lobby – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Wed, 10 Aug 2022 22:14:37 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Estaria a saga da regulamentação do lobby no Brasil perto de seu fim? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3669&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=estaria-a-saga-da-regulamentacao-do-lobby-no-brasil-perto-de-seu-fim Wed, 10 Aug 2022 22:14:37 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3669 Estaria a saga da regulamentação do lobby no Brasil perto de seu fim?

 

Por Ricardo José Pereira Rodrigues

 

Ao encaminhar à Câmara dos Deputados, em dezembro de 2021, um projeto para disciplinar o lobby no país, o Poder Executivo não apenas adicionou mais um capítulo à verdadeira saga que se tornou a história da regulamentação da atividade no Brasil.  A ação legiferante promovida pelo Poder Executivo, de fato, colocou em evidência a importância que a regulamentação da representação privada de interesses junto a agentes públicos assumiu como fator de aprimoramento da imagem e do desempenho do país relativo à integridade de sua governança pública, sobretudo para os organismos internacionais.

Foram muitas as tentativas frustradas de regulamentação do lobby no Brasil.  A “saga” teve início ainda nos anos 1980, com a apresentação do Projeto de Lei do Senado nº 25, de 1984, pelo então Senador Marco Maciel.  No Senado federal tramitaram, entre 1984 e 2016, quatro outras proposições sobre o tema, incluindo uma Proposta de Emenda à Constituição.  Na Câmara dos Deputados, no mesmo período e sobre o mesmo tema, tramitaram nada menos que 7 projetos de lei e 11 projetos de resolução da Câmara. São quase 40 anos de iniciativas parlamentares que não resultaram em norma jurídica, com a maioria das proposições sendo arquivada por falta de deliberação.

Mas por que tem sido tão difícil aprovar no Brasil uma lei do lobby?  E, se o país tem vivido sem uma lei de lobby, qual importância teria a regulamentação do lobby?  Por que insistir em regulamentar a atividade?

Primeiramente, cabe salientar que a regulamentação do lobby não é uma empreitada fácil de se operacionalizar até porque compreende desafios nada triviais.  Não se trata apenas de restringir ou proibir a atividade dos grupos ou de lobistas individuais.  Como já tive oportunidade de frisar em outras ocasiões[1], trata-se de viabilizar uma legislação caracterizada por dois objetivos distintos que, para alguns, podem até parecer contraditórios. Por um lado, a regulamentação do lobby deve necessariamente conter dispositivos que estimulem e fortaleçam a pluralidade dos grupos de interesse sem, por outro lado, permitir que tal atuação degenere em tráfico de influência ou corrupção, crimes previstos pelo Código Penal Brasileiro.

O estímulo à representação de interesses no âmbito das esferas públicas, seja realizada por profissionais do lobby, seja realizada por grupos oriundos dos mais diversos setores da sociedade civil organizada, é plenamente amparada por nossa Carta Magna.  Tal estímulo deve-se ao caráter pluralista do próprio modelo democrático adotado pelo Brasil.  Os constituintes alçaram o pluralismo à condição de princípio fundamental do nosso Estado democrático de direito.  A Constituição Federal de 1988 consagra o pluralismo político em seu artigo primeiro, inciso V, como um dos fundamentos da democracia brasileira.

Outros artigos da nossa Constituição reforçam esse estímulo à participação de grupos no processo de tomada de decisão acerca de políticas públicas.  O direito de petição, por exemplo, é assegurado pela Constituição como uma das garantias fundamentais da sociedade.  O inciso XXXIV do art. 5º garante aos brasileiros “o direito de petição aos poderes públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”[2].  Esse direito é ainda reiterado pela Constituição em seu art. 58, § 2º, inciso IV, quando determina às comissões das Casas do Congresso Nacional “receber petições, reclamações, representações ou queixas de qualquer pessoa contra atos ou omissões das autoridades ou entidades públicas”[3].

Cabe salientar que o assunto tem ocupado a agenda de diversos organismos internacionais. A ONU e a OCDE, por exemplo, defendem a adoção da regulamentação do lobby como um requisito para se alavancar a boa governança de seus países membros. Curiosamente, são poucas as democracias que dispõem de normas legais para disciplinar a atividade de representação de interesses.  Neste sentido, continua a valer a conclusão a que chegou Margaret Malone, em 2004, segundo a qual “países com regras específicas para regulamentar as atividades de lobistas e grupos de interesse constituem muito mais a exceção do que a regra”[4].  Tanto assim que na linha do tempo elaborada pela OCDE para detalhar a evolução da regulamentação do lobby no mundo, de 1945 a 2014, constam apenas 15 países. Desses, somente 11 países promulgaram sua regulamentação da atividade depois de 2005.    Para a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, apenas uma minoria dos países no mundo adotou o instrumento da regulamentação para reduzir os riscos representados pelo lobby aos seus arranjos de governança.  Segundo a organização, “em 2020, apenas 23 de 41 democracias analisadas supria (por meio de legislação) algum nível de transparência às atividades de lobby”[5].

Não obstante o baixo número de países com leis para disciplinar as atividades do lobby, o tema tornou-se central para a agenda da OCDE desde 2009 quando lançou seu primeiro relatório dedicado ao assunto[6].  Para a OCDE, a ausência de uma regulamentação do lobby eficaz tem gerado, em muitos países, alocações equivocadas de recursos públicos, muitas vezes escassos, com redução de produtividade e aumento de desigualdades.  De acordo com a OCDE, práticas inapropriadas e censuráveis do lobby contribuem para “debilitar a confiança do cidadão no processo democrático”[7].

Para analistas que acompanham as tratativas do Brasil para integrar a OCDE, a falta de uma regulamentação de lobby representa uma barreira, que embora transponível, dificulta a adesão do país ao organismo.  Complementando um conjunto de leis voltado para o controle da corrupção e a melhoria da integridade no serviço público, a aprovação da regulamentação do lobby poria fim a uma defasagem regulatória que vem marcando a experiência brasileira no que concerne à relação dos agentes públicos com o mercado e os grupos de interesse.  Também consolidaria a convergência do Brasil com os princípios da OCDE relativos à governança pública.  Ressalte-se que numa pesquisa realizada pela OCDE sobre indicadores de regulação de produtos de mercado (PMR) com 46 países, o Brasil obteve a pior colocação do grupo.  Segundo manifestação da representante do Ministério da Economia durante a audiência pública realizada na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público, da Câmara dos Deputados, a aprovação de uma adequada regulamentação do lobby é o caminho para remediar a defasagem regulatória e melhorar o desempenho do país com relação aos índices de PMR (Product Market Regulation) da OCDE.

A apresentação pelo Poder Executivo do Projeto de Lei nº 4.391, de 2021, após quase 40 anos de proposições malogradas por parte de parlamentares, dá revigorada energia ao debate sobre a questão.  Com a importância que o tema assumiu para os organismos internacionais, o disciplinamento legal da representação de interesses privados deixou de ser uma preocupação apenas doméstica para o país.  A temática passou a ser uma questão de Estado, cuja condução e fecho pode ter influência nos objetivos diplomáticos e de comércio exterior do país.

Apensado ao Projeto de Lei nº 4.391, de 2021, tramita o Projeto de Lei nº 1.535, de 2022, de autoria do Deputado Carlos Zarattini. Ambos são compreensivos e abrangentes, incorporando em seus respectivos textos, princípios e diretrizes da OCDE para a regulamentação do lobby.  Espera-se que, desta vez, o Parlamento consiga alcançar um consenso mínimo, para, finalmente, transformar em norma jurídica o disciplinamento de uma atividade que é intrínseca ao processo democrático vigente no país.  Constituiria um passo firme na direção do aprimoramento e do aumento da qualidade de nossa democracia.

 

 

[1] RODRIGUES, Ricardo J. P. A adoção dos parâmetros da OCDE para a regulamentação do lobby no brasil. Revista Eletrônica Direito e Política, v.10, n.3, 2015, p. 1437-1458; RODRIGUES, Ricardo J. P.  A regulamentação do lobby: desafios e parâmetros para sua adoção.  STPC Café, Brasília, 2014, p. 27-35.

[2] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Edições Câmara, 2012, p. 15.

[3] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, p. 51.

[4] MALONE, Margaret M.  Regulation of lobbyists in developed countries.  Current rules and practices.  Dublin: Institute of Public Administration, 2004, p. 3.

[5] OECD.  Lobbyin in the 21st Centurty: transparency, integrity and access. Paris: OECD Publishing, 2021, p. 15.

[6] OCDE.  Lobbyists, government and public trust.  Vol. 1: increasing transparency through legislation.  Paris: OCDE Publishing, 2009

[7] OCDE, 2021, Ibid, p.

 

Ricardo José Pereira Rodrigues é doutor em ciência política pela State University of New York, consultor legislativo na Câmara dos Deputados e professor no curso de pós-graduação em Direito e Relações Governamentais do Uniceub em Brasília.

 

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O que é “rent-seeking”? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2190&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-que-e-rent-seeking https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2190#comments Tue, 25 Mar 2014 17:36:21 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2190 O conceito de “rent-seeking” (caça à renda, em uma tradução literal) é bastante útil para se entender alguns fenômenos importantes na economia. Em particular, nas políticas de governo, tais como os motivos para haver proteção tarifária a alguns produtos fabricados no país, a concessão de crédito subsidiado a algumas empresas, a regulamentação de algumas profissões ou a existência de meia-entrada para estudantes em eventos culturais.

Em primeiro lugar, é útil entender o conceito econômico de “renda”, que é distinto do uso comumente dado a esse termo. O ponto de partida da análise microeconômica é um mundo fictício em que todos os setores de uma economia funcionam em concorrência perfeita. Isso significa que cada produtor é muito pequeno em relação ao tamanho do mercado em que ele trabalha e, por isso, suas decisões não afetam o preço de mercado. Por exemplo, um produtor de sapatos que coloca a sua produção à venda, fixará o preço do seu produto no mesmo nível de preço dos sapatos vendidos no mercado. Se pedir preço superior, não venderá nenhuma unidade. Se pedir preço inferior, venderá todas as unidades, mas não maximizará seu lucro. Quem determina o preço é a velha lei da oferta e da demanda: se os consumidores desejarem comprar mais sapatos, e a produção não tiver aumentado, o preço do sapato se eleva. Se, por outro lado, a demanda por sapatos for constante, e entrarem mais produtores oferecendo sapatos no mercado, o preço tende a cair.

O produtor de sapatos só ficará nesse mercado se tiver lucro, que é o valor que ele recebe por ter empregado seu tempo e seu capital na organização e gestão de sua fábrica. A esse lucro dá-se o nome de “lucro normal”, que tenderá a ser igual para todas as firmas do setor. Se algum produtor conseguir um lucro acima do normal, diz-se que ele está recebendo uma “renda”, ou seja, um valor acima do retorno normal esperado para a sua atividade. O conceito não se aplica apenas a empresas: trabalhadores que recebem remuneração acima do mercado também recebem uma “renda”.

“Renda” ou “renda econômica” é, portanto, o montante que um fator de produção (capital, trabalho, terra) recebe acima do valor que seria suficiente para manter esse fator em sua atual ocupação. Se o lucro normal na nossa fábrica de sapatos é de R$ 10,00 por unidade, e um empresário consegue R$ 12,00 então ele tem uma renda econômica de R$ 2,00 por unidade. O produtor de sapatos estaria disposto a vender sua produção obtendo um lucro de R$ 10. Não haveria na economia nenhuma outra aplicação alternativa para o seu capital que desse retorno maior do que esse. Por isso, pode-se dizer que os R$ 2,00 adicionais são um lucro que não afeta a sua disposição de se manter no mercado de sapatos. É um ganho extra. Trata-se de um retorno acima daquele necessário para estimulá-lo a fabricar e vender sapatos.

Cabe, então, perguntar o que pode originar tais rendas. A possibilidade mais óbvia é que o mercado em que o produtor está trabalhando não funcione em concorrência perfeita. Se estivermos em um caso de monopólio, por exemplo, em que há um único produtor no mercado, este pode escolher o montante a ser produzido e fixar um preço acima daquele que seria obtido em concorrência perfeita. Com isso, o monopolista garante para si uma renda econômica.

Na prática, há vários mecanismos que garantem renda econômica para empresas ou grupos de pessoas. Por exemplo:

  • Uma categoria profissional que consegue a aprovação de uma lei limitando o número de profissionais que pode atuar no setor. Nesse caso, há um bloqueio à entrada de novos concorrentes nesse mercado, restringindo as possibilidades de expansão da oferta. Por exemplo: a fixação de um número limitado de licenças para a prestação de serviços de taxi em uma cidade; a exigência de exames de proficiência para que os indivíduos formados em determinada profissão possam atuar no ramo; as restrições à atuação de firmas de capital estrangeiro em determinados setores (no Brasil, por exemplo, empresas aéreas e de comunicações devem ser de capital nacional);
  • Os sindicatos de trabalhadores, ao organizarem a ação de seus filiados, e ameaçarem parar a produção se não receberem um determinado nível salarial, geram renda para seus filiados, em detrimento de outros trabalhadores, que estão desempregados e fora do sindicato, e que aceitariam trabalhar por salários menores.
  • As empresas fazem lobby junto ao governo para que este eleve as tarifas de importação de produtos estrangeiros que concorram com a produção nacional. Protegidas de tal concorrência, as empresas que dominam o mercado podem fixar preços mais elevados e receber lucros acima daqueles que teriam caso houvesse maior concorrência. Recebem, pois, rendas econômicas acima do lucro normal.

Estamos, agora, em condições de entender o conceito de “rent-seeking” (ou caça à renda). Diz-se que uma pessoa, grupo ou empresa tem um comportamento “rent-seeking” quando ela empreende esforço, gastando tempo e/ou dinheiro, para tentar garantir uma renda econômica para si ou para seu grupo.

Tomando o último exemplo acima, quando uma empresa vai ao governo pedir proteção tarifária, tal empresa está gastando tempo e dinheiro para conseguir a renda desejada. Ela paga o salário de lobistas, investe em publicidade com o objetivo de cooptar a opinião pública à sua causa, gasta tempo em suas reuniões de diretoria para discutir a estratégia de abordagem das autoridades governamentais, eventualmente paga alguma propina a uma autoridade com alto poder de decisão, etc.

Da mesma forma, a organização de sindicatos faz com que alguns trabalhadores saiam da linha de produção para desenvolver as atividades de organização e gestão do sindicato, sendo sustentados por contribuições dos demais empregados que continuam trabalhando. Isso é uma alocação de tempo e dinheiro para que um grupo se organize em busca de renda econômica.

De modo mais geral, diz-se que há rent-seeking quando alguém emprega esforço para aumentar a sua participação na riqueza já produzida pela sociedade; sem que tal esforço gere nova riqueza. Ou seja, trata-se de atuar no sentido de usar tempo e dinheiro para se apropriar de riqueza que já existe na sociedade, em vez de atuar criando nova riqueza. A riqueza que alguém consegue se apropriar por meio de atividade de rent-seeking não é, assim, uma geração de renda, mas uma distribuição de renda favorecendo os grupos bem sucedidos na empreitada, com a corresponde a perda para o restante da sociedade.

Dado o grande poder que os governos têm para interferir na economia e criar regras e restrições, a atividade rent-seeking em geral tem grande interface com a ação governamental1. Os governos podem não apenas restringir a livre importação e exportação de bens e serviços, mediante tarifas e cotas aduaneiras, como podem criar licenças e permissões para restringir o acesso de ofertantes a determinado mercado, podem distribuir crédito subsidiado, ofertar serviços públicos com preços diferenciados conforme a clientela, assumir dívidas de grupos privados, conceder isenções tributárias, ou tabelar preços de alguns produtos.

A ação rent-seeking relacionada a políticas de governo pode tanto partir de um agente privado demandando algum tipo de proteção ou benefício governamental, como pode partir de uma autoridade governamental demandando propina de uma empresa ou setor econômico. Nesse caso, a propina seria a renda econômica, obtida acima da remuneração normal do servidor público corrupto.

Não se pode, contudo, dizer que onde há ação governamental gerando renda econômica há corrupção. Há regras estabelecidas de forma transparente e que geram oportunidade para a criação de rendas. É o caso, por exemplo, de leis que estabelecem o direito de alguns grupos (estudantes e idosos, por exemplo) a pagar meia-entrada em eventos culturais. Os beneficiários auferem um ganho à custa dos usuários que pagam entrada inteira (pois estes terão que pagar a mais para cobrir o custo da meia-entrada) e de eventual redução no lucro de quem oferece o espetáculo.

Em geral, quanto maior o grau de intervenção do governo na economia, maiores as oportunidades para que grupos se apropriem de riqueza por meio de atividades rent-seeking. No Brasil o governo é grande, não apenas pelo alto nível dos gastos públicos e da carga tributária, mas também pela histórica tradição de regular fortemente a economia. Assim, é de se esperar que haja amplo espaço para o rent-seeking. De fato, não é difícil citar exemplos, tais como:

  • Diversas linhas de crédito oferecidas por bancos públicos a setores específicos de empresas. O destaque mais recente tem sido para os chamados “campeões nacionais”: empresas escolhidas a dedo pelo governo para receber crédito farto e barato do BNDES. Mas esse não é um fenômeno novo na história do país. Já nos anos 70 o BNDES distribuía crédito de forma discricionária, socorrendo empresas em dificuldade econômica, tendo ficado conhecido, à época, como “hospital de empresas”. Não é difícil imaginar que empresas e grupos de empresas mobilizem recursos para fazer lobby ou financiar campanhas eleitorais como forma de aumentar suas chances de acesso ao crédito e ao socorro financeiro baratos;
  • Dado que os servidores públicos conseguiram para si remunerações acima de profissões similares no setor privado2, o acesso a um emprego público passou a ser uma fonte de renda econômica. Por isso, milhares de pessoas gastam muitas horas de seu dia, durante anos, estudando para ser aprovadas em concurso público e, com isso, terem acesso à renda econômica ofertada por essa ocupação; ou, alternativamente, encontram meios de serem indicadas para cargos públicos que não exigem concurso;
  • A Constituição Federal estabeleceu que “a saúde é um direito de todos e um dever do estado” (art. 196). Na prática, contudo, o governo não tem recursos para oferecer todo tipo de tratamento médico a todos os cidadãos do país. Estabelece-se uma espécie de racionamento, por meio de políticas de saúde que oferecem tratamentos padrão para as doenças de maior incidência na sociedade. Frente a esse racionamento, as pessoas que sofrem de doenças com tratamento de alto custo, não incluídas na cesta de serviços de saúde ofertada pelo governo, têm incentivo a recorrer à justiça. Com base no dispositivo constitucional acima citado, pleiteiam o custeio de seus tratamentos individuais. Ganhando a causa, passam a ter direito a um tratamento cujo financiamento representará o corte de outros tratamentos que não poderão ser oferecidos a outras pessoas. O beneficiário apropriou-se de riqueza da sociedade, subtraindo-a de outras pessoas3;
  • A justiça brasileira é, muitas vezes, lenta. Isso abre oportunidade para empresas ou pessoas dispostas a obter ganhos por meio de quebra de contratos. Uma empresa pode, simplesmente, não pagar seus fornecedores e deixar que eles busquem a cobrança judicial. Como esta é demorada, o devedor ganha com o fato de postergar o pagamento ou, até mesmo, pagar apenas uma fração da dívida;
  • A justiça não é apenas lenta, mas também incerta quanto às suas decisões. Isso aumenta as chances de vitória daqueles que têm capital suficiente para pagar bons advogados. Empresas pequenas não têm capital de giro suficiente para sustentar longas demandas judiciais até o recebimento de seus direitos, o que introduz um viés a favor de grandes empresas, que passam a ter vantagem em disputas judiciais e podem, com isso, usar a litigância para extrair renda em seu favor;
  • As agências reguladoras brasileiras carecem de autonomia política. Empresas prestadoras de serviços públicos, em áreas como telefonia, geração e transmissão de energia, transportes coletivos, entre outras, podem fazer pressão sobre essas agências de modo a alterar regras de proteção à concorrência ou aos direitos dos consumidores, com vistas a aumentar seus lucros;
  • De modo similar, acionistas majoritários de empresas de capital aberto podem adotar procedimentos administrativos que expropriem direitos dos acionistas minoritários, contando com a fragilidade da agência reguladora do setor, que sofre restrições políticas e técnicas para conseguir impor punições aos infratores da lei de sociedades anônimas;
  • Já foi citado anteriormente o caso clássico de restrições tarifárias e administrativas a importações, que protegem o mercado das empresas que operam no país. O Brasil é um dos países mais fechados do mundo ao comércio internacional, o que certamente garante renda a setores da economia, com destaque para a indústria automobilística, que tem uma proteção efetiva de quase 200%4;
  • Além das formas tradicionais de proteção à indústria nacional via restrição de importações, outros tipos de barreiras aos concorrentes estrangeiros são utilizados, como o requerimento de conteúdo nacional mínimo, muito importante, por exemplo, na indústria do petróleo;
  • A legislação trabalhista brasileira interfere fortemente nas relações de trabalho e, como resultado geral, garante benefícios aos empregados do setor formal da economia, em detrimento daqueles que estão no setor informal. Pode-se dizer que o esforço político dos movimentos de trabalhadores sindicalizados para evitar uma reforma das leis do trabalho é uma forma de garantir rendas que seriam perdidas em um mercado de trabalho mais competitivo;
  • A alta carga tributária estimula as pessoas e empresas a se organizar para conseguir isenções fiscais. O resultado é que a legislação tributária é repleta de casos especiais, alíquotas específicas, tratamentos de exceção, etc;
  • Quando há quebra de safra, o governo refinancia, com subsídio, as dívidas rurais de grandes agricultores sem, contudo, lhes cobrar um imposto adicional nos anos de colheita e lucros fartos. Os lucros são privados, os prejuízos socializados;
  • A existência de grandes empresas estatais na economia, cujos dirigentes são escolhidos por critérios políticos, permite que tais empresas sejam usadas para beneficiar grupos politicamente bem conectados ou para oferecer salários elevados a seus empregados. O mesmo pode ser dito dos fundos de pensão dos empregados de empresas estatais, parcialmente financiados por recursos dessas empresas, e que alocam seus investimentos por critérios políticos;
  • O rent-seeking também pode ocorrer dentro do setor público. Por exemplo, quando os municípios se organizam para pressionar o governo federal com vistas a aumentar as transferências federais aos cofres locais. Ou quando são feitas emendas ao orçamento para a realização de gastos em serviços públicos ou investimentos em uma cidade específica. Em ambos os casos, os contribuintes de todo o país estarão pagando por um benefício a ser gozado pela população de uma única cidade ou região.

O problema do rent-seeking é que ele leva à má alocação de recursos na economia, reduz a produtividade e prejudica o crescimento econômico de longo prazo. Isso ocorre por vários motivos:

  • Tempo e dinheiro são gastos com vistas a subtrair renda de outros, sem criar riqueza nova. O mesmo dinheiro que é investido em lobby e financiamento de campanhas eleitorais poderia ser investido em pesquisa e desenvolvimento de novos produtos, por exemplo. Note-se que a prática de rent-seeking por alguns participantes do mercado leva os seus concorrentes a reagirem, também embarcando em práticas similares para não perder mercado.
  • Os limitados recursos da sociedade, disponíveis para investimentos, não vão para as mãos das empresas que têm os projetos mais competentes e promissores, mas sim para as empresas que têm maior conexão política. As chances de criação de riqueza tornam-se menores. Ademais, como sempre existe a possibilidade de refinanciar ou não pagar os débitos do empréstimo público, em caso de fracasso, o esforço empreendido para tornar um empreendimento bem sucedido também serão menores.
  • O rent-seeking permite que se mantenham vivas empresas ineficientes. Se essas empresas fechassem, o capital e o trabalho por elas utilizado ficariam livres para serem empregados em atividades mais lucrativas e produtivas, aumentando a produtividade e o crescimento da economia.
  • O rent-seeking cria restrições à livre concorrência, o que desestimula as empresas protegidas a buscar ganhos de produtividade para se manterem vivas no mercado, prejudicando a produtividade agregada da economia, ao mesmo tempo em que inibe o surgimento de outras empresas inovadoras, visto que seus potenciais fundadores temem não conseguir se estabelecer no mercado em função da concorrência desleal; seja por proteção de mercado, seja pelo viés da justiça a favor dos maiores e mais capitalizados.
  • Os governos tendem a se tornar maiores que o necessário. A ação governamental deixa de ter por objetivo apenas a correção de falhas de mercado, atuando em áreas que o mercado privado não é capaz de fornecer bens e serviços adequados5. Aumenta a burocracia, a carga tributária, a parcela da força de trabalho que é empregada no setor público (tradicionalmente menos produtivo que o setor privado). Tudo isso aumenta o custo que o setor privado tem que pagar para sustentar o governo, ou seja, a carga tributária.
  • Há, também, mudança nos objetivos prioritários do governo. Em vez de ser um agente econômico que oferece serviços públicos de qualidade, que aumentam a produtividade da economia (como infraestrutura ou educação pública), o governo passa a priorizar a criação de emprego, a distribuição de subsídios e privilégios, a transferência de riqueza de uma parcela da sociedade para outra. Tudo isso sem conexão direta com a efetiva oferta de serviços públicos à população.

Limitar o espaço para a prática de rent-seeking seria, então, uma forma de aumentar o crescimento de longo prazo e a justiça distributiva em uma sociedade, evitando que alguns “espertos, organizados ou conectados” extraiam renda do restante da sociedade. A imposição de restrições ao comportamento rent-seeking é feita, basicamente, por meio de maior transparência dos atos públicos e garantia de funcionamento, com independência política, de agências de Estado responsáveis por impor regulação à ação de agentes econômicos. Em termos objetivos estamos falando de algo como:

  • Agências reguladoras e banco central com autonomia operacional e regras de indicação e mandato que garantam autonomia decisória, evitando a subordinação dessas entidades à vontade imediata do governante do momento;
  • Sistema judicial mais ágil e com resultados previsíveis, baseados em jurisprudência bem estabelecida, com ênfase na garantia dos direitos de propriedade e da preservação dos contratos;
  • Inclusão no orçamento de todo e qualquer tipo de subsídio, isenção tributária e demais benefícios custados pelos contribuintes, para evitar que tais benefícios sejam financiados de forma pouco transparente, ou que o custo de seus benefícios seja jogado para as gerações futuras, por meio de aumento da dívida pública;
  • A existência de instituição autônoma encarregada de calcular e divulgar os benefícios e custos dos programas públicos, para dar publicidade a quem ganha e quem perde com cada um deles6;
  • Política de remuneração do setor público que se espelhe nas remunerações e reajustes salariais praticados no setor privado;
  • Focalização das ações governamentais nas questões que efetivamente demandem interferência pública, em função da existência de falhas de mercado que impeçam o setor privado de prover bens e serviços com eficiência (segurança pública, meio-ambiente, educação, estímulo à inovação, saneamento básico, etc.).

Um conceito muito próximo ao de rent-seeking é o de “crony capitalism”, usualmente traduzido como “capitalismo de relações”, “capitalismo de laços” ou “cronismo”. Este será tema de outro texto a ser publicado nas próximas semanas.

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1Isso não quer dizer que toda geração de renda econômica ou toda atividade rent-seeking dependa da ação do governo. Situações de monopólio e de barreiras naturais à entrada de novos concorrentes existem em vários setores da economia, o que pode garantir rendas a seus produtores mesmo sem qualquer regulação governamental. Da mesma forma, trabalhadores podem se organizar e restringir a oferta de trabalho mesmo em um ambiente sem qualquer legislação trabalhista.

2Para uma estimativa da superioridade das remunerações dos servidores públicos em relação ao setor privado ver, por exemplo, Barbosa, A.N.L.H., Barbosa Filho, F.H. (2012) Diferencial de salários entre os setores público e privado no Brasil: um modelo de escolha endógena. IPEA. Texto para Discussão 1713.

3Sobre esse ponto ver, por exemplo, Romero, L.C.P. (2008) Judicialização das políticas de assistência farmaceutica: o caso do Distrito Federal. Núcleo de Estudos e Pesquisas do Senado Federal. Texto para Discussão nº 41.

4Vide, por exemplo, Baumann, R., Kume, H. (2013) Novos padrões de comércio e política tarifária no Brasil. In: Bacha, E., Bolle, M.B. (Orgs.) O futuro da indústria no Brasil: desindustrialização em debate. Ed. Civilização Brasileira.

5Sobre esse ponto ver, neste site, o texto Por que o governo deve interferir na economia?

6Diversos países da OCDE implementaram instituições fiscais independentes com tal finalidade. Ver uma descrição dessas entidades em FMI (2013) “The functions and impact of fiscal councils” ou OCDE (2013) “Principles for independent fiscal institutions”.

 

Para ler mais sobre o tema:

Caselli, F., Michaels, G. (2009) Do oil windfalls improve living standards? Evidence from Brazil. NBER Working Paper Series w15550.

Krueger, A. (1974) The political economy of the rent-seeking society. The American Economic Review, vol. 64, n. 3, p. 291-303.

Lisboa, M.B., Latif, Z.A. (2013) Democracy and growth in Brazil. INSPER Working Papers. Disponível em: http://www.insper.edu.br/working-papers/working-papers-2013/democracy-and-growth-in-brazil/

Mendes, M.J. (2006) Despesa dos Poderes autônomos: Legislativo, Judiciário e Ministério Público. In: Mendes, M.J. (Org.) Gasto público eficiente: 91 propostas para o desenvolvimento do Brasil. Ed. Topbooks/Instituto Fernand Braudel.

Naritomi, J, Soares, R.R., Assunção, J. J. (2012) Institutional development and colonial heritage in Brazil. The Journal of Economic History, vol. 72, nº 2, jun.

Pinheiro, A.C. (2013) Os empréstimos do BNDES para os “campeões nacionais”. Valor Econômico, 1/3/2013.

Rajan, R. (2006) Competitive rent preservation, reform paralysis, and the persistence of underdevelopment. NBER Working Paper 12093.

Sonin, Konstantin (2003) Why the Rich may Favor Poor Protection of Property Rights. Journal of Comparative Economics, 31, 715-731.

Zanella, F.C., Ekelund, R.B., Laband, D.N. Monarchy, monopoly and merchantilism: Brazil vs. United States in the 1800s. Public Choice 116, p. 381-398.

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