Licenciamento ambiental – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Tue, 19 Nov 2013 12:02:54 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Hidroelétricas no Brasil: a vitória do obscurantismo https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2065&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=hidreletricas-no-brasil-e-a-vitoria-do-obscurantismo https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2065#comments Mon, 18 Nov 2013 12:49:33 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2065 O anedotário da caserna nos conta que, ao assumir o comando de um quartel, um coronel indagou de seu oficial imediato acerca de um posto de sentinela permanente em frente a um banco de praça. Percorreu-se, sem sucesso, toda a cadeia hierárquica atrás da resposta, até que o soldado mais antigo do quartel acabou com mistério: há muitos anos, o banco fora pintado e, por isso, providenciou-se uma sentinela para evitar que alguém, inadvertidamente, sentasse sobre a tinta fresca. Desde então, o posto nunca mais ficou sem vigilância.

É inevitável a lembrança da sentinela do banco quando se assiste a alguém do Governo Federal, compungida e conformadamente, informar à platéia que “a sociedade decidiu que não se pode mais construir hidroelétricas com grandes reservatórios”. A sociedade quem, cara-pálida? Quando, onde e por quem essa decisão foi tomada?

Fala sério, autoridade! Isso nunca foi discutido adequadamente no Brasil e, menos ainda, definido por meio de mecanismos da democracia representativa. Nem quem vota nem quem foi votado escolheu coisa alguma. Essa decisão é de responsabilidade exclusiva de gente amedrontada por meia dúzia de bumbeiros tonitruantes. Gente que, passivamente, ouve os parlapatões midiáticos dizerem que a energia eólica substitui, com vantagens, a hidroeletricidade. Gente que afirma que Belo Monte vai afetar o Parque Nacional do Xingu, aquela maravilha situada rio acima – a “apenas” 1.300km, aproximadamente.

A Comissão Internacional de Grandes Barragens, uma entidade de reconhecida qualificação técnica que realiza levantamentos sistemáticos em diversos países, periodicamente publica uma lista dos países com mais de duzentas grandes barragens em operação. Trata-se aqui de estruturas com altura igual ou superior a 15m e, também, as que possuem altura variável entre 10 e 15m, desde que tenham capacidade de armazenar mais de 3 milhões m3 de água em seus respectivos reservatórios.

Como esperado, a China, os Estados Unidos e a Índia ocupam as primeiras posições na lista. O Japão e a Coreia do Sul, surpreendentemente, ocupam a quarta e a quinta posições, respectivamente, superando, sucessivamente, o Canadá, a África do Sul e o Brasil.

Quando nos lembramos das condições climáticas adversas do enorme território canadense, ficamos nos perguntando sobre certo país privilegiado, em cujos corpos d’água se encontram 12% da água doce superficial do planeta – muito mal distribuídos, diga-se de passagem. Chega-se à conclusão de que a razão entre a quantidade de barragens e a extensão do nosso território é bem modesta, nomeadamente quando comparada com os dois países asiáticos que, obviamente, não se destacam no panorama internacional pela extensão territorial e, tampouco, pela geração hidrelétrica.

Há atualmente cerca de 50 mil grandes barragens em operação mundo afora. O Brasil mal ultrapassa o milhar, enquanto a Coreia do Sul, um país menor do que o Estado de São Paulo, tem um terço a mais, e o Japão, o triplo. Isso nos leva a pensar que essas sociedades priorizaram a regularização das vazões de seus rios, como forma de controlar os seus múltiplos usos, tais como o controle de inundações, a mitigação dos efeitos das secas, a irrigação de lavouras, o suprimento de água potável, a navegação e o controle de doenças de origem hídrica.

É interessante notar que, no Brasil, quanto mais sectários são os opositores aos empreendimentos hidroelétricos, mais eles se utilizam da palavra “barragem”, em vez de “usina” ou de “hidroelétrica”, sugerindo que os barramentos ao curso natural dos rios não podem ser feitos, em nenhuma hipótese. Eles falam em impactos “irreversíveis”. Não usariam esse termo se tivessem prestado atenção às aulas de química nos cursos de ensino médio – especialmente às que tratam de equilíbrios e seus deslocamentos. Lembrariam que há uma quantidade fixa de água no planeta e que os reservatórios são uma forma milenar de gestão desse recurso. Distinguiriam os argumentos coerentes daqueles contaminados por avaliações subjetivas, desprovidas de consistência técnica ou científica.

Aqui, os conflitos vêm sendo criados, predominantemente, por crenças e convicções preestabelecidas, colidentes com os fundamentos das abordagens científicas dos impactos ambientais. Em vez de ciência, o licenciamento ambiental é uma notável coleção de opiniões. Neste país paradoxal, ao tempo em que se dá espaço na mídia a palpiteiros que combatem as hidroelétricas e seus reservatórios, não se toma conhecimento das diversas manifestações da Agência Nacional de Águas (ANA), onde gente que estuda seriamente o assunto defende o armazenamento de água como essencial para o desenvolvimento sustentável.

Não se trata de construir barragens apenas para que o setor elétrico utilize a energia hidráulica dos nossos rios. Trata-se de contar com “registros no encanamento”, controlando a disponibilidade hídrica, guardando e usando com moderação e responsabilidade, de acordo com o atávico conhecimento dos usos múltiplos de reservatórios. É fazer o maior número possível de barragens permitido pelo conhecimento científico atual. Isso não é para “achistas” que, deturpando o Princípio da Precaução, pretendem estancar a marcha do conhecimento humano. Houvessem prestado atenção às aulas de matemática e de biologia, saberiam por que “risco zero” pode significar “custo infinito” e por que a energia mais poluente é a que não se tem.

Na versão 2012 do Programme for International Student Assessment (PISA), uma medida da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para avaliar a qualidade da educação no mundo em 65 países, o Brasil aparece em 53ª posição, entre os 15 com pior desempenho. A China lidera o ranking, seguida de Coreia do Sul, Finlândia, Hong Kong e Cingapura.

Entre os países que pertencem à OCDE, há seis que apresentam um elevado nível de proficiência em ciências ambientais na escala do PISA. Isso quer dizer que os alunos conseguem aplicar o conhecimento científico na busca do entendimento das questões ambientais. Entre esses países, estão o Japão, a Coreia do Sul e o Canadá – nações que apresentam proporções particularmente altas nessa avaliação e que – ora vejam – utilizam intensivamente o armazenamento de água em barragens.

O Brasil possui seis engenheiros para cada grupo de 100 mil pessoas. O Japão possui cinco vezes mais. Em 2012, o Brasil formou menos de 40 mil engenheiros, e a Coreia do Sul, com menos de um quarto da nossa população, formou o triplo. Tudo isso deve ser coincidência.

(Texto originalmente publicado no jornal Valor Econômico em 11/11/2013.)

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Por que o licenciamento ambiental no Brasil é tão complicado? (Parte III) https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1827&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-olicenciamento-ambiental-no-brasil-e-tao-complicado-parte-iii https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1827#comments Mon, 06 May 2013 13:40:15 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1827 Como o processo de licenciamento prevê a revisão dos estudos ambientais pelos órgãos licenciadores, a ser feita depois de uma consulta à sociedade, deve-se investigar como acontece tal oitiva para podermos analisar os efeitos desse tipo de evento sobre o processo. Na Parte I desta série de textos, descrevemos a audiência pública do processo de licenciamento como sendo “um evento que representa uma oportunidade ímpar de participação direta da sociedade, sob a forma de perguntas e respostas à equipe técnica encarregada da elaboração dos estudos”. E daí? Isso funciona bem?

A resposta a essa questão é, também, uma das mais importantes do conjunto que aqui é apresentado para aceitar o desafio feito na pergunta-título da série. Se às comunidadesé dada a responsabilidade de aprimorar o EIA, orientando as exigências que o órgão licenciador faz ao empreendedor, sob a forma de condicionantes da emissão da respectiva licença, oseventos durante os quais se realizam tais consultas deveriam assumir importância determinante para legitimar o processo. Entretanto, não é exatamente assim que as coisas acontecem. De fato, a expressão “oportunidade ímpar” foi ardilosamente utilizada no primeiro texto da série. A imparidade deve ser entendida, nesses casos, como uma qualidade associada a uma ocorrência única, isolada, pontual.

Trata-se de uma consulta – e não de um processo decisório, enfatize-se – muito deficiente e problemática. De fato, os grupos de pressão que têm muito a ganhar ou a perder com a implantação de um determinado empreendimento ou atividade se mobilizam para um momento específico, datado, delimitado e, por conseguinte, de efeito bastante limitado. De parte do empreendedor, tudo são flores. De parte dos grupos contrários, tudo é desgraça. No centro do conflito estão os técnicos dos órgãos ambientais responsáveis pelo licenciamento, geralmente mal remunerados e com uma enorme responsabilidade. Junte-se a isso a falta de capacitação para dirigir tais eventos e o compreensível temor por sua própria segurança pessoal e temos um grande estímulo para esses funcionários – para fazer outros concursos, é claro.

Nas audiências, os que crêemque perderão muito e os que acreditam que terão muito a ganhar com a implantação do projeto agem mais intensamente que os demais setores da sociedade, e, nesses casos, sua pressão pode gerar um viés favorável ou contrário ao projeto. A regra geral é encontrarmais mobilizados os grupos que enfatizam as externalidades negativas do projeto, enquanto potenciais beneficiários dos demais setores da sociedade não comparecem à audiência e, portanto, não

opinam. Uma das causas dessa distorção é a relativamente fácil identificação dos potenciais afetados, ou seja, os que consideram serem seus prejuízos evidentes e certos são sempre mais visíveis. Já os potenciais beneficiários formam, muitas vezes, um grupo difuso, que não consegue sequer precisar quando e quanto receberá algum benefício.

A rigor, o licenciamento prevê – ao menos em teoria – contribuição da sociedade não apenas nas audiências públicas, mas, também, durante a realização dos estudos ambientais. Não há dúvidas de que o mais recomendável para o aprimoramento do processo seria a troca de informações entre comunidades, técnicos e cientistas. O objetivo principal seria subsidiar a elaboração do próprio EIA, apontando prioridades e auxiliando na identificação dos possíveis impactos sobre o ambiente. A incorporação de contribuições relevantes poderia, desse modo,promover ganhos significativos em razão da possibilidade de aprimoramento dos projetos, o que diminuiria ou eliminaria os conflitos associados ao licenciamento.

As consultasà sociedade têm um grande potencial de contribuição no que se refere aos procedimentos de mediação de conflitos, pois podem incorporar de modo efetivo as dimensões social e ambiental do desenvolvimento, tanto regional quanto nacionalmente. Todavia, na prática, tal contribuição é espasmódica, superestimada, distorcida e tardia. Praticamente não existem processos de licenciamento sem a realização dessas audiências, mas esses eventos oscilam entre a sonolência burocrática e a histeria coletiva, eventualmente beirando o ridículo.

Os mecanismos que emergem de normas imperfeitas não apenas estão longe de garantir a efetiva participação da sociedade no licenciamento como, também, permitem a criação de importantes espaços de atuação para interessados no acirramento dos conflitos. É um verdadeiro caldo de cultura para oportunistas.

As audiências públicas não atingem os seus objetivos, pois não têm sido acatadas como garantia da participação social no processo de licenciamento. São eventos radicalizados pelo enfrentamento de grupos de pressão – entre si ou entre esses grupos e os empreendedores. As discussões são, na realidade, embates contaminados pela utilização de avaliações subjetivas, de informações não-validadas e de argumentação desprovida de caráter técnico ou científico.

Na prática, esses eventos impedem que haja a negociação. Aliás, essa é uma palavra interpretada como sinônimo de negociata por muitos ativistas. Faltam as indispensáveis discussões sobre informações validadas por mecanismos confiáveis. Os subsídios ao processo decisório são prejudicados pela forma de atuação de movimentos sociais, representados nesses atos públicos por pessoas que alegam uma legitimidade que não é facilmente atestável.

Os contendores, em geral, demonstram desconhecimento do EIA e do Rima. Esse fato, por si só, é muito relevante. Porém, é ainda mais significativo quando se considera que, em geral, as comunidades afetadas – como as indígenas, por exemplo – não se encontram preparadas para avaliar e discutir estudos de tal complexidade. Isso confere grande dificuldade ao exercício da participação, na medida em que, para tanto, é necessário empreender análises técnicas ou científicas dos estudos apresentados pelos empreendedores. Nesses espaços atuam os “intérpretes”dessas comunidades.

Essas são ocasiões em que os movimentos sociais e as organizações não governamentais concedem a si próprios o monopólio da representação das comunidades afetadas. Como regra geral, essas entidades atribuem aos políticos – ainda que tenham sido eleitos por essas mesmas comunidades – falta de legitimidade para representá-las. De outra parte, o espaço aberto nas audiências públicas é, com frequência, utilizado por pessoas que, em grande medida, se associam às reivindicações das comunidades por mera estratégia eleitoral.

O espaço das audiências públicas é utilizado, na maioria dos casos, como estuário dascarências das comunidades das regiões de influência do empreendimento, especialmente de demandas antigas não adequadamente resolvidas pelo Poder Público. Desse modo, o dever do atendimento de algumas – ou muitas – das necessidades básicas da população passa a ser do empreendedor. Ele se torna responsável pela alocação de recursos e pela realização de obras destinadas ao cumprimento dessas exigências que, de resto, são guindadas à condição de condicionantes socioambientais.

Assim, no processo de emissão de licenças, ainda que não esteja clara a relação entre os impactos da obra e essas compensações, o empreendedor é “promovido” a agente público. Postos de saúde, escolas, meios de transporte, distribuição de energia elétrica, saneamento básico e segurança pública são apenas alguns dos tópicos dessas extensas listas de obrigações.

Em vez da discussão dos impactos associados ao projeto, nas audiências públicas as análises e os debates envolvendo o EIA e o Rima transformam-se em uma interminável ladainha de reivindicações que, equivocadamente, são feitas ao órgão licenciador ambiental, ainda que o empreendedor seja o Estado. Desviados de seus objetivos fundamentais, esses eventos são utilizadas tanto por defensores quanto por adversários dos projetos para cooptar a população afetada e seus vizinhos, além dos usuais expedientes destinados à obtenção de espaço nos meios de comunicação. Nesses casos, é bastante frequente a manipulação política das populações envolvidas.

Tais características são agravadas pelo rito adotado nas audiências públicas. Nelas a falta de capacitação dos servidores que presidem os eventos e a linguagem utilizada nos processos de comunicação com a sociedade, tanto na elaboração do Rima quanto nas apresentações durante as audiências, deixam um quadro de imobilidade nas comunidades locais. Essa imobilidade deriva da falta de entendimento adequado das características do projeto e da expectativa de que as reivindicações feitas ao longo desses eventos sejam atendidas. Nesse contexto, é comum a realização de audiências do licenciamento como simples etapas de um processo burocrático que apenas legitima decisões prévias.

É um grande equívoco dar à audiência pública a condição de momento maior da participação da sociedade no licenciamento ambiental. Esperar que, por intermédio de uma consulta restrita e pontual, o processo de licenciamento seja aprimorado é uma ingenuidade. Os debates relacionados com a localização, a instalação, a ampliação e a operação dos empreendimentos não podem ser feitospor meio de rituais desse tipo.

As audiências são, a rigor, procedimentos administrativos realizados ao longo de algumas torturantes horas e que ocorrem, não raras vezes, em locais e horários inadequados. Isso para não falar das apresentações elaboradas pelos responsáveis pelos projetos, não raro, incompreensíveis para o cidadão comum.

Há muitos episódios esquisitos que ilustram bem a inutilidade dessas consultas isoladas. Citaremos três, nenhum deles fictício ou fruto de hiperbolismo. Um gasoduto foi apresentado aos potenciais interessados em conhecer os impactos do projeto durante uma audiência ocorrida no oitavo andar de um prédio. Tratava-se do edifício-sede da federação das indústrias de um dos mais pobres estados brasileiros. Não bastasse o evidente desestímulo à presença dos cidadãos mais humildes no debate, o evento foi realizado à noite, na hora da novela de tevê. Uma ferrovia foi descrita aos poucos e sonolentos presentes em um enorme auditório,após o almoço de sábado, em uma cidade do interior do Nordeste, onde esse dia da semana é dedicado ao consumo de buchadas de bode no almoço, sempre seguidas de uma reconfortante sesta.Uma hidrelétrica de grande porte na região Norte teve os seus estudos apresentados e bravamente defendidos, ao longo de uma escaldante tarde, em um ginásio coberto de uma pequena cidade, por um competente técnico “hermano” que, malgrado suas incontestáveis credenciais técnicas, descrevia os estudos ambientais em bom “portunhol”. É tão surreal que dispensa comentários adicionais, mas também aconteceu.

Os empreendedores, em geral, não evitam a disseminação de informações inadequadas ou incorretas. Ainda pior, quando o Rima é apresentado às pessoas, muitas opiniões e impressões já foram cristalizadas entre os locais. No caso das usinas hidrelétricas, por exemplo, a mera notícia de sua construção provoca apreensão e incerteza nas comunidades, especialmente aquelas da área de influência direta do empreendimento. Especulações sobre áreas passíveis de serem inundadas criam um clima hostil para os empreendedores. Movimentos sociais se posicionam contra o desenvolvimento das atividades previstas no projeto. Grupos ambientalistas protestam preventivamente. Quase nada poderá mudar nas audiências, ainda que o projeto seja adequadamente compreendido pelas comunidades atingidas, o que raramente ocorre. Desse modo, a rigor,essas reuniões pouco ou nada contribuem para o esclarecimento da sociedade.

As audiências públicas acabam por se tornar complicadores adicionais do licenciamento, pois essa forma de participação é, com freqüência, contestada judicialmente pelos descontentes tanto com a dinâmica dos eventos quanto com os resultados obtidos. O descontentamento existe tanto por parte de movimentos contrários aos empreendimentos sob licenciamento quanto dos principais interessados na obtenção das respectivas licenças. Ressalte-se que essas consultas não são raras, como demonstra o quadro abaixo:

Considerando-se o período de um ano como o conjunto de 52 semanas, tem-se que, de 2005 a 2012, transcorreram 416 semanas. Portanto, o Ibama planejou e executou no período, em média, uma audiência pública por semana. Considerando-se o ano de 2010, a média aproximada é de 1,58 eventos desse tipo a cada semana. É uma tarefa de considerável envergadura, especialmente quando se consideram os recorrentes problemas orçamentários daquele órgão. Contudo, não são obtidos ganhos proporcionais a esse louvável esforço, uma vez que há problemas nos fundamentos das audiências públicas. Eventos isolados não são capazes de responder adequadamente às expectativas criadas pela possibilidade de participação dos cidadãos interessados.

Processos efetivos de comunicação social poderiam dar aos atores desse processo melhores condições para sua contribuição para o aprimoramento do licenciamento. Quando não são utilizados apenas para promover empreendimentos, esses mecanismos têm grande potencial para viabilizar negociações legítimas, por meio da troca de informações validadas entre as partes interessadas.

Para dar a essas trocas tanto eficiência quanto eficácia, é preciso valer-se de técnicas de comunicação adequadas, esclarecendo as dúvidas pertinentes, dissociando-as das manifestações de ativismo rançoso e, com isso, permitindo que a sociedade participe de modo efetivo. O problema é que as normas legais não definem claramente critérios ou diretrizes para que seja possível estabelecer processos de comunicação ao longo do processo de licenciamento. Ao contrário, os componentes participativos do licenciamento ambiental são estabelecidos por meio de resoluções do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA) – por meio de normas infralegais,portanto. Dada a omissão do Congresso Nacional diante do tema, a democracia participativa ocupa o espaço da democracia representativa. Assim é a vida na Terra, na qual o vácuo não dura muito tempo.

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Para saber mais sobre o tema:

Faria, I.D.  (2006). A “Síndrome de Genelício”:sobre a participação da sociedade no licenciamento ambiental.Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal. Texto para Discussão nº 31. Disponível emhttp://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD31-IvanDutraFaria.pdf.

Faria, I.D.  (2008).Compensação Ambiental: Os fundamentos e as normas; A gestão e os conflitos.Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal. Texto para Discussão nº 43.Disponível emhttp://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD43-IvanDutraFaria.pdf.

Faria, I.D.  (2011). Ambiente e energia: crença e ciência no licenciamento ambiental, parte II. Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal. Texto para Discussão nº 94. Disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD94-IvanDutraFaria.pdf.

Faria, I.D.  (2011). Ambiente e energia: crença e ciência no licenciamento ambiental, parte III. Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal. Texto para Discussão nº 99. Disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD99-IvanDutraFaria.pdf

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Por que o licenciamento ambiental no Brasil é tão complicado? (Parte II) https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1793&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-o-licenciamento-ambiental-no-brasil-e-tao-complicado-parte-ii Mon, 08 Apr 2013 12:49:47 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1793 Para continuar a responder essa questão, parte-se aqui do seguinte ponto: a legitimação do licenciamento ambiental exige a garantia de que as informações necessárias ao processo de tomada de decisão devem ser validadas por mecanismos confiáveis e só então transmitidas,em um padrão acessível de linguagem, à sociedade em geral e, nomeadamente, às comunidades diretamente afetadas pelo respectivo empreendimento.

Em princípio, trata-se de responsabilidade imposta no ordenamento jurídico nacional, a começar pela própria Constituição de 1988, tanto ao empreendedor quanto ao órgão licenciador. Mas, e quanto aos meios de comunicação, em geral? Em que medida a mídia influencia o desenrolar dos conflitos associados ao licenciamento ambiental, na medida em que se trata aqui da transmissão de informações devidamente validadas?

Quando se falava, bem antigamente, que papel aceita tudo, significando que qualquer um pode falar o que quiser, ainda que o que se diz não necessariamente corresponda à verdade, não se tinha a dimensão de que a coisa iria piorar tanto na chamada “Era da Informação”. Na questão ambiental – crème de la crème para palpiteiros – vale o que está escrito, no pior sentido da expressão. Não apenas o que está escrito, mas, também, o que foi dito ou filmado ou tuítado.

À época dos trágicos acontecimentos em Fukushima, apareceu gente – supostos famosos especialistas, é claro – dizendo na mídia que, com a “constatação inequívoca do aquecimento global”, os terremotos como o que deu origem ao tsunami que assolou o Japão iriam ficar cada vez mais frequentes. Quase ninguém reagiu,quase ninguém estrilou.É uma bobagem de proporções “tsunâmicas” que a turma engole assim, sem um piscar de olhos. E não fica só nisso.

Operadores do direito vem à cena para pontificar sobre questões complexas de natureza energética, opinando “categoricamente” de forma contrária à construção de grandes reservatórios na região amazônica, garantindo que o “potencial hídrico” da região é tão grande que usinas a fio d’água são suficientes para a região, pois a vazão é muito grande e o “potencial ecológico” da biodiversidade local tem que ser protegido.

Cientistas políticos vociferam, também, contra as hidrelétricas e – como “especialistas de notório saber”, é claro – garantem que“a energia eólica é capaz de evitar a construção de grandes hidrelétricas”. Jornalistas que escrevem sobre meio ambiente atribuem a si próprios competência de engenheiro eletricista e, confundindo perdas elétricas na transmissão com perdas elétricas na distribuição, exigem “a construção de centrais elétricas perto dos centros de carga” e denunciam “perdas de 17% na transmissão”. Pobres dos que não sabem o significado desses conceitos e números, pois vão ser assombrados por essas “denúncias” recobertas pelo glamoroso glacê midiático. Os engenheiros do setor, por sua vez, sentem vontade de eletrocutar alguém.

Isso complica demais o licenciamento ambiental no Brasil, que, de modo cada vez mais intenso, vem se transformando em uma notável coleção de palpites que pipocam nos jornais, nas rádios, nas tevês, nos blogs, nos twitters e na Câmara de Vereadores de Ororingó do Oeste, onde, neste exato momento, o quinto vereador à esquerda de quem entra discursa sobre a sustentabilidade do desenvolvimento.

Com um pouco de boa vontade, o prezado leitor pode até achar divertida a evidente contradição de um jornalista que luta pela exigência de diploma para o exercício de sua profissão palpitar contra o uso da energia nuclear no Brasil, confundindo raios X com radioatividade. O leitor que nos perdoe, mas os especialistas não acham a menor graça nisso.

No final de 2007, por exemplo, uma revista semanal de grande circulação no Brasil publicou matéria de capa sobre um tema altamente vendável, por se tratar do novo apocalipse, do novo fim do mundo: o aquecimento global. Para “enriquecer” a reportagem, em vez de convidarem especialistas para estabelecer o tão útil contraditório científico, elaborou-se um quadrosintético das informações apresentadas pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla original). Note-se que esse órgão vem sustentando previsões que encontram forte oposição em uma parcela da comunidade científica formada pelos “céticos”, denominação que costuma ser acompanhada de algum escárnio que tenta desqualificar aqueles pesquisadores. Esse esgar crítico fica evidente ao longo da matéria da revista, deixando perplexos aqueles que acreditam, com razão, que ser “cético” é uma qualidade inerente ao bom cientista.

Contudo, o pior foi guardado para o final. Os autoreselaboraram umquadro-resumo com as contrastantes visões do IPCC e dos “céticos”acerca dos principais efeitos das mudanças climáticas sobre o planeta. Subitamente dotados de onisciência, os jornalistas definiram, em uma terceira coluna da matriz, “quem está certo”nesse conflito. Atingidos por um raio de clarividência e por ondas de amplificação da capacidade analítica, os sábios comunicadores definiram o lado que tem razão em uma batalha feroz, na qual estão envolvidos, em ambos os lados, centenas de doutores e pós-doutores em climatologia – uma ciência que estuda o que talvez seja o mais complexo e o mais caótico dos sistemas com que um cientista pode se deparar. Em tempo, nas semanas seguintes, a seção de cartas da revista não registrou um comentário sequer dos leitores da revista a respeito dessa desmedida pretensão científica deleigos.

O processo de licenciamento ambiental no Brasil costuma evidenciar a utilização dos mais variados argumentos de autoridade por meio de alguns supostamente inquestionáveis pesquisadores. Ora, isso não existe! Argumentações dessa natureza são utilizadas para definir alguns impactos socioambientais como irreversíveis e algumas rupturas do equilíbrio natural como definitivas.

A regra geral é assistir adebates que se dão no campo das convicções ou dos argumentos de fé. Desconhece-se o fundamento essencial da boa ciência: a avaliação pelos pares (peerreview). A avaliação pelos pares de um trabalho científico ou de uma pesquisa, por exemplo, é aquela feita por uma ou mais pessoas de competência equivalente à dos autores.Isso constitui a melhor forma de autorregulação de algum relevante campo do conhecimento, pois tem como fundamento ser feita por intermédio de membros qualificados desse campo, o que permite manter elevados padrões de qualidade e credibilidade.

Especificamente nos meios acadêmicos, a avaliação pelos pares é o método mais utilizado para determinar se um paper deve ser publicado.Isso ocorre no licenciamento ambiental, é certo, mas apenas no diálogo entre os responsáveis pela elaboração dos estudos e os técnicos do órgão licenciador – especialmente no caso do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). Em paralelo, quase sempre desqualificando os autores dos estudos e os técnicos que os analisam, há grupos de pressão – que incluem servidores de carreiras de Estado em atividade funcional – cujos argumentos são os preferidos da maioria dos grandes formadores de opinião.

Render-se a uma supostamente irretorquível argumentação de um suposto incontestável pesquisador sobre determinado tema ou é uma opção ideológica ou um conformismo intelectual ou uma reverência medíocre ou um conhecimento epidérmico ou, pior, uma desmedida ignorância. Não é assim que a banda da ciência toca. E meio ambiente é – também e principalmente – matéria para a ciência e não apenas para a política.

As religiões e as ideologias podem compor uma interessante oposição dialética à ciência e isso é bem visto pelos que praticam a boa ciência. Não é,necessariamente,um diálogo antipodal. Os usuais antípodas da ciência, mais precisamente da adoção do rigor do método científico aplicado às ciências naturais, são os que confundem, intencionalmente ou não, o científico com o cientificista, oferecendo como alternativa a crença e a convicção.

Superstição e ciência distinguem-se, especialmente, pelo fato de a primeira não ser capaz de verificar suas previsões iniciais, enquanto a segunda pode fazê-lo por meio de metodologias rigorosas e instrumentos confiáveis.

A ciência pode acumular evidências que comprovam ou quefalseiam uma hipótese e, ainda assim, exige que tais comprovações sejam constantemente reavaliadas. Provas obtidas devem ser reexaminadas e rigor metodológico dos experimentos deve ser capaz de por os fatos à prova.

A ciência lida com a complexidade assumindo fragilidades conceituais, metodológicas, instrumentais e operacionais para, com isso, dar respostas provisórias, ainda que possíveis. Já o combate ideológico maximiza negativamente a intensidade da resposta dos ecossistemas às modificações provocadas pelas ações antrópicas, sem que o método científico valide suas crenças. Ao contrário, a ciência pode vir a derrubar verdades estabelecidas como resultados de processos predominantemente filosóficos ou ideológicos, ainda que sejam resultantes de esforços bem intencionados.

Os leigos em ciência ajudam a difundir equívocos. Um exemplo é considerar-se que, quanto de maior magnitude econômica forem os empreendimentos, maiores serão os impactos ambientais a eles associados. Trata-se de inferência não necessariamente verdadeira, pois um projeto pode não apresentar custos de instalação muito elevados, ainda que seus impactos sejam de grande magnitude e relevância. De outra parte, não se pode desconsiderar o balanço dos efeitos negativos e positivos da implantação de um determinado empreendimento, especialmente quando comparados com o cenário esperado para a região, sem a implantação, a opção no-action.

Os conflitos associados aos processos de licenciamento ambiental no Brasil – em especial, os dos grandes projetos de infraestrutura – vêm sendo criados, predominantemente, por crenças e convicções preestabelecidas. São sentimentos que colidemcom os fundamentos das abordagens científicas dos impactos ambientais.

Em grande medida, crentes e convictos das partes conflitantes fecham-se, sistematicamente, e resistem a qualquer ponderação que vá de encontro ao conjunto de argumentos que defendem. Essa resistência ocorre independentemente de avaliações capazes de sustentar, cientificamente, os pontos de vista de qualquer das partes em conflito, o que leva à excessiva judicialização do processo.

No Brasil, as questões ambientais transformaram-se em matéria quase exclusiva dos operadores do direito. E isso não é nada bom. Não porque tais profissionais não devam participar da busca pelas soluções ambientalmente defensáveis para os problemas do desenvolvimento econômico. Ao contrário, eles não apenas são benvindos, são imprescindíveis. Todavia, seu papel vem sendo superestimado.

Embora mais atuantes e numerosos, os operadores do direito não estão sozinhos. É cada vez mais comum a presença de jornalistas, economistas, cientistas políticos e cientistas sociais, entre outros, no debate. Ainda que tenham uma função essencial na discussão,muitos desses profissionais vêm desempenhando um papel distorcido no processo – e isso dificulta ainda mais o licenciamento ambiental.

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Para saber mais sobre o tema:

Faria, I.D.  (2006). A “Síndrome de Genelício”:sobre a participação da sociedade no licenciamento ambiental.Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal. Texto para Discussão nº 31. Disponível emhttp://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD31-IvanDutraFaria.pdf.

Faria, I.D.  (2008).Compensação Ambiental: Os fundamentos e as normas; A gestão e os conflitos.Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal. Texto para Discussão nº 43.Disponível emhttp://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD43-IvanDutraFaria.pdf.

Faria, I.D.  (2011). Ambiente e energia: crença e ciência no licenciamento ambiental, parte II. Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal. Texto para Discussão nº 94. Disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD94-IvanDutraFaria.pdf.

Faria, I.D.  (2011). Ambiente e energia: crença e ciência no licenciamento ambiental, parte III. Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal. Texto para Discussão nº 93. Disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD99-IvanDutraFaria.pdf.

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Por que o licenciamento ambiental no Brasil é tão complicado? (Parte I) https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1771&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-o-licenciamento-ambiental-no-brasil-e-tao-complicado-parte-i https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1771#comments Mon, 25 Mar 2013 12:29:06 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1771 Aí está uma pergunta com muitas respostas – e nenhuma delas esgota, isoladamente, o assunto. Tentaremos respondê-la por meio de textos concisos, para não entediar mortalmente o prezado leitor com um longo artigo único e, também, para evitar que uma abordagem demasiadamente sintética deixe indesejáveis lacunas.

Assim, esperamos que o complexo conflito associado ao licenciamento ambiental no Brasil, possa ser mais bem dissecado se dividido em partes. Em uma lista não exaustiva, podemos citar vários fatores que dificultam o licenciamento:

  • os processos de comunicação com a sociedade, pontuais e ineficazes;
  • o modelo de audiências públicas, eventos isolados e passíveis de manipulação por grupos de pressão favoráveis ou contrários ao empreendimento;
  • as dificuldades inerentes aos procedimentos de previsão de impactos;
  • as visões burocráticas, oportunistas, eleitoreiras e cartoriais do processo de licenciamento;
  • o aumento da influência de argumentos subjetivos e ideológicos, nomeadamente aqueles difundidos por determinados setores da mídia;
  • a judicialização do processo decisório, motivada, principalmente, pelas ações do Ministério Público e pela fragilidade legal das resoluções do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), principal fundamento normativo para a emissão das licenças;
  • a “ocupação do território ambiental” por operadores do direito e profissionais de comunicação, opinando sobre questões de conteúdo alheio à sua formação acadêmica, em detrimento de técnicos e cientistas;
  • a dificuldade da elaboração de estudos ambientais por equipe multidisciplinar independente, mas paga com recursos do principal interessado nas licenças ambientais;
  • a sobreposição de funções e os conflitos políticos internos aos órgãos do Poder Executivo interessados em determinado processo de licenciamento;
  • a omissão do Poder Legislativo, permitindo que remanesçam “vácuos” legais e conflitos normativos e
  • a politização dos cargos gerenciais do setor público, com reflexos sobre a qualidade da gestão.

Não é de grande valia hierarquizar esses problemas em uma escala de significância e abrangência, uma vez que são aspectos que se inter-relacionam intensamente, em uma complexa sinergia. É mais proveitoso discutir, isoladamente ou em pequenos grupos, suas características e as relações entre eles. Para começar, podemos ver mais de perto os processos de comunicação com a sociedade, parte essencial do licenciamento e fonte de incontáveis questionamentos judiciais.

Esse tipo de processo está previsto no ordenamento jurídico brasileiro, sendo, inclusive, parte integrante do texto da Constituição de 1988. A Carta, em seu art. 225, parágrafo 1º, IV, estabelece como incumbência do poder público exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade.

Em outras palavras, a Constituição exige que antes que se faça uma obra ou uma atividade qualquer que possa trazer modificações importantes ao ambiente, as autoridades devem exigir estudos consistentes sobre essas modificações.

Todavia, a nossa Lei Maior diz mais. O uso da palavra “publicidade” indica que os estudos ambientais, além de elaborados previamente à instalação do empreendimento, devem ser conhecidos pelo público. Em outras palavras, não basta somente estudar e identificar as modificações que a obra ou atividade irá causar. É preciso garantir que a população entenda o que foi estudado e, principalmente, os resultados desses estudos.

A legislação ambiental brasileira atribui à sociedade responsabilidades na participação no processo de licenciamento ambiental, ou seja, a participação não é considerada apenas um direito do cidadão. Deve-se observar que o órgão licenciador pode determinar a realização de audiência pública após efetuar a análise técnica dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA) e do respectivo relatório a eles associado (RIMA). A audiência pública pode resultar em um pedido de esclarecimentos e complementações pelo órgão ambiental, como consequência da participação das comunidades diretamente interessadas.

Trata-se de um de um evento que representa uma oportunidade ímpar de participação direta da sociedade, sob a forma de perguntas e respostas à equipe técnica encarregada da elaboração dos estudos. Às comunidades, portanto, é dada a responsabilidade de aprimorar o EIA e, por conseguinte, orientar as exigências que deverão ser feitas pelo órgão licenciador.

Portanto, o deferimento ou indeferimento do pedido de licença, nos casos em que as audiências públicas são indicadas, são profundamente ligados aos resultados obtidos nesses eventos. Desse modo, o órgão ambiental é o agente que executa procedimentos de uma decisão tomada em um processo participativo – mas, não decisório, ao contrário do que muitos pensam. Se isso funciona ou não, é uma discussão para outro texto.

Ressalte-se que o órgão licenciador pode, inclusive, suspender ou cancelar uma licença expedida quando ocorrer, por exemplo, a omissão ou falsa descrição de informações relevantes que subsidiaram a sua expedição. A Carta, em seu art. 5º, LXXIII, deixa claro que qualquer cidadão pode propor ação popular que vise à anulação de ato lesivo ao ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.

Informação é, em última análise, o que está em questão. Ou seja, a legitimação desse processo só pode ocorrer a partir da garantia de que as informações necessárias à tomada de decisão foram validadas por mecanismos confiáveis e, só depois, transmitidas à sociedade – obrigatoriamente, em um padrão acessível de linguagem.

As normas vigentes exigem que o EIA seja bastante completo e aprofundado. Ele deve conter mapas, tabelas e muitos dados – que são resultados de estudos, pesquisas e viagens aos locais que sofrerão influência da obra. O Rima, por outro lado, deve fazer com que a população, em geral, possa ser informada sobre as conclusões do EIA. Não são documentos semelhantes. As normas impõem que o Rima seja apresentado à população de forma objetiva e adequada à sua compreensão. As informações devem ser traduzidas em uma linguagem capaz de fazer com que se possam entender as vantagens e desvantagens do projeto, bem como todas as consequências ambientais de sua implantação.

Vejamos um exemplo que pode dar uma boa ideia da diferença entre um EIA e um Rima. Consideremos o caso clássico de um empreendedor que deseja construir uma usina hidrelétrica em um determinado rio. Pois bem, para atender à legislação ambiental, o empreendedor deve contratar uma equipe de especialistas para estudar as modificações ambientais que essa barragem vai causar. Essa equipe vai estudar o solo, os animais, as plantas, o modo de vida das pessoas, entre muitos outros aspectos. Tudo isso para saber como é o ambiente de antes da construção da barragem e, também, para fazer previsões a respeito das modificações que irão ocorrer.

Agora vamos supor que os ictiólogos especialistas na vida dos peixes de rio tenham terminado os seus estudos. Eles vão ter que escrever um relatório sobre esses estudos, para que os especialistas em peixes de rio que trabalham no órgão licenciador leiam e analisem os resultados. Esse relatório fará parte do EIA e a sua análise, feita pelo órgão ambiental competente, talvez seja a parte mais importante do processo de licenciamento ambiental. Imaginemos uma descrição bastante usual dos prováveis resultados desse tipo de pesquisa: “As espécies reofílicas serão afetadas pela transformação do regime lótico para o regime lêntico”.

A não ser que a pessoa seja um especialista no estudo dos peixes de rio, não é razoável esperar que ela entenda um texto como esse. E aí está a razão pela qual esse texto só deve aparecer no EIA – que é uma conversa entre especialistas.No Rima, essa mesma informação deve ser dada de outra maneira. De uma maneira simples, de modo que seja possível aos não especialistas entender a conclusão daqueles estudos profundos e detalhados. Ou seja, deve-se buscar uma forma simples de se dizer a mesma coisa, sem alterar a validade científica do achado dos pesquisadores, o que poderia ser feito assim: “Os peixinhos vão ser prejudicados quando o rio virar um lago”.

Ora, se vai ser construída uma barragem naquele rio, é lógico que o vai-e-vem dos peixes vai ser alterado e a população precisa saber disso, principalmente os pescadores, antes de ser chamada a opinar se é a favor ou contra a construção da barragem. E o documento que usa uma linguagem simples para dizer coisas que vieram de estudos complicados é o Rima.

Os obstáculos à participação da sociedade nos processos de tomada de decisão do órgão licenciador estão concentrados em alguns pontos, mas, sem dúvida, a inadequação da linguagem utilizada na comunicação com a sociedade e o uso – por parte de adversários e defensores dos projetos em questão – de informações não validadas por mecanismos confiáveis, é uma das principais razões do conflito criado em torno da emissão das licenças ambientais. Necessariamente, a contribuição da sociedade para o processo de tomada de tomada de decisão só poderá ser legítima se feita a partir de um significativo grau de percepção sobre as vantagens e desvantagens do empreendimento em questão, considerando-se todos os impactos socioambientais previstos no EIA.

É claro que não se pode garantir que o cidadão comum, após ler um Rima elaborado de forma didática e acessível, estará devidamente capacitado para exercer esse direito. Um Rima bem feito e debatido em uma audiência pública validada pelo órgão ambiental competente, por si só, não garante uma efetiva participação das comunidades interessadas no processo de licenciamento.

A discussão sobre a democracia participativa vis-à-vis o licenciamento ambiental ultrapassa, necessariamente, as questões que envolvem as técnicas de elaboração de Rimas e os ritos das audiências públicas. Em outro texto, discutiremos essa questão mais detalhadamente. Entretanto, o que minimamente se espera é que o Estado brasileiro seja capaz de impor aos empreendedores, especialmente àqueles de grandes projetos de infraestrutura, a execução sistemática de processos de comunicação que, monitorados pelos órgãos licenciadores, possam fornecer ao cidadão interessado informações inteligíveis.

Há um lugar-comum, nos dias de hoje, em que se afirma que a humanidade vive uma época em que se pode desfrutar de uma quantidade de informações crescente, que tende ao infinito. É quase um mantra, repetido à exaustão nos meios de comunicação. Pode ser até simpático dizer isso, de forma otimista e esperançosa. Todavia, trata-se de afirmação superficial, de uma “verdade relativa”. Há diferenças importantes entre informação e conhecimento. Demais, corre-se o risco de ficar desinformado pelo excesso de informação.

Não é raro o fato de as comunidades interessadas chegarem às audiências públicas sem um conhecimento mínimo do projeto em questão. Por exemplo, no processo de licenciamento ambiental de uma ferrovia que só transportará carga é preciso ficar claro, o quanto antes para as comunidades das áreas de influência do projeto que, em princípio, não haverá transporte de passageiros na linha. Isso permitirá negociações tempestivas visando a alterar o projeto e, caso não sejam possíveis essas alterações, o oferecimento de justificativas convincentes para a tomada dessa decisão. A construção de eclusas em projetos de hidrelétricas é outro caso clássico de comunicação deficiente com os interessados.

Infelizmente, esse é um dos aspectos mais negligenciados nos processos de licenciamento ambiental no Brasil. É de se perguntar a quem aproveita tal desinformação. Ao contrário do que muitos pensam – inclusive eles mesmos – os empreendedores não são beneficiados com isso. Os órgãos licenciadores também não se beneficiam. As comunidades nem se fala. É razoável procurar pessoas felizes com tal distorção entre os costumeiros manipuladores de opinião, entre os que buscam privilégios por meio do controle da informação ou entre os empedernidos burocratas – nesse caso, no pior sentido da palavra.

Em uma divertida passagem do livro “O guia do mochileiro das galáxias”, o personagem principal, Arthur Dent, discute com o Sr. Prosser, chefe da equipe responsável pela construção de um desvio rodoviário, cuja consequência seria a demolição da casa dele, Arthur.

– O senhor teve um longo prazo a seu dispor para fazer quaisquer sugestões ou reclamações, como o senhor sabe – disse o Sr. Prosser.

(…)

– Vocês não se esforçaram muito para divulgar o projeto, não é verdade?Quer dizer, não chegaram a comunicar às pessoas nem nada.

– Mas o projeto estava em exposição…

– Em exposição? Tive que descer ao porão pra encontrar o projeto.

– É no porão que os projetos ficam em exposição.

– Com uma lanterna.

– Ah, provavelmente estava faltando luz.

– Faltavam escadas, também.

– Mas, afinal, o senhor encontrou o projeto, não foi?

– Encontrei, sim – disse Arthur. – Estava em exibição no fundo de um arquivo trancado, jogado num banheiro fora de uso, cuja porta tinha a placa: Cuidado com o leopardo.

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Para saber mais sobre o tema:

Faria, I.D.  (2006). A “Síndrome de Genelício”:sobre a participação da sociedade no licenciamento ambiental.Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal. Texto para Discussão nº 31. Disponível emhttp://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD31-IvanDutraFaria.pdf.

Faria, I.D.  (2008).Compensação Ambiental: Os fundamentos e as normas; A gestão e os conflitos.Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal. Texto para Discussão nº 43.Disponível emhttp://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD43-IvanDutraFaria.pdf.

Faria, I.D.  (2011). Ambiente e energia: crença e ciência no licenciamento ambiental, parte II. Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal. Texto para Discussão nº 94. Disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD94-IvanDutraFaria.pdf.

Faria, I.D.  (2011). Ambiente e energia: crença e ciência no licenciamento ambiental, parte III. Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal. Texto para Discussão nº 93. Disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD99-IvanDutraFaria.pdf.

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