que podem ser influenciados por políticas praticadas por outras nações. Entre os casos mais notáveis dessa forma de participação em instâncias multilaterais, sem dúvida, destaca-se o dos Estados Unidos na criação e na administração das organizações internacionais criadas na esteira da Segunda Guerra Mundial, notadamente a ONU e as organizações que formaram os regimes internacionais na esfera econômica (FMI, Banco Mundial e GATT). Nesses casos o governo dos EUA exerceu não apenas uma liderança política decisiva na criação dessas organizações, mas foi a principal fonte de recursos para operacionalizar seu funcionamento. Entre as muitas evidências dessa liderança bastante ativa está o fato de que quase todas essas instituições estão sediadas nos EUA que, até hoje, contribui com parcela significativa dos recursos necessários ao seu funcionamento regular.

Uma segunda categoria de atitude de governos em relação a instâncias multilaterais seria a dos governos que atuam com regularidade dentro dos regimes internacionais, dos quais essas organizações constituem parte importante. Pode-se considerar que essa modalidade de participação em instâncias multilaterais caracteriza-se por: 1) levar as questões de interesse nacional para serem consideradas nessas instâncias, aceitando e cumprindo suas decisões e recomendações; 2) participando, sempre que solicitado, de comissões, de grupos de trabalho e de iniciativas de ação das organizações internacionais; 3) pagando com regularidade as taxas e contribuições financeiras previstas nos estatutos dessas organizações. Esse padrão, na realidade, reflete o comportamento da grande maioria das nações, para quem os regimes internacionais constituem apenas uma realidade com a qual se deve conviver e, objetivamente, tendo por entendimento o fato de que a maior parte das oportunidades e de problemas deverá emergir dentro desses regimes.

Essa classificação – obviamente bastante simplificada – foi extraída da teoria dos regimes internacionais, que discute a formação, o declínio da eficácia e as mudanças dos regimes internacionais[12]. Como já foi apontado, uma forma de manifestação do multilateralismo são os arranjos regionais e também os arranjos voltados para objetivos específicos (temas como meio ambiente, proteção de direitos humanos, promoção de formas de desenvolvimento social, desenvolvimento científico, segurança etc.) e, nesse quadro de possibilidades, os governos podem ser muito pouco atuantes em alguns arranjos ou regimes de que participam e, ao mesmo tempo, podem ser muito ativos em um ou outro regime específico do qual participam e que podem ser mais relevantes para seus interesses.

Nesse quadro, pode-se constatar que, para um país como o Brasil, na condição de potência média, a participação em instâncias multilaterais dificilmente poderia ir além de um participante regular dos regimes internacionais e das instituições e práticas que compõem esses regimes. Isto, no entanto, não impediria que o governo brasileiro em certas circunstâncias e em certas instâncias tivesse uma postura mais afirmativa como ocorreu, por exemplo, na Segunda Conferência de Paz da Haia. Na realidade, em 1907 o multilateralismo era ainda uma experiência muito nova nas relações internacionais e também não havia assumido as características atuais. À época, as visões predominantes eram ainda fortemente centradas em princípios jurídicos e na noção de que a soberania das nações era um valor quase absoluto, como era típico da visão de mundo dos homens de Estado da era vitoriana. Esse fato explica a agenda de debates da Conferência que foi centrada em temas como os recursos jurídicos para a solução pacífica de conflitos armados, a imposição de limites ao emprego de certos armamentos nas guerras, os direitos e as prerrogativas da neutralidade numa guerra, ou ainda os direitos relativos a presos de guerra. Nesse quadro, a cultura e o saber jurídico eram essenciais para a diplomacia, fato que ajuda a compreender o destaque recebido por Rui Barbosa na defesa do princípio da igualdade entre as nações, contestando o entendimento de que a força poderia originar direitos. Nesse sentido, suas intervenções foram de notável importância para a criação e para a conformação do que viria a ser a Corte Permanente de Arbitragem e a Corte Internacional de Justiça que haviam sido temas de debate desde a Primeira Conferência de Paz da Haia (1899).

O período de pouco mais de uma década que separa a Segunda Conferência da Haia (1907) e o fim da Primeira Guerra Mundial (1919) trouxe para as relações internacionais e para a prática diplomática mudanças notáveis. As concepções da era vitoriana baseadas no valor do Direito e na centralidade do conceito de soberania foram ultrapassadas por uma realidade muito mais complexa onde os interesses nacionais passaram a não ser coincidentes com as fronteiras, extrapolando e interagindo com a política e com a economia de outros países. A Liga das Nações emergiu nesse quadro e constituiu a primeira experiência real desse novo multilateralismo, assentado muito mais na política internacional do que no Direito Internacional. A decisão de criar uma nova organização internacional (ONU) ao invés de reativar a Liga das Nações, em larga medida, retrata o fato de que a experiência da Liga das Nações não fora capaz de realizar com sucesso essa transição.

Dentro desse novo multilateralismo, o peso e as características da nação como ator no quadro das relações internacionais tornou-se parte integrante da prática diplomática. O Direito Internacional, embora tenha continuado a ser uma base importante para as ações e para as decisões das instâncias multilaterais, passou a conviver com outros elementos que emergiram como fatores decisivos. No novo multilateralismo, as dimensões econômicas e políticas ganharam espaço como condicionantes que não podem ser deixadas de lado. Além disso, como já foi destacado, o mundo tornou-se muito mais integrado inclusive em termos de interesses que, na maioria das vezes, transcendem as fronteiras formalmente demarcadas. Com efeito, na esfera do Direito discute-se e decide-se de acordo com normas, tratados e princípios legais reconhecidos. Na política internacional a prática diplomática tradicional baseada no Direito Internacional incorporou o conceito de “negociação”, que é sempre política e que deve tentar conciliar interesses legítimos, mas frequentemente contraditórios.

Esse é o lado do multilateralismo que torna fundamentais elementos como a liderança, o poder e, principalmente, a disponibilidade de recursos. É o que explica a construção da ordem internacional depois da Segunda Guerra Mundial cujos regimes, em sua maioria, foram construídos sob a liderança dos EUA que era a única nação capaz de prover recursos em larga escala. No sentido oposto, também ajuda a explicar porque arranjos como o MERCOSUL e a OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica) jamais desempenharam papel de destaque como instrumentos de construção da ordem na região e jamais tiveram qualquer chance de ganhar relevância internacional, uma vez que o país líder desses arranjos – o Brasil – jamais demonstrou disposição suficiente para liderar iniciativas e fornecer os recursos necessários para esses arranjos[13]. Na realidade, desde a redemocratização as relações exteriores como um todo jamais foram reconhecidas como prioridade dos governos brasileiros. A tradição de uma nação voltada para si mesma foi mantida pelos sucessivos governos, independentemente do partido político ao qual se filiasse o governante. Com a globalização, diferentemente do que ocorreu com as principais economias do mundo, no Brasil a ideia de um mundo cada vez mais integrado continuou sendo apenas uma figura de retórica política. Para o resto do mundo, os interesses nacionais tornaram-se fortemente integradas com os interesses de outras nações. Com efeito, no Brasil, em matéria de relações exteriores os sucessivos governos preferiram manter o velho padrão de mercado e de produto definidos nacionalmente. Assim, em instâncias multilaterais, jamais a diplomacia foi além da retórica política.

Uma das razões que podem ajudar a explicar esse padrão de desinteresse pela prática de uma diplomacia ativa pode ser vista no fato de que, ao longo dos anos que se seguiram ao fim dos governos militares, os recursos orçamentários foram sendo, gradativamente, orientados em sua quase totalidade ao pagamento dos gastos com despesas de autoridades e de uma burocracia pública cada vez mais pesada e menos eficiente, produzindo uma versão original e modernizada do velho patrimonialismo de outros tempos[14]. Esse conceito interpreta a condição de um Estado em que os limites entre os recursos públicos e privados são indistintos, ou seja, os recursos do Estado se confundem com o patrimônio dos ocupantes dos cargos de poder. Nos últimos anos, cerca de 95% de toda a arrecadação pública tem sido gasta com as folhas de pagamento do funcionalismo público, com o pagamento de inativos, pensionistas e aposentados e até mesmo para custear partidos políticos e suas campanhas eleitorais. Com os 5% restantes, os governos precisam custear as despesas com água e energia elétrica, com a limpeza, a manutenção e a segurança dos edifícios e das instalações públicas. O resultado dessa realidade contábil é que, para produzir e executar políticas públicas (inclusive relações exteriores) os recursos só podem vir da capacidade de endividamento dos governos de plantão.

Em suma, a viabilidade de organizações como o MERCOSUL e a OTCA dependiam – por razões econômicas, demográficas e políticas – diretamente da liderança e, consequentemente, dos recursos que os governos brasileiros poderiam aportar a esses arranjos. Uma possibilidade que jamais teve qualquer chance efetiva em um ambiente político de um Estado francamente dominado pelo corporativismo. Na realidade, não se afigura exagero o entendimento de que, por natureza, o Estado patrimonialista é refratário a qualquer “política de Estado”, pois toda política de Estado tem a incômoda característica de buscar beneficiar tão somente o “bem comum” e, além disso, geralmente o horizonte de tempo é o longo prazo e não as próximas eleições. A política externa, por sua vez é, por natureza, um domínio da política de Estado, não sendo um simples acaso ou escolha que, nos Estados Unidos, desde sua formação como nação independente, o responsável pelas relações exteriores é chamado de “Secretário de Estado”.

 

[1] Ensaio escrito como texto de suporte para o minicurso sobre “O Retorno do Multilateralismo” no VI Encontro de Pesquisa em Relações Internacionais, organizado pelo PET-RI da UNESP-FFC (21/Jan/2022).

[2] Professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.

[3] O conceito de regimes internacionais ganhou forma definida no início da década de 1980, sendo entendida como um conjunto de princípios, normas, regras e processos decisórios vigentes e aplicados de forma cooperativa pelos Estados Nacionais dentro de um campo específico das relações internacionais (S. D. KRASNER, International Regimes, Cornell University Press, 1982).

[4] A teoria dos ciclos de Nicolai Kondratiev (1926) baseou-se em estudos estatísticos das economias americana, britânica e francesa que contrariavam a interpretação oficial da URSS do colapso inevitável do capitalismo. Mais tarde, Schumpeter recuperou a obra de Kondratiev e acrescentou os argumentos do papel do empreendedor e da tecnologia.

[5] O destino da Segunda Guerra Mundial foi selado com a realização dos encontros do Big Three (EUA, URSS e Grã-Bretanha) em Teerã (dezembro/1943), Yalta (fevereiro/1945) e em Potsdam (julho/agosto/1945). Roosevelt entendia que a paz deveria ser construída a partir dos “Quatro Gendarmes” (EUA, URSS, Grã-Bretanha e China). Cada “gendarme” seria responsável por sua área de influência geopolítica. Em 1945, o sistema colonial britânico ainda incluía países como a Índia.

[6] Estimulado pela guerra fria, o Plano Marshall foi lançado em 1947 e, em cinco anos, apenas em recursos públicos, forneceu à Europa mais de US$ 25 bilhões.

[7] Um dos maiores fundos de investimento privado é o grupo Blackrock Inc. Fundado em 2008, os clientes são governos, empresas, fundações, universidades e também indivíduos que poupam para a aposentadoria futura e para educação dos filhos no futuro. Apenas a PNC Financial Services, que tem 23,6 % da Blackrock, administra cerca de US$ 7,4 trilhões em ativos financeiros.

[8] TRIFFIN, R. The Evolution of the International Monetary System: Historical Reappraisal and Future Perspectives. Essays in International Finance n.12, 1964. Princeton University Press, 1964.

[9] Vale lembrar que os recursos do FMI eram provenientes das cotas a serem pagas pelos países-membros, isto é, justamente pelos países endividados, que necessitavam de recursos.

[10] Esse episódio é bem retratado no livro O Brasil e a Liga das Nações. 1919-1926, de autoria de EUGÊNIO VARGAS GARCIA (Imprenta/UFRGS/FUNAG, 2000).

[11] BELA BALASSA (1928-91), nascido na Hungria, notabilizou-se como professor da Johns Hopkins University e seu livro The Theory of Economic Integration (Routledge, 1962) foi uma obra bastante influente em seu tempo.

[12] Muitos estudiosos das relações internacionais ofereceram reflexões sobre a dinâmica dos regimes internacionais. Na obra seminal sobre regimes internacionais, organizada por S. D. KRASNER International Regimes (Cornell University Press, 1983), ver especialmente os capítulos escritos por ORAN YOUNG, ARTHUR STEIN e ROBERT KEOHANE.

[13] O contraste é enorme entre as dimensões do Brasil em relação aos demais países-membros do MERCOSUL. Em termos de população e do PIB, a disparidade também é muito grande. Em relação à OTCA, também o Brasil representa bem mais do que 50% da região e, além disso, também bem mais da metade da área contemplada pelo Tratado encontra-se em território brasileiro.

[14] O conceito foi difundido por Max Weber e vários estudiosos desenvolveram interpretações do Estado patrimonialista no Brasil (Raymundo Faoro, Victor Nunes Leal, Ricardo Vélez Rodrigues, entre outros).

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Por Eiiti Sato

Nas relações exteriores, o fim dos governos militares marcou também o fim do projeto “Brasil Potência”. Os equívocos e, por fim, o fracasso na administração da crise do petróleo levaram o país a um pesado endividamento que se revelaria um fardo cujo peso seria decisivo para impedir qualquer possibilidade de dar continuidade a um projeto como o “Brasil Potência”, que demandaria taxas de crescimento econômico consistentes e mais elevadas do que a média mundial, além de investimentos pesados em infraestrutura econômica e estratégica para servir de base para um longo período de crescimento consistente. Em outras palavras, a manutenção de um tal projeto exigiria capacidade para atuar em consonância com as lideranças inovadoras em escala mundial, além de condições econômicas para participar com desenvoltura dos mercados comerciais e financeiros, que se ampliavam e se tornavam cada vez mais competitivos, o que seria impossível com uma economia debilitada como era o caso do Brasil do início da década de 1980.

O fim dos governos militares também coincidiu com mudanças substanciais no cenário internacional, onde a guerra fria perdia seu papel e a crise do petróleo mudava de forma bastante radical as condições econômicas internacionais, inviabilizando a continuidade das políticas que o país vinha praticando inclusive na esfera das relações exteriores. Em consequência, após a década de 1980, os governos não tinham outra opção a não ser buscar novos caminhos para a inserção do Brasil no cenário internacional. O caminho escolhido foi o de passar a olhar mais para a vizinhança e para as economias em desenvolvimento e menos para as grandes potências. Nesse quadro, algumas opções encontradas foram investir na integração regional e no multilateralismo e, de uma forma geral, procurar construir novas alianças, em especial com os países em desenvolvimento. O problema é que nessa busca, os sucessivos governos, preocupados com a retomada da democracia entendida apenas como voto e representação, não conseguiram imprimir o necessário dinamismo e a integração das forças econômicas e políticas da nação. O resultado tem sido o baixo desempenho da economia e a consequente estagnação da posição brasileira no cenário internacional.

Assim, neste breve ensaio, esse processo de mudança será analisado resumidamente para construir algumas especulações sobre as perspectivas do Brasil no futuro próximo, no âmbito das relações internacionais neste primeiro quarto do século XXI já notavelmente marcado por turbulências, transformações e por muitas incertezas.

Uma visão renovada da integração regional

A orientação da política exterior do Brasil no sentido da formação de um sistema regional viveu seu momento de maior interesse na década de 1990. Após a transformação da Alalc em Aladi pelo Tratado de Montevideo em 1980, entre outras disposições, incorporou uma cláusula semelhante à cláusula XXIV do Gatt, permitindo que as diferenças sub-regionais fossem levadas em conta em projetos de integração na América Latina. Tratava-se de uma disposição importante pois, como argumentavam analistas e observadores como Hélio Jaguaribe, uma das grandes dificuldades de um processo de integração na América Latina formando um só bloco, como se pretendia com a Alalc, eram as enormes disparidades econômicas, culturais e sociais, formando um “aglomerado excessivamente heterogêneo e desequilibrado de países”, e fazendo com que uma integração horizontal de toda a região fosse completamente inviável.[2] Nesse sentido, um arranjo sub-regional como o Mercosul, ao reunir apenas quatro países vizinhos no sul do continente apresentava chances bem maiores de constituir um arranjo regional de sucesso.[3] Por meio do Mercosul, Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai podiam fazer avançar um sistema regional sem precisar preocupar-se em acomodar problemas e demandas de nações tão distantes e díspares como Guatemala, Equador ou México. Vale notar também que o fim do ciclo dos governos militares na região fazia com que os governos eleitos se aproximassem mais do mercado e de sua mecânica tornando esses governos mais previsíveis, especialmente no que tange a políticas de estabilização econômica.

Uma característica da época era o entendimento de que o mundo vivia a era dos blocos econômicos. O sucesso da Comunidade Econômica Europeia (CEE), que acabava de evoluir para uma união econômica, completando assim, o ciclo da integração econômica previsto na teoria, exercia grande influência sobre o ambiente político e intelectual especialmente na América Latina. Entre outros fenômenos notáveis da época, o fim da guerra fria trouxe como um dos efeitos mais imediatos a corrida frenética dos países que integravam o bloco soviético no sentido de se tornarem membros da União Europeia. Em outras palavras, em muitos sentidos, essa corrida para a União Europeia confirmava com fatos a hipótese extremamente atraente de que a formação de blocos era não apenas um arranjo comercial que podia promover o desenvolvimento econômico, mas também um arranjo político capaz de promover a paz, como haviam argumentado os “pais fundadores” da integração europeia como Maurice Schumann, Konrad Adenauer, Paul-Henri Spaak, Jean Monnet e todos os líderes que, no pós-guerra imediato, faziam parte das várias associações voltadas para a promoção da unidade da Europa em torno de um grande projeto comum. Nesse quadro, a formação de blocos emergia como alternativa para as nações em toda parte e não apenas para o Brasil, que buscava uma alternativa para sua política exterior.

De fato, o interesse pela integração regional motivava até mesmo uma nação poderosa como os EUA – à época considerada a única superpotência após o colapso da União Soviética. Com efeito, o governo dos EUA concebeu a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), que deveria englobar os países das três Américas.[4] Houve muitas resistências, inclusive dentro dos EUA, e a proposta não prosperou. Em seu lugar, sob a liderança dos EUA foi criado em Janeiro de 1994 o Nafta (North American Free Trade Agreement) como bloco sub-regional reunindo EUA, Canadá e México. Foi nesse ambiente que surgiu o Mercosul (Mercado Comum do Sul), estabelecido pelo Tratado de Assunção assinado em Março de 1991, formando uma união aduaneira que, mais tarde, poderia evoluir para formas mais completas de integração econômica.

Na realidade, no Brasil, o interesse pela integração regional assim como as bases para a formação do Mercosul emergiram ainda na década de 1980, em grande medida como resultado de mudanças no ambiente político e econômico ocorridas na região. Com efeito, do ponto de vista econômico, a década de 1980 ficou conhecida como a década perdida para boa parte dos países da América Latina, que saíram da crise do petróleo endividados e impossibilitados de continuar com as estratégias de desenvolvimento que haviam permitido elevadas taxas de crescimento na década de 1960 e início dos anos 1970.[5] Politicamente, as duas nações de maior peso econômico e político na região – Argentina e Brasil – viviam as frustrações e o declínio dos governos militares, que deixavam o poder melancolicamente. Na Argentina a nação ainda cuidava das feridas físicas e morais da derrota dos governos militares na Guerra das Malvinas enquanto, no Brasil, o sonho de um “Brasil Potência” havia se desfeito num pesado endividamento que deixava exposta a incômoda e impopular dependência externa e cujos efeitos para a sociedade se traduziam em aumento da pobreza e da inflação. Em 1982 foi preciso uma grande operação diplomática e financeira para evitar o default, mas cinco anos depois, o governo brasileiro declarou uma moratória unilateral para evitar o esgotamento das reservas internacionais e forçar uma renegociação geral das dívidas com credores externos.[6]

Tanto na Argentina quanto no Brasil, que passavam a ser comandados por governos civis, foram deixados de lado os sonhos de projeção de poder internacional e passou-se a buscar alternativas para suprir as necessidades de suas economias e de suas sociedades. Em 1985 os presidentes Alfonsín e Sarney assinaram a Declaração de Iguaçu com o propósito de aprofundar as relações econômicas e comerciais entre os dois países. Além disso, esses presidentes fizeram avançar as negociações que culminariam com o acordo de cooperação nuclear entre Argentina e Brasil criando, em 1991, a Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares. Na realidade, ainda sob os governos militares, em 1979, houve a assinatura do Tratado Tripartite (Argentina, Brasil e Paraguai) sobre o aproveitamento dos recursos energéticos das usinas de Corpus e de Itaipu, dando sinais de que a cooperação regional não era apenas viável e nem uma opção ideológica, mas uma necessidade para a região. Desse modo, a assinatura do Tratado de Assunção que estabelecia em seu Artigo 1 que “Os Estados Partes decidem constituir um Mercado Comum, que deverá estar estabelecido a 31 de dezembro de 1994, e que se denominará “Mercado Comum do Sul (Mercosul)” foi um passo natural no processo de integração real que avançava na região.[7]

Em fins da década de 1990, o Mercosul atingiu seu auge no que tange à sua importância para o comércio exterior de seus integrantes. Apesar de tudo, essa evolução jamais representou sucesso semelhante ao da integração europeia. Enquanto na Europa, o comércio intra bloco sempre fora de grande importância para todos os integrantes do sistema europeu, na América Latina, o comércio dentro da região sempre fora secundário para a maioria dos países. Em 1990, as exportações brasileiras para os países do Mercosul representavam apenas 4,2% do total exportado e em 1998 esse percentual havia evoluído para 17,37%, e o mesmo aconteceu com a Argentina que passou de 14,84% em 1990 para 35,64% em 1998. Também cabe notar que, nessas cifras, inclui-se o fato de que a maior parte dos produtos comercializados era de manufaturados enquanto as exportações tanto do Brasil quanto da Argentina para outros países de fora do bloco eram de produtos primários. Por outro lado, na Europa o comércio intra bloco historicamente tem representado, na média, sempre mais de 50% do comércio exterior de seus integrantes.

Desde os fins da década de 1990 a importância do Mercosul passou a declinar diante da evolução do quadro internacional. No caso do Brasil, o destino das exportações brasileiras para o Mercosul caíra pela metade entre 1998 e 2004, enquanto no caso da Argentina esse percentual se reduzira de 35,64% em 1998 para 18,59% em 2004. Essa tendência, em alguma medida, foi resultado também de mudanças que ocorriam no cenário mais geral do comércio internacional, mas foi também influenciado por mudanças na orientação da política externa tanto brasileira quanto argentina, que passaram a enfatizar o lado mais ideológico das relações externas que resultaria na criação em 2008 da Unasul (União de Nações Sul-Americanas) e no interesse crescente por novas alternativas que emergiam no cenário internacional como o G-20 e o BRICS. Com efeito, no caso do Brasil, a política exterior do governo Lula passou a concentrar suas atenções no multilateralismo, que era o lado mais pragmático da política exterior, e no globalismo, que consistia exatamente no lado mais ideológico, ao entender que o país deveria participar como ator ativo de um presumido grande jogo de poder no cenário mundial.

O multilateralismo e o globalismo

Multilateralismo é uma expressão que, em sentido genérico, se refere a iniciativas nas quais vários países trabalham de forma cooperativa sobre um ou mais assuntos. Tecnicamente, significa que vários países procuram construir regimes internacionais de forma institucionalmente organizada. Em larga medida, o termo se confunde com organizações internacionais e, por essa razão, quando se fala em multilateralismo é difícil não associar o termo organizações como a OMC, em assuntos de comércio, ou a ONU para as questões de segurança internacional. Assim, embora o multilateralismo na política internacional seja antigo, foi transformado em experiência prática na política entre as nações apenas há cerca de um século com o surgimento da Liga das Nações. Assim, o Brasil tem uma tradição de atuação em instâncias multilaterais desde a primeira hora uma vez que sua participação na Liga das Nações foi bastante expressiva e, assim, trata-se de um fato dizer que desde o surgimento da prática do multilateralismo, a diplomacia brasileira sempre atuou nessas instâncias.[8] Também na criação e consolidação do Sistema Nações Unidas a participação da diplomacia brasileira foi expressiva, inclusive na composição de órgãos e de comissões criadas logo após a criação da ONU.

Dessa forma, no início do século XXI, parece até natural o reavivamento do interesse da diplomacia brasileira pelo multilateralismo. Nas duas administrações do Governo Lula, esse movimento foi caracterizado pelos historiadores Amado Cervo e Clodoaldo Bueno como multilateralismo de reciprocidade e tinha por pano de fundo a orientação geral do Brasil no sentido de integrar-se a um mundo onde a globalização comercial e financeira se tornara uma realidade após o fim da polarização imposta pela guerra fria que condicionava a ação dos países no cenário internacional.[9] Entre as iniciativas do período estava a expansão da rede de representações diplomáticas especialmente no Caribe e no continente africano. A abertura de representação diplomática em países de pouca expressão internacional era uma forma de obter apoio desses países em foros internacionais, isto é, a pratica do multilateralismo.[10]

Na aposta no multilateralismo durante os dois mandatos do presidente Lula ganhou destaque a demanda por um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Os argumentos eram variados, mas se concentravam em algumas hipóteses ou pressupostos que acabaram por se revelar pouco eficazes em termos de resultados esperados. A primeira era a de que a estrutura do processo decisório da ONU havia sido concebida quando a Segunda Guerra Mundial chegava ao fim. Meio século mais tarde, o cenário havia mudado substancialmente, dizia o argumento. Entre essas mudanças, a supremacia americana, embora ainda permanecesse, o diferencial de poder em relação a outras grandes potências havia se reduzido de maneira substancial.[11] Além do mais Japão, Alemanha e Itália – a aliança contra a qual EUA, Grã-Bretanha e seus aliados lutaram na Segunda Guerra Mundial – haviam se tornado democracias ativas e aliados importantes dos EUA e da Europa na construção e na manutenção da ordem internacional enquanto, por outro lado, a posição internacional da URSS e da China também havia mudado ao longo da segunda metade do século XX. O desparecimento do bloco socialista e o colapso da URSS trouxeram um novo papel para a Rússia na ordem internacional enquanto a China que agora se fazia representar na ONU, não era mais a China de Chiang Kai-Shek, aliada do Ocidente, mas a República Popular da China, criada pela revolução comunista de Mao Tsé-Tung. Assim, eram muitos os fatos que justificavam o entendimento de que a composição do Conselho de Segurança não mais refletia a ordem vigente no cenário mundial e, em consequência, acreditava-se que uma reforma da ONU seria necessária para torná-la mais representativa da ordem mundial. O fato é que na política internacional a concretização de reformas sempre se revelou um passo muito mais difícil do que a criação de uma nova entidade, como havia ocorrido com a própria ONU que, apesar de ser bastante semelhante à Liga das Nações em termos de objetivos e até de procedimentos, ao final da Segunda Guerra Mundial preferiu-se criar a nova entidade e, em seguida, transferir o patrimônio material e político da Liga das Nações para a ONU.

A segunda ordem de argumentos para a diplomacia brasileira investir na obtenção de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU era o entendimento de que, politicamente, o Brasil era um “candidato natural” dos países em desenvolvimento e, geograficamente, um representante também natural dos países latino-americanos, por suas dimensões e por seu peso político internacional que se refletia, por exemplo, no papel que desempenhara na criação, juntamente com outros países em desenvolvimento, do G-20, que podia servir de contraponto ao grupo dos 8 países mais ricos do mundo (G-7-1).[12]

Um outro argumento da diplomacia brasileira era o de que sua participação no Conselho de Segurança da ONU seria visto pelas potências como um reforço para os objetivos centrais da ONU, que eram o de promover a paz e o entendimento pacífico entre as nações. O argumento considerava que a longa tradição diplomática brasileira seria uma forte credencial para qualificar o país para um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Essa tradição apontava para uma história do país predominantemente pacífica em relação à convivência com seus vizinhos e apontava também para a índole e a competência da diplomacia brasileira, marcada pela preferência permanente pela solução pacífica das controvérsias e pela ênfase e no desenvolvimento da capacidade de negociação. É curioso notar que esses argumentos eram bastante semelhantes aos que haviam sido utilizados na década de 1920, quando a diplomacia brasileira se empenhara em obter um assento permanente do Conselho da Liga das Nações.

É notável que no início do século XXI os governantes e responsáveis pela política exterior não prestassem atenção à experiência vivida oito décadas antes quando, de um lado, as grandes potências se revelaram muito mais preocupadas com seus interesses individuais e com o jogo de poder na política internacional, enquanto de outro lado, as nações periféricas, sobretudo nas vizinhanças do Brasil, observavam a demanda brasileira por um assento permanente no Conselho da Liga das Nações como uma inciativa para reforçar a posição brasileira diante delas e não como uma força emergente para, eventualmente, defendê-las contra políticas de poder das grandes potências.[13] No curto prazo, talvez o efeito mais importante da orientação da política exterior do Brasil no sentido de obter um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU tenha sido a de comprometer o Mercosul e o projeto de integração regional. Tal como ocorrera na época da Liga das Nações, os países vizinhos no continente sul-americano jamais viram o Brasil como “representante”, mas sim como rival nessas instâncias multilaterais, especialmente em relação à demanda por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Vale notar que essa demanda tinha pouco respaldo até mesmo junto à população brasileira. Com efeito, um trabalho de pesquisa realizado por Amaury de Souza na época em que a demanda brasileira por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU estava no auge, revelava esse descompasso entre a diplomacia e a opinião pública. Amaury de Souza consultou a opinião de profissionais de várias categorias, entre os quais executivos empresariais, professores, jornalistas e integrantes das áreas técnicas do Legislativo e do Executivo a respeito da política externa do governo Lula e os resultados revelaram que, entre 18 prioridades sugeridas pela pesquisa, a demanda por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU tinha muito pouca aprovação, ficando em 16º. lugar, superando apenas “controlar e reduzir a imigração ilegal para o País” (13%) e “fortalecer a CPLP – Comunidade de Países de Língua Portuguesa” (12%).[14]

Como já mencionado, a vertente “globalista” do pensamento em política exterior considerava que havia um jogo mundial do poder e que o Brasil deveria atuar ativamente nesse jogo. Esse pensamento coincidia com a eleição em outros países da região de governos de esquerda dentro do espectro político, para quem os EUA eram um dos grandes obstáculos a serem contornados. Cabe notar que o termo “globalismo” é bastante vago e controvertido. Na presente análise o termo é entendido como uma alternativa à expressão “globalização”, uma espécie de versão conceitual do que ocorrera em 2001, quando foi criado o Fórum Social Mundial como alternativa ao Fórum Econômico Mundial de Davos. O destino dessa visão do globalismo parece ter sido o mesmo do Fórum Social Mundial, que perdeu completamente o interesse enquanto, por outro lado, o Fórum de Davos continuou muito ativo como uma instância efetiva de debates para autoridades políticas e empresariais das nações mais influentes do mundo, que podiam expor suas preocupações e ouvir propostas em estágio preliminar para as grandes questões da economia mundial.

Política e economia no Brasil depois da redemocratização

A projeção de qualquer país no cenário internacional tanto no âmbito regional quanto no cenário global depende fundamentalmente do desempenho da nação. As dimensões geográfica e demográfica podem ser condições necessárias da posição internacional do país, mas estão longe de ser suficientes. A China, apesar de suas dimensões continentais, só se tornou uma nação realmente relevante na cena internacional após o longo período de crescimento iniciado com Deng Xiaoping na década de 1980. Até então, a China não passava de um uma nação fechada, com todos os indicadores do ‘subdesenvolvimento”, sem qualquer expressão internacional, na realidade, uma verdadeira incógnita para a política internacional. Por outro lado, uma economia como a da Suíça, reconhecidamente estável e confiável de longa data, capaz até mesmo de transpor sem abalos as grandes crises do século XX, jamais teve sua moeda sequer cogitada para desempenhar papel de relevância no sistema monetário internacional em virtude das limitadas dimensões de sua economia. Além desses, existem muitos outros casos que ilustram essa relação entre as dimensões de uma nação, seu desempenho econômico e político e sua relevância no cenário da política e da economia mundial.

Nas últimas décadas, efetivamente o Brasil teve algum papel de relevância no cenário internacional apenas em uns poucos momentos. Em larga medida, na maior parte do tempo seu desempenho econômico e político tem ficado muito aquém de suas dimensões geográficas e demográficas e de seu potencial econômico. Os governos militares ensaiaram um processo de aglutinação dos recursos e das energias sociais e econômicas em torno de um projeto de âmbito nacional nesse sentido, mas o projeto que ficou conhecido como “Brasil Potência” apresentava muitos problemas e foi alvo de muitas críticas que, em geral, principiavam com a crise de um regime autoritário que perdia sustentação política rapidamente reduzindo muito o espaço para enfrentar quaisquer dificuldades que eventualmente emergissem. Nesse quadro, as turbulências e as pressões geradas pela crise do petróleo da década de 1970 foram fatais para a estabilidade do regime político bem como para as estratégias de desenvolvimento. Na realidade, a crise do petróleo era apenas a parte mais visível e ruidosa das grandes mudanças em curso na ordem econômica internacional, entre as quais destacava-se a substancial redução das tradicionais fontes oficiais de financiamento, notadamente governos, Banco Mundial e as várias agências oficiais de fomento ao desenvolvimento internacional.

A substituição do regime autoritário por uma ordem democrática, apesar do grande entusiasmo – ou talvez em razão do grande entusiasmo – foi realizada de forma que alguns problemas de governabilidade e de eficiência iriam emergir na ordem econômica e política nas décadas seguintes. É certo que as virtudes da democracia são indiscutíveis. A história mostra que os regimes democráticos são aqueles que, como nenhum outro, têm garantido valores essenciais como a liberdade e a dignidade do cidadão. Apesar de tudo, “democracia” é apenas um conceito abstrato. No mundo real o termo só existe no plural. No mundo real o que existe é a “democracia inglesa”, a “democracia americana”, a “democracia francesa”, a “democracia holandesa”, entre outras. O que é comum nessas “democracias” é que, além de garantir valores essenciais como a liberdade, essas democracias procuram adaptar-se suas instituições políticas às tradições e às peculiaridades culturais nacionais e, ao mesmo tempo, procura organizar e regular a ordem social e econômica de forma que ajudem a promover o progresso e a prosperidade da nação. O desejo de prosperidade está presente não apenas nas chamadas sociedades ocidentais, mas na grande maioria das sociedades espalhadas pelos cinco continentes. Nesse ambiente marcado pela diversidade, a qualidade do regime pode variar de lugar para lugar e também ao longo do tempo significando que o fato de haver democracia não significa que haverá progresso e prosperidade. Os surveys periodicamente produzidos por organizações internacionais como o Banco Mundial e a Organização para Cooperação Econômica e o Desenvolvimento apontam essas diferenças de desempenho, ou seja, há sociedades democráticas que inovam e prosperam mais do que outras. Esse aspecto revela-se especialmente importante para as economias em desenvolvimento como o Brasil para quem prosperar significa corrigir desigualdades sociais e qualificar-se para levar para considerável parte da população os benefícios das modernas tecnologias.

Com o retorno da democracia, desde 1989 o Brasil tem realizado ininterruptamente eleições livres e o estado de direito passou a regular a vida dos indivíduos e das organizações públicas e privadas. Com efeito, o voto livre – um dos quesitos essenciais dos regimes democráticos – tem sido praticado em todos os rincões deste Brasil de dimensões continentais. Na realidade, a tradição de democracia no Brasil não remonta apenas ao estabelecimento da República há exatamente um século antes da redemocratização. Mesmo nos tempos do Império, a democracia era uma prática vivenciada notavelmente até pelo próprio Imperador Pedro II na forma de uma monarquia constitucional. Apesar de tudo, o estado de direito e o funcionamento livre e regular das instituições democráticas, embora importantes, são apenas parte da história.

Com efeito, de uma forma geral, a história recente mostra que os sucessivos governos brasileiros, embora democraticamente constituídos, têm negligenciado o fato de que o sucesso econômico constitui fator essencial tanto para a melhoria das condições sociais internas quanto para a própria ordem internacional. Uma nação pobre não contribui em nada para a comunidade internacional, na realidade torna-se um peso e uma fonte de problemas para seus vizinhos e para a comunidade internacional como um todo. Uma visão de conjunto da posição brasileira no cenário internacional revela que a incapacidade de buscar o progresso, associada a algumas escolhas equivocadas têm produzido a estagnação dessa posição internacional. Por vezes, ao invés de preocupar-se com posturas e alianças de inspiração mais ideológica e de sonhos de poder, a nação deveria estar mais adequadamente preparada tanto para enfrentar com sucesso os problemas que surgem de tempos em tempos na esfera internacional quanto para captar positivamente as oportunidades que também emergem na política e nas relações econômicas internacionais. Objetivamente, a nação precisa tanto de instituições que proporcionem segurança jurídica e estabilidade política – ou seja, obter a confiança internacional – quanto de uma economia suficientemente robusta e saudável capaz de assegurar que o país fique ao menos razoavelmente alinhado com os padrões mundiais.

As tabelas a seguir mostram que o crescimento da economia brasileira tem ficado bem abaixo da média mundial, ou seja, tem se empobrecido em termos relativos. As tabelas mostram também que há pelo menos duas décadas as taxas de investimento têm ficado substantivamente abaixo das taxas praticadas por outros países. Essas taxas de investimento são importantes porque refletem a parcela do PIB que o país destina não apenas à inovação tecnológica e ao aumento da produtividade e da capacidade de produção de bens e de serviços, mas refletem também os investimentos feitos em educação, nos serviços de assistência médica e em outros serviços sociais, assim como na ampliação e manutenção da infraestrutura de esgotos, saneamento, comunicações e em todos os modais de transporte, ou seja, portos, aeroportos, estradas, ferrovias e transporte urbano. Um país como a China, que vem apresentando taxas elevadas e consistentes de crescimento econômico investe, proporcionalmente, mais do que o dobro do Brasil e até mesmo países “prontos” como a França, que têm toda a infraestrutura social e econômica madura, investe significativamente mais do que o Brasil, como mostra a tabela 2. O fato é que esses investimentos são cumulativos e cada ano com baixos investimentos significa instalações industriais deterioradas ou não construídas, rodovias que deixaram de ajudar a dinamizar a economia, alguns milhares de jovens que não terão boas escolas ou cidades que continuarão com boa parte da população sem acesso aos benefícios da água encanada e dos esgotos tratados, além e muitos outros elementos de infraestrutura econômica e social deteriorados dificultando o bem estar do cidadão em suas rotinas diárias e também fomentando a criminalidade em todas as suas formas. Em valores, de acordo com a tabela 2, significa que o Brasil (setor público + setor privado) deixou de investir algo em torno de US$ 100 bilhões por ano ao longo de duas décadas.[15]

                Tabela 1 – Crescimento econômico, países selecionados

Anos recentes 2007-2018 (%)

País/Região 2007 2010 2013 2014 2015 2016 2018 2013-2018

(média anual)

Brasil 6,07 7,52 3.00 0,50 -3,54 -3,27 1,31 -0,40
Argentina 9,00 10,12 2,40 -2,51 2,73 -2.08 -2,48 -0.38
Chile 4,90 5,84 4,04 1,76 2,30 1,67 4,02 2,75
Colômbia 6,84 4,34 4,56 4,72 2,95 2,08 2,56 3.37
México 2,29 5,11 1,35 2,80 3,28 2,91 2.13 2,49
Peru 8,51 8,33 5,85 2,38 3,25 3,95 3,97 3,88
Am. Lat. e Caribe 5,51 5,84 2,75 1,00 0,08 -0,33 1,57 1,01
China 14,23 10,63 7,76 7,30 6,90 6,73 6,56 7,05
Mundo 4,31 4,29 2,65 2,83 2,85 2,58 3,05 2,79

Fonte: World Bank

            Tabela 2 – Investimento bruto do país como proporção do PIB

Ano Brasil Mundo China França Chile
2000 16,8 24,3 34,4 22,5 22,1
2002 16,4 23,2 37,0 21,3 22,3
2004 16,1 24,5 42,8 21,9 19,8
2006 16,4 25,3 40,9 23,2 20,8
2008 19,1 25,5 43,2 24,1 23,5
2010 19,5 24,2 47,6 21,9 26,8
2012 18,1 24,3 47,2 22,6 23,1
2016 16,4 23,8 44,2 22,7 26,1

Fonte: OCDE. National Accounts Data Files

Em resumo, a trajetória recente da política exterior do Brasil tem apresentado poucos resultados, em grande parte por estar desconectada das bases econômicas, sociais e políticas da nação. O Brasil pode ter um grande potencial de soft power, mas para realizar esse potencial será preciso que a nação inspire confiança na comunidade internacional em todos os sentidos, a começar por uma taxa de crescimento econômico ao menos mais elevada do que a média mundial. Escolher opções como integração econômica regional, até pelas dimensões do país, o que se espera é que o país contribua para que esse arranjo floresça e não seja um verdadeiro “peso morto” nesse empreendimento, isto é, que se torne um fator de estímulo e de canalização positiva das energias para todos os demais parceiros. Na realidade, a condição necessária (embora não suficiente) para que um arranjo como o Mercosul avançasse efetivamente é que o integrante de maior peso (no caso o Brasil) apresentasse esse desempenho positivo, consistente e construtivo.

Brasil um país do futuro, até quando?

Desde que Stefan Zweig publicou em 1941 seu livro “Brasil, um País do Futuro”, cada geração experimentou a sensação de que haveria de ver esse futuro chegar pensando em um Brasil próspero e poderoso no concerto das nações.[16] Na realidade, o sentido que Zweig dava a esse futuro não era esse. Sua experiência de vida era o de sua terra natal, a Áustria, e do continente europeu, que vivenciaram ao longo da primeira metade do século XX o sofrimento e a destruição das duas guerras mundiais e a perseguição implacável aos judeus pelo nazismo – uma perseguição que afinal trouxera Zweig para o Brasil em 1940. Para Stefan Zweig, o futuro promissor que antevia para o Brasil era o de um país pacífico e isento dessas loucuras coletivas que marcaram seu país e a Europa de seu tempo. Na introdução do livro escreve Zweig: “Por isso, é sobre a existência do Brasil, cujo único desejo é a construção pacífica, que repousam nossas maiores esperanças de uma civilização futura e de pacificação do nosso mundo devastado pelo ódio e pela loucura … É por isso que escrevi este livro”.

Apesar de tudo, é parte da natureza humana a permanente busca pelo progresso e pela prosperidade individual e coletiva e, nesse quesito, as esperanças da nação brasileira têm sido sistematicamente frustradas, geração após geração, por muitas razões que, neste ensaio, não cabe discutir.[17] Um ponto que parece oportuno analisar nestas considerações que devem servir de conclusão sobre as perspectivas para a política exterior do país é o fato de que, aparentemente, os sucessivos governantes e as forças políticas no País não têm levado na devida conta o fato de que, na essência, progresso e prosperidade são a base sobre a qual se assentam a posição de uma nação no cenário internacional. Na realidade, a política exterior de qualquer país depende essencialmente de duas ordens de variáveis: de um lado, as variáveis que conformam o meio internacional, sobre as quais até mesmo grandes potências têm pouca influência; de outro lado, as capacidades nacionais em termos de recursos econômicos sobre as quais se assentam tanto o hard power quanto o soft power. Na essência, orquestrar essas capacidades constitui uma das missões essenciais e intransferíveis dos governos.

Nestas reflexões conclusivas, portanto, cabe apontar o fato de que, virtualmente, os sucessivos governos no Brasil têm buscado alternativas de política exterior como integração regional, investimento em instâncias multilaterais, ou em tópicos como alianças com grandes potências ou com nações em desenvolvimento, mas têm descuidado da construção de uma base social e econômica nacional que, efetivamente, são capazes de tornar o país um ator capaz de se beneficiar dos fluxos internacionais de comércio e de capital e também de exercer alguma influência positiva na ordem internacional. Com efeito, o meio internacional continua a ser eminentemente anárquico no sentido de que as nações podem construir, modificar ou mesmo eliminar regimes, mas a história tem mostrado que qualquer dessas possibilidades, ocorrem a posteriori, isto é, os desenvolvimentos ocorrem e, em seguida, procura-se estabelecer algum referencial normativo para esses desenvolvimentos. Mesmo em casos como o da integração europeia as instituições foram criadas para ordenar e dar segurança à integração comercial, social e política que, de muitas maneiras, já existiam há séculos na Europa.

Em termos gerais, o caso do desenvolvimento tecnológico é bastante ilustrativo da dimensão anárquica do meio internacional. De muitas formas a tecnologia desempenha um papel central nas relações interacionais da atualidade uma vez que influencia diretamente os padrões de produtividade e a capacidade das nações transformar seus recursos naturais e humanos em riqueza. Por exemplo, os desenvolvimentos ocorridos no mundo das tecnologias de informação, processamento e transmissão de dados e de imagens, abriram um novo mundo de oportunidades para os negócios em toda parte e não apenas em tradicionais centros dinâmicos da economia mundial. A globalização financeira e comercial só foi possível por meio de tecnologias como essas, que permitiram a integração internacional da produção industrial assim como dos mercados financeiros ajudando, dessa forma, a promover uma verdadeira redistribuição mundial da atividade econômica e da riqueza.[18] No caso recente mais notável, a ascensão da China ao status de segunda maior potência mundial, deu-se por meio do enorme fluxo de capitais e de tecnologia oriundos dos EUA, do Japão e da Europa. Um processo que foi motivado não pela disposição deliberada desses centros de poder e de riqueza mundial no sentido de fortalecer a economia chinesa, mas em decorrência dessa característica intrínseca do meio internacional que os analistas chamam de “condição anárquica”, isto é, sem uma autoridade central e um ordenamento formalmente estabelecido, e onde cabe a cada ator escolher a forma e as estratégias de se relacionar com as forças em ação no meio internacional para obter benefícios ou, por vezes, simplesmente para contornar problemas. Nesse sentido, de uma forma geral, a história recente mostra que os sucessivos governos brasileiros têm negligenciado esses fatos. Objetivamente, pode-se afirmar que uma nação como o Brasil precisa tanto de democracia quanto de instituições robustas que proporcionem segurança jurídica e estabilidade política em condições de contar com a confiança internacional para ser um participante ativo e capaz de, em condições de razoável igualdade, compartilhar da grande aventura da ordem internacional na busca do progresso espiritual e material.

Em resumo, a trajetória recente da política exterior do Brasil tem apresentado poucos resultados, em grande parte por estar desconectada das bases econômicas, sociais e políticas da nação. O Brasil pode ter um grande potencial de soft power, mas para realizar esse potencial será preciso que a nação inspire confiança na comunidade internacional em todos os sentidos, a começar por uma taxa de crescimento econômico mais elevada do que a média mundial para indicar claramente que a nação está efetivamente reduzindo sua pobreza relativa e melhorando consistentemente seus indicadores sociais. Uma análise mais acurada mostraria que, em larga medida, o BRICS só existe em razão da China e do que ela representa, especialmente em termos simbólicos como nação, cuja relevância no mundo em termos econômicos, tornou-se indiscutível e cujo desempenho ao longo de três décadas tornou-se uma verdadeira inspiração para substancial parte das nações do mundo.

Ella Wilcox, escritora e poetisa norte-americana fez sucesso em seu tempo, mas tornou-se conhecida universalmente por uma frase que se transformou em adágio popular em muitos lugares: “Ria e o mundo rirá com você. Chore e você chorará sozinho[19]”. Rubens Ricupero ainda no início da década de 1990, de certa forma, deu a esse fato uma interpretação teórica argumentando que nas relações entre os países da América Latina predominavam as relações triangulares, isto é, não se podia entender as relações entre os países da região a não ser por meio de triângulos onde sempre há um vértice ocupado pelos EUA ou, em tempos mais recentes, por outra potência de sucesso de fora da região[20]. A verdade é que países de sucesso, que inspiram e transmitem confiança, não precisam buscar parceiros – têm o privilégio de escolhê-los. Mesmo na esfera pessoal pode-se dizer que o sucesso atrai enquanto o fracasso afasta ou nos torna indiferentes. Nos últimos anos, as agências de classificação de risco financeiro tornaram-se populares na literatura de relações internacionais. Apesar de tudo, pouca gente tem prestado a devida atenção para o fato de que os grandes fluxos imigratórios de pessoas, mesmo aqueles causados por motivações dramáticas e trágicas, instintivamente, tendem a seguir as mesmas direções recomendadas pela Standard & Poors e por outras agências de classificação de risco financeiro, isto é, a preferência dos migrantes é, notavelmente, pelos países “Triple A”. De fato, nestes tempos, um dos indicadores mais sensíveis e expressivos do desempenho econômico e social de um país é o movimento migratório. Segundo notícias recentes divulgadas pelo Ministério das Relações Exteriores, o número de brasileiros vivendo no exterior é de cerca de 3 milhões de pessoas, enquanto o número de estrangeiros vivendo no Brasil não chega a 750 mil, ou seja, é 4 vezes menor. Vale notar que esse número de estrangeiros vivendo no Brasil é menor do que o de estrangeiros vivendo em países próximos como a Argentina e o Paraguai. Certamente que tal quadro não poderá ser revertido apenas pela política exterior, será preciso que o próprio Estado brasileiro reveja suas prioridades e o funcionamento de suas instituições.

 

 

[1] Este ensaio foi escrito em homenagem ao notável historiador Amado Luiz Cervo, Professor Emérito da Universidade de Brasília que completa 80 anos de uma vida extremamente produtiva. Formou toda uma geração de estudiosos e suas obras tornaram-se referência para todos aqueles que se interessam por relações internacionais e, mais especificamente, pela trajetória do Brasil no cenário internacional.

[2] Hélio. Jaguaribe, Significação de Mercosul. In Mercosul, Sinopse Estatística. Vol. I, IBGE, Rio de Janeiro, 1992 (p. 31)

[3] Mesmo antes da transformação da ALALC em ALADI, já existiam iniciativas de integração sub-regional como o Sistema de Integração Centro-Americana (SICA), de 1951, e o Pacto Andino ou Grupo Andino criado em 1969, reforçando a importância de facilitar a formação de arranjos sub-regionais.

[4] A Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) foi uma iniciativa dos EUA proposta formalmente durante a Cúpula das Américas, realizada em Miami, no dia 9 de dezembro de 1994. Nesse arranjo seriam eliminadas as barreiras alfandegárias entre os 34 países americanos, com exceção de Cuba.

[5] Ver o Relatório Pearson, que proporciona uma visão panorâmica do desempenho econômico da economia mundial na década de 1960 (Pearson Commission on International Development, Partners in Development, The World Bank, Washington, D.C., 1969). No Brasil o período compreendido entre 1967 e 1973 ficou conhecido como os anos do “milagre brasileiro” devido às elevadas taxas de crescimento superiores a 10% ao ano.

[6] P. N. Batista Jr. A Moratória de 1987. Folha de S. Paulo, 20/Fev./1997.

[7] A integração real é feita de formas de interação como o aumento do fluxo internacional de pessoas ou a construção de uma obra como a usina de Itaipu que afeta os interesses de mais de um país normalmente leva a acordos e tratados. Em larga medida, pode-se dizer que a formação da CEE em 1957 foi um arranjo necessário para organizar uma Europa onde a integração real já existia desde a Idade Média.

[8] Há várias obras e artigos que discutem essa participação, entre essas obras o livro O Brasil na Liga das Nações. 1919-1926, de autoria de Eugênio Vargas (Editora Funag/Editora UFRGS, 2000) faz um balanço dessa atuação brasileira.

[9] Ver História da Política Exterior do Brasil de Amado L. Cervo & Clodoaldo Bueno (Editora UnB, 4ª. Edição, 2011, pp.530-544).

[10] Em 2019, o Brasil tinha 223 representações no exterior, entre embaixadas, consulados e missões em organizações internacionais. Destas, 72 (32,3%) foram criadas por Lula e Dilma, incluindo-se um escritório de representação em Ramallah (sede de Autoridade Nacional Palestina) e cinco missões e delegações em organizações internacionais como a AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) e a CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa). (E. Oliveira & A. Duchiade. O Globo, 5/Junho/2019).

[11] Em 1950 o PNB dos EUA era maior do que a soma das demais grandes potências (Reino Unido, França, Alemanha, Itália, Japão, e URSS). P. Kennedy, The Rise and Fall of the Great Powers (Fontana Press, London, 1988, p. 475)

[12] Neste caso trata-se do G-20 dos países em desenvolvimento criado em Cancún (México) em 2003, na esteira da conferência da OMC e não do G-20, criado em 1999, reunindo as 19 maiores economias do mundo e mais a União Europeia, cujo propósito mais imediato era o de discutir e encaminhar soluções para os problemas financeiros globais.

[13] No capitulo 3 do livro O Brasil na Liga das Nações (op. cit.) Eugênio Vargas discute as várias iniciativas tomadas pelo governo Arthur Bernardes entre 1922 e 1925 no sentido de qualificar a demanda brasileira por um assento permanente no Conselho da Liga. O livro relata também a oposição ou a indiferença dos países vizinhos à demanda brasileira que acabou com a retirada do Brasil como membro da Liga das Nações em 1926.

[14] Amaury de Souza, A Agenda Internacional do Brasil: a Política Externa Brasileira de FHC a Lula. Editora Campus/Elsevier, Rio de Janeiro, 2009.

[15] Em valores de Dezembro/2019.

[16] S. Zweig. Brasil. Um País do Futuro. L&PM Editores, Porto Alegre, 2013. A primeira edição de 1941, foi lançada simultaneamente em alemão, inglês, sueco e francês, além do português.

[17] Sérgio Moura, em seu livro Podemos ser Prósperos. Se os Políticos Deixarem discute essa questão de forma exaustiva e interessante, lembrando bastante Brasil, o País dos Coitadinhos, de Emil Farhat, de grande sucesso na década de 1970. (S. Moura. R. Janeiro, 2017).

[18] Em O Mundo Pós-Americano, Fareed Zakaria faz um balanço de longo prazo da ordem mundial, desde que se tornou visível no século XVI. O autor chama de “movimentos tectônicos” as transformações que levaram ao centro dessa ordem primeiro a Europa, depois os EUA e finalmente o que ele chama de “ascensão do resto” num processo movido muito menos por guerras do que pelo gênio humano e pela criatividade que incrementa a produção e a produtividade. (Zakaria, Fareed. O Mundo Pós-Americano. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

[19]  Rejoice, and men will seek you;

Grieve, and they turn and go;

(…)

Be glad, and your friends are many;

Be sad, and you lose them all,

(Ella W. Wilcox (1850-1919) no poema Solitude)

[20] R. Ricúpero, O Brasil, a América Latina e os EUA desde 1930: 60 Anos de uma Relação Triangular. Pub. em J. G. Albuquerque (Org.) 60 Anos de Política Externa Brasileira (1930-1990). NUPRI/USP, 1996. Vol. 2 pps. 37-60.

 

Eiiti Sato é professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (IREL/UnB). Foi Diretor do IREL/UnB de 2006 a 2014. Foi chefe da Assessoria Internacional da UnB (2014-2016). Foi o primeiro presidente da Associação Brasileira de Relações Internacionais – ABRI (2005-2007). Tem ministrado regularmente cursos sobre Economia Política Internacional e Política Internacional, Teoria e História (irel.sato@gmail.com;  http://lattes.cnpq.br/8614060463115652).

 

Artigo publicado na revista INTELLIGERE, USP, vol. 10, ano 2020.

 

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