Licitação – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Mon, 15 Mar 2021 14:47:11 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 A nova lei de licitações é mais eficiente economicamente? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3424&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-nova-lei-de-licitacoes-e-mais-eficiente-economicamente Mon, 15 Mar 2021 14:22:58 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3424 A nova lei de licitações é mais eficiente economicamente?

Por Eduardo Pedral Sampaio Fiuza[1]

 Introdução

Em votação relâmpago, o Senado aprovou o PL 4253/2020, o qual nada mais é que o Substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei destinado a substituir, no decurso de dois anos, a nada saudosa Lei 8.666 — que vem regendo as licitações e contratações públicas brasileiras desde 1993 –, bem como os seus “puxadinhos”, que vêm regendo respectivamente os pregões (Lei 10.520/2002) e o Regime Diferenciado de Contratações Públicas -RDC (Lei 12.462/2011). Antes do fechamento deste artigo, foi a plenário um parecer da Mesa Diretora para ajustes de redação previamente ao envio à Presidência da República para sanção. É desta versão final do Senado que agora trato, tendo a consciência de que outras alterações podem vir na forma de vetos da Presidência da República, os quais, por sua vez, podem ser em parte reexaminados e eventualmente revertidos pelo Congresso.

O anticlímax na votação morna pode ter sido capaz de obnubilar a cobertura jornalística do desfecho de tão longo processo de tramitação, que começou em 2007[2] e passou duas vezes por cada uma das duas Casas Legislativas. Mas as redes sociais pululam de convites para lives com os maiores juristas especializados em licitações, oferecendo análises com maior ou menor grau de profundidade sobre as mudanças implementadas.

O debate ocorrido nas duas Casas Legislativas foi muito frutífero e produziu grandes avanços na legislação de contratações públicas brasileira. A despeito disso, a peça legislativa aprovada ainda ficou aquém do necessário para ser considerada uma legislação verdadeiramente moderna e trazer maior agilidade, produtividade e competitividade às licitações e contratações brasileiras.

De fato, a despeito dos avanços alcançados até agora, são preocupantes alguns artigos que, ou cristalizam em lei regulamentações que até hoje vinham sendo aperfeiçoadas com maior rapidez por decretos ou outras normas infralegais, ou simplesmente andam na direção contrária à liberalização econômica que o País vem buscando empreender nos últimos anos.

Tendo participado ativamente – ainda que majoritariamente à distância, mas o suficiente para ver diversas sugestões de texto acolhidas pelas relatorias – das discussões sobre os impactos econômicos previstos em cada alteração trazida pela nova Lei, fui convidado por este site a consolidar aqui os pontos que resumem a minha visão sobre o conjunto da nova peça legislativa, utilizando do ferramental de análise microeconômico, que, por vezes, destoa das interpretações jurídicas. Sobre este mister ora me debruço, aproveitando-me principalmente das quatro notas técnicas, dois Textos para Discussão, três capítulos de livros e um artigo de periódico que escrevi, de 2009 a 2020, em sua maioria na companhia de ilustres coautores.

Maximalismo

Para começar, faço coro a vários renomados juristas no refrão de “Menos Lei e Mais Regulação Infralegal, por favor”. Em todas as minhas contribuições, defendi uma lei enxuta e a remissão de numerosos detalhes a regulamentações posteriores.

A nova lei tem 179 artigos em seu núcleo, mais outros 14 artigos contendo disposições transitórias. Esse excesso de detalhes consolida uma tendência maximalista da legislação do tema. Só para ficar nos últimos dois diplomas legais (os únicos do século XX exclusivamente versando sobre licitações), o Decreto-Lei 2300/1986 tinha 90 artigos, e a Lei 8666/1993 contém 126. Além disso, com esse inchaço, a nova Lei esvazia ainda mais as competências regulatórias dos entes subnacionais para essa matéria.

Países vizinhos ao Brasil, com ordenamento jurídico baseado no Direito Romano, e que passaram nos últimos dez anos por revisões de suas legislações de compras públicas em conformidade com recomendações da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), têm legislações bem mais enxutas, deixando para seus regulamentos (exarados pelo Poder Executivo) o maior detalhamento de procedimentos – ver Tabela 1. Na direção oposta, o Brasil incorporou ao texto legal vários detalhes que antes eram regulamentados por diferentes decretos. É o caso do Sistema de Registro de Preços e do pregão eletrônico. Outros detalhamentos — que sempre me esforcei sem sucesso para convencer os legisladores a deixar de fora da lei — dizem respeito aos modos de disputa – embora tenha de reconhecer que houve grandes avanços no leque de modalidades oferecido pela lei.

TABELA 1

GRAU DE DETALHAMENTO DAS LEIS E REGULAMENTOS EM PAÍSES LATINOAMERICANOS DA OCDE

País Ano da última lei ou alteração Artigos permanentes Artigos transitórios Regulamento
Chile 2018 39 11 29+1
Colômbia (duas leis) 2020 80+33 1 162
México 2020 86 5 137

Fonte: elaboração própria, a partir de buscas na Word Wide Web.

De fato, o texto aprovado, ao consolidar três leis anteriores (a Lei 8666/1993, a Lei 10.520/2005 e a Lei 12.462/2011), trouxe ainda elementos do Decreto 7.892/2013, com conteúdo regulamentar sobre procedimentos. Essa riqueza de detalhes torna-se, também, uma fraqueza, na medida em que cristaliza regras que não são baseadas em evidências e são mais difíceis de reverter, requerendo a aprovação de novos projetos de lei ou medidas provisórias. Os trabalhos que já publiquei, em sua maior parte com a coautoria de colegas, sempre defenderam que se deveria deixar o máximo de regulamentação para peças infralegais, e mais abaixo saliento alguns trechos que bem poderiam ser removidos da lei para facilitar essa regulamentação dentro do que há de mais moderno em contratações públicas no mundo.

Inovações

Vamos em seguida destacar as principais inovações do PL 4253 e, a partir do que já foi propugnado e discutido em obras anteriores, situar o leitor sobre seus impactos econômicos esperados.

Como pano de fundo, tentemos ver a floresta, em vez das árvores. Fortini e Amorim[3] fazem uma descrição mais “panorâmica” das mudanças efetuadas. Eles distinguem cinco grandes eixos temáticos em que a nova lei se destaca. O primeiro é a promoção da governança das contratações. O segundo eixo é o da profissionalização dos recursos humanos. O terceiro é o da impulsão ao planejamento das contratações. O quarto é o da absorção das tecnologias da informação e comunicação. O quinto é o do fortalecimento da prevenção a fraudes.

Além dos cinco eixos apontados acima, existem ainda outras dimensões de grande importância: o processo composto de seleção e adjudicação e o grau de coordenação em compras.

Vejamos abaixo cada uma dessas dimensões.

Governança

No que diz respeito à governança, a pregação econômica em favor do uso de seguros-garantias teve uma vitória parcial, na medida em que o art. 99 do PL permite que o edital exija a prestação da garantia na modalidade seguro-garantia em obras, o que é um avanço significativo. Mas este poder deveria ser prerrogativa da Administração, fosse qual fosse o objeto. Ainda perdura a prerrogativa do contratado em escolher o tipo de garantia para a maioria das outras obras. Foi incorporada à Lei principal uma importante inovação: A matriz de risco (art. 22) foi trazida da Lei do RDC – aliás, pela Lei 13.190/2015, que a introduziu no texto-base do RDC, art.9, § 5º — e foi mais detalhada na nova Lei. Nela são atribuídos às partes do contrato os riscos que cada uma tem maior poder de mitigar, como sabiamente ensina a Teoria Econômica de Contratos. O excessivo detalhamento, no entanto, é mais um que poderia ter sido deixado para regulamento.

É claro que a melhor ou pior governança contratual afeta o processo seletivo e por ele é retroalimentada. Tome-se o exemplo dos lances chamados inexequíveis. O art. 59 prevê que “serão desclassificadas as propostas que (…) III – apresentarem preços inexequíveis ou permanecerem acima do orçamento estimado para a contratação”; e que “§ 4º No caso de obras e serviços de engenharia, serão consideradas inexequíveis as propostas cujos valores forem inferiores a 75% (setenta e cinco por cento) do valor orçado pela Administração”. Ao mesmo tempo, porém, prevê que “§ 5º Nas contratações de obras e serviços de engenharia, será exigida garantia adicional do licitante vencedor cuja proposta for inferior a 85% (oitenta e cinco por cento) do valor orçado pela Administração, equivalente à diferença entre esse último e o valor da proposta, sem prejuízo das demais garantias exigíveis de acordo com esta Lei.”

O § 5º já deixa claro que pode ser sanada a “inexequibilidade da proposta”, que, como está definida no § 4º, é uma caracterização meramente baseada em estatística, sem nenhum mérito de revisão da técnica proposta pelo licitante. Portanto é um contrassenso desclassificar um licitante pelo § 4º se ele pode se defender pelo § 5º — que permite a defesa para preços abaixo de 85% do valor de referência, e isso inclui todos os casos particulares dos preços abaixo de 75%. Essa lamentável incongruência jurídica só pode dar margem a questionamentos judiciais, aumentando a judicialização das licitações, que é justamente uma das coisas que a nova Lei pretende evitar. Foi absolutamente infeliz a manutenção de dois parágrafos tão conflitantes quanto esses dois.

Ora, o § 5º é um avanço para a legislação. Como já insisti antes (Fiuza e Medeiros, 2014; Fiuza, Pompermayer e Rauen, 2019), o mais importante é fornecer as garantias, em particular o seguro-garantia com step in das seguradoras. Em particular, na primeira dessas notas técnicas (pp. 70-71), dissemos o seguinte: 

“De fato tende a ser complexa a distinção entre uma proposta boa para a administração pública, na qual o desconto em relação ao preço de referência foi significativo, e uma proposta cujo preço é inexequível ou levará a descumprimento contratual. 

Criar critérios de inabilitação mais rígidos nas licitações públicas poderia melhorar o índice de execução dos contratos. Ao mesmo tempo, correr-se-ia o risco de se descartarem propostas que eventualmente sejam as mais desejadas pelo poder público, por exemplo quando há inovações tecnológicas que permitam a redução significativa do preço em relação ao de referência. 

Uma forma de encaminhar essa questão seria propor a progressividade do percentual a ser segurado. Quanto maior o desconto na licitação em relação ao preço de referência, maior teria que ser a garantia – dentro da lógica em que a redução do valor em relação à referência aumenta o risco de inadimplemento contratual. Desta forma, haveria compatibilidade entre risco e retorno: uma contratação por valor mais baixo tende a ter um risco mais alto. Portanto, uma garantia de execução mais abrangente. 

Essa proposta é também interessante para enfrentar uma tendência de concessão de descontos exagerados. Como os órgãos de controle cada vez mais olham com desconfiança processos licitatórios que não sejam concluídos com desconto sobre o preço de referência, o incentivo da administração é sobre-estimar o valor de referência e o incentivo aos licitantes é conceder descontos mesmo em licitações em que o preço de referência foi bem calibrado. Nesse caso, a progressividade das garantias passa a ser ainda mais interessante, posto que os descontos exagerados levam a maiores riscos de inadimplemento contratual. 

Vale notar que o Art. 57 do Substitutivo [da Câmara, antes da aprovação final] ainda insiste na desclassificação de propostas “manifestamente inexequíveis”, mas cria uma zona cinzenta na qual os licitantes pouco acima do valor de corte por inexequibilidade ainda têm que apresentar garantias adicionais.”

Em seguida, reproduzimos a redação então proposta na Câmara dos Deputados, de uma complexidade extremamente confusa:

Art. 57. Serão desclassificadas as propostas que (…):

III – apresentarem preços manifestamente inexequíveis ou permanecerem acima do orçamento estimado para a contratação; (…)

§ 4° No caso de obras, consideram-se manifestamente inexequíveis as propostas cujos valores sejam inferiores a 80% (oitenta por cento) do menor dos seguintes valores:

I – média aritmética dos valores das propostas superiores a 80% (oitenta por cento) do valor orçado pela Administração;

II – valor orçado pela Administração.

§ 5º Antes de concluído o julgamento das propostas, o licitante poderá demonstrar falhas no cálculo do valor estimado da contratação, que possam impactar na análise da exequibilidade da proposta.

§ 6º Dos licitantes classificados na forma do § 4º que houverem apresentado proposta com valor global inferior a 85% (oitenta e cinco por cento) do menor dos valores a que se referem os incisos do § 4º, será exigida, para assinatura do contrato, prestação de garantia adicional, sem prejuízo das demais garantias exigíveis de acordo com esta Lei, igual à diferença entre o valor da proposta e o menor dos valores a que se referem os incisos do § 4º.

§ 7º A garantia adicional referida no § 6º deverá ser apresentada pelo licitante no prazo de 10 (dez) dias úteis do ato de classificação, sob pena de desclassificação de sua proposta.

Nossa proposta desde aquela época era muito mais clara e eficaz, e pode ser implementada em regulamento, mantendo-se a redação final aprovada no Senado, com a única exceção desse infeliz § 4º. O que propusemos foi o seguinte:

“A regulamentação posterior da Lei poderia perfeitamente disciplinar que essa garantia fosse provida em alíquota superior à das demais garantias exigíveis. Mas note-se que aqui propomos que qualquer desconto em relação ao preço de referência seja objeto de garantia em “dose superior”.

Podem ser previstas regras de proporcionalidade entre o desconto do licitante vencedor em relação ao preço de referência do edital e o valor a ser garantido por meio de seguro-garantia.

Profissionalização

No que diz respeito à profissionalização, Fortini e Amorim (op cit) avaliam que o PL requer da alta administração a promoção da gestão por competências, a exigência da avaliação da estrutura de recursos humanos, a identificação das competências necessárias para cada função e a definição clara das responsabilidades e dos papéis a serem desempenhados e, ao final, seleção e designação de agentes públicos que tenham conhecimentos, habilidades e atitudes compatíveis, sem prejuízo das avaliações de desempenho (arts. 7º e 8º, § 3º, do PL).

Na minha avaliação, porém, a maior frustração com o texto final é que ele ficou aquém de criar ou, ao menos, sugerir uma carreira própria a partir de profissionais com experiência na atividade, o que dependerá muito mais de cada Administração (nas esferas federal, estadual e municipal) em suas respectivas reformas administrativas.

Planejamento

O planejamento das contratações, fundamental para a consolidação e racionalização das compras nas várias esferas administrativas, e que era uma recomendação minha e de vários analistas externos, ganhou espaço na nova Lei: as unidades administrativas poderão ter Planos Anuais de Contratação. Embora a Lei ainda lhes faculte a opção de não elaborar tais planos, vale lembrar que o Poder Executivo Federal já se antecipou à Lei em 2019 e publicou uma Instrução Normativa (1/2019) obrigando as suas unidades administrativas a submeter tais planos.

Tecnologia

Quanto à absorção das tecnologias de informação e comunicação, é verdade que a Lei manda que os processos sejam digitais (art. 12, inciso VI) e os certames também (art. 17, § 2º). Outros elementos, como acompanhamento de obras, modelos de engenharia e obras, e catálogo de padronização de bens e serviços (art. 19), audiências públicas (art. 21), publicação de edital (arts. 31 e 97), submissão de documentos (art. 67) também passam a ser preferivelmente eletrônicos.

OK, os certames passam a ser preferencialmente eletrônicos (art. 17, § 2º), mas somente preferencialmente — o que significa que o órgão contratante ainda tem algumas situações em que pode evocar a necessidade de um certame presencial. Como exaustivamente discutido em notas técnicas anteriores, nenhuma delas realmente justifica a necessidade de um certame presencial, pois já se sabe, tanto por experiência prática quanto por estudos teóricos, que a melhor maneira de desarticular cartéis de licitações é manter a identidade dos licitantes ocultada, pelo menos, até a adjudicação do objeto – lembrando que os pregões eletrônicos federais não seguem essa orientação plenamente, pois as identidades dos licitantes são reveladas ainda na fase de aceitação. A gravação em áudio e vídeo nos casos de certames presenciais, nas condições tecnológicas atuais, é insuficiente para o uso de muitas das técnicas de detecção de cartéis disponíveis.

Quanto à prevenção de fraudes, outro tema que abordei em notas técnicas, ela passa pela difusão de políticas de integridade (tanto de fornecedores como das unidades administrativas), transparência e controle de conflitos de interesse dos agentes de compras. A nova Lei, no entanto, prefere colocar os órgãos de controle diretamente e preventivamente dentro dos processos de compras, fazer treinamentos, etc. Essa visão de que o órgão de controle sabe mais que o próprio agente de compras advém, como tanto faço questão de repisar, da baixa valorização do pessoal engajado em compras, sem carreiras definidas, sujeito a todas as penalidades mas a nenhum reconhecimento verbal nem monetário, em contraste com as carreiras de auditores e analistas de controle, que estão entre as mais bem pagas de todo o Serviço Público. Enquanto não houver um fortalecimento dos quadros e carreiras desta atividade, a presença do órgão de controle continuará pairando como uma ameaça constante e aterradora dos pobres e mal formados agentes de compras.

Seleção e adjudicação

Em primeiro lugar, a inversão de fases, que já existia no pregão e tinha sido ainda mais flexibilizada no RDC, passa a ser a regra, enquanto a habilitação antes do certame passa a ser a exceção (art. 17, § 1º) – essa mudança, ao ser estendida à modalidade concorrência, reduz a incidência de impugnações e recursos direcionados a licitantes que sequer apresentam propostas competitivas. Essa inversão de fases não é, porém, uma vacina infalível contra o uso de impugnações como parte da estratégia de cartéis em afastar licitantes de fora dos seus esquemas.

Ao percorrermos a lei, como não lamentar o excesso de outros detalhes? Vejamos, por exemplo, o cálculo do valor estimado da compra: o artigo 23 lista sistemas específicos mantidos pelo Poder Executivo. O que acontece se o Executivo desenvolver um sistema melhor ou, ainda mais, unificar vários sistemas num só? Deve-se reformar a Lei? Para que trazer tal informação em Lei? Por que a melhor estimativa é uma mediana? Isso vale sempre?

E as modalidades de licitação? Ora, conseguimos enxugar a lista de modalidades de compras (convite, tomada de preço e concorrência) que, originalmente, apenas variavam no grau de restrição, publicidade e prazo de divulgação, mas se resumiam todas (as da Lei 8666) a leilões de envelopes fechados presenciais com habilitação prévia, e praticamente se descartava o critério de adjudicação de técnica e preço, ao limitá-lo a um segmento muito específico dos bens e serviços. Agora todas as modalidades de compras anteriores podem ser resumidas numa só: a concorrência. A manutenção do nome, a meu ver, pode até causar confusão, pois durante dois anos a lei atual e a nova estarão em vigência simultaneamente, e não é difícil imaginar que, por mais que o instrumento convocatório deixe explícita qual lei estará sendo aplicada, sempre haverá a chance de que alguma parte do edital ou outra lei se refira a concorrência ambiguamente.

Mas não é só isso. O pregão foi mantido como modalidade à parte (ela não fazia parte do rol de modalidades original da Lei 8666), embora tenha se tornado tão somente um caso especial da concorrência. O pregão continua destinando-se a bens e serviços comuns, mas passa a poder ter inversão de fases. Curiosamente, não está escrito em nenhum lugar da lei explicitamente que ele não possa ter critério de julgamento diferente do menor preço ou maior desconto. A exclusão é indireta, na medida em que o caput do art. 29 que o objeto a ser licitado deve “possuir padrões de desempenho e qualidade que possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais de mercado”, e o parágrafo único do mesmo artigo diz que ele não se aplica a contratações de serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual e de obras e serviços de engenharia (com a exceção dos serviços “comuns” de engenharia). A lista de situações em que se pode aplicar o critério de julgamento de técnica e preço (art. 36) procura sempre enfatizar o caráter de “especial”, “específico” ou que não possa ser definido de maneira objetiva, o que, em tese, afastaria o uso do pregão. Vale notar que esse critério deve ser escolhido “quando o estudo técnico preliminar demonstrar que a avaliação e a ponderação técnica das propostas que superarem os requisitos mínimos estabelecidos no edital forem relevantes aos fins pretendidos” (art. 36, § 1º).

Mas isso não faz a menor diferença, pois a concorrência tem rigorosamente o mesmo rito do pregão (arts. 18 e 29).  A grande vantagem de se usar a concorrência é, portanto, a possibilidade de adotar critérios de julgamento diferentes do menor preço ou maior desconto. Seria mais fácil e direto, portanto, regular que os bens e serviços comuns devessem ser licitados por menor preço ou maior desconto, e os especiais e “diferenciáveis” por técnica e preço, em vez de se criarem modalidades “separadas”.

O compartilhamento de um mesmo rito procedimental entre a concorrência e o pregão se estende à escolha da fase de disputa, na medida em que a Lei é muito, muito restritiva a como as propostas são apresentadas: ou são apresentadas na forma fechada (disputa fechada) ou em lances sucessivos (disputa aberta). Como insisti ad nauseam em três notas técnicas, essa restrição é descabida. O art. 28, § 2º proíbe a criação de novas modalidades – diga-se de passagem, a antiga lei 8666 tinha a mesma vedação e, no entanto, o pregão e o RDC foram criados por leis subsequentes —, o que não seria uma restrição ativa se fosse possível inovar nas formas de disputa. Em verdade, a restrição está no art. 56, que descreve as formas de disputa aberta e fechada e, numa infeliz decisão dos deputados confirmada pelos senadores, impõe-se a realização de ao menos uma fase de disputa aberta:

Art. 56. O modo de disputa poderá ser, isolada ou conjuntamente: 

I – aberto, hipótese em que os licitantes apresentarão suas propostas por meio de lances públicos e sucessivos, crescentes ou decrescentes;

II – fechado, hipótese em que as propostas permanecerão em sigilo até a data e hora designadas para sua divulgação.

§ 1º A utilização isolada do modo de disputa fechado será vedada quando adotados os critérios de julgamento de menor preço ou de maior desconto.

 Ora, como fartamente exposto nas Notas Técnicas de que participei (Fiuza, Pompermayer e Rauen, 2019; Fiuza e Rauen, 2019), é uma ilusão achar que a disputa aberta aumenta a concorrência. A teoria e a evidência empírica não dão suporte a essa afirmação. Pelo contrário, organismos multilaterais, como a OCDE e o International Competition Network são bastante claros em suas recomendações para combate a cartéis de licitações: o modo de disputa fechado é o mais indicado. Isso porque ele não dá chance para os membros de um cartel se defenderem de “invasores” (isto é, concorrentes sérios, não ligados ao esquema criminoso) que entram no cartel de última hora, desde que o certame proteja o anonimato dos licitantes (o que só é possível se for garantida a obrigatoriedade do certame eletrônico). Os certames com disputa fechada atualmente regulados pela Lei 8666 são eivados de risco de conluio porque são presenciais, e não porque a disputa é por envelopes fechados. Os licitantes que participam de esquemas fraudulentos podem reagir à presença de membros externos através da guerra de impugnações ou, simplesmente, trocando o envelope que será entregue, ao perceberem a presença de concorrentes de fora do esquema. Isso não é possível no certame eletrônico com inversão de fase de habilitação, como disposto no PL 4253 em comento.

Mesmo o pregão presencial, que foi criado antes do eletrônico, tem uma fase de disputa aberta que parece gerar algum tipo de concorrência, mas vale lembrar que, racionalmente, sabendo que há essa fase aberta, os licitantes são menos agressivos em suas propostas iniciais. Só não são menos ainda porque o pregão presencial tem um limite no número de participantes que progridem para a fase de disputa aberta. Mas, mesmo introduzindo essa regra de progressão no pregão eletrônico por decreto, ela não é invulnerável a esquemas fraudulentos. Por exemplo, um cartel de licitantes pode dar propostas iniciais de cobertura bem próximas à do ganhador designado pelo cartel para dificultar a progressão de algum licitante externo ao cartel. É bom notar, também, que a Secretaria de Gestão do Ministério da Economia, que tanto apoiou a fase aberta, produziu o texto do Decreto 10.024/2019. Ao reconhecer que o modelo anterior tinha falhas – no caso, foi reconhecido que a regra de fechamento do pregão era ineficiente – uma das soluções encontradas e propostas foi… fazer mais uma disputa fechada! (copiando, aliás, a ideia do caput e inciso I do art. 59).

Feitas essas considerações sobre formas de disputa, notemos agora que, no fundo, passamos a ter apenas quatro modalidades bem distintas: concorrência (que inclui o pregão), o concurso, o leilão e o novo diálogo competitivo.

O concurso e o leilão não diferem significativamente de como eles eram antes. Embora se presuma que o critério de julgamento de melhor técnica ou conteúdo artístico se aplique tão somente aos concursos, em nenhum momento isso é explicitado. “Maior lance”, no jargão dessa lei, se refere a lances dados apenas em leilões (de venda), embora na ciência econômica os termos “lance” e “leilão” possam ser aplicados com referência tanto a compras (leilão reverso) como a vendas.

O diálogo competitivo é a grande novidade desta Lei, e se inspira na modalidade homônima da União Europeia. Ela começa pela publicação de um edital contendo a necessidade do órgão contratante que deve ser atendida. Os interessados se inscrevem e são pré-selecionados segundo critérios dispostos no edital. Podem ser feitas várias rodadas de consultas estritamente bilaterais e sigilosas entre o órgão contratante e os interessados pré-selecionados para que aquele identifique uma solução que atenda à necessidade apresentada. Esta solução escolhida passa a ser, em seguida, o objeto de novo edital, com “critérios objetivos a serem utilizados para seleção da proposta mais vantajosa”. Essa modalidade só deve ser aplicada em algumas situações especificas, envolvendo algum tipo de inovação, incerteza sobre a melhor solução a ser aplicada para atender às necessidades, ou mesmo a adaptação das soluções disponíveis no mercado.[4]

Mas mesmo aqui volta a crítica sobre a vedação de novas modalidades. No próprio artigo 32, abre-se a possibilidade de usar o diálogo competitivo a situações em que a Administração “III – considere que os modos de disputa aberto e fechado não permitem apreciação adequada das variações entre propostas”.

Ora, o diálogo competitivo é uma modalidade de licitação voltada para contratações nas quais a Administração não tem condições de definir por si só a solução para as suas necessidades, e não para suprir deficiências nos modos de disputa. Eu sugeri ao longo da tramitação dessa Lei muitos outros modos de disputa, tais como leilão de relógio, proxy, relógio-proxy, combinatório e, no entanto, nenhum deles foi acolhido pelas relatorias. Eles são modos de disputa bastante utilizados em leilões de concessões mundo afora, e as contribuições dos Profs. Robert Wilson e Paul Milgrom para a elaboração dessas modalidades foram recentemente agraciadas com o Prêmio Nobel de Economia 2020. Não obstante essa repetida insistência, o pouco conhecimento da Teoria dos Leilões no meio jurídico aparentemente impediu a difusão dessas inovações.

Os leilões de relógio não deveriam ser enquadrados, a princípio e a rigor, nem como disputa aberta nem fechada. Os leilões proxy ainda poderiam, com uma dose de boa vontade, ser entendidos como uma extensão da disputa aberta, pois os licitantes recorrem a uma parametrização que vincula os lances dados por robôs da própria plataforma de leilão. Os leilões combinatórios podem ser aplicados tanto em disputa fechada como aberta ou em disputa proxy, portanto entendo que podem ser introduzidos por regulamento posteriormente. Mas eles também poderiam ser aplicados a leilões de relógio, que, em tese, não estão previstos na Lei. A combinação entre relógio e proxy também seria inviabilizada. Existem ainda leilões pay-as-you-go, em que o valor unitário varia de acordo com a quantidade adquirida.

Em resumo: se a limitação dos modos de disputa é um problema, então seria melhor a Presidência baixar uma Medida Provisória com um novo inciso no art. 56 que abrisse a possibilidade de se criarem novos modos de disputa. Se não é para chegar a tanto, é melhor remover o inciso III do art. 32. O ponto, novamente, é que melhorias pontuais no funcionamento do pregão e da concorrência restam dificultadas porque a Lei é detalhada demais.

Outro problema sério que aparece nos critérios de julgamentos são as distorções causadas pelo que é conhecido na literatura econômica como bid preferences: pensadas como aplicações de funções regulatórias das licitações, essas visam obter outros objetivos além de obter o maior valor (ou, na linguagem econômica, maior “utilidade”) pelo preço pago – correspondente aos critérios de melhor técnica e de técnica e preço — ou o menor preço, sujeito a um nível mínimo de qualidade – correspondente aos critérios de menor preço e de maior desconto. Essas preferências funcionam de duas maneiras principais:

  • Em uma, elas destinam parcelas das compras a fornecedores de um grupo específico – aqui se enquadram os lotes (itens) exclusivos para micro e pequenas empresas e um bom número de incisos do artigo 75 que definem os casos em que se prevê o uso da dispensa de licitação para determinados tipos de fornecedores;
  • Em outra, elas distorcem os preços relativos entre os licitantes, de modo que o melhor lance ao final do certame não necessariamente é o vencedor – nessa classe se enquadram as margens de preferência puras e simples (conhecidas na literatura econômica como bid subsidies) e o chamado empate ficto, que dá a chance à micro ou pequena empresa de cobrir o melhor lance se a diferença entre este e o seu lance estiver abaixo de uma certa margem de desconto.

 Como exaustivamente argumentado em notas técnicas e em um Texto para Discussão (Fiuza e Medeiros, 2014), a maioria das previsões de dispensa de licitação para contratação de fornecedores específicos é resultado da ação de lobbies dos segmentos beneficiados. Tome o exemplo de um fornecedor que tem uma atividade de recuperação de presos pelo trabalho ou de integração de deficientes. Existem várias ONGs e empreendimentos sociais que atendem a esse critério, mas, se a Administração selecionar um único que seja ao seu bel prazer, e conseguir justificar o preço, essa ONG ou empresa não terá que concorrer com outras comparáveis, nem por preço nem por qualidade.

Outras previsões de dispensa são situações de inexigibilidade mal classificadas, compras de emergência, serviços especializados ou que podem comprometer a segurança nacional, e para a maioria delas se poderia introduzir alguma competição. Por exemplo, em outro Texto para Discussão, eu e outros colegas (Fiuza et al, 2020) alegamos que um sistema de registro de preços mais amplo permitiria aos órgãos da Administração introduzir concorrência numa primeira fase, criar um cadastro de fornecedores e acioná-los para rápida entrega com um procedimento tão célere quanto uma dispensa, com bastante transparência, e dando-lhes incentivos a ser agressivos nas condições oferecidas, tanto na primeira como na segunda fase – ver mais sobre o assunto abaixo. Mas, infelizmente, os lobbies venceram, e temos agora uma lei com ainda mais situações de dispensa e inexigibilidade que a anterior.

Quanto aos lotes exclusivos, conhecidos na literatura econômica como set asides, para Micro e Pequenas Empresas, essa prática é bastante difundida em outros países. As avaliações de impacto dessas políticas têm trazido resultados mistos, portanto não se pode descartá-los – de fato, é um tema da minha agenda de pesquisa atual, e em breve espero trazer alguns resultados preliminares, juntamente com uma resenha da experiência internacional digna do nome.

As margens de preferência em favor da produção nacional foram duramente criticadas em minhas notas técnicas, pois: (i) até hoje não foi demonstrada a eficácia das margens de preferência praticadas em observância da Lei 13.249/2010, para produtos nacionais; (ii) vão contra o esforço do Brasil em aderir ao Acordo de Compras Governamentais da Organização Mundial do Comércio[5]. Margens de preferência regionais poderiam ser até mesmo consideradas inconstitucionais por ferirem a vedação à preferência entre brasileiros — art.19, III, da Constituição.

De fato, com relação ao inciso I e § 5º: como fartamente exposto nas Notas Técnicas que coautorei, a margem de preferência vai de encontro ao esforço do Brasil em aderir ao Acordo Plurinacional de Compras Governamentais da Organização Mundial do Comércio, um acordo que tem o potencial de aumentar a concorrência pelos contratos governamentais e a transparência nas contratações, e assim reduzir o espaço para corrupção e cartelização dos mercados de compras governamentais brasileiros. O pedido de acesso foi feito em 2020!

Além disso, algumas Notas Técnicas têm relembrado que as poucas evidências disponíveis sobre a política brasileira de margens de preferência apontam para uma intervenção de baixa transparência (Rauen, 2016; Rauen, 2017). De fato, auditorias conduzidas pelo Tribunal de Contas da União (TCU) — Processo 016.783/2013-1 comprovam a falta de transparência e accountability social. Mesmo assim e apesar de existirem determinações do TCU, foram criadas e renovadas margens para, por exemplo, brinquedos. A referida política transformou-se em paradigma da falta de transparência e total descaso com a legislação e com os recursos públicos. Adicionalmente, recentemente as margens de preferência foram contestadas pela OMC.

Dos poucos estudos de avaliação realizados (mesmo que a legislação tenha exigido avaliações anuais), e que não estão disponíveis em nenhum site do Poder Executivo, não se pode concluir nada a respeito dos critérios de escolha dos produtos, serviços e setores beneficiados (muito embora seja evidente que o setor de brinquedos, um dos beneficiados, não deve ser prioritário no desenvolvimento nacional). Finalmente, o único documento disponível que trata dos impactos ex post não apresenta o uso efetivo da intervenção e sim, o infere a partir de suposições.

Além da ausência de transparência, a política das margens de preferência foi estabelecida sem a devida tradução para o sistema federal de compras. Os decretos das margens apresentavam os produtos e serviços em termos da Nomenclatura Comum do MERCOSUL – NCM, mas até hoje não se tem notícia de um conversor – oficial e amplamente divulgado – entre os códigos NCM e o CATMAT e CATSER empregados pelo sistema federal de compras. Consequentemente, não se sabe exatamente quem utilizou as margens ou mesmo, como elas poderiam ter sido utilizadas na ausência de tal conversor oficial.

Dada a insistente baixa transparência (em que pesem os esforços do TCU), associadas à ausência de informações de uso concreto e a ausência de critérios de seleção de setores, produtos e serviços beneficiados, bem como de uma análise de seu custo real, não se justifica a insistência em tal intervenção. De fato, a política brasileira de margens de preferência parece estar muito mais associada ao lobby de setores específicos do que ao estabelecimento criterioso de prioridades.

Note-se que margens de preferência não são a única maneira praticada pelo Brasil de beneficiar fornecedores locais: a legislação atual permite o desempate com base na produção doméstica ou em tecnologia desenvolvida no País. Os próprios benefícios a micro e pequenas empresas (cotas, lotes exclusivos e empate ficto) e preferências ligadas à adesão ao Processo Produtivo Básico (PPB) – notadamente para produtos de tecnologia da informação e comunicações no Plano Nacional de Banda Larga – acabam sendo apropriados por empresas brasileiras.

Finalmente, é importante lembrar que, apesar de existir previsão legal para o uso de margens, atualmente todos os decretos que as estabelecem venceram. Ou seja, atualmente nenhuma margem de preferência está em vigência (e a indústria brasileira continua existindo).

O efeito mais provável dessa nova tentativa é o aumento dos custos para a Administração sem contrapartida para a sociedade. Esse aumento de custos derivará da redução da concorrência e possível cartelização dos mercados onde ela incidir. O veto integral dos Incisos I e III e dos §§ 3º ao 5º (e seus incisos) do art. 26 é, portanto, o melhor que se poderia pensar para esta matéria.

Coordenação em compras

Para não perder o hábito, os legisladores trataram de trazer para a nova lei regulamentações até então infralegais em mais um aspecto das compras públicas:  o chamado sistema de registro de preços. Esse sistema permite, não só que a Administração pública contrate inicialmente apenas a opção da compra e depois tenha um prazo para exercê-la, como também permite agregar as compras de diversas Unidades Administrativas. O mesmo Texto para Discussão de Fiuza et al (2020) já mencionado faz um breve retrospecto histórico do uso de compras desse tipo e suas regulamentações ao longo da história brasileira.

No presente momento, a regulamentação é feita pelo Decreto 7.892/2013. A nova lei, no entanto, em seu artigo 81, traz uma detalhada regulamentação do Sistema de Registro de Preços. Ao mesmo tempo que traz novidades interessantes, como a possibilidade de um mesmo fornecedor cobrar preços diferentes de compradores diferentes, o artigo faz restrições sobre quantitativos, sobre o critério de julgamento e até mesmo veda a cobrança de preços diferentes de fornecedores diferentes a um mesmo comprador. O resultado final é nitidamente danoso ao interesse público, pelo engessamento que causa no SRP.

Em verdade, a rigor, o único texto desse artigo que deveria permanecer seria o § 5º e seus incisos, que dizem que o SRP pode ser usado para a contratação de bens e serviços, inclusive obras e serviços de engenharia, e estipula as condições. Todo o resto poderia ser tratado por decreto, pois é puramente procedimental.

A sua previsão em lei impediria modelar procedimentos que podem usar a dinâmica similar aos acordos-quadro (ou convênios-marco), e, em particular, o Sistema de Aquisições Dinâmicas, em vigor em outros países e que trazem mais agilidade para as contratações. O já referido Texto para Discussão de Fiuza et al (2020) dá vários exemplos da potencialidade dos acordos-quadros. Em particular, o Acordo-Quadro permite que a Administração conte com vários fornecedores aptos, dos quais a Unidade Administrativa pode cotar preços sujeitos a um teto e com condições mínimas de garantia e qualidade previamente homologados numa fase de pré-seleção, o que agiliza compras em situação de emergência. A redação aprovada para o sistema de registro de preços inviabiliza isso:

  1. reduz a licitação ao critério de menor preço ou maior desconto;
  2. obriga os fornecedores a igualar preço do vencedor.

Note que o PL prevê que também é possível fazer registro de preços por meio de contratação direta. Isso significa que, para valores pequenos, também a modalidade ou a dispensa seriam mais ágeis, pois o fornecedor já teria passado por todos os trâmites de habilitação e a contratação seria mais rápida. Mas mesmo compras sujeitas a licitação seriam beneficiadas, pois os compradores não precisariam alinhar-se numa padronização do bem ou serviço a ser adquirido, e poderiam “customizar” uma parte da descrição do objeto, desde que não alterassem a caracterização básica usada na fase de pré-seleção. Em ambos os casos, uma plataforma de e-commerce semelhante a um marketplace seria viabilizada.

Outro artigo que traz a regulamentação infralegal anterior para a lei é o art. 82, que regula detalhadamente a adesão à compra por SRP antes (em resposta à convocatória da intenção de registro de preços) e depois do certame — os ditos “caronas” (expressão que, aliás, o relator do PL 4253 removeu com uma emenda de redação).

Tenho plena consciência do quanto foi objeto de litígios e disputas a maior ou menor restrição a adesões dos chamados caronas a atas de registro de preços. Como relatado em Fiuza et al (2020), o atual Decreto que regula o SRP resultou de pressões do Tribunal de Contas da União (TCU). Agora tenta-se trazer para a Lei “de uma vez por todas” a regulamentação dos caronas, e com isso pacificar a questão. Deve-se reconhecer, inclusive, que é a melhor regulamentação vista até agora.

 Mas, com toda a franqueza, não só essa tentativa de regulamentação não vai resolver o problema dos caronas como vai minar os esforços do resto do próprio PL 4253 em colocar ordem nas compras.

O Art. 181 prevê a criação obrigatória de centrais de compras. O art. 12, inciso VII, prevê que “os órgãos responsáveis pelo planejamento de cada ente federativo poderão, na forma de regulamento, elaborar plano de contratações anual, com o objetivo de racionalizar as contratações dos órgãos e entidades sob sua competência, garantir o alinhamento com o seu planejamento estratégico e subsidiar a elaboração das respectivas leis orçamentárias”. Infelizmente a versão final trouxe o verbo “poderão”, em vez de “deverão”.

Com a obrigatoriedade de planos de compras e o requerimento de Planos Anuais de Contratação – como, aliás, já foi implementado pelo Poder Executivo Federal –, não pode haver espaço para improvisos. Uma compra conjunta deve reforçar o Poder de Compra do Estado e dar-lhe melhores condições de impor preços, padrões tecnológicos, de qualidade e sustentabilidade. Um Estado desorganizado que não é capaz de alinhar todos os seus órgãos em torno de uma ou poucas compras centralizadas nunca vai dominar os mercados públicos, mas sim sempre será dominado pelos seus fornecedores. Isso é inaceitável. Regulamentar a figura do carona é continuar com remendo velho em roupa nova.

Vetar todos esses parágrafos e seus incisos possibilitaria à Administração rever seus conceitos e prever Planos Anuais de Contratações conjuntos ou, no mínimo, mecanismos vinculantes de cooperação entre as Esferas Administrativas: com calendários claros e devidamente aplicados (isto é, um bom enforcement), essas Esferas podem alinhar-se nas compras de tudo em que precisarem juntar esforços. Foros de cooperação e empresas mistas de compras centralizadas como a existente na Dinamarca são exemplos de como se podem alinhar compras públicas e obter maior vantagem para a Administração Pública.

Evitando-se deixar a porta aberta para adesões posteriores, os entes federados e os diversos órgãos da Administração ver-se-ão forçados a aderir desde cedo às Intenções de Registro de Preço.

Além disso, deve ser criada uma trava para impedir que esses agentes façam suas compras isoladas. Mas isso pode ser feito por regulamento no âmbito de cada Esfera Administrativa.

Além do registro de preços, como instrumento para o exercício de opções de compras, foi engendrada na nova Lei uma nova figura, o credenciamento, mostrando que uma boa ideia sempre pode ser perdida quando se entram nos detalhes. As notas técnicas de Fiuza, Pompermayer e Rauen (2019) e Fiuza e Rauen (2019) foram incisivas em condenar a descrição dos atos previstos para o credenciamento, presentes no parágrafo único e seus incisos, do art. 79. Da maneira como seria regulamentado esse “procedimento auxiliar”, a Administração ficaria refém dos credenciados. Na primeira nota técnica, relatei como a assessoria da Comissão Temporária do PL na Câmara oferecia o credenciamento como uma forma de viabilizar os chamados Acordos-Quadros. A redação, à época, era ainda mais infeliz que a aprovada no texto final. Acredito que nossas críticas ajudaram a melhorar o texto, pois o caput e os seus três incisos são bastante defensáveis.

Mas o referido parágrafo único do art. 79 lista como deve funcionar o procedimento. Há várias semelhanças com o Sistema de Aquisição Dinâmico (SAD) europeu (Diretiva 24/2014, art. 34), só que o nosso é uma versão piorada. Há alguns problemas — dois incisos, em particular, nos preocuparam:

  1. O inciso I deste parágrafo único fala em credenciamento permanente. A experiência internacional com credenciamentos permanentes é muito negativa: os fornecedores e os burocratas se acomodam e não há pressão competitiva na sequência. Já o SAD original tem duração máxima prevista. Como o credenciamento não é um contrato, não há um mecanismo claro para reverter esse caráter “permanente” e qualquer tentativa subsequente de regulamentação estará sujeita a batalhas judiciais de credenciados que queiram manter seus privilégios – uma história cujo final é sobejamente conhecido no Brasil.
  2. O inciso II fala em distribuição da demanda entre os credenciados; juntando isso com o cadastramento permanente, ficamos com o pior dos mundos: um pool de fornecedores que sempre vai obter contratos, o que representa uma lamentável cartelização oficial, chancelada pela Administração.

O melhor, neste momento, é varrer toda a regulamentação para um decreto ou Instrução Normativa, e recomeçar o credenciamento como um procedimento que possa efetivamente auxiliar a celebração de Acordos-Quadros. Nos casos em que a Administração queira todos os agentes credenciados, deve haver um mecanismo de regulação dos preços e condições do fornecimento dos bens e serviços, ou uma negociação direta. Se não houver a pretensão de cobrir todo o mercado, o credenciamento deve ser capaz de funcionar como uma primeira fase de Acordo-Quadro, onde haja critérios que funcionem como um funil para que haja disputa por menor preço e ou melhores condições de fornecimento do bem ou serviço. A redação atual não entrega isso, e acaba por limitar o escopo do credenciamento e, pior, servir como instrumento de cartelização.

 Conclusões

 A nova lei de licitações, prestes a ser enviada ao Executivo para sanção, traz boas novidades que devemos saudar, como a reformulação e flexibilização das modalidades de licitação e dos critérios de julgamento, algum esboço de tentativa de profissionalização dos compradores, um maior apreço pelo seguro-garantia, a transposição – em maior ou menor grau – das várias fases dos processos de compras para meios digitais, e a criação do diálogo competitivo. Ao mesmo tempo, o texto peca pelo excessivo detalhamento, entrando em detalhes desnecessários sobre a forma de disputa, sobre o credenciamento, o registro de preços e o credenciamento. As margens de preferência também entraram no novo texto, o que pode dificultar, entre outros fatores, a negociação de acordos internacionais.

Em suma, houve bastante progresso, mas o excessivo nível de detalhe sugere que as primeiras emendas a esta lei não tardarão mais que o início da próxima legislatura – a não ser que haja vetos suficientes para que aspectos procedimentais sejam excluídos do texto sancionado.

 

[1] Agradeço a Bernardo Medeiros pela cuidadosa revisão e comentários feitos. Erros remanescentes são de minha inteira responsabilidade.

[2] O primeiro projeto de reforma abrangente da Lei 8.666/1993 no Congresso foi o PL 146/2003 na Câmara dos Deputados (18/3/2003), ao qual foram apensados outros oito projetos. Mas foi em 24/1/2007 que o Poder Executivo submeteu ao Congresso o PL no 7.709/2007, origem do texto agora prestes a ser sancionado. O tal PL 1292/1995, ao qual foi apensado o texto principal em sua segunda passagem pela Câmara, efetuava uma alteração bastante cirúrgica no texto, não se prestando como uma reforma abrangente.

[3] FORTINI, C. & AMORIM, R.A. (2021). Um novo olhar para a futura lei de licitações e contratos administrativos: a floresta além das árvores. Disponível em: http://www.licitacaoecontrato.com.br/artigos.html#.

[4] Essa modalidade não substitui, naturalmente, a figura das encomendas tecnológicas (lei 13.234/2016) – para um melhor detalhamento sobre o impacto previsto em contratações de inovações, recomendo a recentíssima nota técnica de André Rauen, Compras públicas de inovações segundo o texto final do PL n° 4.253/2020.

[5] Sobre os custos e benefícios da adesão a esse acordo, sugiro a leitura do Texto para Discussão de outro colega (Araújo, 2019).

 

Eduardo Pedral Sampaio Fiuza é doutor em Economia pela EPGE-FGV.

 

]]>
Qual a finalidade do Projeto de Lei de Novo Código de Mineração? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2203&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=qual-a-finalidade-do-projeto-de-lei-de-novo-codigo-de-mineracao https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2203#comments Mon, 07 Apr 2014 19:26:04 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2203 Em de junho de 2013, a Presidente Dilma Roussef enviou ao Congresso Nacional projeto para o novo marco regulatório da mineração. Trata-se do Projeto de Lei n° 5.807, de 2013 – o qual será denominado de PL neste texto. Se aprovado, o PL substituirá o atual Código de Mineração, o Decreto-Lei n° 227, de 28 de fevereiro de 1967.

Nas palavras da Presidente da República1, com a nova legislação objetiva-se:

criar um marco legal favorável aos negócios, aos investimentos produtivos fortalecendo um novo ciclo de desenvolvimento de nosso país, mas tudo isso com ganhos para a sociedade, para os trabalhadores e para o meio ambiente.

O presente texto busca analisar se, de fato, haverá estímulo aos investimentos na mineração. Mantida a redação original do PL, ao que tudo indica, o efeito será o inverso. A nova lei minerária afugentará os potenciais interessados, seja pela redução da remuneração líquida das empresas, seja pelo desestímulo à pesquisa mineral.

No que se refere à rentabilidade líquida das empresas mineradoras, fica evidente no texto a intenção do Governo em aumentar a participação governamental nas receitas, em detrimento do lucro privado. Busca-se, em especial, aumentar a receita de estados e municípios advindas da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM). A base de cálculo da CFEM deixará de ser o faturamento líquido e passará a ser a receita bruta da venda, deduzidos apenas os tributos efetivamente pagos incidentes sobre a sua comercialização, e a alíquota máxima subirá de 3% para 4%.

O efeito das mudanças da base de cálculo e da alíquota da CFEM será o fechamento daqueles empreendimentos minerais cujos custos já estão próximos às cotações dos minérios, com a consequente perda de empregos, de geração de riqueza e de arrecadação.

Diga-se de passagem, a arrecadação da CFEM, mesmo com a legislação vigente, é crescente, tendo saído de R$ 140 milhões, em 2003, para R$ 2,4 bilhões, em 2013, um aumento de 1.600%.

Com as regras propostas no PL, o próprio Governo estima que a arrecadação da CFEM dobrará2. A esse aumento da CFEM devem ser somadas as taxas incidentes sobre a mineração, criadas ou aumentadas pelo PL. Trata-se, portanto, de tentar capturar para o orçamento público parte dos ganhos das empresas, que cresceram substancialmente nos últimos anos, em função do apetite chinês por minérios.

Já a pesquisa de novas áreas passíveis de exploração ficará prejudicada pela mudança radical proposta para o sistema de outorga de títulos minerários. O que se propõe é a extinção do atual sistema de “ direito de prioridade”.

Pelo atual Código de Mineração, qualquer interessado pode pleitear uma “autorização de pesquisa” em uma determinada área3. A autorização de pesquisa é atribuída ao primeiro interessado cujo requerimento tenha por objeto área considerada livre, isto é, a área que não seja objeto de nenhum outro requerimento de data anterior.

Somente o titular da autorização de pesquisa pode requerer o direito de explorar minerais naquela área, ou seja, a concessão de lavra4. Resumidamente, o direito de prioridade significa que quem requer primeiro, atendidos certos requisitos burocráticos, ganha o título minerário.

Trata-se, portanto, de um regime de “autorização e concessão”. O PL substitui tal regime pelo sistema de licitação, para as áreas selecionadas pelo Conselho Nacional de Pesquisa Mineral (CNPM), órgão a ser criado, e pela chamada pública, quando o particular formalizar interesse nas áreas restantes.

A concessão precedida de licitação ou chamada pública significa o fim do direito de prioridade, adotado pela legislação minerária da maioria dos países mineradores, como Austrália, Canadá, México, Chile, Peru, entre outros; devido ao incentivo que representa ao empreendedorismo no setor mineral.

Como a prospecção mineral é uma atividade de baixo índice de sucesso – da ordem de 0,1%, ou seja, de cada 1.000 trabalhos de prospecção mineral, somente 1 resulta em uma descoberta comercial – só a expectativa de encontrar uma jazida de grande porte, e lucrar com sua produção, motiva as empresas a enfrentar empreitada de tão alto risco.

Uma empresa, quando requer a autorização de pesquisa para determinada área, o faz porque algum tipo de análise preliminar indicou a possibilidade da descoberta de um depósito mineral. É uma informação estratégica da empresa, fruto da expertise de seus técnicos, efetivamente protegida pelo direito de prioridade. A empresa requer a autorização de pesquisa porque sabe que, se encontrar algo valioso, terá a prioridade na lavra.

Com a chamada pública, introduzida pelo PL, a empresa não terá como resguardar das concorrentes o seu interesse por determinada área e correrá o risco de perdê-la no processo seletivo que pode se seguir. Ou seja, a empresa gasta tempo e dinheiro estudando uma determinada área e, ao constatar que a área é promissora, terá que tornar público seu interesse e disputar o direito de exploração em igualdades de condições com outras que nada investiram na pesquisa da área. Os demais concorrentes pegarão uma carona no tempo e dinheiro gastos pela empresa que se dedicou a estudar a área. Obviamente, nenhuma empresa terá incentivos para fazer tal estudo, preferindo aguardar que outras o façam.

É evidente que o fim da prioridade é um poderoso desestímulo à iniciativa de buscar áreas minerais promissoras. E o setor mineral perecerá sem a descoberta de novas jazidas, pois os recursos minerais são esgotáveis e, assim, novas reservas têm que ser descobertas para repor as reservas exauridas.

Os sistemas concorrenciais para acesso aos títulos minerários só se justificam quando há disponibilidade de informações geológicas detalhadas, de forma a permitir aos concorrentes fazer propostas bem fundadas nos certames. Quando essas informações geológicas não existem, o risco pode ser alto demais para os empreendedores fazerem lances, e eles se ausentam da licitação.

Extinto o regime de prioridade, haverá o refluxo das empresas privadas de prospecção e pesquisa mineral. Só restará o Serviço Geológico do Brasil (CPRM), empresa pública, para correr o risco de buscar novas áreas promissoras para a mineração. Conseguirá a CPRM realizar sozinha essa missão em todo o imenso território brasileiro? E a que custo? Os recursos privados serão substituídos pelos recursos do Estado em uma atividade de alto risco. É, no mínimo, discutível que o Estado, enfrentando dificuldades para prestar à população os serviços básicos de saúde, educação e segurança, entre outros, afaste o investimento privado e assuma mais um encargo.

Quando se verifica os excelentes resultados econômicos da mineração brasileira ao longo do século XXI – entre outros, o crescimento de mais de 500% e o saldo da balança comercial, que superou os 125 bilhões de dólares entre 2010 e 2013 – causa estranheza o empenho governamental para realizar mudanças tão radicais em um setor que, sem sombra de dúvida, apresenta desempenho satisfatório.

Decerto, a percepção de que o Estado não estava sendo adequadamente beneficiado pelo crescimento acelerado da renda mineral na década de 2000 foi um motivador importante para a alteração da lei minerária, ao menos, no que se refere à CFEM. Diferentemente de outros setores econômicos, a mineração transformou-se em alvo da atenção do Governo não por seus problemas, mas por seu sucesso.

Mas essa não foi a única razão. Percebe-se também, na formulação do novo marco regulatório, a manifestação da linha de pensamento, prevalecente no Governo, de que o Estado deve intervir profundamente na atividade econômica. Isto é, o PL é a versão para o setor mineral das políticas econômicas intervencionistas, e malsucedidas, adotadas pelo Governo Federal nos últimos anos.

Como defesa do PL, as autoridades governamentais preferem atacar o atual Código de Mineração, que, alegadamente, seria ultrapassado e daria margem a práticas especulativas. O desempenho econômico da mineração, por si só, desmente as críticas de anacronismo lançadas contra o atual Código, pois essa legislação minerária foi adequada o bastante para permitir que o Brasil, apesar dos problemas de infraestrutura bem conhecidos, se beneficiasse de um ciclo internacional positivo para a mineração.

Quanto à especulação, sempre mencionada, mas nunca comprovada de forma objetiva, ela não deriva da sistemática de acesso ao título minerário, mas da forma de retenção da área concedida, sem o devido cumprimento das regras estabelecidas no atual Código de Mineração quanto aos prazos e a execução de trabalhos de pesquisa mineral. Ressalte-se, porém, que o atual Código contém os instrumentos de coerção e sanção, inclusive a caducidade do título minerário, aplicáveis aos titulares que descumprirem as regras de forma reiterada.

Ou seja, o problema real não é o atual Código, mas a falta de fiscalização, que é realizada pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), sem, contudo, alcançar a intensidade desejável. Diga-se em defesa do DNPM que faltam recursos para a Autarquia cumprir suas atribuições, vítima que é de repetidos contingenciamentos de seu orçamento. Ora, se, de fato, o Governo considera que a especulação com títulos minerários é um problema sério, por que não foram repassados ao DNPM os recursos necessários para a fiscalização?

Além de aumentar a renda governamental decorrente da exploração mineral, a intenção do Governo com o PL parece ser também a de controlar o ritmo da exploração mineral.

Pela legislação atual, o requerente que atender a todos os requisitos constantes da lei e dos regulamentos, que não são poucos, tem que receber o título requerido. O DNPM e o MME não podem negar de forma discricionária, com base na conveniência e na oportunidade, os requerimentos em conformidade com a legislação. A forma encontrada para contornar essa vinculação foi a instituição da licitação. A frequência dos certames e as áreas oferecidas serão definidas pelas autoridades públicas.

Não estão claros os propósitos desse controle, mas é prudente temer os resultados, mormente considerando as características particulares do setor mineral. Considerando que a margem de acerto da prospecção mineral é de 0,1% e que usualmente o tempo decorrido da descoberta do recurso mineral até a colocação da mina em produção é de dez anos ou mais, como é possível estabelecer o ritmo adequado da mineração por meio do controle do acesso às áreas para pesquisa mineral? Seria como dirigir por uma estrada sinuosa com um carro no qual entre o girar do volante e a movimentação das rodas fossem percorridos quilômetros. Ou seja, o desastre seria inevitável.

Controlar talvez seja o primeiro passo de uma tentativa de planificação. Representantes do Governo já especulam se o aumento da produção de minérios para atender a China não ameaçaria o futuro fornecimento interno do Brasil. Logo, seria preciso estabelecer cotas de produção.

Se todos os dados necessários estivessem disponíveis, já seria bastante complexo estabelecer o ritmo ótimo de produção mineral. Imagine-se, então, estabelecer o ritmo ótimo de produção sem conhecer a demanda futura do Brasil e do Mundo, as cotações dos minérios, a descoberta de novas jazidas no Brasil e no Mundo, as novas tecnologias que aumentam ou diminuem a demanda por determinados bens minerais, etc. As chances de acerto seriam extremamente diminutas. A única certeza seria o desinteresse das empresas mineradoras pelo Brasil ante a possibilidade do Governo limitar a produção.

Em que pesem as melhores intenções de técnicos e ideólogos, o Governo, com o PL, opta por uma legislação minerária que percorre a avenida da mineração internacional na contramão. Não é sem razão que a avaliação da competitividade do negócio de mineração no Brasil vem caindo acentuadamente desde que foram sendo delineadas as mudanças do Código de Mineração. De acordo com o Fraser Institute, organização canadense que desenvolveu índice específico para avaliar essa competitividade, a posição do Brasil, em 2013, é a 65° entre 112 países e entes subnacionais analisados5. Em 2010, o Brasil estava em 40° entre 72 jurisdições analisadas. O resultado brasileiro de 2013 é muito ruim, mesmo quando comparado com outros países da América Latina que são importantes mineradores, como, Chile, em 30°, México, em 48°, e Peru, em 56°. O nosso destino não pode ser a queda do índice a ponto de alcançar a Bolívia, em 99°, ou a Venezuela, em 111°.

Infelizmente, esse tipo de posicionamento alheio em relação ao que se passa no Mundo não é inédito em nosso País. Os debates travados em torno do PL lembram aqueles da Constituinte de 1988, quando, ao final, prevaleceu a tese nacionalista, que introduziu na CF/1988 a vedação à participação de empresas de capital estrangeiro na mineração. O resultado foi a progressiva paralisação da pesquisa mineral no Brasil, só revertida pela Emenda Constitucional n° 6, de 1995, que retirou essa vedação e criou as condições que permitiram a mineração brasileira tirar bom proveito do ciclo de altas cotações das commodities minerais nos anos 2000.

Aliás, os melhores anos de tal ciclo parecem superados, e as consequências já se fazem sentir. De acordo com relatório do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), os investimentos em mineração no Brasil devem recuar para US$ 53,6 bilhões no período 2014-2018, contra cerca de US$ 75 bilhões previstos anteriormente para o período 2012-20166.

Em suma, o PL é uma clara manifestação de política econômica intervencionista e contrária ao empreendedorismo, associada ao furor arrecadatório que acomete estados e municípios, beneficiários últimos da receita da CFEM. O PL é inoportuno e não vai cumprir seu objetivo de atrair novos investimentos, pois se baseia em uma lógica que repudia o lucro. Parece que os formuladores do PL gostam de investimentos, mas não gostam dos investidores.

Cabe, então, ao Congresso Nacional introduzir as modificações no PL para harmonizá-lo com as necessidades de um setor mineral de grande porte, dinâmico, competitivo e inserido nas cadeias produtivas internacionais, como é o caso do setor mineral brasileiro.

______________________

1 Presidência da República, 2013. Disponível em: <http://www2.planalto.gov.br/imprensa/discursos/discurso-da-presidenta-da-republica-dilma-rousseff-durante-cerimonia-lancamento-do-marco-regulatorio-da-mineracao-brasilia-df >. Acesso em: 04/07/2013.

2 Presidência da República, ibidem. “A CFEM a partir de agora incidirá sobre a receita bruta das empresas mineradoras tendo alíquotas de até 4%. Isso dará um incremento importante para o orçamento dos estados e municípios que convivem com a atividade mineraria. A mudança na regra de cálculo permitirá praticamente dobrar a arrecadação proveniente dessa atividade.”

3 A autorização de pesquisa mineral depende de expedição de alvará de autorização do Diretor-Geral do DNPM.  A pesquisa mineral tem como objetivo de executar os trabalhos necessários à definição da jazida, sua avaliação e a determinação da exequibilidade do seu aproveitamento econômico.

4 A concessão de lavra depende de portaria de concessão do Ministro de Estado de Minas e Energia. A lavra tem como objetivo o aproveitamento industrial da jazida, desde a extração das substâncias minerais úteis que contiver até o beneficiamento das mesmas.

5 Fraser Institute. Survey of Mining Companies 2013. Disponível em: https://www.fraserinstitute.org/uploadedFiles/fraser-ca/Content/research-news/research/publications/mining-survey-2013.pdf. Acesso em 30/03/2014.

6 O Estado de São Paulo. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,apetite-de-mineradoras-para-investir-no-brasil-cai,1139451,0.htm. Acesso em: 31/03/2014.

Download:

  • veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2203 6
O TCU atrapalha o bom desenvolvimento das obras de infraestrutura do Governo Federal? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=45&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-tcu-atrapalha-o-bom-desenvolvimento-das-obras-de-infraestrutura-do-governo-federal https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=45#comments Sun, 20 Feb 2011 00:48:26 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=45 São comuns críticas de autoridades do Poder Executivo acerca da atividade de fiscalização do Tribunal de Contas da União (TCU). A alegação central dessas críticas seria o suposto fato de que “burocratas” do TCU, preocupados em seguir requisitos formais e de menor importância, estariam determinando a paralisação de uma grande quantidade de obras do Governo Federal, com elevado prejuízo para o País, devido ao atraso na conclusão de infraestrutura vital para acelerar o crescimento da economia.

Em setembro de 2009, por exemplo, a Folha On Line publicou a seguinte declaração do Ministro do Planejamento:

O ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, criticou hoje (…)a atuação do TCU (Tribunal de Contas da União).

Disse que o órgão assume as funções de poder Judiciário, Legislativo e Executivo, em vez de se concentrar em seu papel de corte de fiscalização ligada ao Congresso.

Paulo Bernardo afirmou, em tom brincalhão, que se o tribunal continuar nesse passo, o Brasil não conseguirá realizar a Copa do Mundo em 2014, só em 2020.

É natural que altas autoridades empenhadas em acelerar o ritmo de investimentos sintam-se incomodadas com procedimentos que frustram a conclusão de obras. Mas será que, de fato, o TCU atrapalha?

1. Não é o TCU quem paralisa as obras. O TCU realiza auditorias. Quando encontra indícios de irregularidades, recomenda (não determina) ao Congresso Nacional que não aloque verbas no orçamento federal para aquela obra. Quem toma a decisão final é o Congresso Nacional, no âmbito da Comissão Mista de Orçamento.

A criação desse mecanismo ocorreu em 1994 quando do escândalo de corrupção na obra da sede do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo. Embora estivesse evidente que havia desvio de dinheiro naquela obra, não existiam mecanismos institucionais capazes de barrar a destinação e o desembolso de verbas orçamentárias. Por isso, o Congresso passou a incluir nas Leis de Diretrizes Orçamentárias (LDO) um dispositivo prevendo que o TCU deveria recomendar a não alocação de verbas para obras com indícios de irregularidades, e que o Congresso deveria bloquear no orçamento a sua execução física e financeira, até a correção das irregularidades.

Trata-se, portanto, de um mecanismo preventivo, de “estancar a sangria” no momento em que ela é detectada. Procedimento muito mais eficaz do que nada fazer e aguardar que auditorias feitas posteriormente constatem formalmente as irregularidades e os prejuízos, abrindo-se um lento, custoso e quase sempre infrutífero processo de responsabilização criminal e de tentativa de recuperação do dinheiro perdido.

O mecanismo mostrou-se bastante eficaz em episódios marcantes como o da chamada “Operação Navalha” da Polícia Federal que, em 2007, detectou um esquema de corrupção em obras públicas centralizado na construtora Gautama. Antes mesmo da deflagração da operação policial, o TCU já havia apontado irregularidades graves nas obras e o Congresso já havia suspendido a alocação de recursos orçamentários.

2.Os parâmetros de preços são adequados. Uma crítica comum é a de que o TCU usaria preços de referência nacionais, sem levar em conta diferenças regionais e custos de frete. A afirmação não é correta. O TCU utiliza dois sistemas de preços:  o SICRO (elaborado pelo DNIT, existente há quase quarenta anos e submetido a permanente aperfeiçoamento) e o SINAPI (sistema de preços da construção civil elaborado em conjunto pela Caixa Econômica Federal e o IBGE). Ambos os sistemas apuram os custos por região, em bases mensais e são fontes de referência consistentes.

Ademais, a legislação permite que o TCU aceite valores superiores aos de referência, desde que haja justificativa técnica. Além disso, o grau de detalhamento desses sistemas é suficientemente amplo para que se possa compor custos a partir da quantidade de cada material individual utilizado, de modo que se pode diferenciar, por exemplo, o custo de pavimentação de uma rodovia de alto tráfego (que exige piso mais resistente) de uma estrada vicinal de baixo tráfego.

3.As apurações são detalhadas a ponto de detectar manipulações de planilhas. Uma reclamação comum é de que o TCU aponta irregularidades em obras devido a preços elevados em alguns itens da obra, mesmo quando o custo total está abaixo daquele indicado pelos parâmetros técnicos. Esse procedimento do TCU é correto, pois a apresentação, em licitação, de propostas que contêm itens muito caros e outros muito baratos constitui um artifício conhecido como “jogo de planilhas”.

Com o objetivo de ganhar a licitação, há empreiteiros que calculam um custo total competitivo, subfaturando alguns itens e superfaturando outros. No momento de execução da obra, ele executa apenas as partes nas quais os itens estão superfaturados. Quando chega o momento de fornecer os itens subfaturados, ele tem várias opções. A mais simples é abandonar a obra (depois de ter recebido pela parcela superfaturada). Mas ele também pode pressionar por um aditamento de contrato ou, simplesmente, usar uma quantidade menor dos itens subfaturados do que aquela prevista na licitação. Em todos os casos a obra acaba saindo mais cara para o contribuinte.

4.Não é qualquer pequena irregularidade que leva o TCU a recomendar a não alocação de recursos para uma obra. Somente obras com indícios de irregularidades graves recebem a recomendação de suspensão de recursos orçamentários. Faz-se uma avaliação dos benefícios (estancar procedimentos nocivos ao erário) e custos (perdas decorrentes da obra paralisada) antes de se recomendar a paralisação. As Leis de Diretrizes Orçamentárias (LDO) estabelecem claramente que as irregularidades devem alcançar valores relevantes em relação ao custo total da obra. A técnica de auditoria utilizada é de examinar a planilha de custos das obras, analisando os itens em ordem decrescente de valor e de impacto no custo total.

Não se trata, portanto, de recomendar a paralisação da construção de uma hidrelétrica “porque as vassouras compradas pelo departamento de limpeza estavam superfaturadas”. Os critérios para recomendação de paralisação são objetivos, e incluem principalmente :  superfaturamento, projeto básico deficiente ou desatualizado, edital (ou contrato ou aditivo contratual) incompleto ou inadequado e restrição à competição no processo licitatório.

Cabe chamar atenção para outra medida muito utilizada como alternativa à paralisação: a retenção parcial de valores. Nela opta-se pela anuência à continuidade da obra – mesmo com indícios de irregularidades – sempre que fique comprovado na fiscalização que o eventual prejuízo seja de natureza exclusivamente financeira e seja assegurado pelo gestor, sob diversas formas possíveis, um provisionamento de garantias suficientes à cobertura do risco envolvido[1]. Este procedimento permitiu que 20% das obras suscetíveis de paralisação em 2009 e 34,92 % em 2010 não fossem objeto de bloqueio da respectiva execução, sem risco de prejuízo aos cofres públicos.

5. O Congresso Nacional é quem tem a palavra final. O Gráfico abaixo mostra que o número de recomendações de bloqueio feitas pelo TCU difere bastante do número de obras efetivamente bloqueadas pelo Congresso. Em alguns anos o Congresso bloqueia mais obras que o recomendado pelo TCU e, em outros anos, bloqueia menos obras.

Gráfico 1 – Bloqueio de obras: número de obras apontadas pelo TCU e número de obras efetivamente bloqueadas pelo Congresso Nacional

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do TCU e do Congresso Nacional 2

6.O número e o porte das obras bloqueadas são ínfimos em relação ao total dos investimentos públicos. Em 2010 os bloqueios atingiram apenas 0,43% das obras incluídas na Lei Orçamentária Anual. Desde 2004 o maior percentual de obras atingidas por bloqueios foi de 1%, em 2005 . As obras bloqueadas em 2010 somavam R$ 5,45 bilhões, o que representa menos de 5% do investimento total de R$ 128 bilhões autorizado pelo orçamento[3].

7.Grande parte das obras representa problemas crônicos. O Gráfico 2 indica o percentual de obras com recomendação de paralisação em cada ano que já estavam na lista há mais de três anos. Fica evidente que, a cada ano que passa, é maior a concentração da recomendação de paralisação em obras com problemas crônicos. Em 2010 nada menos que 80% das recomendações encaixavam-se nessa categoria, o que leva a crer que as fiscalizações do TCU estão induzindo uma melhoria na gestão de novas obras, que agora estão sendo aprovadas na malha fina das auditorias: um inequívoco benefício para o país.

Gráfico 2 – Percentual de obras que acumulam recomendação de paralisação  há mais de três anos seguidos

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do TCU e do Congresso Nacional.

Assim, os dados demonstram que a atuação dos órgãos de controle externo – embora sujeita a eventuais erros e imprecisões como qualquer outra atividade governamental – não representa em si um obstáculo ao investimento público, nem a sua supressão implicaria em ganhos para o desenvolvimento.

Em vez de um problema em si mesmo, a detecção de irregularidades tem sido um termômetro que indica a existência de problemas de gestão mais sérios, e os bloqueios preventivos têm servido como forma de minimizar prejuízos ao Erário, induzindo uma gestão mais eficiente e reduzindo desperdícios e fraudes.


[1] Para uma descrição detalhada desse mecanismo, veja Nota Técnica Conjunta 09/2009 das Consultorias de Orçamento do Congresso Nacional (Saiba mais).

[2] “TCU” corresponde ao total de subtítulos para os quais o Tribunal recomendou o bloqueio da execução, e “Congresso” ao total de subtítulos constantes do Anexo específico de bloqueio de obras da mesma Lei.

[3] Fonte: sistema SIGA Brasil e leis orçamentárias de cada exercício, com os respectivos relatórios. Dados de execução até maio/2010.

Downloads:

  • veja este artigo também em versã o pdf (clique aqui).

Para ler mais sobre o tema:

Brasil. Câmara dos Deputados – Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira/Senado Federal – Consultoria de Orçamento, Fiscalização e Controle. Nota Técnica Conjunta 10/2009 – Mitos e fatos sobre o mecanismo de paralisação de obras com indícios de irregularidades graves. Brasília: Câmara dos Deputados/Senado Federal, 2009.  Saiba mais

]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=45 3