Juros – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Mon, 17 Jun 2019 12:39:32 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 Você realmente sabe o que são juros? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3224&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=voce-realmente-sabe-o-que-sao-juros Thu, 13 Jun 2019 19:18:16 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3224 1 – Introdução

Atualmente, tramitam no Legislativo inúmeros projetos de lei e propostas de emenda à Constituição que visam impor restrições às taxas de juros praticadas no Brasil, seja mediante a determinação de um preço máximo ou impedindo a utilização do método de juros compostos, em detrimento dos juros simples, na contabilização de contratos financeiros.

Da mesma forma, existem incontáveis processos judiciais em andamento sobre os assuntos supracitados, além de inúmeras decisões controversas sendo tomadas nas últimas décadas.

Na esfera legislativa, a aprovação de proposições impondo limitações aos juros pactuados, e, na esfera judicial, a tomada de decisões nesse mesmo sentido, podem causar enorme impacto financeiro negativo e grave insegurança jurídica, como veremos adiante.

Sendo assim, ante a imensa relevância do tema e o grande impacto potencial sobre a população e o desenvolvimento do nosso País, tentarei esclarecer, de maneira acessível e concisa, os principais conceitos relacionados às taxas de juros, a fim de melhor orientar tomadas de decisões quanto ao tema, bem como elucidar para a opinião pública possíveis confusões acerca desse conteúdo.

O foco do texto será na análise econômica das taxas de juros, partindo de um ponto de vista Austríaco, portanto, fazendo uso da praxeologia e do individualismo metodológico como instrumento epistemológico.

2 – O preço intertemporal

Ao contrário do que é afirmado por muitos, juros não são “meios de exploração”, mas simplesmente preços, que surgem a partir das preferências temporais inatas dos seres-humanos[1][2][3]. Afinal, qualquer um prefere receber um valor X hoje que o mesmo X no futuro. Na verdade, essa preferência temporal é hiperbólica: vários estudos científicos comprovam que o ser-humano não apenas prefere o mesmo valor hoje que no futuro, mas que prefere, até mesmo, um valor muito menor hoje a outro muito maior no futuro[4]. Logo, dinheiro à disposição agora vale mais que a mesma quantia monetária no futuro.

Quem poupa e, portanto, empresta dinheiro abre mão de ter um montante disponível hoje – e, consequentemente, de realizar um consumo imediato – e posterga para o futuro a satisfação que obteria com os produtos e serviços que poderia adquirir no presente – exatamente o oposto do que faz aquele que toma o crédito, que prefere realizar um gasto no presente, ainda que não possua recursos disponíveis para isso, ao invés de apenas consumir em uma data futura.

Sendo assim, à medida que os indivíduos fazem avaliações e propostas quanto ao valor do tempo e do uso de recursos monetários, surge um “preço intertemporal” no mercado, que embute a preferência temporal supracitada, bem como riscos de crédito (levar um calote) e expectativas de inflação (corrosão do poder de compra). Todo esse argumento torna-se ainda mais óbvio quando racionalizamos de forma pessoal: basta você avaliar se emprestaria o dinheiro que poupou para desconhecidos sem receber nada em troca. Simplesmente não faz sentido.

Portanto, uma vez que é o “preço do tempo”[5], a taxa de juros equilibra a propensão a poupar de uns com o desejo de pegar emprestado de outros. Sem ela, não existe crédito e, obviamente, crescimento econômico. Logo, qualquer interferência inadequada nas taxas de juros tem o potencial de causar distorções e consequências desastrosas para a economia de um país.

 

3 – Por que os juros são altos no Brasil?

Antes de avançarmos na análise, cumpre esclarecer o que é a “taxa básica de juros da economia”, a chamada taxa Selic: é a taxa de juros derivada das negociações de empréstimos lastreados em títulos públicos federais realizadas pelos bancos em operações overnight gerenciadas pelo Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (daí o nome Selic).

Como o Banco Central utiliza tais operações para manipular a oferta monetária, comprando títulos em posse dos bancos e expandindo tal oferta (consequentemente, reduzindo os juros artificialmente) ou vendendo títulos para os bancos e reduzindo a oferta monetária (consequentemente, aumentando os juros artificialmente), tem-se que a Selic é considerada a taxa básica de juros da economia[6].

Tendo em mente todos os conceitos explicitados anteriormente, podemos agora nos questionar por que o valor dos juros cobrados pelos bancos e financeiras excedem, e muito, a taxa Selic.

No entanto, antes de realizarmos prejulgamentos, vale a pena analisarmos esse ponto mais a fundo: afinal, por que existe uma diferença (spread) tão grande entre o valor da Selic e das taxas cobradas pelas instituições financeiras do consumidor final?

Existe grande debate sobre o motivo dessa discrepância[7] e o Banco Central vem atuando na tentativa de reduzir esse gap. De qualquer maneira, existem alguns fatores primordiais indiscutíveis para que tanto os juros quanto os spreads bancários praticados no Brasil sejam elevados:

  1. Baixa concorrência no setor bancário[8]: as regulamentações criadas pelo próprio Banco Central impedem o fácil estabelecimento de novas instituições, que trariam mais concorrência para os grandes bancos. Assim, o sistema bancário funciona como uma espécie de cartel que se sustenta em razão do excesso de regulação do Estado.
  2. Grande insegurança jurídica: o Judiciário é excessivamente leniente com o devedor no Brasil, o que obriga os bancos a fazerem altas provisões contra calotes e a compensarem o risco excessivo de não receber, em virtude das decisões judiciais corriqueiramente favoráveis ao devedor, cobrando mais caro do tomador de empréstimo, inclusive daqueles que pagam em dia, já que é difícil discernir bons de maus pagadores previamente (há um subsídio cruzado) – e tudo isso culmina em juros maiores.

III. Governo: o governo é a razão não só de spreads elevados, em função da alta burocracia administrativa, contábil e tributária imposta a todas empresas, inclusive as financeiras, como também é o responsável primordial pelos elevados juros, em termos absolutos, no País. Afinal, o maior devedor da economia brasileira é o Estado.  Como não consegue financiar todas as suas atividades meramente por meio da arrecadação de impostos, razão dos constantes déficits fiscais e da elevada dívida, o Tesouro Nacional precisa recorrer a financiamentos, via emissão de títulos, em grande volume. O resultado é que boa parte da poupança privada e do capital disponível é desviado para cobrar os rombos públicos.  Logo, o dinheiro que poderia ir para o setor produtivo na forma de crédito acaba indo para o setor não produtivo na forma de empréstimos públicos (que serão pagos via impostos, inflação ou via mais empréstimos – ou seja: o governo se endivida para pagar dívidas antigas.)

  1. Elevados custos de intermediação financeira: segundo o Relatório de Economia Bancária do Banco Central, publicado em 2017[9], as maiores causas dos altos spreads são elevadas provisões contra inadimplência (o que está relacionado com a insegurança juridíca e dificuldade de recuperação de créditos não pagos), despesas administrativas e carga tributária.

 

4 – É possível limitar os juros impondo um valor máximo?

Em decorrência da imensa complexidade do mercado, que é um processo dinâmico de ações variadas de milhões de pessoas, mudando e evoluindo constantemente ao longo do tempo, intervir erroneamente ou tentar reduzir “na marra”, com uma “canetada”, o spread bancário, determinando um valor máximo permitido legalmente para os juros – na tentativa de diminuir os juros cobrados pelas instituições financeiras –, não vai funcionar.

A única saída é atacar as reais causas dos elevados juros e spreads, explicitadas na seção anterior, a começar pelo desenvolvimento de um ambiente institucional e jurídico mais seguro (que gere menos aversão a riscos por parte de investidores) e pela diminuição dos gastos governamentais, responsáveis por déficits tremendos que sugam todo capital disponível.

Caso contrário, na hipótese de se tentar definir legalmente um preço máximo para os juros, as limitações equivocadas culminarão em uma redução de todas as formas de crédito disponíveis e, até mesmo, no fim das linhas de crédito mais arriscadas, como as sem garantias reais, do rotativo do cartão de crédito, cheque especial etc. Ainda, os clientes de baixo poder aquisitivo e com menor capacidade de oferecer alguma forma de garantia colateral serão os mais afetados e terão ainda menos acesso a crédito. Em última instância, haverá grande redução nos investimentos e no crescimento econômico do país[10].

 

5 – Os juros compostos são um problema?

Existe um argumento popularmente difundido e respaldado por muitas decisões judiciais de que a cobrança de juros compostos seria uma “artimanha” utilizada pelos bancos para ludibriar a população e aumentar os seus lucros.

Avaliaremos, em seguida, se a imposição de juros simples para contratos financeiros é uma medida válida. Porém, antes, precisamos compreender melhor as diferenças entre juros simples e compostos e um exemplo irá nos ajudar com essa tarefa.

Pelo método de juros simples, caso o mutuante faça um empréstimo (sem amortizações e pagamentos parciais) no valor de 100 reais, a uma taxa de 10% ao ano, deverá receber, ao final de 10 anos, o valor de 200 reais (o principal somado aos juros de 10% * 10 anos * principal). Já pelo método de juros compostos, o valor emprestado, ao final do primeiro ano, seria de 110 reais (principal somado aos juros de 10%); sobre esse valor, novamente, seriam aplicados 10% de juros, resultando em 121 reais; e assim sucessivamente até o fim do décimo ano, quando o valor da aplicação seria de 259 reais.

No entanto, não se engane. Os juros compostos não proporcionam maiores ganhos para os bancos e tampouco são responsáveis pelos spreads elevados. Conforme vimos em seção anterior, juros são preços e o valor que o mutuante recebe é devido ao custo de se abrir mão de consumo no presente (ao contrário do mutuário). Logo, após a passagem de um período temporal, por exemplo, um ano, o rendimento recebido consiste no pagamento por essa transação intertemporal. Obviamente, o valor auferido incorpora-se ao patrimônio do mutuante. Portanto, ao abrir mão novamente desse valor emprestado em um período temporal sucessivo, é esperado que o novo preço (no caso, os juros) seja cobrado sobre o novo valor que, mais uma vez, não está sendo gasto, mas sim cedido ao mutuário, pelo mutuante. Assim, é indubitável, a partir de uma simples reflexão lógica, que a cobrança de juros compostos é a única possível aplicação.

Caso contrário, se os mutuantes fossem impedidos de contabilizar os juros de forma composta e fossem obrigados a definir juros simples, não haveria uma “economia” para os tomadores de crédito.  O custo não seria menor. As taxas seriam recalculadas de forma a incorporar o fato de os juros não poderem ser calculados de forma composta. Assim, no exemplo anterior, o emprestador, em vez de fazer um contrato com juros de 10% ao ano, faria um contrato com juros simples de 15,9% ao ano, o que lhe renderia, ao final do contrato, os mesmos 159 reais que obteria se fossem cobrados juros compostos de 10% ao ano.

O problema é que esse tipo de contrato aumenta muito os custos de transação, pois deverão ser calculadas infinitas taxas de juros diferentes, de acordo com cada prazo de vencimento possível. Além disso, aumenta o risco para o credor, pois, se o devedor atrasar o pagamento, o valor a ser recebido será menor. Voltando ao exemplo, se o devedor, em vez de pagar a dívida nos 10 anos pactuados, pagar em 11 anos, os juros adicionais seriam de R$ 15,9, se calculados de acordo com o juros simples, e de R$ 25,90 (=10% de R$ 259) se fossem juros compostos – o que implicaria, na prática, juros iniciais ainda maiores que os cobrados pelo método composto para compensar mais esse risco adicional.

Dessa forma, ao obrigar os credores a cobrar juros simples, o custo final ao consumidor deverá ser maior, pois, como vimos,  os juros calculados pelo método simples assumiriam um valor muito superior ao que é pactuado sob o método composto, a fim de tentar compensar a falta de um regime de capitalização, e os custos de transação e os riscos são igualmente mais altos. Afinal, como já ficou claro, juros são preços e não há como pensar neles de outra forma. Para que essa compreensão fique ainda mais cristalina: caso a lógica de um sistema de rentabilidade simples fosse ampliada além da ótica financeira, uma vez que salários, tal qual os juros também são rendimentos (precificados pelo serviço prestado), os trabalhadores deveriam possuir um “salário base” e ter seus aumentos subsequentes incorporados apenas ao valor base. No entanto, é óbvio que não é isso o que acontece – o aumento remuneratório, pelos mesmos motivos explicitados, se dá de forma composta.

Outro argumento lógico, prático e incontestável, corroborando a análise teórica acima, é que, caso seja obrigatória a aplicação de juros simples, seria muito mais vantajoso que o mutuante encerrasse o empréstimo anualmente e re-emprestasse o montante auferido (agora elevado pela incidência dos juros prévios) de forma sucessiva, simulando o efeito dos juros compostos.

Em virtude de toda análise efetuada, fica óbvio por que os juros compostos são o método utilizado no Brasil e em todo o mundo. Os juros simples praticamente não são utilizados como instrumento financeiro e, nas raras ocasiões em que são, é apenas para simplificar o cálculo do rendimento de operações de prazos curtos, inferiores a um ano ou um mês.

 

6 – Por que insistem em intervir no tema?

A resposta para essa pergunta realmente é uma incógnita e poderíamos apenas especular sobre os motivos, indo de uma tentativa de manutenção de influência (poder) sobre a opinião pública – que, muitas vezes é desinformada e, portanto, tende a ser influenciada pela ideia de uma diminuição forçada dos juros ou de um antagonismo utópico entre vilões (que querem juros altos) e mocinhos (que querem os juros baixos) –, ou mesmo uma completa incompreensão do tema (o que parece ser o caso mais provável).

O debate sobre a limitação e a capitalização dos juros no Brasil república vem ao menos desde o Decreto-Lei nº 22.626, de 1933, a chamada Lei da Usura, que dispõe sobre os juros nos contratos.

A Lei dispõe, nos arts. 1º e 2º, que não é válida a cobrança de juros acima do dobro da taxa legal, que, de acordo com o Código Civil vigente na época, seria, no máximo, de 6% ao ano – ou seja, a taxa máxima de juros seria de 12% ao ano.  Já em seu art. 4º, a norma afirma que é proibido contar juros dos juros, ou seja, juros sobre juros, a chamada capitalização, exceto a “acumulação de juros vencidos aos saldos líquidos em conta corrente de ano a ano”.

Sob um prisma histórico, esse decreto, emitido por Getúlio Vargas, anulava a liberação de mútuos introduzida pelo Código Civil de 1916 e revigorava o regime do Código Comercial de 1850, que proibia os juros compostos.

Ao tratar do tema, a Súmula nº 121, de 1963[11], do Supremo Tribunal Federal (STF), corroborando a norma varguista, afirma o seguinte: “é vedada a capitalização de juros, ainda que expressamente convencionada”[12].

Evidentemente, com a expansão do setor bancário e dos mercados de capitais na segunda metade do século XX, as normas supracitadas, por sua falta de razoabilidade e consequente inaplicabilidade, tornaram-se letra morta e a Súmula 121 foi parcialmente revogada pela nº 596, de 1976[13], do STF, que afirma que “as disposições do Decreto 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o sistema financeiro nacional.”

Perdendo a oportunidade de não interferir mais no assunto e para tornar ainda mais incongruente a questão, o próprio STF afirmou, no Recurso Extraordinário (RE) nº 100.336-PE, de 1984[14], que “a conformidade dos julgados que informam a Súmula 121, a proibição do anatocismo[15] constitui ius cogens[16]. Da proibição posta no enunciado não estão excluídas as instituições financeiras. A Súmula 596 não afasta a aplicação da Súmula 121, na espécie”. Em outras palavras, a capitalização prevista na Lei da Usura seria vedada mesmo a operações de instituições financeiras.

Em outro julgado, o  RE nº 1.285, de 1989[17], o STF dispõe que “a Súmula 121 não está superada pela de nº 596. Na verdade, embora relacionadas ambas com juros e com o Decreto 22.626/33, apresentam nítida distinção. Enquanto o enunciado nº 596 se refere ao art. 1º do Decreto 22.626/33, o verbete 121 se apoia no art. 4º do mesmo diploma, guardando sintonia com a regra que veda o anatocismo, ou seja, juros de juros ou capitalização de juros”. Ou seja, em 1989, uma turma do STF afirma que a Súmula 596, de 1976, mesmo se referindo às disposições do Decreto-Lei, estaria, na realidade, apenas tratando do seu art. 1º, que se refere à proibição de se estipular em quaisquer contratos taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal. Logo, de acordo com essa interpretação, a Súmula nº 596, de 1976, somente teria revogado essa limitação, permanecendo em vigor o impedimento de utilização dos juros compostos.

Na tentativa de solucionar o imbróglio, o art. 5º da Medida Provisória nº 2.170-36, de 23 de agosto de 2001[18], previu que “nas operações realizadas pelas instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, é admissível a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano”. Após inúmeras contestações, 14 anos depois, em 2015, o STF reconheceu a constitucionalidade da MP no que tange os requisitos de relevância e urgência[19]. Todavia, o mérito da questão (ou seja, a possibilidade da capitalização de juros em períodos inferiores a um ano), questionado pela Ação de Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 2316[20] continua em aberto, sem decisão do STF.

Para piorar ainda mais, em 2016, o STF concedeu inúmeras liminares completamente absurdas, alterando o regime dos juros cobrados pelas dívidas dos estados com a União do tipo composto para o simples[21]. Caso tamanho disparate permanecesse, vários estados deixariam de ser devedores e passariam a ser credores da União, conferindo perdas de bilhões de reais ao contribuinte. Pior ainda, causaria enorme insegurança jurídica e abriria um precedente perverso para que a mesma lógica fosse aplicada a diversos instrumentos financeiros, como caderneta de poupança, CDBs, títulos do Tesouro, dentre outros, o que, em última instância, sepultaria o sistema financeira pátrio[22][23].

Tendo em vista que praticamente todos os contratos firmados no Brasil (e no mundo) fazem uso de juros compostos, as reiteradas mudanças de entendimento e tentativas de intervenção nos temas acabam por gerar gravíssima insegurança jurídica.

Corroborando tal entendimento, em 2009, um grupo de 32 especialistas em matemática financeira e acadêmicos das principais universidades brasileiras lançaram um manifesto a favor dos juros compostos e contrariamente às decisões judiciais a favor da aplicação dos juros simples e aos milhões de processos que ainda tramitavam sobre o tema, com base na Súmula nº 121, do STF[24].

Segundo o manifesto, eventual proibição dos juros compostos “é contrária a tudo que se faz no mundo real, não só no que se refere às práticas internacionais no mercado financeiro e de capitais, como também em tudo o que se ensina nas universidades e nos textos dos livros de finanças dos autores mais conceituados. Pode-se assegurar que a quase totalidade das operações financeiras realizadas no mundo, bem como todos os estudos de viabilidade econômico-financeira, são efetivados com base no critério de juros compostos, ou capitalização composta. Proibir a capitalização dos juros implica colocar na marginalidade os fundamentos de uma ciência matemática respeitada, aplicada e reconhecida no mundo inteiro. Apenas para ilustrar, seguem algumas operações realizadas no nosso mercado, calculadas com base nesse critério, começando pelas aplicações financeiras: cadernetas de poupança, fundos de investimento em renda fixa, fundos de previdência, fundos de pensão, fundo de garantia por tempo de serviço (FGTS), títulos de capitalização, títulos de renda fixa privados e todos os títulos da dívida pública federal, estadual e municipal, sejam eles com rendimentos pré ou pós-fixados; do lado dos empréstimos e financiamentos tem-se o crédito pessoal parcelado, financiamento de veículos, todas as formas de crediário de lojas, empréstimos para aposentados, financiamentos e repasses de recursos feitos pelo BNDES, todas as modalidades de financiamentos habitacionais realizados dentro e fora do SFH e muitos outros. Em contrapartida, o número de operações calculadas com base em juros simples é insignificante; entre as mais conhecidas estão as de juros de mora, adiantamento sobre contratos de câmbio (ACC) e as de cálculo de juros sobre saldos devedores dos cartões de crédito.

Do ponto de vista matemático, operacional e contábil, o critério de juros compostos é coerente e consistente, quaisquer que sejam os valores, taxas e prazos envolvidos, e quaisquer que sejam as formas de pagamentos. O mesmo não ocorre com o critério de juros simples que, se utilizado, provoca distorções irreversíveis, principalmente nas operações de empréstimos ou de aplicações financeiras envolvendo dois ou mais pagamentos.

A preocupação sobre o tema aumenta na medida em que se toma conhecimento de pronunciamentos e decisões judiciais fundamentadas em argumentos equivocados, que contrariam a lógica e o bom senso, afetando negativamente o ensino da ciência financeira e da própria ciência jurídica. Membros dos poderes Legislativo e Judiciário têm enorme responsabilidade perante a sociedade brasileira no que diz respeito à elaboração e aplicação das leis; os professores universitários também se sentem responsáveis perante essa mesma sociedade no que se refere à formação técnica e científica dos estudantes e dos profissionais que atuam no mercado financeiro e de capitais. E é em nome da responsabilidade perante o ensino que se propõe uma revisão das regras que ainda restringem a capitalização de juros”.

Quanto aos limites legais para cobrança de juros, existe sobre o assunto um emaranhado de leis (por exemplo, vários artigos do Código Civil, Código Tributário, Lei da Usura e Lei nº 8.692, de 28 de julho de 1993), de proposições em tramitação no Legislativo e de decisões judiciais.

O art. 591 do Código Civil, por exemplo, diz que “destinando-se o mútuo a fins econômicos, presumem-se devidos juros, os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art. 406, permitida a capitalização anual”. Por sua vez, o art. 406 afirma que “quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional”. No entanto, não esqueçamos que a Lei da Usura diz que a cobrança somente poderá ser até o dobro do valor legal e que esta foi editada quanto este valor seria o equivalente a 12% ao ano.

O resultado é que, atualmente, ninguém sabe exatamente quais são limites às taxas de juros pactuadas, especialmente para contratos de mútuo entre particulares[25][26]. Essa insistência em intervir erroneamente no assunto apenas causa distorção e confusão, prejudicando o mercado de crédito e o crescimento do país (afinal, como já cansamos de ver, mas sempre vale repetir: juros são preços, não números mágicos, letras mortas suscetíveis a canetadas arbitrárias ou “meios de expropriação”).

Felizmente, apesar da confusão de decisões judiciais, prepondera o entendimento de que não há limites para a cobrança de juros por instituições financeiras e, tampouco, é obrigatória a imposição do método de juros simples – até porque, como ficou evidente pela nossa análise, tais comandos seriam letra morta, inaplicáveis em termos práticos, já que trariam completo caos para o sistema financeiro com reflexos diretos perversos na atividade produtiva, no crescimento econômico e na qualidade de vida dos brasileiros.

Ainda assim, algumas instituições públicas, como Receita Federal[27], Procuradoria-Geral da Fazenda, Instituto Nacional do Seguro Social (INSS)[28][29], Tribunal de Contas da União (TCU)[30], Justiça Federal e Eleitoral[31], devido a determinações legislativas e jurisprudenciais, continuam aplicando os juros simples nos seus cálculos de juros de mora e dívidas, tanto a pagar quanto a receber.

Em suma, o Judiciário e, especificamente, o STF, ao tomarem inúmeras decisões divergentes ao longo das últimas décadas, muitas vezes contrárias ao interesse da população e à lógica elementar do sistema financeiro, deixa clara a sua incompreensão do assunto. A realidade acerca da matéria, que o Supremo optou por não reconhecer, é que o Decreto de 1933, que estabelece a chamada “Lei da Usura”, foi editado em um período completamente diverso do atual, em que ideias que visavam ao controle estatal e eram contrárias à liberdade proliferavam em nosso país. O próprio decreto supracitado é reflexo disso: foi editado durante a Era Vargas, pouco antes da instituição do Estado Novo, um dos períodos mais autoritários e ditatoriais da história do nosso país. Portanto, resta nítido, embora ainda não tenha sido reconhecido definitivamente o fato pelo STF, que tal decreto não é compatível com a Constituição Federal de 1988.

O argumento contrário (de compatibilização da Lei da Usura com a CF/1988) poderia se apoiar no fato de que a redação inicial do §3º do art. 192 da Constituição Federal impunha tabelamento de 12% ao ano para os juros. No entanto, essa premissa não procede, já que esse dispositivo nunca sequer pôde ser implementado, justamente em virtude da sua completa inconsistência, e foi revogado pela Emenda Constitucional 40/2003. Afinal, a Carta Magna e o seu “espírito”, indiscutivelmente, pressupõem uma economia de mercado, o que é plenamente incompatível com limitações às taxas de juros praticadas na economia. Sendo assim, uma norma fria e literal, incompleta e inaplicável em sua essência, jamais poderia suplantar o espírito constitucional do próprio Legislador originário, que, aliás, apenas incluiu esse dispositivo também por sua incompreensão do assunto.

Na verdade, ao intervir desnecessariamente e impedir a livre pactuação dos valores e do método a ser utilizado para cálculo de taxas de juros nos contratos, pode-se considerar que há uma intromissão indevida do Estado na ordem econômica e na livre iniciativa, fato que contrariaria princípios constitucionais basilares emanados dos arts. 1º, IV, e 170 da Carta Magna de 1988.

 

7 – A solução é mais liberdade e menos intervenção

Portanto, é evidente que os juros compostos não são um problema, mas uma solução, por facilitar cálculos matemáticos que poderiam se tornar complexos em uma situação diversa. Se existe um problema quanto às taxas de juros praticadas no Brasil, tal problema não está no método utilizado para se calcular os juros, mas nos valores elevados, tantos dos juros básicos quanto dos spreads bancários, cujas raízes estão no excesso, e não na falta, de regulação e intervenção governamental e jurídica – que, conforme vimos na seção 3, além de criarem ambiente inóspito para a concorrência no setor bancário, consomem todo capital poupado que poderia ser utilizado como crédito privado, obviamente elevando as taxas de juros.

Nesse sentido, há que se continuar o estímulo à concorrência e o processo de quebra de monopólio de certos serviços financeiros que vêm sendo efetuados pelo Banco Central. Recentemente, foram criadas as Sociedades de Crédito Direto (SCD) e de Empréstimo entre Pessoas (SEP)[32], que visam a facilitar a oferta de crédito e financiamentos por fintechs, com potencial de desburocratizar o setor e diminuir os spreads bancários. Um passo seguinte, por parte tanto do BC quanto do Congresso Nacional e, quanto à jurisprudência, do Poder Judiciário, deveria ser o de permitir que pessoas físicas ou jurídicas não financeiras emprestem seus próprios recursos, sem os limites impostos pelo Código Civil e pela Lei da Usura. Isso também aumentaria a concorrência e permitiria ampliação da oferta de crédito e, consequentemente, queda de juros.

Outra maneira de se amenizar o problema está na maior disseminação de conhecimento sobre finanças, desde a escola. Apesar de poucos efeitos imediatos e de ser um projeto de longo prazo, a implementação de uma adequada educação financeira pode contribuir tanto para diminuição das taxas de juros, por aumentar a capacidade de poupança privada, quanto para melhor compreensão e utilização dos instrumentos financeiros. Afinal, como vimos, esse problema afeta, até mesmo, ocupantes de altos cargos da República com poder de tomar decisões de imensas repercussões.

Por falar nisso, o Poder Judiciário, que tem a oportunidade de pacificar a questão, simplesmente declarando a inaplicabilidade da “Lei da Usura” (seja anunciando sua não-recepção por vícios de constitucionalidade material, por violar, como vimos, diversos princípios essenciais da CF/1988, ou emitindo uma súmula vinculante para pacificar a jurisprudência), ao optar por imiscuir-se indevidamente em assunto que não compreende, causa grave insegurança jurídica e permite reiteradas judicializações do tema, por parte de pessoas que ou também não entendem o conceito ou optam por agir de má-fé. Evidentemente, esse ativismo judicial aumenta os riscos dos investidores (que ofertam o crédito necessário para o crescimento econômico do país) e gera mora, burocracia e custos desnecessários ao mercado – o que, evidentemente, também contribui para alta dos juros.

Uma alternativa ante o intervencionismo e imbróglio judicial é simplesmente a revogação formal da Lei da Usura pelo Legislativo. Dessa maneira, não haveria interpretações conflitantes e errôneas sobre limitações ao valor máximo das taxas de juros e à utilização dos juros compostos como método de contabilização.

Apesar de extremamente subestimada, muitas vezes, a via negativa, da não intromissão, é muito mais produtiva que a da ação. “Fazer algo” é superestimado, especialmente em virtude do seu “apelo humano”. Frequentemente, somos levados a crer que precisamos intervir em algo para tentar “consertá-lo”, quando, na realidade, a melhor solução seria não fazer nada além de se ter paciência para que os processos e ajustes naturais prevaleçam. Isso vale tanto na economia quanto, por exemplo, na medicina, em que, infelizmente, o paciente sempre espera uma ação do médico. Logo, existe uma percepção disseminada de que se o médico, obrigatoriamente, “não fizer algo” este “é ruim”. Por isso, muitos são levados a sempre prescrever um tratamento – ainda que esta tenha efeitos meramente paliativos e, eventualmente, até cause mais efeitos colaterais que benefícios no longo prazo –, quando, na verdade, a melhor receita seria esperar, não intervir e deixar o organismo se curar sozinho[33]. Avançando na metáfora, um governo interventor é como um médico que pretende tratar milhões de pacientes com o mesmo remédio. A prescrição homogênea será benéfica para alguns (principalmente para aqueles que são amigos próximos do médico e, portanto, podem “influenciar” na decisão sobre qual remédio será prescrito), mas certamente prejudicará a grande maioria. E é exatamente isso que vem acontecendo em virtude dos excessos de intervenções que objetivam impor limites a um preço que deveria ser formado naturalmente pelo mercado.

Em suma, recapitulando rapidamente os principais pontos de tudo o que vimos, juros são preços e, portanto, sua manipulação pode ocasionar graves distorções. Assim, tentar impedir a cobrança de juros compostos ou impor um limite às taxas praticadas pelo mercado, ao invés de combater as causas estruturais dos elevados juros básicos e spreads bancários, causa malefícios à economia e pode trazer repercussões negativas justamente para as pessoas que o administrador (no âmbito do Executivo), o legislador (no Legislativo) ou o juiz (no Judiciário) pretendem proteger – ou seja, o cidadão brasileiro.

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[1] MISES, Ludwig Von. Ação Humana. Págs. 555-662

[2] https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1105

[3] https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=552

[4] http://www.behaviorlab.org/Papers/Hyperbolic.pdf

[5] Existe o argumento de que, a rigor, juros não poderiam ser considerados preços, uma vez que não respeitariam a lei da utilidade marginal. No entanto, uma análise mais rigorosa pode demonstrar outro ponto de vista. A dificuldade de compreensão da ideia de juros como preços do tempo se dá em virtude do grande grau de abstração do conceito tempo. Sendo assim, uma análise que faça uso da noção de limites pode facilitar a compreensão. Afinal, se considerarmos o tempo de uma forma assintótica, ou seja, se este tendesse ao infinito e nós fôssemos imortais, a utilidade marginal dessa grande “abundância” de tempo à disposição tenderia a zero, da mesma forma que o seu preço (as taxas de juros), pois sempre existiriam pessoas dispostas a abrir mão de consumir agora para obter um ganho mínimo no futuro, já que esse futuro seria certo e eterno. Inversamente, se soubéssemos que nosso tempo tende a zero, ou seja, que morreríamos em breve, a utilidade desse tempo extremamente escasso tenderia ao infinito, assim como as taxas de juros, pois não teríamos nenhum incentivo para esperar para consumir em um futuro que jamais chegaria. Portanto, já que somos mortais e que somos confrontados sempre, ainda que psicologicamente, com essa escassez iminente (não sabemos quando vamos morrer), tempo presente é “mais caro”, e o quão mais caro será precificado pelos juros, que tempo futuro – e essa conclusão está plenamente de acordo com a lei da preferência temporal. Também é errado dizer que, se é o preço do tempo, então os juros devem ser iguais para todas atividades que considerem períodos temporais idênticos. O que ocorre é que a dimensão temporal é diferente para diferentes atividades, já que cada uma dessas dimensões guarda pressupostos, possibilidades e riscos específicos. Assim, é natural que os juros cobrados em uma atividade de alto risco seja muito mais elevado que os cobrados de uma atividade praticamente sem riscos, já que, embora o tempo newtoniano de ambas possa ser o mesmo (por exemplo, um ano), as diferentes possibilidades/probabilidades de acontecimentos dentro de cada fluxo temporal torna esses tempos completamente distintos.

[6] Para não estender o texto excessivamente, não vou entrar do mérito das consequências e da validade ou não da manipulação da política monetária pelo Banco Central. Porém, caso você queira se aprofundar no assunto, recomendo os seguintes textos: https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1538 e https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=223

[7] Recomendo o excelente texto sobre o tema: https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1094

[8] https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2018/03/20/concentracao-bancaria-e-uma-das-causas-do-alto-spread-no-brasil-apontam-debatedores

[9] https://www.bcb.gov.br/pec/depep/spread/REB_2017.pdf

[10] Caso queira se aprofundar no tema, recomendo o seguinte texto, do Consultor Legislativo Marcos Köhler: https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/outras-publicacoes/volume-iv-constituicao-de-1988-o-brasil-20-anos-depois.-estado-e-economia-em-vinte-anos-de-mudancas/politica-economica-e-monetaria-o-limite-constitucional-dos-juros-do-voluntarismo-ao-aprimoramento-da-gestao-fiscal

[11] http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumarioSumulas.asp?sumula=2000

[12] https://www.conjur.com.br/2014-jul-24/isaias-coelho-mito-juros-compostos-judiciario

[13] http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=596.NUME.%20NAO%20S.FLSV.&base=baseSumulas

[14] Ementa: Juros. Capitalização. A capitalização semestral de juros, ao invés da anual, só é permitida nas operações regidas por leis ou normas especiais, que expressamente o autorizem. Tal permissão não resulta do art. 31 da Lei 4.595, de 1964. Decreto nº 22.626/1933, art. 4º. Anatocismo: sua proibição. Ius cogens. Súmula 121. Dessa proibição não estão excluídas as instituições financeiras. A Súmula 596 não afasta a aplicação da Súmula 121. Exemplos de leis específicas, quanto à capitalização semestral, inaplicáveis à espécie. Precedentes do STF. Recurso extraordinário conhecido, por negativa de vigência do art. 4º, do Decreto nº 22.626/1933, e contrariedade do Acórdão com a Súmula 121, dando-se-lhe provimento (RTJ do STF, v. 124/616).

[15] Termo jurídico para juros compostos.

[16] De acordo com o art. 53 da Convenção de Viena, internalizada pela Lei nº x, o termo jus cogens se refere a “uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza.” Logo, é curiosa a sua aplicação no recurso extraordinário analisado, uma vez que os juros compostos são praticados em todos os países do mundo.

[17] Ementa: Direito Privado. Juros. Anatocismo. Vedação incidente também sobre instituições financeiras. Exegese do enunciado nº 121, em face do nº 596, ambos da súmula do STF. Precedentes da Excelsa Corte. A capitalização de juros (juros de juros) é vedada pelo nosso direito, mesmo quando expressamente convencionada, não tendo sido revogada a regra do art. 4º do Decreto 22.626/33 pela Lei nº 4.595/64. O anatocismo, repudiado pelo verbete nº 121 da súmula do Supremo Tribunal Federal, não guarda relação com o enunciado nº 596 da mesma súmula. (Revista do STJ, ano 3, nº 22, junho de 1991).

[18] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/MPV/2170-36.htm

[19] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=284716

[20] http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=1857067

[21] https://www.valor.com.br/brasil/4520755/juro-simples-na-divida-de-estados-geraria-perda-uniao-de-r-313-bi

[22] https://www.valor.com.br/brasil/4521727/especialistas-atacam-uso-de-juros-simples-para-dividas-dos-estados

[23] https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,juros-simples–consequencias-severas,10000025864

[24] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2009/10/635024-leia-a-integra-do-manifesto-de-academicos-a-favor-dos-juros-compostos.shtml

[25] https://nicholastavares.jusbrasil.com.br/artigos/185520765/dos-juros-remuneratorios-nos-contratos-de-mutuo

[26] https://jus.com.br/artigos/63710/juros-moratorios-qual-a-taxa-maxima-legal

 

[27] http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=42297&visao=anotado

[28] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8212cons.htm

[29] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9430.htm#art61

[30] https://portal.tcu.gov.br/sistema-atualizacao-de-debito/

[31] https://www.cjf.jus.br/phpdoc/sicom/arquivos/pdf/manual_de_calculos_revisado_ultima_versao_com_resolucao_e_apresentacao.pdf

[32] https://www.bcb.gov.br/pre/normativos/busca/downloadNormativo.asp?arquivo=/Lists/Normativos/Attachments/50579/Res_4656_v1_O.pdf

[33] Para descrever situações desse tipo, inclusive em cenários socioeconômicos, Nassim Nicholas Taleb (autor de “Antifrágil”, “Arriscando a própria pele”, entre outros livros) generalizou o termo “iatrogenia”, utilizado na Medicina para se referir a complicações, doenças e efeitos adversos causados pela própria prática médica.

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O conceito de austeridade se aplica ao Brasil? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3153&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-conceito-de-austeridade-se-aplica-ao-brasil Wed, 31 Jan 2018 13:58:45 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3153 Muitos economistas brasileiros ainda insistem em apontar uma eventual política de austeridade fiscal como uma das causas de nossa crise. Acreditam que um corte de gastos, ou não expansão das despesas, contribuiu bastante para o tamanho e duração da recessão. Alguns mais ousados vão além: comparam a situação brasileira com a dos países avançados (sobretudo europeus) no pós-crise, sugerindo o uso da política fiscal como solução para os nossos problemas. Teriam eles razão?

 

A resposta dos países desenvolvidos após a crise de 2008

Uma das grandes controvérsias em economia de fato diz respeito aos efeitos da política fiscal na atividade econômica. Em que condições um aumento do gasto público se traduz em aumento do produto?

Essa discussão esteve em segundo plano nas décadas de 80 e 90. À época, o consenso macroeconômico dizia que a política monetária – mudanças nos juros, crédito e moeda – seria a mais adequada para estabilizar uma economia. Esse consenso mudou com a crise de 2008. Desde então, muitas economias desenvolvidas chegaram ao mínimo histórico em suas taxas de juros.

Nos EUA, a resposta à crise veio com um pacote fiscal. Ao American Recovery and Reinvestment Act, aprovado em fevereiro de 2009, se atribui papel importante em impedir que a recessão se transformasse em depressão.

Na Europa, uma união monetária, a discussão era mais quente, assim como a divergência. Em alguns países, os defensores da austeridade argumentavam que, com déficit e dívida elevados, cortes de despesas seriam a solução para a retomada.

Em teste, a austeridade via gastos aumentaria a confiança dos agentes. Esse discurso tinha por base os trabalhos do economista italiano Alberto Alesina, um dos proponentes da tese da “contração fiscal expansionista”. Ou seja, uma contração da despesa pública poderia funcionar como um estímulo à economia.

Pouco a pouco, contudo, essa controvérsia foi se desfazendo, em favor daqueles contrários à austeridade.

 

O que a experiência pós-crise ensinou aos economistas

Novas evidências surgiram com os ajustes realizados na Europa. Um trabalho importante nesse sentido foi o de Blanchard e Leigh (2013)1. O artigo mostra que países com maior corte de gastos foram aqueles com maior diferença entre o crescimento previsto e o efetivo. Os ajustes pareciam duros demais.

Com uma revisão mais cuidadosa dos trabalhos de Alesina e seus colegas, diversas críticas metodológicas ganharam força. Uma delas diz respeito ao problema de variável omitida. Após um ajuste fiscal “de sucesso”, a economia poderia ter se recuperado não pelo ajuste em si, mas por qualquer motivo exógeno, como um aumento no preço de commodities. Levando essas críticas em consideração, o resultado mais geral da pesquisa de Alesina se perdia, como já mostrava em 2010 um importante texto do FMI2.

Durante este período, ocorreu uma explosão de trabalhos teóricos e empíricos para examinar os efeitos da política fiscal. Chistina Romer, uma das principais especialistas mundiais no tema, afirmou em 2011 que provavelmente havia mais estudos nessa área entre 2008 e 2011 do que nos 25 anos anteriores3.

A literatura acadêmica aprimorou rapidamente seus instrumentos para medir o impacto de gastos fiscais, através de novas técnicas para identificação de choques. Grande parte dos resultados sugeria que esse impacto (o multiplicador fiscal) varia de acordo com o momento do ciclo econômico, do regime de câmbio adotado e da política monetária4. E, quase sempre, apresentam valores positivos – ou seja, cortes de gastos geralmente impactam negativamente a economia, e vice-versa.

Diante de toda essa pesquisa no assunto, a maioria dos economistas reconhece, hoje em dia, que os defensores da austeridade perderam o debate na Europa5.

Aumentar o nível de gastos pode, em determinadas circunstâncias, desempenhar um papel importante para a saída de uma crise econômica, ajudando a recuperar a produção no curto prazo. Restaria, então, saber se podemos generalizar estes resultados para qualquer economia em qualquer contexto.

 

O que esse debate tem a ver com a crise brasileira?

Alguns economistas brasileiros erroneamente acreditam que podem generalizar as conclusões do debate sobre a Europa.

Quando a economia do Brasil começou a se desacelerar fortemente, a interpretação majoritária foi de que a crise tinha sólidas raízes fiscais. Mas alguns economistas passaram a se manifestar fortemente contra o ajuste das contas públicas, afirmando que seria um “austericídio”. Um exemplo desse discurso está exposto no relatório “Austeridade e Retrocesso”, lançado em 2016.

Um dos textos mais citados para justificar essa visão heterodoxa foi escrito por técnicos do FMI, em 2016, denominado “Neoliberalism: oversold?”. Nele, afirmava-se que a despeito de alguns sucessos da agenda neoliberal, alguns pontos não haviam tido bons resultados, como a consolidação fiscal. O problema é que o texto do FMI focava em países avançados com custos de financiamento de dívida muito baixos.

No próprio texto do FMI, admitia-se que muitos países tinham pouca escolha além de um ajuste fiscal, pois os mercados não permitiriam que continuassem se endividando. Esta última ressalva se aplica ao Brasil.

Outro artigo usado como argumento pelo grupo de economistas brasileiros foi Ball et al (2013)6. Trata-se de um trabalho empírico, cuja amostra é formada por 17 países da OCDE. O resultado principal indicava que uma consolidação fiscal de 1% do PIB poderia aumentar o desemprego e a desigualdade, respectivamente em 0,6 e 1,5 pontos percentuais. O problema é que, assim como no caso anterior, o trabalho se baseava em países desenvolvidos, com conclusões não facilmente aplicáveis a contextos distintos.

O terceiro trabalho bastante utilizado como argumento contra o ajuste foi o “The Permanent Effects of Fiscal Consolidation”, de Fatás e Summers, de 2016. De maneira geral, encontrava evidências de efeitos negativos de longo prazo da política fiscal no pós-crise, sendo um dos canais a histerese no mercado de trabalho. Como consequência, tentativas de reduzir a dívida via consolidação fiscal poderiam aumentar a relação dívida/PIB devido aos impactos negativos do ajuste no produto. Afirmavam, desta maneira, que políticas de austeridade poderiam ser extremamente custosas.

Mais uma vez, os próprios autores foram bastante claros ao negar que esta fosse uma conclusão padrão para todos os governos e em todos os momentos. Afirmavam estar olhando para um episódio bastante particular, quando circunstâncias “especiais e severas” estavam presentes: ou bem a política monetária estava restrita pelo limite inferior da taxa de juros ou bem havia amarras institucionais impostas pela união monetária da Europa.

 

O erro fatal na tese do ‘austericídio’: não houve austeridade no Brasil

 A tese do ‘austericídio’ carece de sustentação teórica adequada para explicar a situação atual da economia brasileira. Os textos nas quais se baseia não estudaram o contexto brasileiro, mas países avançados com baixo custo de financiamento de dívida e alguma forma de impedimento de política monetária. Certamente, não é o caso do Brasil, que tinha espaço tão amplo para uso da política monetária (o qual vem corretamente aproveitando), além de uma dívida bastante elevada e cara frente aos seus pares emergentes.

Além disso, a própria qualificação do debate de ajuste fiscal no Brasil é controversa: os indicadores fiscais brasileiros falham em mostrar que tenhamos vivido um forte ajuste nas contas públicas.

Tomemos o exemplo de Portugal para comparação. O gasto público luso diminuiu 7,2% entre 2010 e 2012, em valores reais. De acordo com dados do FMI, só em 2020 voltará ao patamar de gastos de 2010.

No Brasil, em contrapartida, o nível real de gastos de 2016 ficou acima do nível de gastos de 2014. Percebe-se facilmente que tal dinâmica é bastante distinta daquela verificada na Europa após a crise: o que se chamou de austeridade por lá não parece ter nenhuma correspondência por aqui.

O que ocorre de fato no país, e pode causar certa confusão, é uma mudança na composição do gasto federal. Enquanto avançam os gastos com pessoal e, principalmente, benefícios previdenciários, sobra cada vez menos espaço para outras despesas. Apesar de grandes cortes em áreas específicas, como no apoio à pesquisa acadêmica, o volume total de gastos não diminuiu.

Em 2014, a soma das rubricas pessoal, benefícios previdenciários e assistências acumulava um volume de 63% da despesa total. Para o orçamento de 2018, esse mesmo volume está em 69%. O resultado é que as despesas discricionárias vêm sofrendo um forte ajuste, mas sem que possamos dizer o mesmo da despesa total. É por isso que a reforma da Previdência é tão importante, objetivando amenizar essa tendência.

Em suma, é natural que a macroeconomia, frente aos novos desafios, repense algumas de suas velhas ideias. Alguns países vivem situações inéditas, como taxas de juros no limite inferior e utilização de mecanismos não convencionais de política monetária. Parte dos países avançados convive ainda com baixo crescimento crônico, sem saber se voltarão um dia a crescer a taxas mais elevadas. Ignorar essas questões e aplicar a lógica de “one size fits all” para a política fiscal é um caminho bastante equivocado para seguir.

 

Publicado originalmente no Instituto Mercado Popular em 4 de janeiro de 2018 sob o título “A crise brasileira não foi causada por austeridade”.

 

_______________

1 Blanchard e Leigh (2013) – Growth Forecast Errors and Fiscal Multipliers.

2 IMF. Will it hurt? Macroeconomic Effects of Fiscal Consolidations, 2010.

3 Romer, C. (2011). What do we know about the effects of fiscal policy? Separating evidence from ideology.

4 Ver, por exemplo, texto de Nicoletta Batini e coautores, denominado “Simple Method to Compute Fiscal Multipliers”, de 2014.

5 Como afirmou, por exemplo, o chileno Andres Velasco: “Europe’s austerians lost the argument” em Velasco (2017) – Can Fiscal Contraction Ever Boost Growth?

6 Ball et al (2013) – The Distributional Effects of Fiscal Consolidation. Ele é citado, por exemplo, em http://www1.folha.uol.com.br/colunas/laura-carvalho/2016/06/1777343-e-preciso-muita-fe.shtml.

 

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Seu Jorge e a Previdência https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3044&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=seu-jorge-e-a-previdencia https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3044#comments Tue, 12 Sep 2017 14:31:13 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3044 Aos 77 anos, Giorgos não imaginava passar por aquela situação. Após trabalhar por anos na mina de carvão e na fundição, ele saíra naquela manhã de verão para sacar a aposentadoria da mulher. Sensibilizou-se com os pedintes que viu pelo caminho. Lembrou-se dos suicídios: não suportava mais ver o seu país assim. Tentou o saque da aposentadoria em uma agência, não conseguiu. Depois foi a mais um banco, nada. Insistiu em fazer o saque em mais outro, mas novamente sem sucesso. Na quarta vez que não conseguiu receber o benefício, Seu Giorgos não aguentou. Sentou no meio da calçada e chorou.

Um ano depois, talvez tivesse algum conhecido seu entre os que manifestavam contra o 15º corte no valor das aposentadorias, que ocorria mesmo após um ano da posse do primeiro-ministro Tsipras, do partido que chegara ao poder com discurso antiausteridade. Naquela ocasião, os manifestantes de cabelos brancos toparam com um ônibus da polícia no meio de sua passeata. Juntaram-se para tentar retirá-lo do caminho. A polícia respondeu à investida dos idosos. Com spray de pimenta.

Irresponsabilidade fiscal e contabilidade criativa foram alguns dos causadores da complicada crise da Grécia. Em um dos países mais envelhecidos da Europa, a crise levou a cortes de aposentadorias e até a feriados bancários, como o que Seu Giorgos Chatzifotiadis enfrentou. A foto do seu pesadelo, “O homem que chora”, correu o mundo.

***

Em alguns anos, Seu Giorgos pode ser Seu Jorge. Um idoso de mesmo nome que acreditou na mesma promessa de seu país de pagar a ele uma aposentadoria como pagou a de outros. Seu Jorge está desesperado com a sua aposentadoria cortada. A idade avançada não lhe permite mais trabalhar, e ele não consegue tratar suas doenças crônicas no SUS, cada dia mais sem dinheiro. É arrimo de família, uma vez que seus parentes jovens estão desempregados. Seu país vive uma crise grega, só que com sua renda per capita de Turquemenistão. Antes dos cortes, Seu Jorge já ganhava a metade do que ganhava Seu Giorgos.

Não acredita no que acontece. Vários anos antes ouviu de novo aquela ladainha de reforma da Previdência, mas recebeu no Whatsapp o vídeo explicando que tudo era mentira: a Previdência não tinha déficit, sobrava dinheiro que o governo desviava pra alguma coisa que Seu Jorge não entendeu muito bem o que era.

Seu Jorge não sabia que o vídeo fora criado por Nelson. Nelson ganhava bem mais que Seu Jorge, tinha direito a uma aposentadoria muito maior e com aumentos mais generosos, custeados não por suas próprias contribuições, mas pelas de pessoas como Seu Jorge. Nelson perderia esses direitos se o governo fizesse uma reforma.

Nelson era um orgulhoso servidor público, membro  da associação que representava a sua carreira. Seu Jorge confiou na informação do vídeo que recebeu porque tinha o selo de uma associação nacional de auditores. É coisa de doutor, pensou. Seu Jorge não sabia que cabia a associação de Nelson representar a carreira de elite com maior número de aposentados e pensionistas da União, 20 mil.

Entre as pautas da associação de Nelson, publicamente apresentadas em seu site em 2017, estavam o direito aos aumentos generosos, o fim da contribuição de servidores aposentados e até o direito desses aposentados receberem bônus de produtividade – de acordo com o aumento da arrecadação de impostos. No momento em que Seu Jorge recebeu o vídeo, este bônus era inclusive negociado pela associação de Nelson com o governo no meio de uma medida provisória. Insatisfeita com a proposta, a associação de Nelson contratou até um ex-presidente do Supremo Tribunal Federal para levar o pleito à Justiça. A associação também mobilizava seus recursos em 2017 para a campanha mostrando que não existia déficit na Previdência ou na Seguridade Social.

Nelson tinha um ponto de vista claro sobre como devem ser apresentadas as contas da Seguridade, mas Seu Jorge não tinha a mesma clareza. No vídeo que produziu, Nelson omitiu que a contabilidade de sua associação exclui as despesas com as aposentadorias e pensões dos próprios servidores públicos, e também não achou necessário mostrar que ainda assim havia um déficit já para o ano de 2016.

Seu Jorge não dava bola para o papo de crise na Previdência. Além do vídeo, ficou tranquilo ao ler no jornal que uma importante entidade da sociedade civil alertava que a reforma do governo era baseada em premissas equivocadas. Não entendia do assunto, mas novamente quem estava afirmando era doutor.

Seu Jorge também não percebia que cabia a esta outra entidade defender advogados como Miguel. O escritório de Miguel lucra ao conseguir benefícios do INSS para seus clientes, retendo em honorários uma parte do pagamento de aposentadorias rurais, aposentadorias especiais e aposentadorias por invalidez. Preocupado não só com seus clientes, mas também com seu negócio, Miguel, como outros advogados, acionou a entidade a que pertence e ela se manifestou contra a reforma da Previdência, pelos seus abusos sociais.

Em uma tarde daquele 2017, Seu Jorge perdeu tempo no trânsito com uma passeata. Porém, ficou resignado e a apoiou, porque se solidarizou com a causa dos trabalhadores do campo prejudicados pela reforma da Previdência. O protesto foi organizado por José. Como Miguel, José também ficou preocupado com as mudanças na aposentadoria rural. José é presidente de um sindicato rural cuja maior parte do filiados só se registrou para conseguir uma declaração atestando anos de trabalho no campo. Essa declaração é essencial para que recebam a aposentadoria rural.

Após a filiação para receber a aposentadoria, parte desses filiados terá mensalmente, e para sempre, descontos nos benefícios para financiar a atividade sindical, conforme autorizaram.  José não é o único presidente de sindicato rural preocupado com a reforma: ao todo, são cerca de 4 mil. Apesar da urbanização das décadas anteriores, existiam no Brasil em 2017 mais sindicatos de trabalhadores do campo do que sindicatos urbanos filiados à CUT e à Força Sindical, juntas. Caso fosse aprovada a reforma do governo, a comprovação de trabalho rural para aposentadoria seria feita com contribuições ao INSS ao longo da vida do trabalhador, e não apenas no momento de pedir da aposentadoria com intermédio de um sindicato como o de José ou de um advogado como Miguel.

***

Prosperando a mobilização de entidades com interesses como os de Miguel e José, sob a desinformação disseminada por entidades como a de Nelson, nenhuma reforma da Previdência será feita. Apesar das aposentadorias serem extremamente protegidas em nosso sistema jurídico, o absurdo cenário de relativização do direito adquirido e corte de benefícios pode aparecer no horizonte. Ele ocorrerá depois da redução em despesas não obrigatórias (mas não desimportantes) e do aumento de impostos, bem como do aumento do endividamento público que reprimirá a economia com juros altos. A outra saída é a hiperinflação.

Tem sido assim no Rio de Janeiro e foi assim em países europeus, como a Grécia de Seu Giorgos, o outro Seu Jorge. O duro corte de aposentadorias nesses países foi de tal forma imperativo que terminou validado pela Corte Europeia de Direitos Humanos. O tribunal foi provocado pela servidora pública portuguesa Maria Alfredina, que não aceitava o desconto da ‘contribuição extraordinária de solidariedade’, que é como se diz corte de aposentadorias em português de Portugal.

O córtex pré-frontal ventromedial é uma região de nossos cérebros que fica ativada quanto pensamos em nós próprios. Estudos mostram que quando pensamos em nós no futuro, porém, a região não se ativa: nossa incapacidade de pensar em nosso amanhã seria tal que é como se o cérebro estivesse pensando em outra pessoa. Enquanto país, talvez enfrentemos dificuldade semelhante. Encaramos uma reforma da Previdência como desnecessária e sequer questionamos a atividade dos grupos de interesse que atuam no debate. Fazer reforma da Previdência é ruim. A questão que devemos nos indagar é se não fazê-la é ainda pior, dando a Seu Jorge o destino de Seu Giorgos. Vamos deixá-lo chorando na calçada?

 

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Faz sentido pensar em auditoria da dívida? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3019&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=faz-sentido-pensar-em-auditoria-da-divida Tue, 15 Aug 2017 13:01:05 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3019 Um argumento frequente em oposição à reforma da previdência (ou a outras medidas de ajuste fiscal) é a necessidade de, antes de tudo, uma “auditoria da dívida”. Tal auditoria parte da ideia que dinheiro público é desviado para o mercado financeiro no processo de financiamento dos déficits públicos. Resolvido esse desvio, sobrariam bilhões de reais em recursos no orçamento, o que tornaria os ajustes desnecessários.

A auditoria da dívida faz sentido? Não, se levarmos em conta, sem lançar mão de teorias conspiratórias, como é constituída e financiada a dívida pública:

  • O principal fator de endividamento é a diferença entre receitas e gastos do governo – o resultado primário. Esses fatores são bem conhecidos e divulgados, e a Lei de Responsabilidade Fiscal pune gastos não autorizados pelo orçamento ou tentativas de inflar a receita (o argumento jurídico no impeachment da presidente Dilma Rousseff). A “auditoria” possível aqui não leva a um grande resultado imediato: depende do controle e fiscalização dos gastos linha por linha do orçamento – algo que, ao menos em teoria, já é feito pelas Controladoria Gerais e outros órgãos de fiscalização;
  • O gasto com juros é determinado pelo tamanho da dívida e as taxas de juros pagas aos detentores de títulos. Sabendo que o Brasil tem taxas de juros entre as maiores do mundo, aqui recai a suspeita da turma da auditoria – os juros altos beneficiariam os detentores de títulos (muitas vezes chamados de “rentistas”), em detrimento da população.

É possível pagar juros mais baixos? Sim, dizem os “auditores”, se for quebrado um suposto esquema de transferência de recursos para o mercado financeiro. Ocorre que nem o governo, nem os detentores da dívida escolhem as taxas de juro que pagam ou recebem. Há um mercado bastante transparente para a dívida pública, como há para ações e outros ativos financeiros. Brasil e muitos outros países realizam leilões para vender seus títulos da dívida, e o chamado mercado secundário troca entre seus participantes bilhões de reais nesses títulos diariamente. A taxa de mercado depende dos juros praticados pelo Banco Central e variáveis que afetam o risco-país – desde balança comercial até percepção de estabilidade (ou instabilidade) política. Como há muitos investidores potenciais nos títulos do Brasil – bancos, fundos de investimento, fundos de pensão, Tesouros de outros países (via fundos soberanos), seguradoras, etc. – é difícil acreditar que há um “cartel dos juros altos”, um grupo organizado que força o Tesouro Nacional a seguir pagando juros altos.

Como baixar, então, os juros? Essa é a pergunta de vários bilhões de reais e para que, infelizmente, não há resposta fácil.

Os juros praticados pelo Banco Central caem na medida em que é possível manter a inflação estável – algo que tem ocorrido, lentamente e com vários retrocessos, desde o Plano Real. Uma queda no risco-Brasil depende de uma mudança de fundamentos, sobretudo relacionados à sustentabilidade da dívida. Os investidores exigirão juros mais altos se há mais dúvidas sobre a capacidade do país pagar, no futuro, sua dívida sem recorrer ao velho truque da hiperinflação. Pagar a dívida é mais fácil se os gastos e receitas do governo são controlados e previsíveis (daí a importância da reforma da previdência e da redução do crédito subsidiado, uma maneira de transferir recursos do governo sem passar pelo orçamento).

Fazer parte de uma comunidade financeira internacional tem custos e benefícios.

É fácil enxergar os custos da dívida financiada a mercado, enquanto os benefícios são difusos e nem sempre claros (estabilidade de preços, acesso amplo e não-seletivo à moeda estrangeira e crédito, investimentos, etc.). Vários exemplos ao nosso redor – Venezuela e Argentina, sobretudo – escancaram os custos da alternativa heterodoxa. É muito mais difícil inovar em política econômica (o que é necessário para melhorar crescimento e distribuição) sem adotar um mínimo de práticas – bastante conhecidas e estabelecidas – que garantam o acesso do país aos mercados internacionais. Há muito o que melhorar no que controlamos, sobretudo se não gastarmos energia com o que não podemos controlar.

 

Este texto foi originalmente publicado pelo Acredito.

 

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Parte 2: O que te contaram errado sobre a reforma da Previdência https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2989&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=parte-2-o-que-te-contaram-errado-sobre-a-reforma-da-previdencia https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2989#comments Mon, 24 Apr 2017 13:31:50 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2989 Em texto anterior, discutimos no blog os mitos sobre a reforma da Previdência, como o de que ela faria as pessoas trabalharem até morrer (porque é um erro neste debate considerar a expectativa de vida ao nascer); o de que uma idade mínima prejudica o trabalhador mais pobre que começa a trabalhar cedo (porque ele já tem idade mínima hoje); o de que serão precisos 49 anos de contribuição para aposentadoria integral (porque isso só seria preciso para uma minoria da população); e o de que a Seguridade Social em seu conjunto é superavitária (porque essa conta esconde dados do funcionalismo público).

Neste texto, analisamos mais quatro mitos difundidos sobre a reforma.

 

Mito: O problema previdenciário seria resolvido se o governo cobrasse as empresas devedoras da Previdência.

Não há o que defender a respeito de sonegação e inadimplência na Previdência. Entretanto, quando se diz que as 500 maiores empresas devedoras da Previdência devem mais de R$ 400 bilhões, é preciso ficar claro que:

i) boa parte dos grandes devedores não são empresas;

ii) entre as que de fato são, muitas estão falidas, e o montante devido, além de irrecuperável, é alto pela própria incidência de juros e correção monetária;

iii) ainda que fosse recuperável, a dívida pagaria as despesas do INSS por apenas 9 meses.

As empresas que não são empresas

A respeito do primeiro ponto, há um evidente esforço de desinformação quando se fala sobre as 500 maiores “empresas” que devem à Previdência. A 13ª maior devedora, com R$ 550 milhões, é a Prefeitura de São Paulo. A lista contém ainda outras capitais como Salvador (44ª, R$ 320 milhões) e Manaus (54ª, R$ 280 milhões), e cidades como Guarulhos (11ª, R$ 560 milhões), Barcarena (62ª, R$ 250 milhões), Cabo Frio (66º, R$ 230 milhões) e Campinas (77ª, R$ 210 milhões).

Órgãos da Administração Direta e Indireta de diversos entes também abundam na lista, como o 8º maior devedor, o Instituto Candango de Solidariedade (DF), (R$ 700 milhões), e a 10ª maior devedora, a Agespisa (PI), com R$ 590 milhões.

Até mesmo estatais federais aparecem entre os grandes devedores, como a Caixa Econômica Federal (14ª maior devedora, R$ 550 milhões), os Correios (32º maior devedor, R$ 380 milhões) e o Banco do Brasil (76º, R$ 200 milhões)

Por que isso é um problema no debate? A narrativa de que a dívida (“dívida ativa”) é formada por grandes empresas passa a errônea impressão que o problema previdenciário poderia ser resolvido com recursos do setor privado. Entretanto, a grande participação de entidades do próprio Estado revela que, caso a cobrança da dívida ativa fosse melhorada, parte do fluxo de dinheiro se daria entre bolsos de uma mesma calça: por exemplo, de um ente do Estado para o outro. Evidentemente isso não significa que não seja justo que todos aqueles com dívida reconhecida paguem o que devem, sejam do setor privado ou não.

As empresas falidas

Já o segundo ponto, a grande quantidade de empresas falidas, é ilustrada pelo trio Varig, Vasp e Transbrasil: as três empresas aéreas estão entre as seis maiores devedoras, todas com passivos de mais de R$ 1 bilhão. No caso da Varig, a maior devedora da Previdência, o valor se aproxima de R$ 4 bilhões.

Há uma evidente dificuldade de recuperar recursos de empresas falidas, seja seu credor um banco ou a Previdência.

Figura 1 – Ativos da maior devedora da Previdência

Adicionalmente, é pertinente observar que o valor alto que algumas dessas empresas registram na lista de grandes devedores se deve à própria incidência de juros e correção monetária sobre os débitos, que vão se somando ao longo dos anos, ainda que não sejam recuperáveis. Algumas das empresas da lista não estão falidas há anos, mas há décadas.

Dinheiro para pagar um benefício por um mês

Por isso, é extremamente falacioso comparar o montante de R$ 430 bilhões das 500 maiores devedoras com o déficit da Previdência. Infelizmente, deste montante, apenas R$ 10 bilhões é classificado como de “alta chance de recuperação”. O valor equivale às despesas com aposentadoria por tempo de contribuição: em um mês. Argumento semelhante se aplica à lógica de que a reforma da Previdência deve ser substituída pelo combate à corrupção, uma causa nobre, mas que é incapaz de resolver os problemas do país: o departamento de propinas da Odebrecht movimentou em quase 10 anos o que o INSS gasta em 1 semana1.

Assim chegamos ao terceiro ponto elencado acima. Ainda que toda a dívida ativa fosse recuperada, o valor seria suficiente para pagar todas despesas do INSS por apenas 9 meses. Este é um importante equívoco dos que apontam a dívida ativa como solução para a Previdência: em economês, a dívida ativa é um “estoque”, um valor acumulado referente ao passado, enquanto a despesa previdenciária é um “fluxo”, que se repete no tempo.

As filantrópicas (pilantrópicas?) e o STF

Um complicador adicional deve ser a recente decisão do Supremo Tribunal Federal estabelecendo que os requisitos de imunidade previdenciária para entidades filantrópicas deveriam ter sido estabelecidos por uma lei complementar, e não por lei ordinária como foi feito. Parte dos devedores da Previdência são justamente entidades que se consideravam isentas de pagar contribuição. Elas se consideram filantrópicas para fins previdenciários (ex: uma faculdade privada), mas não são assim consideradas pelos órgãos competentes do governo. Quando não pagavam a Previdência por “terem” isenção, eram consideradas devedoras. Com a decisão do STF, suas dívidas agora poderão não existir mais.

Outros exageros

Outros exageros nas mensagens denuncistas que circulam nas redes sobre os grandes devedores incluem considerar que as dívidas já estão reconhecidas e prontas para cobrança, quando boa parte ainda é discutida na Justiça (como a da Caixa Econômico Federal); e insinuar que o governo não busca recuperar os débitos para não incomodar os devedores. Este último tipo de insinuação tem sido comum no debate (como quando se diz que as contas da Previdência não são auditadas). Na verdade, a soma anualmente recuperada desta dívida subiu de R$ 1,5 bilhão em 2010 para R$ 4,1 bilhões em 2016, quase três vezes mais.

Se este pote de ouro ao fim do arco íris não existe, por que este discurso persiste ao longo dos anos? Uma possível explicação já foi debatida aqui no blog  e se relaciona com promessas de corporações de funcionários públicos feitas a agentes políticos e à sociedade. Neste caso, representantes de procuradores, a quem compete recuperar este dinheiro, sempre exageraram valores referentes à dívida ativa ao mesmo tempo em que defendiam a importância de receberem honorários indenizatórios, isto é, um vantajoso complemento de remuneração que não se sujeita ao teto constitucional ou à incidência de Imposto de Renda. Em troca do aumento salarial, a sociedade recuperaria bilhões da tal dívida.

 

Mito: A reforma é baseada na comparação do Brasil com países ricos, que possuem outra realidade.

As regras de concessão de benefícios previdenciários do Brasil não destoam apenas das de países ricos, mas também de países emergentes. Por exemplo, além do Brasil, apenas 12 países possuem aposentadoria por tempo de contribuição, isto é, uma aposentadoria sem idade mínima.

A idade mínima proposta pelo governo para o Brasil na década de 2030, de 65 anos, já é a idade mínima hoje no Paraguai, no México, na Argentina e no Chile. Isso evidentemente não significa que o país deva “importá-la”, mas mostra que é equivocado afirmar que as regras propostas só são compatíveis com a de um país rico.

Ainda assim, o processo de envelhecimento populacional do Brasil é tal que a OCDE estima que nas próximas décadas a expectativa de sobrevida de uma idosa brasileira será até ligeiramente superior a de uma americana ou de uma dinamarquesa – países muito mais ricos.

Apesar disso, de fato medidas de “expectativa de sobrevida com saúde” dos brasileiros não acompanham a de nacionais de outros países. É evidente que deixam muito a desejar no Brasil a saúde pública, a mobilidade e a acessibilidade, entre outras políticas públicas voltadas aos idosos.

Uma reflexão que é pertinente, porém, é se não reformar a Previdência é de fato o caminho para melhorar essa situação. Com o crescimento do gasto previdenciário, não estamos condenando, por exemplo, o Sistema Único de Saúde (SUS) a ter menos recursos do que poderia para atender idosos, cujas internações são mais frequentes e duram mais? O caminho para a “expectativa de sobrevida com saúde” não pode ser somente o aumento de gastos com Previdência, às custas da saúde ou do saneamento básico, por exemplo.

Finalmente, é útil apresentar a idade para aposentadoria em outros países, comparando-a com uma versão difundida em mensagens pela Internet.

Figura 2 – Idade mínima falsa e verdadeira para países selecionados

 

Mito: A reforma não resolve o problema e melhor seria mudar para um sistema de contas individuais capitalizadas.

Neste debate, frequentemente defende-se que, em vez de modificar os parâmetros do sistema (idade, tempo de contribuição), melhor seria transformar o regime de repartição em um regime de capitalização. Isto é, mudar de um regime em que os trabalhadores em atividade pagam contribuições que financiam os benefícios dos inativos (aposentadorias, pensões, auxílios) para um sistema em que cada um poupa para seu próprio benefício, depositando a contribuição em contas para serem aplicadas no mercado financeiro.  Tal proposta é considerada inviável pelos significativos custos de transição que implica.

O custo de transição ocorre porque, enquanto as contribuições dos trabalhadores da ativa seriam separadas individualmente e capitalizadas, as despesas com os atuais beneficiários (aposentadorias, pensões, auxílios) deveriam continuar sendo pagas. Caso nenhuma transição fosse empregada, a perda de arrecadação seria da ordem de R$ 350 bilhões em 2016. Com a União em delicada trajetória de endividamento e incapaz deproduzir sequer superavits primários, uma mudança abrupta do regime ameaçaria aprópria solvência do Estado brasileiro.

Adicionalmente, como a Previdência Social é caracterizada pela solidariedade entre grupos, um regime de capitalização necessariamente implicaria perdas e regras mais duras do que as da proposta de reforma da Previdência para grupos que são “subsidiados” no atual sistema. Entre eles, mulheres, servidores públicos, professores, policiais, trabalhadores rurais e aqueles que recebem benefícios vinculados ao salário mínimo. Mantidas as alíquotas de contribuição atuais, todos esses grupos provavelmente receberiam menos em um regime de capitalização do que no regime atual.

A principal proposta para um regime de capitalização presente neste debate é a dos pesquisadores da USP, apoiada recentemente pelo Movimento Brasil Livre (MBL). Eles propõem a criação de um sistema misto, mantendo o regime de repartição para valores menores e instituindo uma camada de capitalização obrigatória para valores maiores. Cabe observar que, apesar da transição proposta pelo modelo, ainda há perda de arrecadação (custo de transição).

O professor Hélio Zylberstajn sugere que a transição seja financiada ou pelos jovens que estariam no novo modelo, pagando uma contribuição dobrada (para o modelo antigo e para o novo) ou pelos atuais beneficiários, que teriam descontos em seus benefícios, como aposentadorias. Fica evidente que não há solução fácil para esta transição, seja ela financiada pela União, pelos novos segurados ou pelos atuais beneficiários.

Por fim, cabe ressaltar que o risco demográfico presente na repartição não está totalmente ausente em um regime de capitalização. Uma boa remuneração das contas pressupõe a transferência de ativos da geração que se aposenta para a geração seguinte, ou seja, esse regime também é afetado pela transição demográfica.

 

Mito: A principal despesa do governo não é a Previdência e sim os juros, e é ela que deveria ser combatida.

Respondendo em 2017 por 57% do total, a Previdência é o principal componente da despesa primária da União.  De maneira simplificada, a despesa primária é a despesa financiada com a arrecadação detributos (impostos, contribuições). Já os juros e a amortização da dívida são despesas financeiras, que têm sido na prática financiadas pela emissão de dívida nova e não de tributos.

Como toda despesa da União precisa ser autorizada pelo Congresso Nacional, as despesas financeiras também constam do orçamento, o que leva algumas fontes a equivocadamente concluir que recursos que poderiam, por exemplo, ser usados na Previdência, estão sendo usados para pagar a dívida pública (ou os juros dela). É esta a visão, por exemplo, do movimento “Auditoria Cidadã da Dívida”. No entanto, isso só poderia ocorrer, parcialmente, nos anos em que o governo consegue fazer superávit primário, o que não ocorre desde 2013 e pode voltar a ocorrer somente em 2021 – mesmo com uma reforma da Previdência. Ainda assim, o objetivo destes superavits é justamente reduzir a dívida.

Uma maneira de entender porque é falacioso o infame gráfico do movimento “Auditoria Cidadã da Dívida” denunciando que quase 50% das despesas é usada para pagar juros da dívida é usar a mesma metodologia para criar um gráfico das receitas da União. Caso misturássemos as receitas primárias e financeiras, como a Auditoria faz com as despesas primárias e financeiras, teríamos que a maior receita da União é justamente a emissão da dívida, com uma percentagem do total maior do que tem a própria despesa com a dívida – exatamente por conta dos déficits primários (emissão de dívida financiando despesas primárias como previdência, saúde, etc).

Existe ainda no debate a visão de que a trajetória ascendente da dívida pública federal deveria ser combatida com a redução das despesas financeiras, e não primárias.A esse respeito, sem adereçar as consequências adversas de uma redução forçada das taxas de juros ou de renegociação (calote parcial) da dívida pública, é preciso ficar claro que a reforma da Previdência afeta duplamente as despesas financeiras com a dívida, tendendo a reduzi-las significativamente nos próximos anos. Não apenas a reforma tende a provocar expressiva melhora no resultado primário (dívida nova), como tende a atenuar as taxas de juros que incidem sobre o estoque de dívida, ao reduzir o risco de insolvência do Estado.

 

Considerações finais

Idealmente, em uma democracia madura, uma reforma significativa como a da Previdência seria discutida em eleições gerais, momento em que a sociedade se mobiliza para discutir o futuro. Como essa não foi a opção de nenhuma das chapas disputando as últimas eleições presidenciais no Brasil, restou ao país ter que discutir a reforma de maneira apressada na beira do precipício. A era das redes sociais, em que a informação corre sem filtro, nem sempre ajuda neste caso, contribuindo para rumores e desinformação. Se a qualidade do debate não melhorar, a reforma da Previdência pode acabar sendo aprovada com pouco convencimento do País, e pronta para ser desfeita nos próximos anos.

1 Proporcionalmente, uma vez que os pagamentos do INSS não são diários. A despesa anual com benefícios do RGPS foi de R$ 515 bilhões. O departamento de operações estruturadas da Odebrecht movimentou em 9 anos R$ 11 bilhões.

 

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O F.A.Q. da Crise https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2592&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-faq-da-crise https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2592#comments Mon, 31 Aug 2015 12:53:08 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2592 Foi publicado recentemente neste site o texto “Por que a economia brasileira foi para o buraco?”. Com base no diagnóstico ali traçado, listamos uma série de perguntas frequentes sobre a crise econômica, oferecendo as nossas respostas.

 

1 – A crise que estamos vivendo é consequência da crise econômica internacional?

R: Não. A crise fiscal, a inflação alta, o desemprego crescente, a baixa capacidade de crescimento da economia brasileira são fundamentalmente consequência de desequilíbrio fiscais estruturais (a despesa pública cresce mais que o PIB há 30 anos) somada a uma política econômica equivocada adotada a partir de 2005/2006.

Na verdade, a situação econômica internacional existente entre 2003 e 2011 foi muito favorável ao Brasil, devido a dois fenômenos: o grande aumento nos preços dos nossos produtos de exportação (commodities) e a fartura de crédito no mercado financeiro internacional. O nosso governo tomou essas duas situações passageiras como se fossem definitivas e passou a conduzir a política econômica acreditando que os preços das commodities nunca iriam mudar e que haveria dinheiro barato para sempre no mercado financeiro internacional.

Por isso, acelerou os gastos públicos, concedeu isenções tributárias, distribuiu benefícios creditícios, interferiu no processo de decisão das grandes empresas, congelou preços públicos e fez muitas outras políticas criticáveis, com descrito em detalhe no postPor que a economia brasileira foi para o buraco?” Enquanto os ventos na economia internacional eram favoráveis, o Brasil ia bem apesar dos erros de política econômica. Contudo, tais erros acumularam distorções (déficits público e no balanço de pagamentos crescentes, aumento da inflação, insustentabilidade da dívida pública).

Agora que os ventos favoráveis vindo do exterior mudaram (queda nos preços das commodities e tendência de aumento das taxas de juros internacionais), como seria de se prever, o governo passa a culpar tais mudanças pela crise brasileira. Se durante o período de bonança tivéssemos adotado uma política econômica responsável, não estaríamos enfrentando uma situação tão dura. Se tivéssemos aproveitado os tempos bons para fazer reformas que consertassem as inconsistências no gasto público, estaríamos mais bem preparados para o momento atual. Assim como um organismo fragilizado é mais vulnerável a contrair doenças, uma economia desajustada sofre mais quando há uma crise na economia internacional. Basta comparar o desempenho da economia brasileira com a de países latino-americanos que praticam melhores políticas macroeconômicas, como Chile e Colômbia. Esses dois países estão sentido o impacto da crise internacional, mas com intensidade muito menor que o Brasil.

2 – Se a economia está em recessão, por que fazer ajuste fiscal, que aprofunda mais a recessão? Será que esse tipo de remédio não irá matar o paciente?

R: Em primeiro lugar, é preciso dizer que a recessão começou ANTES do ajuste fiscal. O Comitê de Datação de Ciclos Econômicos (Codace) da FGV mostrou recentemente que a recessão começou em meados de 2014. Portanto, mais de seis meses antes da posse do Ministro Levy e do início do ajuste fiscal.

Essa recessão se deu pelo esgotamento de um padrão de crescimento do gasto público acima do crescimento do PIB, somado a uma política econômica populista e insustentável, adotada a partir de 2005/2006. A crise é composta por vários problemas: inflação alta e crescente, visível esgotamento financeiro do Tesouro e incapacidade de continuar a subsidiar investimentos, paralisação do setor de óleo e gás pela mudança do marco regulatório do pré-sal, ameaça de racionamento de energia, sobre-endividamento da maior empresa do país, queda da produtividade da economia (devido aos inúmeros gargalos produtivos, como a infraestrutura deficiente, legislação tributária e trabalhista inadequadas e interferência do governo nas decisões privadas), sobre-endividamento das famílias, crescente risco de rebaixamento da nota de crédito do Governo Federal para o nível de investimento especulativo.

Enquanto a China puxava nossa economia, parte desses problemas não aparecia ou era menor. Acabado o estímulo externo, a crise se impôs.

Na situação em que nos encontramos, o ajuste fiscal não é uma das políticas possíveis. Ele é o único caminho responsável a ser trilhado. Esse ajuste é condição necessária para que o país tenha alguma esperança de retomar o crescimento no futuro. Sem o ajuste fiscal, a dívida pública vai crescer rapidamente, o Tesouro não terá como financiá-la (porque os investidores não vão querer correr o risco de levar o calote) e será preciso emitir moeda para pagar a dívida pública. Voltaremos à época da hiperinflação. E quem viveu nos anos 80 sabe que com hiperinflação não se vai a lugar nenhum.

Embora seja necessário (o único caminho possível, a não ser que se considere o caos econômico como opção válida), o ajuste fiscal não será suficiente para garantir a retomada do crescimento. Estão certos os que dizem que o ajuste vai aprofundar a recessão. A única possibilidade de o ajuste fiscal não gerar mais recessão seria fazê-lo por meio de reformas que permitissem reduzir o gasto público corrente, abrindo espaço para que, ao mesmo tempo em que o superávit primário aumentasse, a carga tributária pudesse ser mantida constante e houvesse investimentos de qualidade em infraestrutura.

Porém, não é esse o padrão de ajuste fiscal de curto prazo viável no Brasil. Como no passado, o ajuste será feito por meio de aumento de tributos e mais repressão ao investimento. Não há como não derrubar a economia fazendo tal ajuste. Mesmo assim, é melhor fazer esse ajuste sub-ótimo do que não fazer nenhum ajuste e rumar para a hiperinflação.

Ou seja: o ajuste em curso vai ajudar a derrubar a economia no curto prazo. Mas a recíproca não é verdadeira: o “não-ajuste” não fará a economia crescer. Irá, isso sim, nos levar para uma situação ainda pior: a hiperinflação e a desestruturação da economia. Há, ainda, o risco de ficarmos no meio do caminho: um ajuste insuficiente que não evitará o pior, e ainda imporá custos à sociedade.

3 – A tentativa de resolver a crise econômica na Europa por meio de medidas de austeridade fiscal falhou. Por que vamos insistir nesse remédio que não funcionou em outros lugares?

R: É incorreto dizer que a política de ajuste na Europa foi apenas de austeridade fiscal. Irlanda, Portugal e Espanha implantaram não apenas duros ajustes fiscais, mas também fizeram reformas importantes: vendas de ativos, flexibilização do mercado de trabalho, reforma orçamentária.

Também é incorreto dizer que esse conjunto de medidas não deu resultado. Esses três países sofreram as dores do ajuste, mas estão todos emergindo da crise e voltando a crescer, assim como diversos países do leste europeu, como Polônia, Hungria e os países bálticos.

A lição que devemos tirar do caso europeu é justamente o contrário da afirmação feita na pergunta: o país que se recusou a se ajustar, a Grécia, é que foi para uma crise aguda. O caso grego é um exemplo do que ocorrerá com o Brasil se não fizermos um adequado ajuste fiscal. Diga-se de passagem, apesar de todo o barulho político feito por seu governo populista, a Grécia acabou tendo que por em prática um programa de ajuste fiscal e de reforma estrutural do setor público. Não apenas por exigência dos credores, mas por uma questão de sobrevivência da economia do país.

Deve-se dizer, por fim, que a contração econômica nos ajustes fiscais feitos nos países do Euro tende a ser maior do que em um país que tem moeda própria, como o Brasil. Isso porque os países do Euro não têm a opção de se ajustar por meio da desvalorização cambial, já que a moeda é única. Por isso, para reduzir os custos internos e se tornarem mais produtivos, eles precisam de uma grande contração econômica, para gerar grande desemprego e, com isso, reduzir os salários e os custos das empresas. No Brasil, a desvalorização cambial pode fazer uma parte desse serviço, sendo necessária menor contração do PIB.

4 – Não seria contraditório acabar com a desoneração da folha de pagamentos no momento em que as empresas estão sofrendo com a crise econômica?

R: Sem dúvida que seria melhor fazer um ajuste fiscal baseado em redução da despesa pública, sem a necessidade de elevar tributos. Isso não aumentaria os custos das empresas, geraria menos desemprego e abriria mais espaço para o investimento privado. Porém, o orçamento público brasileiro é muito rígido. Se não fizermos reformas que reduzam o ritmo de crescimento de despesas da previdência, das políticas sociais ou da folha de pagamento, não haverá como conter a expansão do gasto.

Nessa situação, como já afirmado acima, é melhor que se faça um ajuste de baixa qualidade (via aumento de impostos e corte de investimentos) do que não se fazer ajuste nenhum.

O risco, como já apontado na resposta à questão 1, é que o ajuste “politicamente possível” não seja suficiente para reequilibrar as contas e conter o crescimento da dívida. Aí os sacrifícios serão em vão.

5 – O ajuste fiscal vai ser pago pelos mais pobres?

R: Não necessariamente os pobres pagarão pelo ajuste fiscal. Como afirmado ao longo do texto “Por que a economia brasileira foi para o buraco?”, o gasto público no Brasil beneficia todas as camadas de renda. Se fizermos uma reforma fiscal que contenha a expansão dos gastos feitos a favor das classes alta e média, poderemos ter um efeito de redistribuição de renda. Uma reforma da previdência social, por exemplo, que requeira maior tempo de trabalho para a aposentadoria, tende a ser redistribuidora de renda, pois o seu custo recairá sobre a classe média e alta urbana. O mesmo se pode dizer de um maior controle na contratação e remuneração de servidores públicos, que, em sua maioria, estão entre os 5% mais ricos do país. O fim dos subsídios creditícios a grandes empresas também teria importante efeito redistributivo de renda. Um redirecionamento do gasto público em educação do nível universitário para o ensino básico também beneficiaria os mais pobres, principalmente se fosse instituída a cobrança de mensalidades nas universidades públicas. Mesmo alguns programas normalmente identificados como sendo de atendimento aos mais pobres, como o abono salarial e o seguro desemprego, atendem camadas de renda acima do nível de pobreza: o seu redesenho pode levar à redução de despesas sem afetar os mais pobres.

Deve-se lembrar, ainda, que o não-ajuste levará a aumento da inflação; esta sim muito prejudicial aos pobres e concentradora de renda.

6 – Por que não fazemos o ajuste tributando os bancos?

R: Uma lição básica em economia é a de que o custo dos tributos não incide, necessariamente, sobre o agente econômico que é tributado. Sempre que a pessoa física ou jurídica que é tributada pode passar para frente o custo do imposto pago, ela passará. Uma maior tributação dos bancos (que já são bastante tributados) se converterá, total ou parcialmente, em aumento das taxas de juros por eles cobradas. Quem pagará uma parte ou a totalidade do imposto será o indivíduo ou a empresa que precisar tomar crédito.

Não obstante isso, tendo em vista o exíguo espaço político para se cortar despesas, é possível que se acabe optando por tributar as operações de crédito, pois essa é uma forma dissimulada de se ampliar a tributação sobre a população como um todo, disfarçando-a de tributação sobre os bancos.

7- Por que não fazemos o ajuste tributando os ricos, através da criação do Imposto sobre Grandes Fortunas?

Esse imposto, sozinho, não resolveria o problema. Mesmo que não se preveja nenhuma isenção, nem se leve em conta a fuga de capitais que ele provocaria, sua arrecadação dificilmente passaria de R$ 5 bilhões por ano. O valor é irrisório frente às necessidades fiscais do Tesouro Nacional.

Pode-se discutir a progressividade ou regressividade do sistema tributário brasileiro e, com isso, a possibilidade de tributos que incidam sobre os mais ricos. Porém, não se pode esperar que esse tipo de tributação gere receita suficiente para fechar as contas públicas. Somente os aumentos previstos nas áreas de previdência, saúde e educação para os próximos anos está na casa de R$ 22 bilhões por ano.

Tributar grandes fortunas pode também trazer o impacto indesejado de reduzir ainda mais a já reduzida taxa de poupança doméstica.

8 – As despesas com juros são da ordem de R$ 417 bilhões por ano. Por que não fazemos o ajuste fiscal cortando a taxa de juros fixada pelo Banco Central? Não seria muito mais fácil do que cortar programas sociais?

R: Isso já foi tentado pelo Governo, no âmbito da “nova matriz econômica”. Entre agosto de 2011 e outubro de 2012 a taxa Selic foi sistematicamente reduzida, passando de 12,5% a.a. para 7,25% a.a.. Porém, a redução forçada dos juros, sem que haja uma correspondente redução do déficit primário, aumenta a inflação e não se sustenta. O déficit do governo coloca renda na mão das pessoas e aumenta o consumo. Como a oferta de bens e serviços é rígida (há uma série de obstáculos à expansão da produção no Brasil, como descrito no texto), o aumento da demanda leva a aumento de preços.

Por isso, o ajuste das contas não financeiras deve preceder a redução dos juros pelo Banco Central. Tentar começar pelos juros, apesar de ser a conta mais elevada, não é algo consistente ou sustentável. Ademais, a maior parte dos valores pagos a títulos de amortização e juros da dívida não vêm diretamente da tributação imposta à população, e sim de novos empréstimos, que rolam os antigos. Um corte abrupto dos juros reduzirá a oferta de novos empréstimos ao Governo. Com isso, seriam necessários cortes nas outras despesas com vistas a alocar mais recursos para pagar amortização e juros da dívida.

9 – Muitos economistas advogam que, para o país crescer mais rápido, é necessário aumentar a poupança. Mas se todo mundo poupar, qual será o estímulo para as empresas investirem, se não haverá quem consome?

Há uma confusão de conceitos. Poupar não é o mesmo que deixar de gastar. Um indivíduo que deixa de gastar em bens de consumo final (alimentos, roupas, festas, etc) para comprar tijolos e construir uma casa, em verdade, está poupando. Sua poupança está sendo gasta na aquisição de bens de investimento (no caso, os tijolos). Poupar (e sua contrapartida, investir), portanto, é simplesmente trocar o consumo de bens e serviços finais hoje por bens e serviços finais no futuro. Assim, um aumento da taxa de poupança de um país somente altera o mix de produção, com a economia passando a produzir mais bens de capital, insumos para construção civil ou produtos para exportação (que lhes permite adquirir ativos no exterior). Naturalmente, economias que investem mais, crescem mais rapidamente. Não é por menos que os países emergentes do leste asiático, cuja taxa de poupança é acima de 30% do PIB (enquanto no Brasil é em torno de 15% do PIB), são os que mais rapidamente crescem.

10 – Um modelo de crescimento do estilo asiático, baseado em elevada taxa de poupança e câmbio depreciado, não está associado a piores condições para o trabalho?

No curto prazo, é correto. Se o país poupa muito, há poucos recursos para programas assistenciais e de previdência. Além disso, a taxa de câmbio depreciada implica salários reais menores. Entretanto, essa é uma visão estática. Como esses países investem mais, o que lhes permite crescer mais rapidamente, no longo prazo, o padrão de vida da população tende a ser melhor. Coréia do Sul e Brasil tinham níveis de renda per capita semelhantes na década de 1960 e, hoje, a renda per capita sul-coreana é cerca do triplo da brasileira. Da mesma forma, a renda per capita da China já se aproxima da brasileira, quando era menos da metade há vinte anos. Pode-se fazer uma analogia com o bem-estar de uma família. Se tivermos dois domicílios com a mesma renda inicial, aquele que poupar mais terá menor qualidade de vida no curto prazo. Entretanto, no longo prazo, o que poupou mais terá maior renda (decorrente das aplicações financeiras feitas ao longo da vida), o que lhe permitirá auferir maior bem estar.

11 – Corremos o risco de uma nova década perdida?

Infelizmente, sim. Tomando o PIB per capita como medida de bem estar individual, temos que o pico deste ocorreu em 2013 (R$ 27,4 mil, em valores de dezembro de 2014). Considerando que o PIB cresceu 0,15% em 2014 e a população tem crescido em torno de 0,9% a.a., e assumindo que o PIB diminuirá 2% em 2015 e 0,5% em 2016, crescendo 1,5% na média dos anos seguintes, temos que o PIB per capita cairá até 2017, recuperando-se lentamente depois disso, até voltar ao patamar de 2013 apenas em 2023 ou 2024. Trata-se de cenário bastante plausível. Não havendo reformas substanciais que aumentem a poupança pública e a produtividade, teremos baixa taxa média de crescimento econômico no período 2017-2024, em face do esgotamento da principal fonte de crescimento econômico do passado recente (qual seja, o aumento da taxa de ocupação da mão de obra), combinado com nosso histórico de incrementos reduzidos na produtividade do trabalho.

 

Os autores agradecem os comentários de Pedro Fernando Nery.

 

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Os investimentos no Brasil estão perdendo valor? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2138&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=os-investimentos-no-brasil-estao-perdendo-valor https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2138#comments Mon, 24 Feb 2014 15:16:56 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2138 1. Introdução

Ao final de janeiro, o blog Beyond Brics, ligado ao jornal Financial Times, ventilou uma notícia sobre a perda de valor dos investimentos feitos por estrangeiros no Brasil. A notícia, além de trazer preocupações em seu título (Investing in Brazil: Value creation and value destruction), traz outra ainda maior sob o ponto de vista da estrutura do balanço de pagamentos e da posição de vulnerabilidade externa.

As duas principais contas do balanço de pagamentos1 – o resultado em transações correntes e a conta capital e financeira – servem como referência para avaliar a situação do país frente ao sistema financeiro internacional. Países deficitários em transações correntes – ou seja, aqueles que consomem mais do que produzem, precisando importar bens e serviços do exterior – precisam recorrer ao financiamento externo, seja por investimento estrangeiro ou por ajuda externa, como faz o Fundo Monetário Internacional (FMI) ao detectar países com desequilíbrios nas contas externas. O Brasil, nos últimos dez anos, tem conseguido manter o financiamento de seu déficit em transações correntes de forma saudável, sendo o investimento direto a principal fonte de financiamento. De 2002 até o final de 2012, não havia necessidade de financiamento externo nas contas externas2. Esse cenário benéfico, entretanto, foi revertido em 2013, com o desempenho ruim da balança comercial, passando o país a necessitar de 0,8% do PIB para financiar o resultado negativo das transações correntes.

Apesar do resultado, o país não fechou as contas em 2013 de forma totalmente negativa porque os investimentos estrangeiros em carteira3 ajudaram no financiamento do saldo negativo. Preocupa, todavia, o fato de que investidores estrangeiros possam estar perdendo dinheiro ao investir no país, fazendo com que esses atores revejam suas estratégias de investimento para outros países emergentes. O artigo supracitado argumenta que houve destruição de valor nos investimentos de estrangeiros no Brasil e expõe dados do Banco Central para avaliar o tamanho da perda de valor no estoque de investimento estrangeiro no país, tanto direto, como em renda fixa e em ações.

O objetivo desse texto é avaliar os números de estoque e fluxo de investimento estrangeiro no Brasil, verificar se há perda de valor desses investimentos e avaliar se essa perda está relacionada com a volatilidade cambial e/ou com a perda do valor dos ativos nacionais.

2. Investimento Estrangeiro Direto

Avaliando os dados atualizados recentemente pelo Banco Central4, observa-se que, entre janeiro de 2003 e novembro de 2013, o fluxo de IED no Brasil valia US$405 bilhões e que o estoque de IED – todo o investimento acumulado nesse período – aumentou em quase US$600 bilhões. Esse aumento se deve aos fluxos e à valorização dos ativos. Os números podem ser observados no Gráfico 1.

Gráfico 1

img_1

Importante ressaltar que o País tem atraído fluxos de investimento direto cada vez maiores, por anos seguidos e acumula, entre 2003 e 2013, um estoque de investimento estimado em US$725 bilhões5. Em 2010, apesar de um fluxo menor de IED em relação a 2009, o país captou investimentos no valor de US$26 bilhões. Além da alta no valor das empresas brasileiras nesse ano (IBOVESPA), a apreciação do Real (que altera o valor do estoque em dólar) também ajuda a explicar parte da alta no valor do estoque entre 2009 e 2010. O mesmo raciocínio pode ser utilizado para explicar o grande recuo no estoque de IED a partir de 2011, quando o valor das empresas brasileiras caiu e o houve subsequentes desvalorizações da moeda nacional. Por exemplo, enquanto o dólar valia R$1,69 ao final de 2010, esse valor subiu para R$1,83 ao final de 2011, uma desvalorização de 8,5% em um ano. Um investidor estrangeiro que tenha trazido R$1.690 (ou US$1.000) para o país em 2010, se resolvesse retirar essa quantia do país ao final de 2011, teria o valor equivalente a US$923,5, ou seja, perda de US$76,5. O Gráfico 2 mostra que a correlação6 entre a variação no estoque de IED e a variação cambial é de -0,75, ou seja, uma desvalorização cambial está fortemente associada a uma variação negativa do estoque de IED.

Gráfico 2

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Em 2010, observa-se que a alta dos ativos brasileiros influenciou fortemente o aumento no valor dos estoques de investimento no país. Como mostra o Gráfico 3, a correlação entre o índice Bovespa e os estoques de investimento direto 7é fortemente positiva, de forma que aumentos no índice Bovespa estão associados a variações positivas no valor do estoque de IED. Portanto, a queda no valor desses estoques, observadas a partir de 2011, além de refletir a desvalorização cambial, também é resultado do baixo desempenho das ações das empresas negociadas na Bovespa.

Gráfico 3

img_3

3. Investimento Estrangeiro em Renda Fixa

A análise seguinte compara estoques e fluxo dos investimentos estrangeiro em renda fixa a partir de 2002. O dado mais recente do Banco Central mostra que o estoque de renda fixa em posse de estrangeiros soma US$175,5 bilhões no período. Entre 2009 e 2010, o fluxo em renda fixa, somado, foi de US$ 47 bilhões e o estoque aumentou US$56,5 bilhões.

Gráfico 4

img_4

Como apontam a maioria dos economistas em comércio internacional, investimentos em carteira, ao contrário dos investimentos diretos, são movidos por diferenças no retorno ao capital (Markusen et al, 1995). No caso dos investimentos em renda fixa, devido ao grande diferencial de juros oferecido pelos ativos brasileiros, estes têm sido pouco afetados pela mudança de percepção no risco e pela queda de valor das empresas brasileiras. Entre 2011 e 2012, por exemplo, enquanto o valor do estoque do IED caía, o estoque nessa categoria de investimento apresentou uma alta de US$42 bilhões. As variações do dólar não alteram tanto a decisão de investimento no país, quanto nos outros investimentos, como mostra o Gráfico 5, embora possa ser observada uma correlação negativa relativamente alta.

Gráfico 5

img_5

4. Investimento Estrangeiro em Ações

Quanto aos investimentos estrangeiros em ações, importante componente do investimento em carteira, há uma forte relação entre o valor do estoque e o valor das ações das empresas brasileiras avaliadas no IBOVESPA. O valor do estoque dos investimentos estrangeiros em ações caiu fortemente em 2008, ano da crise financeira internacional, quando houve perda no valor das empresas listadas no Ibovespa (em Reais), acompanhada da desvalorização da moeda nacional, como mostra o Gráfico 6.

Gráfico 6

img_6

Apesar da recuperação do valor do estoque dos investimentos em carteira em 2009 e 2010, a variação estimada do valor desses estoques a partir de 2011 é negativa. O recuo no estoque de investimentos em ações, nos últimos 3 anos, apesar do país ter recebido fluxos positivos no período, resulta da desvalorização cambial recente, dado que houve leve recuperação nos valores das empresas brasileiras. O Gráfico 7, que mostra a relação entre a variação do valor do estoque dos investimentos em carteira e a variação cambial, aponta uma correlação de -0,87.

Gráfico 7

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5. Considerações Finais

A situação de vulnerabilidade externa brasileira atual é muito diferente do observado pela história econômica do país. O país hoje possui reservas internacionais suficientes para cobrir sua dívida externa total. A dívida externa líquida, negativa, mostra que o país está na posição de credor internacional, algo inédito até 1998 (Gráfico 8).

img_8

Esses indicadores, entretanto, são extremos quando se considera as condições das contas externas. É possível explicar que a perda de valor dos investimentos estrangeiros, tanto direto quanto em carteira, ocorre devido à um ajuste cambial. Mas a queda nos preços dos ativos, causando a perda de valor no estoque dos investimentos em ações, preocupa, visto que este tem sido complementar no financiamento do déficit em transações correntes.

Em adicional, uma percepção de maior risco do país, acompanhada de baixo retorno dos ativos brasileiros frente a outros países – que pode piorar diante do rebaixamento da nota brasileira – tende a deixar o país em uma posição vulnerável, com saída de capitais estrangeiros. A divulgação de matérias como a do blog Beyond Brics altera a percepção de investidores estrangeiros sobre os ativos brasileiros e preocupa caso haja uma reversão no fluxo de investimento estrangeiro para o país.

_________________

1Instrumento de contabilidade que resume as transações econômicas de bens e serviços entre residentes e não residentes.
2Necessidade de financiamento externo= déficit de transações correntes menos os investimentos estrangeiros diretos líquidos.
3O investimento direto é constituído quando o investidor detém 10% ou mais das ações ordinárias ou do direito a voto numa empresa; considera-se como investimento em carteira quando ele for inferior a 10%.
4O Banco Central revisa periodicamente os dados de estoque de investimento estrangeiro no país para fins de demonstração da posição internacional de investimento, conforme o Padrão Especial de Disseminação de Dados, requerido pelo FMI.
5O estoque de investimento estimado depende do fluxo líquido captado e do valor de mercado desses investimentos durante cada ano. O valor do estoque de IED, em dólares, aumentou muito em 2009, resultado tanto da apreciação cambial quanto da alta no valor das ações brasileiras.
6O coeficiente de correlação mostra a influência que uma variável tem sobre a outra. Valores próximos a 1 (ou -1) mostram que elas são fortemente positivamente (ou negativamente) relacionadas.
7Por definição, investimentos acima de 10% em ações de uma mesma empresa são classificados como IED.

Referências:

Banco Central do Brasil, Sistema de Séries Temporais.
KRUGMAN, P., OBSTFELD, M., MELITZ, M., International Economics: Theory and Policy. Cap. 8, 9ª edição, 2011.
MARKUSEN, J., MELVIN, J., KAEMPFER, W., MASKUS, K., International Trade: theory and evidence. Cap. 22, 1995.
SARTORI, A., Estatística e Introdução à Econometria. Cap. 1, 2003.
Wheatley, J. Investing in Brazil: value creation and value destruction.  Financial Times, Beyond Brics. Publicado em 23 de jan. 2014

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O enigma das altas taxas de juros no Brasil https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1347&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-enigma-das-altas-taxas-de-juros-no-brasil https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1347#comments Mon, 06 Aug 2012 14:44:09 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1347 As taxas de juros estão em um nível historicamente baixo no Brasil, se considerarmos sua tendência histórica. Mas essas taxas ainda são muito altas se comparadas com as de outros países emergentes que, como o Brasil, utilizam o regime de metas de inflação (Figura 1). Excluíndo-se o período de hiperinflação (1988-1994), quando as taxas de juros reais foram extremamente voláteis (o que poderia distorcer a análise), as taxas de juros ex-post (aquelas medidas após se conhecer o valor da inflação no período em que se avalia a taxa de juros) caíram, em média, de aproximadamente 40% ao ano nos anos 1980 para algo como 20% na segunda metade da década de 90, antes da introdução do regime de metas de inflação e da mudança do regime cambial de fixo para flutuante em 1999. As taxas declinaram ainda mais, para 10% ao ano no período 2000-2005, decrescendo para menos de 8% ao ano entre 2006 e 2009, atingindo seu menor nível em toda a série histórica considerada em 2009, ficando um pouco abaixo de 5% ao ano. Esse é um nivel bastante baixo para os padrões brasileiros, ainda que esteja em torno de quatro pontos percentuais acima da média dos países emergentes que usam o regime de metas de inflação.

Figura 1. Taxas de juros reais de curto prazo (ex-post), média 2000 – 2009

A alta taxa de juros é frequentemente citada como uma das mais importantes restrições ao desenvolvimento econômico do país. Alguns autores se referem a esse problema como a mais importante restrição ao crescimento (Hausmann 2008). Portanto, é um exercício importante entender quais são os fatores que podem estar associados com essa tendência de queda nas taxas de juros reais, e tentar explicar como o Brasil pode reduzir ainda mais os juros de modo a convergir para a taxa média das outras economias emergentes que utilizam o regime de metas de inflação.

Os argumentos que buscam explicar as taxas de juros historicamente altas no Brasil podem ser agrupados em alguns grupos temáticos. Há cinco tipos de razões apresentadas pela literatura:

A. Considerações sobre a política fiscal

O principal argumento fiscal refere-se aos efeitos da chamada “dominância fiscal” e ao risco de default da dívida pública. Favero e Giavazzi (2002) mostram que as taxas de juros são altas no Brasil devido ao alto nível da dívida pública. Rogoff (2005) argumenta que o historico de defaults (sete episódios de defaults ou reestruturações de dívida no período 1824–2004) significa que o Brasil, mesmo com um relativamente baixo nível de dívida pública,  já começa a pagar um prêmio de risco elevado. As evidências empíricas sobre o efeito da dívida pública na taxa de juros real no Brasil não são conclusivas. Muinhos e Nankane (2006), por exemplo, não encontram evidência de uma relação negativa entre o nível da dívida pública e a taxa de juros real. De fato, um simples exame da tendência da  taxa de juros real e da dívida pública  mostra que não há aparente relação entre as variáveis (Figura 2). Embora essa seja apenas uma relação entre duas variáveis, a inclusão da dívida pública bruta em uma regressão em painel também não produz resultados robustos, e em algumas especificações o efeito aparece com o sinal inverso.

Figura 2. Brasil: Divida Publica Bruta (em porcentagem do PIB), 1996–2009

B. Poupança doméstica

O Brasil tem um nível de poupança doméstica relativamente baixo. Hausmann (2008) argumenta que essa é a principal restrição ao crescimento e a razão para a alta taxa de juros. Um argumento similar sobre o efeito da baixa poupança sobre a taxa de juros real é feito por Fraga (2005). Miranda e Muinhos (2003) também fazem referência a esse argumento, mas não o testam empiricamente. A intuição por trás desse argumento é convincente. De acordo com a teoria clássica de investimento e poupança, se a demanda por investimento excede a oferta de poupança doméstica, a taxa de juros real de equilíbrio se eleva. É bem verdade que em uma economia aberta ao exterior a poupança doméstica pode não ser uma restrição, pois pode ser complementada pela poupança externa. Porém, Feldstein e Horioka (1980), e vários outros estudos posteriores, encontram grande correlação entre poupança doméstica e investimento doméstico. Rogoff e Obstfeld (2000) descrevem esse fenômeno como um dos principais enigmas da macroeconomia moderna.

Figura 3. Poupança doméstica e taxa de juros real em países emergentes – média 2000–09

A relação entre poupança doméstica e a taxa de juros real parece ser forte (Figura 3). Entre as mais baixas taxas de juros em uma amostra de países emergentes que utilizam o regime de metas de inflação estão os países do sudeste asiático (Coréia, Indonésia e Tailândia), que têm altos níveis de poupança doméstica (em torno de 30% do PIB). Chile e Mexico têm poupança doméstica media entre  6 e 7 pontos percentuais maiores que o Brasil e níveis consideravelmente mais baixos de juros reais. No entanto, Brasil e Turquia aparecem muito longe da média. Ambos têm juros elevados porque suas poupanças domésticas são baixas em relação aos demais países, mas a previsão linear traçada na Figura 3 sugere que as taxas de juros de Brasil e Turquia deveriam ser aproximadamente 4 pontos percentuais mais baixas que os valores efetivamente observados.

C. Fragilidade institucional

Há argumentos de que a alta taxa de juros decorre, por um lado, da fragilidade das instituições políticas e econômicas brasileiras, necessárias para prover proteção aos investidores (garantia de cumprimento de contratos e de direitos de propriedade); e por outro lado da falta de independência do Banco Central.

  • Incerteza jurisdicional. Esse é um termo vagamente definido que se refere à fraqueza dos direitos de propriedade e das instituições responsáveis por garantir o cumprimento dos contratos. O termo foi criado por Arida, Bacha, e Lara-Resende (2004) que o descrevem como uma espécie de vies anti-credor, o risco de mudança no valor dos contratos antes ou no momento de sua execução, e o risco de interpretação desfavorável do contrato em seu julgamento pela justiça. O problema dessa hipótese é que muitos outros países emergentes não têm instituições de defesa do direto de propriedade e de garantia de cumprimento de contratos melhores que as do Brasil e, mesmo assim, têm taxas de juros muito mais baixas. Ademais, evidências empíricas não dão sustentação a essa hipótese, como demonstrado por Gonçalves, Holland, e Spacov (2007).
  • Falta de completa independência do Banco Central. Esse argumento é citado por Rogoff (2005) e outros. Esse é um importante argumento, mas difícil de testar empiricamente, uma vez que não é fácil quantificar e testar qual deve ser o nível crítico de independência do Banco Central.

D. Histórico de alta inflação e volatilidade da taxa de inflação

O Brasil tem uma longa história de inflação alta e volátil. A inflação anual foi moderadamente alta nos anos 1970 (media de 30%); muito alta no período 1980–88, (média de mais de 200%); e se transformou em hiperinflação entre 1989 e 1994, (média de 1.400%). Entre 1980 e 1994 o Brasil foi o país com a mais longa história de inflação alta entre os países emergentes que agora usam metas de inflação. Não é de surpreender que haja uma forte correlação entre inflação alta e taxas de juros altas. A taxa de juros precisou subir para puxar a inflação para baixo,  e algumas vezes precisou ir a níveis muito altos. A queda da inflação e da volatilidade de suas taxas no Brasil permitiu que as “expectativas inflacionárias fossem domadas” (Bevilaqua et al, 2007). Esse parece ter sido um fator chave para garantir a tendência declinante nas taxas de juros reais.

E. Fatores que afetam o mecanismo de transmissão da política monetária no Brasil

Várias peculiaridades do caso brasileiro têm sido citadas como fragilizadoras do mecanismo de transmissão da política monetária e como possíveis fontes de pressão adicional sobre a taxa de juros. Podem ser citados:

  • Segmentação do mercado de crédito. Empréstimos feitos abaixo das taxas de Mercado pelo BNDES e pelos setores de habitação e agricultura podem estar puxando para cima a taxa de juros real de equilíbrio no mercado de crédito livre. A intuição por trás desse argumento é que se o setor publico oferece crédito com taxas subsidiadas,  a taxa de juros controlada pelo Banco Central, para efeito de política monetária, precisará ficar mais alta, para conter a demanda por crédito em um nível consistente com a meta de inflação.
  • Outros fatores. Barbosa (2008) apresenta ampla revisão de outros fatores que afetam a eficácia da política monetária no Brasil e podem estar associados com altas taxas de juros reais, quais sejam:  (i) inércia inflacionária causada pela indexação de preços-chave da economia, o que cria rigidez da inflação brasileiro a mudanças na taxa de juros, e requer uma grande redução da demanda agregada para que a inflação seja reduzida; (ii) fraqueza do “efeito riqueza”, devido à indexação e o curto prazo de vencimento da dívida pública, o que neutraliza o efeito negativo sobre o valor dos títulos público gerado por uma alta da taxa de juros; e (iii) uma relativamente baixa relação crédito-PIB em comparação com outras economias emergentes, o que reduziria o impacto do canal do crédito de um dado aumento da taxa de juros.

O uso de um modelo econométrico (veja detalhes em IMF 12/62) mostra que o aumento da poupança doméstica parece ser o fator individual mais importante para a redução da taxa de juros real no Brasil ao longo do tempo. Essa é a variável que tem potencialmente o mais promissor efeito porque o Brasil ainda tem uma base muito baixa, o que permitiria a expansão da poupança doméstica. A Figura 4 mostra que se a taxa de poupança doméstica crescesse de sua media amostral de 16,5% do PIB para a média do México (22,6% do PIB), o modelo indicaria que a taxa de juros real poderia declinar em 2 pontos percentuais. Ao passo que uma redução mais intensa dos juros reais, de 4 a 5 pontos percentuais, requereria o incremento da poupança doméstica para os níveis de Tailândia ou Coréia (em torno de 30% do PIB), o que nunca foi observado na história do Brasil. Atingir o nível de poupança doméstica do México seria mais factível para o Brasil, e permitiria reduzir a diferença do país em relação à média dos demais países emergentes com metas de inflação em quase 50%.

Figura 4. Brasil: reduções na taxa de juros real se a poupança doméstica crescesse ao nível daquelas observadas em outros países emergentes com metas de inflação.

A alta taxa de juros no Brasil é provavelmente resultado de baixa poupança doméstica e de imperfeições no mercado de crédito. Quanto ao primeiro ponto, aumentar a poupança doméstica por meio de melhorias na situação  fiscal (ou seja, pelo aumento na poupança do governo) provavelmente produzirá grande efeito. Isso é sugerido pela maior magnitude dos coeficientes de regressão associados à poupança do governo. No entanto, a redução integral da diferença entre o Brasil e a media dos demais países da amostra utilizando-se apenas o aumento da poupança doméstica requereria taxas de poupança similares às da Coréia e Indonésia (30% do PIB). Isso não parece realista para o Brasil no curto prazo. Os resultados também mostram que, controlado os outros efeitos do modelo, a taxa de juros real do Brasil ainda fica 2 pontos percentuais acima dos demais (esse efeito é capturado pelo efeito fixo do modelo de regressão).Tal resultado sugere  que há questões específicas do país que podem estar associadas com a alta taxa de juros, que vão além daquelas analisadas no modelo. Fatores importantes a esse respeito, que não podem ser testados empiricamente, e que requereriam atenção particular em pesquisas futuras, seriam as imperfeições do mercado de crédito e o efeito dos empréstimos públicos a taxas subsidiadas. Embora esse tipo de empréstimo tenha sido uma das mais eficazes ferramentas de política anti-cíclica durante a crise após à quebra do Lehman Brothers, o seu uso em tempos normais deve levar em conta o fato de que ele pode estar enfraquecendo o mecanismo de transmissão da política monetária e contribuindo para taxas de juros reais de equilíbrio de mercado mais altas.

O presente texto é um resumo do IMF Working Paper “The Puzzle of Brazil’s High Interest Rates” (IMF 12/62), traduzido e publicado com autorização do autor e do FMI.

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REFERÊNCIAS

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Bacha, Edmar, Marcio Holland e Fernando Goncalves, 2007, “Is Brazil Different? Risk, Dollarization, and Interest Rates in Emerging Markets,” IMF Working Paper 07/29 (Washington: International Monetary Fund).

Barbosa-Filho, Nelson, 2008, “Inflation Targeting in Brazil: 1999–2006,” International Review of Applied Economics Vol. 22(2), pp. 187–200.

Bevilaqua, Afonso, Mario Mesquita e Andre Minella, 2007, “Brazil: Taming Inflation Expectations,” Central Bank of Brazil Working Paper No. 129.

Blanchard, Olivier, 2004, “Fiscal Dominance and Inflation Targeting: Lessons from Brazil,” NBER Working Paper No. 10389 (Cambridge, Massachusetts: MIT Press).

Catao, Luis, Douglas Laxton e Adrian Pagan, 2008, “Monetary Transmission in an Emerging Targeter: The Case of Brazil,”. IMF Working Paper 08/191 (Washington: International Monetary Fund).

Coates, Kenneth e Edwin Rivera, 2004, “Fiscal Dominance and Foreign Debt: Five Decades of Latin American Experience,” Paper presented at the Latin American Workshop, Banco de Portugal, Lisbon, October 14–15.

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Favero, Carlo e Francesco Giavazzi, 2002, “Why are Brazil’s Interest Rates so High,”. Innocencio Gasparini Institute for Economic Research, Working Paper No. 224. __________, e Francesco Giavazzi, 2004, “Inflation-Targeting and Debt: Lessons from Brazil,” NBER Working Paper No.10390, (Cambridge, Massachusetts: MIT Press).

Feldstein, Martin e Charles Horioka, 1980, “Domestic Savings and International Capital Flows,” NBER Working Paper No. 310, (Cambridge, Massachusetts: MIT Press).

Fraga, Arminio, 2005,Fiscal Dominance and Inflation Targeting: Lessons from Brazil,” In Giavazzi, Francesco, Ilan Goldfajn, and Santiago Herrera, eds. Inflation Targeting, Debt and the Brazilian Experience, 1999 to 2003, (Cambridge, Massachusetts: MIT Press).

Fried, Joel e Peter Howitt, 1983, “The Effects of Inflation on Real Interest Rates,” American Economic Review, Vol. 73(5), pp. 968–980.

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ITAU e Unibanco, 2010, “Real Interest Rate: Where is Neutral?”, Weekly Macro Report, January 12, 2010.

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Nahon, Bruno Freitas e Roberto Meuer, 2009, “Measuring Brazilian Central Bank Credibility Under Inflation Targeting,” International Research Journal of Finance and Economics Vol. 27, pp. 72–81.

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A redução dos juros pelo Banco Central diminuirá no mesmo ritmo o custo da dívida do governo? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=831&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-reducao-dos-juros-pelo-banco-central-diminuira-no-mesmo-ritmo-o-custo-da-divida-do-governo https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=831#comments Thu, 10 Nov 2011 04:00:27 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=831 Há um mito de que a taxa de juros básica fixada pelo Banco Central (BC), a famosa taxa Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (SELIC), seria o grande referencial do custo da dívida do setor público brasileiro, de modo que reduções nessa taxa de juros implicariam imediata queda do custo dessa dívida.

Isso deixou de ser verdade há alguns anos. Tanto é que, de 2003 até 2010, a SELIC caiu em ritmo muito mais rápido do que diminuição dos gastos governamentais com juros. Similarmente, os gastos com juros em 2011 cresceram mais rápido do que o aumento da taxa SELIC ocorrido entre abril de 2010 e setembro de 2011.

Por isso, é preciso cuidado para não cair na tentação ou na fácil leitura de que, com o mais recente ciclo de corte de taxas, iniciado na segunda metade de 2011, os gastos governamentais com juros cairão nos próximos meses na mesma velocidade da queda da taxa SELIC, o que permitiria abrir um espaço fiscal, inclusive para maiores gastos ou para menor superávit.

Destaque-se que, mesmo admitindo que a SELIC tenha atualmente um impacto mais limitado sobre os gastos com juros do setor público, isso não significa que devemos condenar o seu corte ou defender sua manutenção em patamar elevado. O juro real no Brasil continua (lamentavelmente) na liderança mundial, apesar do dito ousado ciclo de baixa iniciado pelo BC. Porém, são questões diferentes: uma é sobre a política monetária, seus caminhos ou sua correção, outra diz respeito ao impacto dessa política sobre a política fiscal.

O objetivo deste breve texto não é, portanto, discutir se a taxa SELIC deve ou não cair, mas as consequências de uma eventual queda, antecipando a conclusão de que não se deve esperar que um corte na SELIC produza direta e proporcionalmente igual redução no gasto governamental com juros.

O impacto de variações da SELIC sobre os gastos com juros dependerão de dois fatores importantes:

i) proporção da dívida indexada à SELIC, sendo que, quanto maior for essa proporção, maior será o impacto;

ii) composição da Dívida Líquida do Setor Público (DLSP), que corresponde à diferença entre a dívida bruta e os ativos financeiros do governo. Quanto maior for essa diferença entre estes estoques e também a distância entre a remuneração de um e de outro, menor será o impacto da SELIC sobre os gastos com juros do setor público.

No passado distante, a maior parte da dívida mobiliária era indexada à taxa SELIC. Adicionalmente, a diferença entre a dívida bruta e os créditos do governo não era grande e as taxas de remuneração e prazos de vencimento tampouco eram tão díspares como hoje. Naquele cenário, variações da SELIC impactavam bem mais forte e diretamente os gastos com juros.

A seguir detalharemos um pouco mais o comportamento da taxa SELIC e dos gastos com juros. Mostraremos que esse deslocamento ocorreu tanto durante o longo ciclo de baixa da SELIC, entre 2003 e 2010, como no mais recente ciclo de alta, entre 2010 e 2011.

Evidências: longo ciclo de baixa (até 2010)

Antes do recente e curto ciclo de alta da SELIC, a taxa registrou uma longa trajetória de redução – desde a sua maior taxa acumulada no período de doze meses, em setembro de 2003 (24,25%), e a mais baixa, em maio de 2010 (8,92%). Ainda que tenha apresentado pequenas oscilações ao longo desse período, a tendência foi obviamente decrescente.

Considerando os valores extremos da série, a SELIC caiu de 23,36% a.a. em 2003 para 9,75% a.a. em 2010, ou seja, um recuo de 13,6 pontos ou de 58%, em termos relativos. Já o setor público gastou com juros nominais 8,51% e 5,3% do PIB, respectivamente, nos dois citados anos, com uma redução em 3,1 pontos do produto ou de 36% em termos proporcionais. Comportamento semelhante pode ser observado em subperíodos da amostra. Por exemplo, entre 2008 e 2010, a taxa SELIC caiu 22%, enquanto os gastos com juros como proporção do PIB reduziram-se somente em 5%.

Ao analisar a evolução comparada de taxa e gasto nos últimos anos, também se evidenciou um descasamento cada vez maior no período mais recente, e isso dá pistas para se compreender quais foram as mudanças na política fiscal que mais contribuíram para explicar esse fenômeno.

Por princípio, se fosse levado em contas apenas o que o governo deve, e ainda mais se for computado tão somente o que deve por conta da emissão de títulos, é fácil depreender que a diminuição da proporção daqueles indexados à SELIC (caso das Letras Financeiras do Tesouro – LFTs) constitui a razão direta para que a evolução de sua taxa perdesse poder de influência no custo total da dívida mobiliária, ou melhor, na sua evolução real. A menor participação de títulos indexados à SELIC na dívida pública, por sua vez, decorreu da redução da inflação e do alongamento dos prazos, que permitiram ao Tesouro Nacional colocar cada vez mais papéis prefixados a vencerem no longo prazo e títulos indexados a índices de preço.

Pode-se argumentar que as tendências ou direções da SELIC acabam se refletindo, ainda que com alguma defasagem, nas taxas pré-fixadas (o próprio Tesouro pode forçar isso ao aceitar ou rejeitar as condições pedidas pelos investidores desses papéis) e no próprio índice de inflação.

Sem entrar na discussão se a SELIC continua apresentando qualidade ou potência como instrumento de gestão da política monetária, o fato é que essa taxa perdeu poder de influência sobre os gastos públicos com juros. E uma forma mais direta para tirar tal conclusão é comparar a dimensão e a evolução entre duas taxas de juros: a SELIC, já comentada, e a chamada taxa implícita da DLSP, apurada pelo BC pela razão entre os gastos com juros e o montante da dívida líquida de cada período de referência. O gráfico a seguir mostra a evolução das duas taxas.

Na fase inicial, de 2002 a 2005, a taxa da SELIC superou a implícita. Desde 2006, contudo, a curva da SELIC passou a correr sempre por baixo da taxa implícita, indicando que os custos de outras dívidas foram mais altos que a SELIC e/ou que os créditos do governo renderam menos que esta. Observe-se também que a trajetória da taxa SELIC oscilou bem mais que da taxa implícita de juros. Essa última ficou relativamente constante em torno de 15%.

As razões dessas trajetórias distintas tem menos relação com a mudança no perfil da dívida mobiliária (ou seja, na redução da participação de títulos indexados à SELIC) e com a alteração no volume dos componentes da DSLP. Como já mostrado neste site, no artigo Dívida bruta e ativo do setor público: são imprescindíveis para se avaliar o equilíbrio fiscal? , a dívida líquida corresponde à diferença entre a dívida bruta (que passou a ser concentrada na dívida mobiliária interna federal) e dos créditos (composta tanto por disponibilidades, desde o caixa interno dos governos até as reservas internacionais, bem como por haveres financeiros, que compreendem, sobretudo, empréstimos concedidos a fundos, a instituições financeiras e até mesmo a empresas e a outros países).

O total de créditos internos, abatidos da dívida bruta, mal alcançava 20% do PIB, da primeira metade da década passada até 2008; depois, saltaram para patamar superior a 25% do PIB desde 2009. Se computadas as reservas internacionais (13,5% do PIB em meados de 2011), o total dos ativos do governo, que era inferior a 20% do PIB em 2006, chegou a mais de 30% do PIB em meados de 2011. Em sua grande parte, os ativos do governo aumentaram no período devido ao acúmulo de reservas cambiais e à concessão de empréstimos ao BNDES. Esses ativos apresentaram rendimento bastante inferior à taxa SELIC no período. Em 2010, segundo avaliação do BC em uma nota especial sobre a evolução dos juros,[1] consideradas apenas as taxas implícitas anuais, os 14,9% de toda a dívida resultou do contraste de 10,1% só nos débitos contra 4,3% nos créditos. Isto é, o setor público, na média, se endivida a uma taxa 2,3 vezes maior do que a que empresta e, se não ter ativos tão pouco rentáveis, seu gasto com juros seria cerca de um terço inferior ao realizado.

As reservas são aplicadas no exterior, preponderantemente em títulos do governo norte-americano, cujas taxas foram drasticamente reduzidas no combate à crise financeira internacional pelo Banco Central norte-americano. Tais ativos mal têm rendido 1% ao ano, muito menos que a SELIC, que, direta ou indiretamente, acaba por remunerar a maior os títulos utilizados para esterilizar o impacto monetário da entrada das reservas. Somente quando há episódios de desvalorização do real frente ao dólar é que as reservas internacionais se tornam mais rentáveis, ainda assim em termos nominais.

Quando o País passou a acumular crescentes reservas internacionais (o que aumenta o ativo), o BC procurou compensar a expansão monetária colocando mais títulos públicos no mercado. Ou seja, com uma mão, ele entrega reais aos exportadores e investidores que trazem cada vez mais dólares; com outra mão, ele tira reais da economia ao firmar operações compromissadas com títulos do Tesouro e ao aumentar os depósitos compulsórios dos bancos. O efeito final é aumentar o gasto com juros, tendo em vista que os títulos do Tesouro pagam taxas mais altas do que recebe como remuneração das reservas.

Quanto aos créditos para instituições oficiais, na virada da década houve súbito aumento dos empréstimos extraordinários concedidos pelo Tesouro Nacional (chega próximo a R$ 300 bilhões o cedido ao BNDES), quase sempre remunerados à Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), que tem sido arbitrada na casa de 6% ao ano. Tais operações começaram com o pretexto de combater a crise, mas prosseguiram mesmo depois da retomada da economia. Nota-se que não se trata aqui do subsídio creditício direto, no qual o Tesouro Nacional arca com a diferença entre a TJLP e a taxa de juros cobrada pelo BNDES em projetos considerados prioritários[2].

Evidência: último ciclo de alta (2010/11)

Uma simples comparação da SELIC e dos encargos financeiros dos governos nos primeiros oito meses de 2011 vis-à-vis igual período de 2010 constitui a evidência mais recente do descolamento entre taxa e gasto. Vale lembrar que em abril de 2010 aquela taxa iniciou um ciclo de alta que só veio a ser interrompido em setembro de 2011.

A SELIC apresentou uma média simples da taxa anual apurada diariamente até agosto de 2011 de 11,84 pontos.[3] Em igual período de 2010, a média foi de 9,48 pontos. A variação foi de 24,9%.  Já os juros nominais pagos pelo setor público consolidado aumentaram de R$ 125 bilhões para R$ 160,2 bilhões no mesmo período, um aumento de 28,1%.

A diferença, contudo, torna-se mais acentuada quando se limitam os dados ao governo central. Os juros nominais saltaram de R$ 83,9 para 125 bilhões entre os oito primeiros meses de 2010 e de 2011, uma variação de 49%. Ou seja, isolados apenas os encargos do governo central, estes cresceram ao dobro da velocidade do aumento da taxa básica de juros.

Em síntese, alguns analistas acreditam que se a taxa básica de juros paga pelos títulos da dívida pública federal (conhecida como SELIC) cair, o governo gastaria menos com juros e assim economizaria recursos. Esses recursos tanto poderiam ser aplicados em melhores gastos, como na ampliação dos investimentos fixos e de serviços sociais básicos, como poderiam permitir um esforço fiscal menos severo, até mesmo abrindo caminho para reduzir a carga tributária. Como as autoridades monetárias decidiram reduzir a SELIC desde agosto de 2011, tornou-se predominante a ideia de que o governo gastará proporcionalmente menos com juros.

Infelizmente, isso não passa de mais um mito que paira sobre as finanças públicas brasileiras, inegavelmente complexas. No passado recente, houve um crescente divórcio entre taxa e gasto. Quando a SELIC recuou, anos atrás, o gasto não caiu no mesmo ritmo. Depois, quando a taxa voltou a subir, o referido gasto cresceu à frente. Dois motivos explicam esse divórcio.

Em primeiro lugar, porque nem todos os títulos públicos são indexados à SELIC. Com a maior estabilização da economia, aumentou a proporção de títulos pré-fixados, cuja remuneração não é afetada pelas decisões das autoridades monetárias; pelo menos no curto prazo.

Em segundo lugar, porque a dívida líquida corresponde à diferença entre a dívida bruta e os ativos financeiros do governo, constituídos majoritariamente pelas reservas internacionais e créditos contra instituições financeiras federais. Quanto maior for a taxa SELIC em relação à taxa que remunera os ativos financeiros do governo, maior será a discrepância entre a SELIC e taxa implícita de juros incidente sobre a dívida pública.

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[1] Ver “Análise Evolutiva dos Juros Nominais Apropriados sobre a DLSP”, Relatório de Inflação, Março de 2011: http://www.bcb.gov.br/htms/relinf/port/2011/03/ri201103b4p.pdf

[2] Sobre esses créditos, pode-se acessar vários artigos em: http://mansueto.wordpress.com/

[3] Médias calculadas por Vivian Almeida a partir de série do IPEADATA. A variação é praticamente a mesma que se chega em um cálculo mais refinado, ponderando as médias diárias da SELIC, se chega a uma taxa acumulada no ano de 7,74% e de 6,21%, até agosto de 2010 e de 2011, respectivamente, o que resulta numa variação de 24,6% – veja várias séries ponderadas em: http://www.portalbrasil.net/indices_selic.htm

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https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=831 3
Quanto custa ao Brasil manter um elevado nível de reservas internacionais? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=418&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=quanto-custa-ao-brasil-manter-um-elevado-nivel-de-reservas-internacionais https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=418#comments Mon, 04 Apr 2011 16:51:38 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=418 O governo brasileiro dispõe atualmente de aproximadamente US$ 300 bilhões de dólares registrados como reservas internacionais no balanço do Banco Central. O acúmulo desse valor se deu pelos sucessivos superávits no comércio internacional (exportações em valores maiores que as importações) e pela entrada de investimentos externos no país.

Quando os dólares entram no país em função das exportações, eles são da propriedade das firmas exportadoras. Quando entram por investimentos em ações, por exemplo, eles pertencem a quem vendeu as ações a investidores internacionais. Quando entram por investimentos em títulos bancários, pertencem aos bancos que venderam tais títulos. Como, então, esses dólares vão parar nas mãos do governo, mais especificamente do Banco Central?

Vão para o Banco Central porque ele compra tais dólares das mãos de seus detentores privados. Em um primeiro momento, essa compra significaria o Banco Central recolher dólares no mercado, e entregar reais. Mas isso implicaria aumentar substancialmente o volume de reais em circulação na economia. Para que esse imenso volume de compras não gere efeitos inflacionários, o próprio Banco Central utiliza títulos de sua carteira para fazer o que se chama tecnicamente de “esterilizar” os efeitos dessa compra de divisas externas. Em resumo, troca títulos por dinheiro. Para levantar os reais necessários à compra dos dólares, o governo aumenta a sua dívida dentro do país.

Se o governo tivesse superávit nas suas contas fiscais (receitas maiores que os gastos públicos) ele até poderia usar esse dinheiro poupado para comprar as reservas. Mas como o governo brasileiro é deficitário, a única forma de comprar dólares é expandindo o seu endividamento.

O governo tem diferentes motivos para acumular reservas em moeda estrangeira. O principal é garantir uma espécie de seguro contra crises internacionais. Quando uma crise interrompe o fluxo de empréstimos em dólares no mercado internacional, os países que não têm uma reserva dessa moeda não podem fazer importações (no caso do Brasil, por exemplo, ninguém aceitaria pagamentos em Reais, pois esta não é uma moeda de circulação internacional). Nos anos 80 e 90 do século passado, por exemplo, por diversas vezes o Brasil viu-se sem dólares e precisou pedir auxílio ao FMI e adotar medidas para lidar com o problema. Tais medidas são sempre custosas: elevação das taxas de juros internas (para atrair investidores internacionais), redução do ritmo de crescimento da economia (para reduzir a demanda por importações e gerar excedentes não consumidos no país a serem exportados), ajuste das contas públicas (para reduzir a necessidade de financiamento externo à dívida do governo).

A importância de dispor de grandes reservas internacionais pode ser vista no impacto da crise de 2009 sobre a economia brasileira. Tendo em vista que não sofremos escassez de dólares, devido ao alto volume de reservas, não foi necessário elevar os juros. Foi possível, inclusive, reduzi-los, para estimular a atividade econômica. A abundância de recursos externos também permitiu ampliar o déficit público, como forma adicional de alavancar a atividade econômica. A própria dívida pública caiu como proporção do PIB, devido à combinação de dois fatores: i) o País, àquela altura, já tinha se tornado um credor líquido em dólares; ii) houve desvalorização do real em relação ao dólar, o que significa que as reservas disponíveis, depositadas em dólares, passaram a valer mais quando avaliadas em reais. Como o valor das reservas (um ativo público) aumentou em reais (mesmo mantendo-se constante em dólares) e é deduzido da dívida pública bruta para se apurar a dívida pública líquida, o resultado final foi uma queda da dívida líquida[1].

Há, portanto, o benefício de não ter sido necessário gastar recursos públicos pagando-se juros mais altos, além do benefício de não ter havido uma redução drástica da atividade econômica (com perda de empregos e renda). Como não houve um choque de juros sobre a dívida pública, o prêmio de risco pago pelas empresas brasileiras que tomam empréstimo no exterior também não cresceu.

Não obstante esses benefícios, é preciso ficar claro que há um custo em se manter elevadas (e crescentes) reservas internacionais no Banco Central.

Deve existir, assim, um ponto em que os custos de carregamento das reservas passem a superar seus benefícios e que determinaria o volume ótimo de reservas. Saber com exatidão os custos das reservas, portanto, é crucial para que o País possa avaliar os custos e benefícios envolvidos na acumulação de reservas. São duas as fontes de custos:

(a) a diferença entre os juros que o governo paga sobre os recursos que tomou emprestados para comprar as reservas (juros sobre a dívida interna) e os juros que rendem as reservas internacionais;

(b) quando o real se valoriza em relação ao dólar, isso significa que as reservas em dólares passaram a valer menos reais, representando uma perda para o Banco Central e para o governo.

Não há estatísticas oficiais regularmente publicadas que apresentem o custo de manutenção das reservas. Aparecem na imprensa, esporadicamente, valores estimados pelo governo e pelas entidades de mercado, que nem sempre têm coincidido.

Em março de 2011 os dirigentes do Banco Central afirmaram[2] que o custo fiscal das reservas internacionais no ano de 2010 teria sido de R$ 26 bilhões.

Tal valor diverge daquele calculado pelo Departamento Econômico do Bradesco, por exemplo, que avaliou esse custo em aproximadamente R$ 46 bilhões[3].

A diferença poderia decorrer do fato de o Banco Central ter estimado apenas os custos descritos no item (a) acima (diferença de juros), não considerando os do item (b) (variações na cotação do real frente ao dólar).  Pode-se justificar esse método de cálculo argumentando que a perda decorrente de valorização do real só seria efetiva se o Banco Central vendesse os dólares. Já que o BC não vendeu dólares no período,  ele não teria realizado o “prejuízo”. No futuro, na ocorrência de apreciação do dólar, essa perda seria revertida.

Mas a diferença de estimativas não decorre desse tipo de procedimento, até porque a citada estimativa do Banco Bradesco também não computa a depreciação do dólar.

A origem da discrepância parece estar no fato de o Banco Central ter utilizado em seu cálculo um custo de financiamento da dívida interna muito baixo, de 7,8% ao ano.

No ano de 2010, a taxa Selic média, segundo dados do próprio Banco Central, foi de 9,8%, o que, por si só, levaria a uma diferença no custo de 2 pontos percentuais ao ano em relação aos 7,8% utilizados no cálculo do custo da reserva.

A posição do BC sobre o custo das reservas foi exposta em matéria da repórter Martha Beck, de O Globo, em 24 de fevereiro:

Segundo o diretor de administração do BC, Anthero Meirelles, o custo de captação de recursos no ano passado foi de 7,76%, enquanto a rentabilidade das reservas ficou em 1,88%. Isso resultou numa diferença de 5,86% que quando aplicada sobre o saldo médio das reservas – de R$ 455 bilhões – resulta num gasto de R$ 26,6 bilhões[4].

Tomando como referência a própria base de cálculo do Banco Central, de R$ 455 bilhões, o custo fiscal adicional decorrente da diferença de 2 pontos percentuais na taxa incidente sobre a dívida interna seria de R$ 9,1 bilhões, o que elevaria o custo total dos R$ 26,6 bilhões para R$ 35,7 bilhões.

Ocorre, entretanto, que esse cálculo pode ainda ser considerado subestimado. O custo da dívida para o Tesouro foi superior à taxa Selic, como demonstra o Anexo 4.2. do Relatório Mensal da Dívida Pública Federal divulgado pela Secretaria do Tesouro Nacional. Para o mês de dezembro de 2010, o custo da Dívida Pública Mobiliária Federal Interna (DPFMi) acumulado nos últimos doze meses foi de 11,83%.

Tabela 1. Custo da DPMFi em 2010

Fonte: STN

Com base nesse custo efetivo de captação do Tesouro Nacional, de 11,83%, tomando-se os valores diários das reservas internacionais, e, ainda, considerando-se a rentabilidade das reservas assumida pelo Bacen – 1,9% ao ano – a estimativa de custo fiscal do carregamento das reservas foi de R$ 42,5 bilhões. Muito próximo, portanto, dos R$ 46 bilhões estimados pelo Banco Bradesco.

Assim, o custo fiscal das reservas, sem computar o impacto da desvalorização do dólar ao longo de 2010, ficou no intervalo entre R$ 35,7 bilhões e R$ 42,5 bilhões. No primeiro caso, o custo de captação equivale à taxa Selic; no segundo caso, equivale à taxa média apontada pelo Tesouro Nacional para a DPMFi.

O custo relativo à desvalorização do dólar também pode ser calculado aproximadamente como o somatório das perdas ou ganhos diários decorrentes da desvalorização/valorização do dólar em relação ao saldo de reservas da véspera[5]. Usando essa metodologia, o custo da desvalorização das reservas em 2010 pode ser calculado em R$ 16,9 bilhões.

Desse modo, o custo total – o de diferença de taxas de juros  e o relativo à depreciação do dólar – pode ser estimado entre R$ 52,8 bilhões e R$ 59,4 bilhões.

Seria importante que o Banco Central estabelecesse com clareza a sua metodologia de cálculo do custo fiscal das reservas internacionais e, especialmente, justificasse o uso da taxa de dívida interna utilizada. A publicação regular desses valores, acompanhada da respectiva metodologia de cálculo, seria importante medida de transparência das contas públicas. Todos reconhecem os benefícios das reservas internacionais detidas pelo País. Não faz sentido que haja dúvidas quanto aos seus custos.

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Para ler mais sobre o tema:

Saraiva, B. e Canuto, O. (2009) Vulnerability, exchange rate and international reserves: whither Brazil? Disponível em http://www.roubini.com/latam-monitor/257719/vulnerability_exchange_rate_and_international_reserves_whither_brazil.


[1] A rigor, a queda na taxa internacional de juros que se seguiu à crise fez com que os títulos internacionais aumentaram seu valor, em dólar, o que também contribuiu para o aumento de nossas reservas. Mas esse fator teve impacto secundário na melhora da relação dívida líquida/PIB comparativamente à desvalorização do real.

[2] Declarações prestadas em audiência na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado  no dia 22 de março de 2011.

[3] http://oglobo.globo.com/economia/mat/2011/02/24/custo-de-carregamento-das-reservas-internacionais-foi-de-26-6-bi-em-2010-923874889.asp.

[4] Ver fls. 43 e 44 do Balanço do Bacen  em:

http://www.bcb.gov.br/htms/inffina/be201012/Demonstra%E7%F5es%20Financeiras%20Bacen%2031.12.2010.pdf

[5] As reservas não estão totalmente aplicadas em dólar norte-americano, apesar de contabilizadas, na posição diária, nessa moeda. Assim, o estoque considerado para fazer o cálculo da valorização/desvalorização tem uma pequena margem de erro. Como a desvalorização do dólar foi maior do que as demais moedas, a estimativa do custo derivado da desvalorização das reservas – que não é objeto principal de discussão nesse texto – pode estar ligeiramente superestimada.

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