judiciário – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Mon, 05 Feb 2018 14:17:10 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Contos da Reforma Trabalhista https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3157&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=contos-da-reforma-trabalhista Mon, 05 Feb 2018 14:17:10 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3157 Miranda queria comemorar a causa que ganhou: ele aproveitou a sexta-feira e chamou os colegas do escritório para um bar badalado. A noite não foi tão divertida: reclamou com o dono do estabelecimento, Emanuel, que o atendimento do grupo foi ruim e não conseguiam fazer seus pedidos porque faltavam garçons.

João acaba de sair do ensino médio em uma escola pública, sem boas perspectivas. Quer ingressar em uma faculdade, mas não tem dinheiro para pagar uma particular ou o cursinho para passar no Enem. Sem experiência, não consegue um emprego. Na verdade, gostaria de pelo menos um bico, que o ajudasse a pagar as despesas e que também permitisse que tivesse tempo para os estudos.

Emanuel gostaria de contratar mais garçons para o fim de semana, para atender clientes como o advogado Miranda. Porém, a lei o impede: se contratar, tem que ser pra semana toda, dinheiro que ele não tem. Pensou então em contratar garçons informalmente apenas para as sextas e sábados. Desistiu porque da última vez que tentou recebeu uma condenação da Justiça que pesou em suas despesas.

Consumidores tais quais Miranda continuarão mal atendidos, Emanuel continuará sem funcionários para parte da semana e João continuará sem trabalho. Como João, um a cada quatro jovens procurando não têm empregos. A taxa de desemprego entre eles é mais do que o dobro da média nacional.

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Renato está feliz: concluiu um ano no emprego com carteira assinada em uma pequena empresa e tem recebido elogios de clientes e patrões. O trabalho finalmente deu a segurança que faltava para sustentar sua filha pequena sem contar só com o Bolsa Família, e as perspectivas no emprego são boas.

Sua chefe Dora reconhece seu esforço e as metas que bate na firma, e pensou em promove-lo para a função de Mauricio – um empregado mais antigo que está desmotivado no posto. Entretanto, como Mauricio tem 10 anos na função não pode mais perde-la. Não existe lei com esta obrigação, mas a determinação de um tribunal superior. A pequena empresa não consegue pagar duas pessoas para o trabalho de uma, e, portanto, Renato não receberá a gratificação.

Dora pensou então em dar um adicional a Renato pela boa avaliação que recebe dos clientes. Porém, da última vez que tentou fazer isso recebeu uma condenação da Justiça. Como Renato ocupa formalmente o mesmo cargo que outros funcionários, Dora poderá ser processada pelos colegas de Renato, ou funcionários da outra filial, ou funcionários que a empresa eventualmente contratar no futuro.

Renato não receberá o aumento. Com o tempo, ficará desmotivado como Mauricio. Dora não vai ouvir mais elogios das famílias que usam o estabelecimento.

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Cristina finalmente terminou o curso de técnica em enfermagem. Foi em boa hora: se casou há pouco tempo e agora quer ter filhos. Cristina tentará uma vaga em um hospital.  Ela disputará a vaga com um colega do mesmo curso, com o mesmo nível de experiência e qualificação.

Luiz, responsável pelo RH do hospital, nota a aliança no dedo e a juventude de Cristina. Luiz sabe que se Cristina engravidar o hospital deverá pagar o afastamento dela durante a gestação e simultaneamente arcar com outra pessoa em seu lugar. A exigência existe há pouco tempo para gestantes em locais com qualquer nível de insalubridade. Luiz também sabe que Cristina tem restrições legais a fazer horas-extras.

Esses impeditivos não existem para o colega do curso de Cristina, que é homem. Ele levará a vaga.

No Brasil, o desemprego entre mulheres é quase 30% maior que dos homens. O grupo mais afetado pelo desemprego é o de mulheres jovens, como Cristina.

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José está animado. Depois de anos trabalhando no setor de construção, virou um reconhecido especialista em terraplenagem em Fortaleza. Limpeza de terreno, locação topográfica, escavação, corte, aterro, compactação, fundação. Nada escapa a perícia de José, que consegue fazer o serviço de modo mais eficiente, poupando custos para a construtora e reduzindo o tempo de entrega das obras para os consumidores.

Por isso, José se demitiu para criar um pequeno negócio especializado na tarefa. Quer que sua firma de terraplenagem preste serviços para várias construtoras cearenses. Confiante, José investiu em equipamentos e contratou o primo e o cunhado para ajudá-lo.

José confia no seu taco: acha que contratar seu serviço será mais vantajoso para as empresas do que manter pessoal pouco especializado ou um quadro fixo que só trabalha algumas vezes durante o ano.

Nenhuma construtora contratará o serviço de José. Ele vai falir e seu negócio jamais existirá. José, o primo e o cunhado entrarão para a fila de desempregados no Nordeste, onde a taxa de desemprego é quase o dobro da do Sul e mais de 20% acima da média nacional.

As construtoras temem ser processadas. Dr. César é um dos juízes que proibiu construtoras de terceirizar este serviço. Ele entende que, embora eventual, o serviço faz parte da “atividade-fim” dessas empresas, não de sua “atividade-meio”. Embora não exista lei com esta proibição ou distinção, existe uma determinação de um tribunal superior, que Dr. César acatou.

O gabinete de César tem muitos processos. Para ajudá-lo, ele conta com o auxílio de assessoras como Kátia. Compete a Kátia fazer a pesquisa de jurisprudência, aplica-la ao caso concreto e redigir os votos que César assinará.

Seu trabalho, com o de outros assessores, é supervisionado por César, que assim pode dedicar seu tempo e energia a outras atividades que considera mais importantes para o trabalho eficiente do gabinete.

A decisão escrita por Kátia e assinada por Dr. César diz que as construtoras não podem contratar com terceiros atividades que lhe são inerentes, que há subordinação estrutural entre as partes e ordena então que desembolsem uma determinada quantia para equiparar os terceirizados.

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Miranda está irritado. Com o escritório de vento em popa, ele está sem internet no celular logo no meio da semana. Ligou para o call-center da empresa de telefonia, que atende Miranda com lentidão e não consegue resolver o seu problema.

O call-center é de responsabilidade de Helena. Engenheira, ela era na verdade uma promissora profissional da área de mercado digital e inovação. Porém, a empresa optou por transferi-la da área onde pesquisava novos aplicativos e big data para que montasse uma estrutura para atender os clientes por telefone. Uma decisão judicial obrigou a empresa a ter seu próprio call-center.

Com a ajuda de Kátia, Dr. César foi o responsável pela decisão. Nenhuma lei obriga empresas telefônicas a terem seu próprio call-center, mas César entende que a atividade-fim de uma telefônica inclui falar ao telefone, ao contrário de outras firmas, que podem terceirizar a tarefa.

Sem poder contratar empresas especializadas para fazer o serviço, coube a Helena gerenciar o novo setor sem profissionais com know-how para auxiliá-la. Os novos aplicativos disponibilizados aos consumidores pela equipe especializada do antigo setor de Helena vão ter que esperar, e o atendimento da companhia por telefone demorará para ter a mesma eficiência.

Miranda não vai ser atendido hoje – como outros milhares de consumidores que perderão tempo de trabalho e convívio familiar com a inoperância do novo call-center.

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A reforma trabalhista entra em vigor em novembro. Se ela já valesse, João poderia ser contratado formalmente por Emanuel, o dono bar; Renato poderia pegar a função de Mauricio ou receber o adicional por produtividade; Cristina talvez fosse contratada pelo hospital em vez de seu colega homem; José poderia abrir sua empresa de terraplenagem; Helena poderia se dedicar a produzir para a sociedade aquilo que ela faz melhor; e Miranda seria um consumidor mais satisfeito.

Nem todos ganham com a reforma. Mauricio terá que competir com trabalhadores mais jovens. Miranda teria menos para comemorar no bar porque ações trabalhistas não poderão ser disparadas a esmo, a Justiça do Trabalho terá menor poder para legislar, e a nova lei impede algumas criações judiciais – como a “equiparação em relação ao paradigma remoto” que impede o aumento de Renato. (Advogados e o Judiciário trabalhista continuarão a ter um papel essencial no combate a ilegalidades, como a de Emanuel – aliás, a multa para empregar trabalhadores informais subiu 7 vezes.)

Os personagens representam uma parcela da população que é difusa e desorganizada, invisível neste debate. Essa massa contrasta com a organização e articulação de grupos como os que representam os trabalhadores já inseridos no mercado de trabalho formal (sindicatos) e os que representam o status quo da estrutura judicial.

Rara exceção neste debate foi a campanha dos trabalhadores da Guararapes contra o Ministério Público do Trabalho – evidentemente apoiada pela empresa e por um movimento político – mas que serviu para mostrar o rosto de uma massa prejudicada pela regulação atual do trabalho no Brasil e que é tipicamente invisível.

Um mercado de trabalho que funcione bem é vital para redução da pobreza e das desigualdades. A reforma trabalhista não é bala de prata para solucionar todos os seus problemas, mas permite a inclusão de excluídos com novas formas de contratação; dá segurança jurídica para a criação de empregos formais; e estimula o crescimento da produtividade (renda). Mesmo no bom momento do mercado de trabalho na primeira metade da década, a produtividade permaneceu estagnada e a informalidade muito alta, enquanto a baixa taxa média de desemprego escondia os indicadores piores para jovens, mulheres, negros e estratos mais pobres da população.

É fato conhecido que a pobreza no Brasil se concentra desproporcionalmente nas crianças e jovens, que moram em famílias com inserção precária no mercado de trabalho e sem pessoas mais velhas (que comumente recebem benefícios da Seguridade Social). Entre os 20% mais pobres da população, o desemprego é 7 vezes maior do que entre os mais ricos, e a informalidade cerca de 4 vezes maior. São estas as famílias que mais tem a ganhar. Estimativas iniciais sugerem entre 1,5 e 2,3 milhões de novas vagas apenas por conta da reforma.

É evidente que a reforma também beneficia os empregadores, afinal o empresariado apoiou a proposta. Não é por benevolência deles que os empregos formais ou a renda aumentarão. Toda contratação faz parte da busca por lucro pelo empresário. Cabe à legislação estabelecer regras do jogo para que, em sua procura pelo lucro, os patrões também maximizem os níveis de emprego e salários – e não que os prejudiquem. Afinal, a escolha da sociedade brasileira em sua Constituição foi por uma economia de mercado, e a regulação do trabalho deve ser ciente disso.

Além dos casos dos personagens do artigo, a reforma ataca muitas outras situações em que a CLT ou o Judiciário estabelecem condições que à primeira vista parecem favoráveis ao trabalhador, mas acabam não o sendo porque ignoram a premissa de um empregador que se comporta racionalmente e objetiva o lucro. O comportamento do empregador não deve ser idealizado.

Por exemplo, decisões bem-intencionadas de juízes para que o tempo no transporte oferecido voluntariamente pelo empregador aos empregados seja contado como horas-extras provocam a reação defensiva do empresário que, para preservar o lucro, desiste de fornecer o transporte. A situação do trabalhador piora: perderá mais tempo e dinheiro na rede de transporte pública, normalmente pior.

Autorização médica

Para o Prêmio Nobel indiano Amartya Sen, autor de Desenvolvimento como Liberdade, a pobreza é a privação de oportunidade. A reforma precisa ser melhor compreendida para vencer os esforços contrarreformistas de algumas entidades sindicais, da advocacia trabalhista e de parte do Judiciário/MP. No mesmo sentido do caso Guararapes, as pequenas fábulas aqui contadas precisam chamar atenção para um imperativo: a necessidade de defender os mais pobres de seus defensores.

Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 20 de outubro de 2017.

 

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Reforma trabalhista rumo ao ‘planalto’ https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3148&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=reforma-trabalhista-rumo-ao-planalto Mon, 29 Jan 2018 13:59:27 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3148 Rússia, Moçambique, Ucrânia, Comores, Venezuela, Panamá, Angola e Bielorrússia são alguns do grupo de apenas 12 países com legislação trabalhista mais rígida que a brasileira. Entre 144 nações, o Brasil ocuparia a 132ª posição em ranking de flexibilidade da legislação, segundo índice criado em anos recentes por pesquisadores do Institute of Labor Economics (IZA)1.

O indicador compara o tratamento das diferentes legislações para temas como a possibilidade de modalidades alternativas de contrato (como o trabalho intermitente); custos de contratação; custos e procedimentos de demissão; e jornada anual (que considera férias e feriados).  É pacífica na literatura a noção de que indicadores como este, em vez de serem usados para identificar causalidade entre a legislação e o crescimento econômico ou a taxa de desemprego de um país, são mais úteis quando analisados conjuntamente com medidas sobre o mercado de trabalho.  Se o índice aponta uma legislação trabalhista rígida, mas para um país que dispõe de bons dados para emprego, formalização e produtividade, não haveria problema.

Não é o caso do Brasil. O novo conjunto de indicadores divulgados pelo IBGE a partir de setembro de 2016 revela que cerca metade da força de trabalho não está abrangida pela legislação trabalhista. São os milhões de desempregados, informais e os integrantes da “força de trabalho potencial”, isto é, os desalentados que não apareciam nas estatísticas de desemprego porque já desistiram de procurar uma ocupação, embora quisessem uma. Nos Estados Unidos ele compõem uma taxa chamada de “taxa de desemprego real”.

Essas medidas ruins se somam aos indicadores de produtividade, estagnados há décadas, e ao índice de rigidez da legislação trabalhista para manifestar a necessidade de reforma nas leis do trabalho.

O Banco Mundial aponta os desafios de desenhar uma legislação trabalhista em países emergentes. Uma bem-intencionada legislação trabalhista, generosa, mas alienada, pode prejudicar exatamente os trabalhadores que tenta proteger, ao impedir a criação de vagas formais e o crescimento da produtividade (e da renda). Por outro lado, uma legislação exageradamente flexível pode levar à desproteção do trabalhador.

Esses dois extremos de regulação excessiva ou insuficiente são chamados de abismos. Não se sugere uma legislação “ideal”, ou a existência de um pico único para a performance do mercado de trabalho, mas sim a presença de múltiplos picos. Entre os abismos, há um planalto de possibilidades para esta legislação, que não levem o mercado de trabalho ao abismo do desemprego e da pobreza, nem ao abismo da precarização. Neste espaço, a regulação adereça as falhas de mercado sem prejudicar a eficiência. É neste planalto que o legislador quer chegar.

Figura 1 – Planalto e abismos da legislação trabalhista

Fonte: Betcherman (2014). Disponível em: https://wol.iza.org/uploads/articles/57/pdfs/designing-labor-market-regulations-in-developing-countries.pdf

 

Os dados sugerem que a regulação do mercado de trabalho no Brasil, pela CLT e pela jurisprudência trabalhista, nos coloca hoje em um desses abismos. Queremos subir ao planalto, mas sem correr o risco de cair no outro abismo2.

Este é o desafio da reforma trabalhista. A possibilidade que o negociado tenha a força do legislado contribui para que tenhamos contratos mais eficientes, com novas condições mutuamente benéficas para empregadores e empregados. É preciso, no entanto, ter a sensibilidade para reconhecer a desigualdade de poder negocial que pode existir nessa relação. A reforma impõe uma série de requisitos para as negociações coletivas, mas cortou subitamente a principal fonte de financiamento dos sindicatos (a impolular contribuição obrigatória).

Na teoria, se essa desigualdade leva uma das partes (o empregador) a conseguir termos mais favoráveis do que a outra, a liberdade contratual deixa de ser real e o resultado é uma falha de mercado, dando ensejo à proteção do arcabouço jurídico. Para que uma transação seja de fato mercado, é essencial a autonomia para veto em uma negociação.

Por sua vez, a incompreendida terceirização pode melhor entendida como um mecanismo para que a informação flua melhor no mercado de trabalho. Em A Reinvenção do Bazar: Uma história dos mercados, o falecido economista de Stanford John McMillan ensina que este mecanismo é um dos requisitos para o bom funcionamento de qualquer mercado, sob pena de reduzir quantidade e valor de transações.

No mercado de trabalho, isso significa desemprego e salários menores. A terceirização minimiza os custos de transação, entre eles o custo de busca. O desafio aqui para a regulação deste mecanismo é fazê-lo ser veículo de redução justamente desses custos, e não de custos com encargos trabalhistas (sonegação). O Judiciário aqui terá um papel fundamental: contrariamente ao que é divulgado, a reforma não liberou a terceirização “irrestrita”, mas sim a terceirização da atividade-fim: fraudes continuam sendo proibidas.

Há um mito no debate sobre a legislação e a Justiça trabalhistas no Brasil: o de que beneficiam e protegem demais o trabalhador. A pergunta é qual trabalhador. Se contribuem para nos levar ao abismo do desemprego, da informalidade e da renda baixa, não podem ser consideradas benéficas ao conjunto de trabalhadores. Cabe à reforma trabalhista mudar essa situação sem levar nosso mercado de trabalho ao abismo da precarização, mas sim ir rumo ao planalto.

Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 26 de abril de 2017 sob o título “Para a reforma trabalhista ir do abismo para o planalto”.

 

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1 Pelo Instituto Frasier, estaríamos em 144 de 159 países.

2 Note que este arcabouço também contempla a própria oposição à reforma. Para opositores, a legislação já estaria no planalto, mas a reforma nos levaria ao outro abismo. Um importante argumento divulgado é o de que o Brasil teria tido pleno emprego no início dos anos 2010 com legislação anterior. Cabe frisar que neste período convivemos com altos níveis de informalidade e produtividade estagnada, bem como que a taxa global esconde o alto nível de desemprego entre mulheres, jovens, negros e pobres. No melhor dos casos, tivemos um “pleno emprego do homem branco”. Ademais, o argumento, mesmo que aceito, não implica negar que as taxas poderiam ser ainda melhores sob outra legislação. Por fim, o argumento é valido ao apontar que o nível de emprego depende de outros fatores, como a atividade econômica e políticas de emprego ativas.

 

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Princípio da vedação de retrocesso social: o caso da vinculação de recursos para a saúde https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3135&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=principio-da-vedacao-de-retrocesso-social-o-caso-da-vinculacao-de-recursos-para-a-saude https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3135#comments Wed, 13 Dec 2017 14:58:59 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3135 A judicialização da política e a consequente politização da justiça são fenômenos conhecidos da opinião pública, cujas causas são geralmente procuradas nas disfunções do sistema político ou na cultura compartilhada por juízes e promotores. A essência do problema encontra-se, no entanto, na própria teoria jurídica, que desenvolveu uma série de justificações para a atuação do Poder Judiciário em matérias anteriormente consideradas de competência exclusiva dos Poderes Legislativo e Executivo.

1. O princípio da vedação de retrocesso

Um exemplo desse tipo de justificação é o chamado “princípio da vedação do retrocesso social”, segundo o qual os patamares já alcançados na provisão de direitos sociais não poderiam ser posteriormente reduzidos, mas apenas mantidos ou ampliados. Tal argumento tem sido sistematicamente empregado contra todo tipo de legislação tida por seus defensores como “neoliberal”, por supostamente reduzir algum direito social “conquistado” no passado. Alega-se, por exemplo, que a reforma trabalhista e o Código Florestal seriam inconstitucionais por representarem um “retrocesso” na defesa dos direitos dos trabalhadores e na defesa do meio ambiente.

Uma versão mais atenuada do princípio considera que o retrocesso, por si só, não é necessariamente inconstitucional; apenas cria uma presunção de inconstitucionalidade, que pode ser superada mediante demonstração de que a medida é necessária ao atingimento de outro valor constitucional ou direito fundamental e que a redução operada não foi excessiva1. Admite-se levar em consideração o contexto econômico e político por que passa o país, assim como a chamada “reserva do possível”, ou seja, a disponibilidade de recursos. Tal modulação é excluída, no entanto, do chamado “núcleo essencial” do direito fundamental “atacado”, que, no caso dos direitos sociais, traduz-se em um “mínimo existencial”, que deve prevalecer, inclusive, sobre a “reserva do possível”. Ou seja, admite-se o “retrocesso” apenas no que exceder ao “mínimo existencial” e desde que demonstrada sua necessidade e proporcionalidade com relação a outro valor constitucional.

Em Portugal, um importante marco no reconhecimento do princípio foi o Acórdão 39/84 do Tribunal Constitucional, que considerou inconstitucional a revogação de dispositivos legais instituidores do Serviço Nacional de Saúde. No Brasil, os precedentes mais relevantes são o voto minoritário do Ministro Celso de Melo na ADI 3105/DF, contrário à contribuição previdenciária para inativos e pensionistas instituída pela Emenda Constitucional 41/2003, e o acórdão da Segunda Turma do STF no ARE 639337, relatado pelo mesmo Ministro, relativo à matrícula de crianças em creches próximas a sua residência. Na América Latina, há registro de emprego do princípio também em outros países, podendo ser citada a Sentença T-1318/2015 da Corte Constitucional da Colômbia, relativa a contrato celebrado no âmbito da política habitacional.

Não há na Constituição brasileira qualquer menção expressa ao princípio da vedação de retrocesso. Seus defensores indicam como fundamento os arts. 1º, III, e 3º, III, da Carta Magna, que consagram a dignidade da pessoa humana como fundamento e a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades regionais e sociais como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.

2. O princípio da vedação de retrocesso na ADI 5595

Encontra-se na pauta do Plenário do STF a ADI 5595, proposta pela Procuradoria Geral da República, que pede a declaração de inconstitucionalidade de dispositivos da Emenda Constitucional nº 86, de 2015, por violação do “princípio da vedação de retrocesso social”, decorrente da redução dos recursos vinculados à saúde. O relator do caso, Ministro Lewandowski, concedeu liminar acatando o pedido na íntegra.

A ADI 5595 pode ser considerada a mais radical formulação do princípio da vedação de retrocesso já submetida à apreciação do STF. Nela, a PGR pede ao Tribunal que declare a inconstitucionalidade dos arts. 2º e 3º da Emenda Constitucional nº 86, de 2015, que estabeleceram normas sobre a vinculação de recursos da União à política de saúde.

A Constituição de 1988, em sua redação original, não vinculava recursos para a saúde, mas para a seguridade social, conceito mais amplo, que abrange também a previdência e a assistência.

A Emenda Constitucional nº 29, de 2000, instituiu vinculação de recursos para “ações e serviços públicos de saúde” em todos os entes da Federação. No caso da União, atribuiu à lei complementar a fixação dos recursos mínimos a serem aplicados (CF, art. 198, § 2º, I, e § 3º, IV), o que acabou por ser feito pela Lei Complementar nº 141, de 2012. O art. 5º dessa Lei estabeleceu como piso de aplicação o montante empenhado no ano anterior, acrescido do crescimento do PIB, caso este tenha sido positivo. Posteriormente, a Lei nº 13.858, de 2013, destinou à saúde, em acréscimo a esse piso, 25% dos royalties e da participação especial da União oriundos da concessão de campos de petróleo na região do pré-sal (art. 2º, § 3º, e art. 4º).

A Emenda Constitucional nº 86, de 2015, substituiu a remissão à lei complementar pela fixação de um piso de aplicação de recursos na própria Constituição, correspondente a 15% da receita corrente líquida (CF, art. 198, § 2º, I). Estabeleceu, ainda, uma transição de cinco anos para o atingimento desse patamar, partindo de um percentual de 13,2%, e incluiu os recursos dos royalties do petróleo nesse piso (arts. 2º e 3º).

Essa transição foi subsequentemente revogada pela Emenda Constitucional nº 95, de 2016, que instituiu o Novo Regime Fiscal. O patamar de 15% foi antecipado para 2017, passando o valor resultante a ser rejustado pela inflação nos vinte anos seguintes.

A ADI 5595 insurge-se contra a transição instituída pela EC 86/2015 e a inclusão dos royalties do petróleo no piso de aplicação de recursos em saúde, sob o argumento de que o novo critério resultaria em patamar inferior de despesa, o que violaria o princípio da vedação de retrocesso. Alega-se, em síntese, que o direito à saúde é um direito fundamental garantido pela vinculação de recursos e protegido por cláusula pétrea (CF, art. 60, § 4º, IV). Embora o quadro de recessão econômica seja explicitamente reconhecido, alega-se que esse fato seria irrelevante diante da essencialidade da política de saúde.

3. Os equívocos da ADI 5595

O eventual provimento da ADI 5595 constituiria um precedente de grande impacto, que consagraria definitivamente o princípio da vedação de retrocesso, em sua versão mais radical, no direito constitucional brasileiro. O ineditismo da tese é múltiplo: contesta-se uma Emenda Constitucional em face de uma lei complementar e uma lei ordinária; o critério de aferição do “retrocesso” é puramente financeiro; a versão do princípio defendida é absoluta; e a abrangência da cláusula pétrea relativa aos direitos e garantias individuais (CF, art. 60, § 4º, IV) é estendida não apenas aos direitos sociais, mas aos recursos orçamentários a eles vinculados. Sua aceitação pelo STF representaria um enorme impulso à judicialização das políticas públicas e colocaria em risco não apenas a responsabilidade fiscal, mas o próprio direito à saúde. Sua repercussão não se limitaria a um maior aporte de recursos federais para a saúde, mas se estenderia a todas as eventuais realocações de recursos orçamentários, em todas as esferas da Federação.

3.1. Comprometimento da responsabilidade fiscal

A promoção dos direitos econômicos, sociais e culturais depende da condição econômica de cada país. Daí porque os documentos internacionais que os consagram se referem sempre aos “recursos disponíveis”2. A progressividade de seu atendimento decorre da expectativa de que o desenvolvimento econômico elevaria as condições de vida da população e a receita dos governos. Ocorre que o desenvolvimento não é linear. Diversos fatores podem levar os países à recessão ou mesmo à depressão econômica: guerras, catástrofes naturais, crises políticas, má gestão da política econômica, etc. Além disso, a economia de mercado apresenta ciclos de crescimento e recessão que atingem mesmo os países desenvolvidos.

A manutenção do patamar de despesas na fase descendente do ciclo econômico, quando há uma redução das receitas, somente pode ser feita mediante endividamento. No atual contexto brasileiro, contudo, a dívida pública já é muito elevada e cresce aceleradamente, em função dos elevados déficits nominais e primários verificados a partir de 2014. Um congelamento de despesas inviabilizaria qualquer tipo de ajuste fiscal capaz de recompor o equilíbrio das contas públicas. No limite, o governo seria obrigado a dar um calote nos credores, fornecedores e servidores públicos, o que comprometeria a continuidade dos serviços públicos e causaria um retrocesso de proporções catastróficas para as políticas sociais, a exemplo do que já ocorre no estado do Rio de Janeiro.

3.2. Prejuízo para os demais direitos sociais e para o próprio direito à saúde

A vinculação de recursos para uma política se dá sempre em prejuízo das demais políticas. O direito à saúde não se limita, no entanto, ao atendimento pelo SUS; abrange também as “políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos” (CF, art. 196). No mesmo sentido, o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais inclui entre as medidas de promoção do direito à saúde a redução da mortalidade infantil, a higiene do trabalho e do meio ambiente e a prevenção de doenças3. Ocorre que a Lei Complementar nº 141, de 2012, explicitamente exclui essas medidas da aplicação dos recursos vinculados à saúde (art. 4º).

Nesse contexto, o ajuste fiscal recairá desproporcionalmente sobre outras políticas igualmente necessárias à promoção da saúde, o que pode, no limite, inviabilizá-las por completo. Haverá recursos para o tratamento de doenças e o atendimento de acidentados ou vítimas da violência, mas não para o saneamento básico, a segurança alimentar, a fiscalização do trânsito e a segurança pública, políticas capazes atacar os problemas que estão na origem da demanda pelos serviços de saúde.

3.3. Violação da separação dos poderes

As vinculações de recursos são uma exceção à regra geral de livre alocação da receita de impostos pela Lei Orçamentária (CF, art. 167, IV). Ao impedir o Congresso Nacional de revê-las, a ADI 5595 “petrifica” o “congelamento” do orçamento, substituindo o juízo de 3/5 dos deputados e 3/5 dos senadores (quórum de aprovação das Emendas Constitucionais) pelo de 6 ministros do STF (quórum de julgamento das ADI) ou apenas do relator do caso (no caso de liminar).

Nesse contexto, a única alternativa disponível para o atendimento das políticas não vinculadas será a reclassificação de suas despesas, de modo que elas sejam enquadradas no âmbito das vinculadas. Isso obrigará, em um segundo momento, o Tribunal a se pronunciar sobre o que é ou não “saúde”, ou seja, a adentrar cada vez mais o universo da legislação ordinária.

4. Comprometimento da autodeterminação das futuras gerações

Os conceitos de “progresso” e “retrocesso” em matéria de legislação e políticas públicas é bastante subjetivo. O que é progresso para uns pode ser considerado um retrocesso para outros. Além disso, havendo trade-offs entre objetivos legítimos, faz-se necessário estabelecer prioridades, atividade eminentemente política.

É próprio da democracia o conceito de alternância no poder. Quem perdeu as eleições hoje pode vencê-las amanhã e vice-versa. A imposição da vontade do grupo político atual sobre as futuras gerações equivale a uma ditadura cujo dirigente recursa-se a sair do poder quando derrotado nas eleições.

A vedação de retrocesso congela, no entanto, a alocação de recursos feita em algum momento do passado e impede sua revisão pelas gerações subsequentes.

5. Conclusão

A aplicação do princípio da vedação de retrocesso, tal como proposta na ADI 5595, seria catastrófica. É certo que se trata de uma versão extrema do princípio, que desconsidera por completo o contexto econômico do país. Mesmo uma versão atenuada seria, no entanto, igualmente questionável, na medida em que levaria o Tribunal a revisar decisões alocativas de recursos financeiros próprias dos Poderes Executivo e Legislativo, que foram eleitos para isso.

Em realidade, o princípio da vedação de retrocesso, enquanto tal, parece-nos inadmissível, pois pretende impor à administração pública uma concepção linear de progresso, incompatível com a realidade econômica e com o direito das gerações futuras de eleger suas próprias prioridades4.

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1 Nesse sentido, SARLET, Ingo Wolfgang, Notas sobre a assim designada proibição de retrocesso social no constitucionalismo latino-americano. Rev. TST, Brasília, vol. 75, nº 3, jul/set 2009.

2 O artigo 2º do Pacto Internacional sobre Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, por exemplo, assim dispõe: “Cada Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas”. A mesma abordagem foi adotada nos demais documentos internacionais de proteção dos direitos humanos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção Americana de Direitos Humanos e seu Protocolo Adicional em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

3 “Art. 12. 1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental. 2. As medidas que os Estados Partes do presente Pacto deverão adotar com o fim de assegurar o pleno exercício desse direito incluirão as medidas que se façam necessárias para assegurar: a) A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como o desenvolvimento das crianças; b) A melhoria de todos os aspectos de higiene do trabalho e do meio ambiente; c) A prevenção e o tratamento das doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras, bem como a luta contra essas doenças; d) A criação de condições que assegurem a todos assistência médica e serviços médicos em caso de enfermidade.

4 Vale registra que, em seus escritos mais recentes, Canotilho, um dos principais defensores do princípio, revisou seu entendimento e considerou a vedação de retrocesso insustentável em face na realidade econômica. No mesmo sentido, o Tribunal Constitucional de Portugal deixou de aplicá-lo no julgamento de diversas medidas de ajuste fiscal adotadas naquele país.

 

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Quem protege o trabalhador da Justiça do Trabalho? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3088&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=quem-protege-o-trabalhador-da-justica-do-trabalho Mon, 06 Nov 2017 14:38:37 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3088 É comum o argumento de que a legislação e a Justiça do Trabalho são exageradamente pró-trabalhador. A afirmação é falaciosa: sempre se deve querer o bem do trabalhador. A questão é que na verdade esta estrutura normativa o prejudica com frequência, especialmente quando peca por idealizar o comportamento dos patrões. A Justiça do Trabalho é uma justiça de decisões bem intencionadas e efeitos adversos.

A CLT prevê que o empregador pode oferecer transporte aos empregados, sem que isso conte como tempo da jornada. O transporte dado livra o empregado de passar mais tempo em deslocamento e de usar o precário sistema de transporte público. Há duas exceções: o transporte será computado como tempo de jornada se o local de trabalho for de difícil acesso ou não servido por transporte público regular.

Muitos juízes reinterpretam estes dois termos. A intenção pode ser boa, uma vez que o empregado ganha uma indenização. O resultado não é: diante da insegurança jurídica, as empresas ficam na defensiva e deixam de oferecer o transporte. Quem perde?

Outro bom exemplo é o engessamento de políticas de remuneração. Quando um juiz decide pela incorporação definitiva de um adicional eventual de produtividade, o empregador tende a resistir em conferir este tipo de prêmio.

Representativa desta miopia é a Súmula 277 do TST, derrubada pelo STF. Ela previa que condições benéficas concedidas temporariamente aos trabalhadores em negociações coletivas deveriam ser incorporadas definitivamente ao contrato individual. Quantos empregadores vão estar predispostos a negociar essas concessões temporárias?

A teoria microeconômica não é romântica ao descrever o comportamento de uma firma: seu objetivo é o de maximizar o seu lucro. Assim, a escolha racional de empregadores diante de decisões trabalhistas como essas será prejudicial justamente aos empregados. O Judiciário trabalhista tem sido pródigo em, ao julgar ações, decidir de maneira que nos casos concretos parece favorável os trabalhadores, mas que acaba sendo deletéria a eles. Este resultado ocorre, ironicamente, por idealizar o comportamento (natural) das empresas.

Individualmente, os julgamentos podem fazer sentido. No agregado, não. Mesmo o TST, que poderia ter uma melhor visão do todo, não tem os insumos do Parlamento para legislar, e também falha ao não antecipar a reação empresarial. A regulação do trabalho no Brasil precisa trabalhar com esta restrição: buscar o melhor para o trabalhador ciente que o DNA da empresa é visar o lucro.

Um segundo problema que existe no arcabouço que rege o trabalho no Brasil é o seu confinamento na lógica de mais valia e na oposição entre capital e trabalho. Outra oposição, talvez mais relevante, é a oposição tácita entre incluídos e excluídos. Cerca de metade de força de trabalho está incluída na legislação trabalhista, e metade está excluída, desempregada ou informal. O instinto protetor sobre o primeiro grupo pode penalizar o segundo.

Pelo dilema “insider-outsider”, o ganho do incluído pode significar perda para o excluído, e vice versa. Um exemplo presente na reforma trabalhista é a inovação do trabalho intermitente, uma controversa nova forma de contratação, por hora. Um bar poderia ampliar o número de garçons contratados no fim de semana, permitindo a inclusão de excluídos: como desempregados para quem trabalhar algumas horas por mês é um avanço em relação a não trabalhar hora nenhuma.

Por outro lado, a mudança permitiria que o bar tenha menos empregados no seu quadro fixo, pela menor demanda nos outros dias. Isso seria perda para incluídos contratados por toda a semana que passariam a trabalhar apenas no fim de semana. Este dilema ainda aparece pouco no debate sobre a legislação e Justiça trabalhistas, em que predomina a visão do conflito capital-trabalho, sem que se perceba que existe um terceiro grupo afetado por estas normas e decisões e sem que se note o conflito invisível entre incluídos e excluídos.

Um terceiro raciocínio que precisa ser aprimorado nesta discussão é o que defende que não precisamos de mudanças na CLT ou no Judiciário, uma vez que mudanças não aconteceram nos últimos anos, nem quando o desemprego caiu, nem quando o desemprego subiu. O argumento, expressado nas redes pela atriz Camila Pitanga, tem lógica: uma mudança na legislação não é uma varinha de condão que resolve sozinha os problemas de renda do país. Entretanto, mesmo quando esteve bom, o funcionamento do mercado de trabalho era muito ruim.

Até no período de boom, com desemprego em baixa, convivemos com informalidade alta e produtividade estagnada, negativa em alguns setores. As estatísticas também escondiam o desemprego oculto pelo desalento, o que se refere ao “desempregado raiz”: o desempregado que já desistiu de procurar ocupação e não aparece mais nos dados oficiais. A baixa taxa oficial também não revelava a “desigualdade de desemprego”: os indicadores muito piores para mulheres, negros e jovens, grupos normalmente esquecidos nesta discussão.

Cabe ao Juiz do Trabalho ativista entender melhor que os indicadores do mercado de trabalho – que não se resumem à taxa de desemprego – são sensíveis às suas decisões; que a soma de decisões individuais bem-intencionadas pode gerar a exclusão de largas parcelas da população; e que o empresário tende a reagir racional e defensivamente ao seu ativismo, transferindo riscos para o trabalhador (inclusive o excluído, quando foge da contratação formal).  Sem essa visão mais ampla, a Justiça do Trabalho periga continuar sendo vista como o elefante na loja de cristais.

 

* Este texto foi publicado sob o título “Boas intenções, efeitos adversos” no jornal O Estado de São Paulo, de 24 de junho de 2017.

 

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Por que os advogados estão entre os mais afetados pela reforma da Previdência? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3022&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-os-advogados-estao-entre-os-mais-afetados-pela-reforma-da-previdencia Wed, 16 Aug 2017 15:51:42 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3022 A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) divulgou uma contundente carta contrária à reforma da Previdência, que seria “fundamentada em premissas equivocadas” e conteria “inúmeros abusos contra diretos sociais”. A esta carta, seguiram diversas outras manifestações da Ordem. É pertinente fazer uma provocação. Embora muitas categorias se sintam prejudicadas pelas novas regras de aposentadoria, como policiais e professores, há uma categoria do qual pouco se fala e que é vigorosamente afetada pela reforma: os advogados.

A ambiciosa proposta do governo de reforma da Previdência tem o potencial para reduzir sobremaneira a judicialização no INSS, o maior litigante do Brasil. No início desta década, havia tantos processos do INSS na Justiça quanto paraguaios no Paraguai: cerca de 6 milhões. Conhecendo as particularidades do sistema judicial brasileiro, não é possível descartar que, em número de causas, o INSS seja até mesmo um dos maiores litigantes do mundo, se não o maior.

Essa grande quantidade de ações movimenta milhares de advogados. Das dezenas de bilhões de reais que anualmente o INSS despende por decisões judiciais, pelo menos alguns milhões revertem em honorários para o conjunto desses advogados. Várias dessas causas estão ameaçadas com a reforma da Previdência. É evidente que a entidade de classe que representa esses advogados deve se pronunciar veemente contra mudanças que os prejudiquem.

Uma busca rápida na Internet dá a dimensão do mercado: uma empresa vende mais de 1.200 modelos de petições para advogados previdenciários. Em um jornal, um especialista propagandeia a área como cada vez mais promissora por conta do envelhecimento populacional. Em um site especializado, proclama-se, com algum exagero, que a advocacia previdenciária é a área mais lucrativa de 2016 e que “o leque de atividades é tão grande quanto lucrativo”. Entendamos então como a reforma da Previdência pode mudar esta realidade.

Aposentadoria rural

De cada 100 aposentadorias rurais, 30 são concedidas judicialmente. De maneira geral, esse benefício não exige contribuição. O advogado atua principalmente para comprovar que um segurado trabalhou por pelo menos 15 anos no campo. A reforma altera este desenho para que esta comprovação seja feita periodicamente mediante o pagamento de uma contribuição, e não no momento de pedir o benefício com a ajuda de um advogado. A demanda por advogados também tende a se reduzir uma vez que as exigências de idade e tempo de contribuição convergiriam para as da aposentadoria urbana, deixando o benefício menos atraente para trabalhadores urbanos.

Aposentadoria especial

De cada 100 aposentadorias especiais, 70 são concedidas judicialmente. Esta é uma modalidade similar à aposentadoria por tempo de contribuição, sem idade mínima, que exige apenas 25, 20 ou 15 anos de contribuição, para quem esteve exposto a agentes nocivos no trabalho. Além da possibilidade de se aposentar antecipadamente, o benefício é vantajoso por ser integral, sem a aplicação do fator previdenciário.

O advogado atua principalmente para comprovar o tempo de exposição a esses agentes. A reforma afetará duplamente a judicialização deste benefício: restringe as formas de comprovação e reduz significativamente a demanda por ele ao torná-lo menos vantajoso. Em relação ao primeiro ponto, a reforma veda a comprovação apenas pelo pertencimento a uma categoria profissional. Em relação ao segundo ponto, cria uma idade mínima de 55 anos, altera o tempo mínimo de contribuição para 20 anos e o valor do benefício, que será proporcional ao tempo de contribuição. Novamente, é evidente que assim menos pessoas recorrerão a advogados, e as que recorrerem terão menor chance de sucesso.

Aposentadoria por invalidez

De cada 100 aposentadorias rurais por invalidez, 70  também são concedidas judicialmente. Em geral, o advogado questiona perícias do INSS que negam o benefício ou busca expandir a lista de doenças que dão direito ao benefício independentemente de contribuição, bem como tenta contornar a lentidão da fila das perícias. Medida Provisória anterior à reforma já obrigava os juízes a estimarem o prazo para cessação do auxílio-doença, eliminando uma das vantagens do pleito judicial deste benefício (o recebimento por tempo indefinido).

A aposentadoria por invalidez também não prevê a aplicação do fator previdenciário (benefício integral), e inclusive permite um adicional de 25% para o beneficiário que necessitar de cuidador, ainda que o valor ultrapasse o teto de benefícios – o que só existe nesta modalidade de aposentadoria. A reforma também altera o valor deste benefício, que passaria a ser proporcional ao tempo de contribuição. A demanda por advogados tende a diminuir se esta modalidade de aposentadoria pagar um valor menor do que o segurado receberia se trabalhasse mais alguns anos, se aposentando pela modalidade comum.

A princípio, a afirmação anterior pode parecer por demais fria: afinal, as pessoas procuram este benefício porque estão incapacitadas para o trabalho, e não porque o montante a ser recebido é maior. Entretanto, as situações destes segurados são muito heterogêneas, e os incentivos da legislação desempenham sim um papel importante na demanda pela aposentadoria por invalidez. Ilustrativamente, após a 2ª reforma da Previdência, quando a aposentadoria por invalidez do servidor público deixou de ser integral e passou a ser proporcional ao tempo de contribuição, a sua participação no total de aposentadorias concedidas caiu de 30% em 2004 para apenas 4% em 2016. Em que pese as diferenças na realidade do servidor e do trabalhador do INSS, é provável que a demanda administrativa e judicial pelo benefício se reduza com a reforma.

Benefício de Prestação Continuada

De cada 100 Benefícios de Prestação Continuada (BPC) concedidos, 25 são concedidos judicialmente. Formalmente assistencial, mas materialmente previdenciário, este é um benefício pago à pessoa com deficiência e ao idoso em situação de comprovada pobreza. Cabe ao advogado batalhar pelo benefício para a família que não cumpra os requisitos legais de pobreza, pleiteando, por exemplo, que outros benefícios assistenciais e previdenciários sejam excluídos do cálculo da renda familiar ou que se desconsidere a parcela desta renda gasta com medicamentos. Desconhecem-se ações judiciais semelhantes para o Bolsa Família, apesar da linha de corte mais rígida, provavelmente porque o benefício é muitíssimo menor.

A reforma coloca no texto constitucional a previsão de que a renda familiar seja considerada na totalidade, e que lei disponha sobre outros requisitos do BPC.  Boa parte das ações que hoje são bem sucedidas podem não mais o ser. Adicionalmente, a reforma inicialmente previa que o BPC teria um valor menor do que o das aposentadorias, o que pode também desestimular a procura deste benefício, inclusive pela via judicial.

Desaposentadoria

Por fim, a reforma é a pá de cal na desaposentadoria, talvez a grande causa dos escritórios de advogados previdenciários. A desaposentadoria, que não foi reconhecida pelo Supremo em 2016, é a tese de que aposentados que continuam trabalhando e contribuindo para a Previdência merecem o recálculo dos benefícios como se jamais tivessem se aposentado. Ao afetar principalmente os segurados que podem se aposentar por tempo de contribuição, de maior renda, tratava-se de ações de valor maior.  Ocorre que a desaposentadoria era corolário da própria ausência de idade mínima, que gerava uma grande quantidade de aposentados-contribuintes. Com a idade mínima, este pleito não faz mais sentido.

Se por um lado uma ampla reforma como a proposta pelo governo pode gerar inúmeros questionamentos jurídicos, fica claro que a atividade das bancas previdenciárias não será mais como hoje se a reforma passar. Este é o possível conflito de interesse que a OAB possui, como representante desses advogados, e que não é explicitado quando se posiciona de maneira tão contundente contra a reforma da Previdência.

Em um interessante caso de lobby destes profissionais, uma emenda substitutiva à reforma foi apresentada com o timbre de entidades de advogados previdenciários que contam com o apoio da OAB. A proposta chega ao extremo de proibir o Congresso Nacional de fazer reformas por 20 anos, mesmo por Emenda Constitucional, entre outros dispositivos que causam perplexidade por terem sido avalizados por operadores do Direito.

É importante ressaltar que isso não significa que não exista por parte da Ordem uma genuína apreensão quanto às mudanças propostas, até porque o discurso da OAB é compartilhado por várias outras entidades da sociedade civil. Entretanto, é justamente para a sociedade que precisa ficar claro que, neste estratégico debate nacional, os objetivos da OAB podem não ser os mesmos do conjunto da sociedade. Na reforma da Previdência, a atuação da Ordem é marcadamente diferente da sua reconhecida atuação em outros momentos da vida nacional, como as Diretas Já ou o impeachment do Presidente Collor. Como responsável pela defesa da classe dos advogados, prejudicados pela reforma, o provável conflito de interesse está colocado.

Ademais, é oportuno salientar que uma reforma da Previdência pode ser defendida justamente com os argumentos contrários a ela colocados por membros da advocacia nacional nas últimas semanas. O princípio da proteção à confiança deveria nos inspirar a garantir um sistema previdenciário sustentável, que não venha no futuro a cortar aposentadorias como no Rio, em Portugal ou na Grécia, rasgando promessas feitas a idosos em um momento em que eles mais nada podem fazer. Já o princípio da proibição de retrocesso social deveria nos motivar a olhar com mais carinho para as políticas públicas que serão comprimidas com o crescimento de uma despesa que ocupa 57% do orçamento federal e passará a ocupar 80% em cerca de 10 anos. E o retrocesso social na saúde, no saneamento básico, na educação?

Como garantir o direito ao emprego com os empreendimentos sufocados pelos juros estratosféricos decorrentes do crescimento acelerado da despesa pública? Como garantir o direito à vida em uma sociedade em que o Estado não tem dinheiro para pagar policiais ou médicos na quantidade necessária? É preciso ficar claro que vários dos direitos individuais e sociais previstos pela nossa Constituição não poderão ser efetivados em um Estado sem recursos e em uma economia no chão, e não podem ser judicializados como os direitos previdenciários podem ser. Não existe ação judicial factível para garantir um emprego, a construção de uma estrada ou o patrulhamento de uma rua.

Os advogados previdenciários prestam um serviço essencial no país, garantindo amparo a famílias necessitadas quando esbarram na lentidão da burocracia ou no desconhecimento do legislador. Muitas vezes não são somente uma opção, mas a última opção.  Todavia, o Estatuto da Advocacia é claro em seu art. 44 que a OAB tem a finalidade não só de defender a Constituição, os direitos humanos e a justiça social (inciso I), como também de promover a representação e a defesa dos advogados em toda a República Federativa do Brasil (inciso II). No debate da reforma da Previdência, o melhor para o país é que a entidade que ele tanto admira e confia admita o conflito entre os dois incisos.

Este texto foi originalmente publicado no JOTA em 6 de abril de 2017, sob o título “Reforma da Previdência e conflito de interesse da OAB”.

 

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Cumpra-se https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2829&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=cumpra-se https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2829#comments Mon, 08 Aug 2016 12:39:26 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2829 O governo interino editou a Medida Provisória no 739, uma espécie de “pré-reforma” da Previdência, destinada a reduzir em pelo menos R$ 6 bilhões por ano, por meio de medidas administrativas, o pagamento de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez para quem  não se encontraria incapacitado para o trabalho.

Pode-se dizer que a MP simultaneamente:

  1. faz parte do esforço de ajuste fiscal, sendo um dos frutos baixos da árvore, ao não exigir aumento de tributos ou a repactuação com o Congresso de novas regras para benefícios;
  2. prepara o terreno para a terceira reforma da Previdência, ao apresentar à sociedade que pagamentos indevidos estão sendo revistos antes de medidas mais impopulares serem tomadas; e
  3. tenta responder aos efeitos da judicialização da Previdência, tema introduzido neste texto.

O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), maior litigante da Justiça Federal, já teria 10% de seus benefícios sendo pagos por decisão judicial, segundo a Associação Nacional dos Médicos Peritos (ANMP). Isso seria equivalente a cerca de 3 milhões de benefícios pagos por mês. Entre os benefícios mais concedidos por decisão judicial1, além dos objetos da MP 739/2016 (auxílio-doença e aposentadoria por invalidez), estão a aposentadoria rural (a Justiça pode aceitar provas alternativas de comprovação do tempo de trabalho no campo) e o Benefício de Prestação Continuada (a Justiça pode reavaliar a incapacidade de quem alega deficiência ou modificar o critério  usado para aferir pobreza – o que já foi discutido no blog). A judicialização atinge milhares de casos individuais, mas também dezenas de ações civis públicas propostas principalmente pelo Ministério Público em diferentes regiões do país.

Auxílio-doença e aposentadoria por invalidez

A exposição de motivos da MP 739 aponta que as despesas com auxílio-doença cresceram 85% em apenas 10 anos, atingindo R$ 23,2 bilhões em 2015. Em especial, chama a atenção a quantidade de benefícios sendo pagos há mais de 2 anos: quase 850 mil, mais da metade de todos os benefícios. Apenas nesses casos a despesa total por ano é de R$ 13 bilhões2,  ou  o equivalente a dois terços das despesas com o Minha Casa Minha Vida em 2015.  Por que tantas pessoas recebem um benefício provisório por tanto tempo?

Além da crônica dificuldade do INSS de realizar perícias médicas e de reabilitar os segurados3, a judicialização desempenha um papel.  Nos casos individuais, o Judiciário pode discordar da perícia do INSS que não considerava alguém incapacitado, e conceder o benefício. Também são muitos os casos em que a Justiça até mesmo expande a lista de doenças que, independentemente de contribuição, dão direito à aposentadoria por invalidez e ao auxílio-doença. Os peritos previdenciários se queixam que o Judiciário não teria a expertise necessária para tomar tais decisões. Por sua vez, o INSS não tem tido capacidade de deslocar peritos para participar de audiências na Justiça: casos em que há participação do perito do INSS tendem a ter decisões mais favoráveis ao órgão.

Já nas ações civis públicas a Justiça tem obrigado o INSS a conceder automaticamente o auxílio-doença, aposentadoria por invalidez e o BPC da pessoa com deficiência se a perícia não puder ser realizada em um determinado prazo. Note que, também nesse caso, a dificuldade da Previdência com a mão de obra pericial tem um papel fundamental.

Entretanto, como esse prazo máximo para que a perícia seja feita não está previsto em lei, as ações civis públicas também tem o efeito adverso de adicionar mais complexidade à operação do INSS, um órgão nacional com a missão de administrar a segunda maior folha de pagamento do mundo. Nas agências de Roraima, ação civil pública determina que perícia deve ser feita em no máximo 30 dias ou os benefícios devem ser automaticamente concedidos, prazo que é de 45 dias nas agências Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina e Maranhão.

Os problemas com perícias e a judicialização se relacionariam com os R$ 13 bi pagos por ano a quem recebe o auxílio-doença por mais de 2 anos.

Por isso, a MP 739 propõe que o auxílio-doença concedido judicialmente tenha uma estimativa de quando o pagamento deverá ser cessado (já há recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no mesmo sentido). Caso não haja a previsão sobre a recuperação do beneficiário, ele será interrompido após quatro meses. Prevê ainda que a qualquer momento quem recebe auxílio-doença e aposentadoria por invalidez por determinação judicial poderá ser reavaliado.

(Do lado administrativo, a MP prevê um bônus por perícia para os médicos do INSS, na tentativa de manter os médicos no quadro e efetivamente trabalhando nas agências. Nesse sentido, o ano passado foi marcado por uma malsucedida tentativa de terceirizar as perícias no âmbito da MP 664 (para o setor privado e o SUS) e por uma longa greve da categoria).

O governo pretende, com a Medida Provisória, reduzir em cerca de R$ 6 bilhões os benefícios pagos a quem não está incapacitado, ou mesmo quem de fato continua trabalhando. O grosso da redução deve ser no auxílio-doença e, residualmente, na aposentadoria por invalidez. Grupos contrários receiam que a MP prejudique subgrupos com incapacidade menos evidente, como pessoas com transtornos psiquiátricos, e anunciam intenção de recorrer a cortes internacionais4.

Benefício de Prestação Continuada

O BPC, operado pelo INSS, é objeto residual da MP 739, mas é alvo de intensa judicialização. Previsto na Constituição, trata-se de benefício assistencial destinado ao idoso ou deficiente pobre. A Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), que concretizou o benefício, considera como critério de pobreza para recebimento do benefício a renda per capita familiar abaixo de um quarto de salário mínimo. Ou seja, em valores de 2016, a renda per capita de até R$ 220 na família do idoso ou deficiente pobre daria direito ao recebimento do benefício no valor de R$ 880.

Note que há uma enorme discrepância em relação à linha de corte e ao valor do benefício em relação aos critérios do Bolsa Família (renda per capita de até R$ 85 para um benefício de R$ 85, ou renda per capita de até R$ 170, se houver crianças para um benefício de R$ 39). Assim, o critério de pobreza do BPC pode ser quase 3 vezes maior do que o do “famigerado” Bolsa Família, para um benefício 22 vezes maior de acordo com a legislação.  Mesmo assim, o critério de pobreza do BPC é considerado inadequado, e é o principal tema das ações judiciais que tratam do benefício.

Existem no Brasil dezenas de ações civis públicas em relação ao BPC. No que tange ao critério de pobreza, elas dividem-se em dois tipos: i) as que excluem do cálculo da renda per capita a renda recebida a título de BPC por outra pessoa da família ou até mesmo a aposentadoria ou pensão (de um salário mínimo); e ii) as que avaliam a pobreza subjetivamente ou que desconsideram no cálculo despesas essenciais, notadamente com medicamentos.

O Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA, 2016) aponta que contribuiu para essa tendência a previsão do Estatuto do Idoso (Lei no 10.741, de 1º de outubro de 2003) de desconsiderar no cálculo da renda o BPC recebido por outro idoso da família, entendimento que foi sucessivamente expandido pelo Judiciário (ex: desconsiderar o BPC da pessoa com deficiência, aposentadorias e pensões).

As ações também ganharam fôlego com um importante julgado recente do Supremo Tribunal Federal (STF)5, discutido previamente no blog, que reviu o posicionamento da corte e ampliou o critério da pobreza para recebimento do BPC de um quarto do salário mínimo como renda per capita para meio salário mínimo (ou de R$ 220 para R$ 440 em 2016).

Além da óbvia iniquidade e dificuldades administrativas causadas por essa série de decisões serem descoordenadas e aplicadas em regiões diferentes do país, o atropelo dos critérios pactuados pelo Executivo e o Legislativo causam distorções impressionantes. Se uma decisão individual está guiada por boas intenções e pode ter custos baixos, o seu acúmulo vai exatamente à direção contrária a pretendida, retirando recursos dos que mais precisam.

Conjugando os critérios dessas decisões, podemos, ilustrativamente, analisar as distorções em quatro famílias fictícias de três pessoas. Uma primeira família tem dois aposentados que ganham o salário mínimo, de R$ 880, vivendo com um deficiente com renda de R$ 1320 (total R$ 3080). Essa família não seria considerada pobre pela legislação, mas seria pelos critérios do Judiciário apresentados acima. Ela teria o direito de receber o BPC, no valor de R$ 880, totalizando uma renda de R$ 3960 (ou R$ 1320 per capita).

Suponha uma segunda família, também com três pessoas: um deficiente sem renda, um desempregado sem renda e alguém recebendo um salário de R$ 1321. Ela não se enquadra nos critérios de pobreza definidos pelo legislador ou pelo Judiciário e sequer receberia o benefício. A renda dessa segunda família fica sendo 3 vezes menor do que a da primeira, porque o Judiciário decidiu que o dinheiro recebido a título de aposentadoria não é renda para a definição de pobreza, o que permitiu aquela família receber além desses proventos, também o benefício assistencial para o deficiente.

Ainda ilustrativamente, considere outra família de três pessoas com renda total de apenas R$ 511.  Elas não têm direito nem ao BPC nem ao Bolsa Família, se não houver no grupo familiar idoso, deficiente ou criança. Esta é uma família significativamente mais pobre, com capacidade muito menor de judicializar a questão. Assim, a primeira família de três pessoas, com renda de R$ 3080, pode receber mais R$ 880 pelo entendimento do Judiciário, mas a terceira família com renda de R$ 511, sequer pode receber os R$ 85 do benefício básico do Bolsa Família. A diferença da renda per capita será de 8 vezes, por distorções, cumulativamente, das leis que regem o Bolsa Família e o BPC, e da intervenção do Judiciário.

Partindo desde último exemplo, podemos chegar a uma quarta família: se uma das pessoas do terceiro exemplo fosse uma criança (ex: uma mãe desempregada, um pai com salário de R$ 511 e um filho de até 15 anos), a família poderia receber o benefício variável de R$ 39 do Bolsa Família. Este é o auxílio que esta criança pobre poderá receber, ainda significativamente abaixo dos R$ 880 que a primeira família, com renda de mais de R$ 3 mil, teria direito. (Cabe observar que os valores usados aqui para o Bolsa Família já contam com o controverso reajuste dado pelo presidente interino Michel Temer).

Os casos são ilustrativos e anedóticos. Porém, já fica claro que: i) benefícios direcionados a crianças pobres têm menor chance de serem, e não são, judicializados; e ii) os benefícios recebidos por este grupo possuem valores muito menores e parâmetros mais duros para o recebimento. O mais grave é um terceiro ponto: é justamente nas famílias com crianças que a pobreza se concentra no Brasil.

Camarano et al. (2014) mostram que, no estrato de renda mais pobre, um terço dos indivíduos são crianças, mas apenas 6% tem mais de 60 anos. Por sua vez, no estrato de renda mais alto, somente cerca de 10% são crianças6. A discrepância na legislação e nas decisões judiciais em relação aos benefícios voltados para crianças e para idosos não seria um problema se fosse comum uma configuração familiar em que idosos vivessem com crianças.Entretanto, o que ocorre no Brasil é exatamente o oposto. Tafner, Botelho e Erbisti (2015) mostram que, no caso de benefícios previdenciários, 88% dos idosos beneficiários não possuem crianças ou jovens abaixo de 15 anos em sua família. Apenas 3,5% possuem pelo menos duas crianças.

Tafner (2006) mostra ainda que este fato (a pobreza no Brasil ser desproporcionalmente concentrada nas crianças em relação às outras faixas etárias) quase não encontra paralelo no resto do mundo. Seria razoável, por óbvias diferenças no padrão de consumo, que houvesse distinção nos benefícios direcionados a estes dois grupos demográficos, mas está claro que a magnitude da discrepância acumulada pela legislação e pelo Judiciário é preocupante.

Ainda, os gastos pró-crianças têm evidentemente um potencial maior para transformar o futuro, estando cada vez mais claro o seu importante papel não só em combater a pobreza, mas também a desigualdade e em aprimorar o crescimento da produtividade da economia. Esta é em especial uma bandeira do Prêmio Nobel James Heckman, que defende que políticas para este grupo beneficiam não só as crianças, mas a sociedade como um todo78.

No Brasil, este grupo vulnerável está desamparado por essas decisões e não tem quase nenhuma capacidade de judicializar a questão: crianças não contratam advogados ou batem nas portas da Defensoria Pública, e seus pais, que recebem os benefícios voltados a ela, são pouco estimados pela sociedade (nas últimas eleições apenas 40% da população era a favor do programa9).

Só que este não é o único problema: o foco dos três Poderes nas transferências para grupos mais velhos drena quantidade significativa de recursos, sufocando ações que beneficiam este grupo, como o investimento em saneamento básico, creches e educação básica (além de transferências diretas como o próprio Bolsa Família). Segundo a ANMP, em 2015 o INSS pagava R$ 20 bilhões em benefícios decididos judicialmente. No total do orçamento, o Brasil já gasta 54% apenas com benefícios previdenciários e o BPC.

Este é um debate difícil: é evidente que os entusiastas da judicialização estão bem intencionados e que os critérios legais para concessão dos benefícios são discutíveis. Entretanto, a invasão da competência do Executivo e do Legislativo (mais bem posicionados para avaliar a questão) e a expressiva quantidade de decisões concedendo benefícios sem fonte de custeio podem não ser a melhor maneira de erradicar a pobreza no Brasil, reduzir as desigualdades e promover o crescimento da renda.

É possível que o governo lance mão de medidas administrativas para identificar pagamentos indevidos do BPC a quem não se enquadraria nos critérios de renda, bem como é provável que o benefício seja incluído na reforma da Previdência (transformando o valor recebido proporcional às contribuições do beneficiário ao INSS). No entanto, é incerta a maneira que a judicialização do benefício vai evoluir nos próximos anos: eventuais mudanças legislativas vão dirimir ou estimular a judicialização? Hoje, de cada 4 BPC concedidos, 1 já seria por decisão judicial1011. No total de benefícios mantidos, a estatística varia de 28% no benefício da pessoa com deficiência em Alagoas a 1% no do idoso no Amazonas, segundo o MDSA.

Outras ações civis públicas

Além das dezenas de ações civis públicas sobre a concessão automática do auxílio-doença e aposentadoria por invalidez e os critérios do BPC, outros casos anedóticos de judicialização da Previdência por este instrumento incluem:

  • pagamento de BPC para estrangeiros, proposta pelo Ministério Público Federal em  Rondônia;
  • pagamento do salário-maternidade a índias de tribos específicas, independentemente de contribuição ou da idade mínima de 16 anos para se tornar segurada (adolescentes pobres da cidade não são contempladas, podendo contar somente com o Bolsa Família); e
  • pagamento do salário-maternidade sem comprovação de relação de emprego a desempregadas pelo INSS no Rio de Janeiro.

Causas da judicialização

Marques (2016) relaciona a judicialização, entre outros:

  • ao alto volume de segurados e ao aumento do número de advogados no país (o que alude ao termo “advogado de porta de INSS”);
  • à fraqueza da defesa do INSS;
  • ao número insuficiente de servidores; e
  • a minúcia da Constituição ao tratar de Previdência.

Já Coelho (2014) ressalta a interiorização da Justiça Federal, enquanto o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (2016) aponta também a possibilidade de delegação da competência em ações que envolvam o INSS da Justiça Federal para a Justiça estadual. Marques aponta ainda que apenas cerca de um terço das ações contra o INSS são consideradas improcedentes.

Considerações finais

Tratando de maneira mais ampla do problema da judicialização de políticas públicas, Di Pietro (2014) aponta que a intervenção judicial é feita a partir de casos concretos, que quando somados correspondem a políticas públicas:

feitas sem qualquer planejamento (que o Judiciário, pela justiça do caso concreto, não tem condições de fazer) e sem atentar para as deficiências orçamentárias que somente se ampliam em decorrência de sua atuação, desprovida que é da visão de conjunto que seria necessária para a definição de qualquer política pública que se pretenda venha em benefício de todos e não de uma minoria privilegiada pelo acesso à Justiça.

A MP 739/2016 trouxe à tona a judicialização da Previdência, questão de difícil solução e que carece de mais estudo. É necessário identificar quando existem vácuos que corretamente são preenchidos pelo Judiciário ou quando há invasão de competência da Presidência e do Congresso, mais aptos e legitimados para aprovação das normas que guiam a máquina previdenciária.

Para os próximos anos, não se pode descartar que a judicialização aumente ainda mais, frente ao natural crescimento da demanda por benefícios previdenciários decorrente do envelhecimento da população e das inevitáveis alterações legislativas que serão feitas (reformas), que podem inspirar os operadores do Direito (como no caso do Estatuto do Idoso e o BPC) ou dar vazão ao discurso de “perdas de direitos” típico desse tipo de mudança.

 

Referências

CAMARANO, A, A; KANSO, S.; BARBOSA, P.; ALCÂNTARA, V. S. Desigualdades na Dinâmica Demográfica e as suas Implicações na Distribuição de Renda no Brasil. In: CAMARANO, A. A. (Org.). Novo Regime Demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento?. Rio de Janeiro: Ipea, 2014. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article &id=23975.

COELHO, S. M. A problemática da judicialização dos conflitos previdenciários e a ação civil pública como instrumento processual de efetivação da proteção constitucional previdenciária. Jus Navigandi. Julho de 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30085/a-problematica-da-judicializacao-dos-conflitos-previdenciarios-e-a-acao-civil-publica-como-instrumento-processual-de-efetivacao-da-protecao-constitucional-previdenciaria.

DI PIETRO, M, S. Z. Judicialização de políticas públicas pode opor interesses individuais e coletivos. Consultor Jurídico. 28 de maio de 2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-mai-28/interesse-publico-judicializacao-politicas-publicas-opoe-interesses-individuais-coletivos.

MARQUES, C. Possíveis causas e consequências da judicialização dos benefícios do RGPS. Jusbrasil. Março de 2016. Disponível em:  http://supercassius.jusbrasil.com.br/artigos/316638102/possiveis-causas-e-consequencias-da-judicializacao-dos-beneficios-do-rgps.

MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E AGRÁRIO. Nota Técnica nº 03/2016/DBA/SNAS/MDS. Brasília, 21 de março de 2016. Disponível em: http://conpas.cfp.org.br/wp-content/uploads/sites/8/2014/11/Nota-T%C3%A9cnica-n%C2%BA-03-Judicializa%C3%A7%C3%A3o-do-BPC-2.pdf. TAFNER, P. S. B. (Ed.). Brasil: O Estado de uma Nação, 2006: Mercado de Trabalho, Emprego e Informalidade. Rio de Janeiro: IPEA, 2006. TAFNER, P.; BOTELHO, C.; ERBISTI, R. Debates sobre Previdência: Confusões, Polêmicas Iniciais e Mitos. In: TAFNER, P.; BOTELHO, C.; ERBISTI, R. (Org.). Reforma da Previdência: A Visita da Velha Senhora. Brasília: Gestão Pública, 2015.

________________

1 Considerando a desaposentadoria como revisão de um benefício, e não concessão.

2 http://odia.ig.com.br/economia/2016-07-01/inss-vai-passar-pente-fino-para-detectar-fraudes-em-auxilio-doenca.html.

3 No ritmo atual e apenas com o estoque existente hoje, levariam 50 anos para o INSS reabilitar os que recebem o benefício há mais tempo. Ver: http://noticias.r7.com/economia/metade-dos-segurados-que-recebem-o-auxilio-doenca-do-inss-vao-passar-por-reavaliacao-26072016

4 Ver: http://www.redebrasilatual.com.br/trabalho/2016/07/sindicatos-va-questionar-mp-que-mexe-com-beneficios-da-previdencia.

5 Recurso Extraordinário (RE) nº 567.985/MT, julgado em 2013.

6 Cabe observar que o resultado dos autores, obtido a partir do Censo do IBGE, leva em conta a renda per capita de uma família. Crianças entre os 20% mais pobres estão em famílias pobres, enquanto crianças entre os 20% mais ricos estão em famílias ricas. Assim, não se considera “natural” este resultado, o que poderia ser argumentado caso se interpretasse erroneamente que crianças estão entre os 20% mais pobres simplesmente porque não trabalham.

7 Entre outros: HECKMAN, J. J.; MASTEROV, D. V. The Productivity Argument for Investing in Young Children. 2007. Disponível em: http://jenni.uchicago.edu/human-inequality/papers/Heckman_final_all_wp_2007-03-22c_jsb.pdf. e ALMOND, D.; CURRIE, J. Human Capital Development Before Age Five. Handbook of Labor Economics. Volume 4b. Elsevier, 2010. Disponível em: https://www.princeton.edu/~jcurrie/publications/galleys2.pdf.

8 Co-autor frequente de Heckman no tema, o pesquisador Flávio Cunha aparece como o brasileiro mais citado na academia nos últimos 25 anos. Ver: https://t.co/VvLrwKQFVs.

9 Ver: https://www.academia.edu/13218971/Mapping_and_understanding_perceptions_about_the_
Family_Stipend_based_upon_a_mixed_methods_approach?auto=download
.

10 Alguém tem que Cuidar da Qualidade do Gasto. Valor Econômico, 8 de julho de 2016.

11 Proporção próxima do benefício mais judicializado, a aposentadoria rural, com 30%, segundo o Relatório do Fórum de Debates sobre Políticas de Emprego, Trabalho e Renda e de Previdência Social de 2016.

 

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Como decide um Ministro do STF? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2515&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=como-decide-um-ministro-do-stf https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2515#comments Mon, 18 May 2015 12:33:19 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2515 1. Introdução

O que influencia a decisão de um juiz em julgamento? Várias teorias buscam responder a questão e definir os determinantes do comportamento judicial. Nos Estados Unidos, uma farta literatura empírica – de autoria de juristas, cientistas políticos e economistas – analisa a tomada decisão dos juízes da Suprema Corte do país. As decisões são determinadas pelo texto da lei? Ou os juízes são orientados pela ideologia ao julgar? Que objetivos eles perseguem, e como perseguem esses objetivos? Essas são todas questões fundamentais da literatura de comportamento judicial.

Três teorias de comportamento judicial se destacam: o jurídico, o atitudinal e o estratégico. A primeira se relaciona com uma abordagem normativa e argumenta que o comportamento judicial está restringido pela lei e pelo direito. Essa restrição não existe para os “atitudinalistas”, que sustentam que os juízes votam de acordo com as suas preferências pessoais em um caso, inclusive ideológicas. Por seu turno, na teoria estratégica, um juiz vai adotar estratégias para chegar aos seus objetivos, dado que podem existir várias restrições ao seu comportamento. Por essa visão, que é um desdobramento da teoria de escolha racional (rational choice theory), um juiz consideraria a reação de todos os agentes, dentro ou fora da Corte (ex: Poder Executivo), e adotaria uma conduta estratégica para atingir seus objetivos.

A  proxy de ideologia mais usada nos estudos atitudinais é o partido político do Presidente que indicou o juiz. Os autores que usam essa proxy partem do pressuposto de que um Presidente indica um juiz por afinidade ideológica e, por isso, o partido do Presidente se relaciona com a própria ideologia do indicado.  Exemplo eminente da força da teoria atitudinal é o julgamento recente mais notório da Suprema Corte americana: Bush v Gore. No controverso desdobramento do impasse na recontagem dos votos do estado da Flórida nas eleições presidenciais de 2000, a decisão da corte foi tomada por cinco votos a quatro: os cinco votos vencedores eram de indicados por Presidentes republicanos, e os dois únicos indicados por democratas no tribunal ficaram do lado vencido.

2. Literatura para o STF

Jaloretto e Mueller (2011) testam empiricamente a hipótese de as indicações presidenciais influenciarem as decisões do Supremo Tribunal Federal do Brasil, concluindo que não há evidência empírica de que as decisões do STF sejam influenciadas pelo método de escolha de seus ministros.  Leoni e Ramos (2006) aplicam uma técnica de estimação bayesiana (ideal point estimation) e também concluem que o Supremo é independente, apesar de uma tendência de apoiar cada vez mais o Executivo nos últimos anos estudados. Para eles, os ministros não são representantes dos presidentes que os indicaram. Oliveira (2008) usa uma regressão logística para chegar a um resultado consoante com o de Jaloretto e Mueller. O trabalho não encontra muita evidência para o papel de fatores políticos, e, ao observar um alto de grau de consenso nas votações, atribui um papel fundamental nas decisões para o “profissionalismo”. A autora avalia que este resultado dá “credibilidade e legitimidade” ao Supremo Tribunal Federal.

 3. Um modelo espacial para os votos do STF

De maneira a testar empiricamente a hipótese de que o voto de um ministro se correlaciona com o Presidente que o indicou, é oportuna a utilização de um modelo espacial de votação (NOMINATE). Este é um método de escala multidimensional (multidimensional scaling) para projetar preferências em um espaço. Cada objeto recebe uma localização (coordenada) nesse espaço, de acordo com a similaridade que os objetos possuírem, ficando os menos semelhantes entre si mais distantes nesse espaço. Na aplicação aqui proposta, os objetos são os ministros, as similaridades são observadas através de seus votos e as localizações indicariam possíveis  posicionamentos ideológicos.

Através do padrão que emerge de uma quantidade de votações, o modelo concede coordenadas em um espaço para os votantes. Essas coordenadas dependem da maneira que os votos se correlacionam. Votantes que agem de forma parecida recebem coordenadas de maneira a ficarem espacialmente próximos. Da mesma forma, votantes que agem de forma diversa recebem coordenadas de maneira a ficarem espacialmente distantes.

Dentre as infinitas possibilidades de coordenadas para os votantes em N dimensões, o modelo escolherá, por um estimador de máxima verossimilhança, os posicionamentos mais prováveis, de acordo com os dados.

Foram estimados pontos ideais para os ministros usando os dados dos votos que eles deram nos julgamentos das 756 ações diretas de Inconstitucionalidade entre 2002 e 2012, abrangendo o final do governo FHC, os dois mandatos de Lula e o início do governo Dilma. Como a formação do tribunal não foi uniforme entre junho de 2002 e março de 2012, os pontos foram estimados para diferentes períodos, respeitando as nove composições diferentes que o Supremo teve.

Também foram estimados pontos ideais para o Advogado-Geral da União (AGU) e para o Procurador-Geral da República (PGR). Ambos devem se posicionar em todas as ações diretas de inconstitucionalidade, e a comparação dos seus pontos estimados com os dos ministros enriquece a análise das teorias de comportamento judicial.

Apesar de o artigo 131 da Constituição atribuir ao AGU a função de representar e assessorar a União, a mesma Constituição lhe reserva, no artigo 103, outro papel nas ADI: o de advogado de defesa. Assim, ele é, em tese, obrigado a se manifestar em todos os processos defendendo a norma que é alvo da ação. No entanto,  desde a ADI 1616, julgada em 2001, o AGU ficou desobrigado a defender normas em processos em que a jurisprudência do STF aponte para a inconstitucionalidade. Essa possibilidade tornou a atuação do Advogado-Geral da União mais interessante, porque ele passou a ter maior discricionariedade.

Já o PGR deve apresentar um parecer, que pode ser tanto favorável quanto contrário à ação, atuando como custos legis, o fiscal da lei.  Tal qual acontece com a manifestação do AGU, o parecer do PGR não vincula o voto dos ministros: eles podem seguir ou não seguir esse parecer.

Assim, é possível discutir a validade das principais teorias de comportamento judicial (atitudinal, estratégica e jurídica) com os gráficos estimados, apresentados a seguir. Na apresentação dos pontos ideais, os ministros estão classificados em subgrupos, de acordo com o Presidente que os indicou, conforme legenda no canto direito superior.

Os eixos dos gráficos não representam necessariamente uma divisão esquerda-direita ou liberal-conservador. Como os pontos são estimados de acordo com o padrão de votos dos ministros, a interpretação dos eixos depende de uma análise “subjetiva” das divisões ocorridas nas votações.

Figura 1 – 1º período: 20/06/2002 a 24/06/2003.

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Figura 2 – 2º período: 25/06/2003 a 29/06/2004.

img_2515_2

Figura 3 – 3º período 30/06/2004 a 15/03/2006.

img_2515_3

Figura 4 – 4º e 5º períodos: 16/03/2006 a 20/06/2006, 21/06/2006 a 04/09/2007.

img_2515_4

Figura 5 – 6º período: 05/09/2007 a 22/10/2009.

img_2515_5

Figura 6 – 7º, 8º e 9º períodos: 23/10/2009 a 02/03/2011, 03/03/2011 a 18/12/2011, 19/12/2011 a 08/03/2012.

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Pelo modelo atitudinal, na forma que a proxy de ideologia leva em conta o Presidente responsável pela indicação, era de se esperar que os pontos nos gráficos estivessem dispersos de acordo com as cores (já que a cor de cada ministro foi colocada de acordo com o Presidente que o indicou). Não é isso que acontece: pontos vermelhos (indicações de Lula) estão dispersos pelos gráficos, e pontos de outras cores (indicações de outros Presidentes) também não se dividem dessa forma.

Também em relação ao modelo estratégico é possível fazer algumas considerações a partir dos gráficos. A ideia então de que o Supremo não seria completamente independente por temer contrariar o Executivo perde força quando se compara a posição dos ministros com a do AGU, que representaria o governo federal.

Por fim, como salienta a literatura de comportamento judicial, é muito difícil provar objetivamente que um voto é estratégico ou que é sincero (como no modelo jurídico). É a presença do PGR nos gráficos estimados que permite discutir a validade do modelo jurídico. Se, por hipótese, ele de fato segue o seu papel constitucional de custos legis (“fiscal da lei”) e produz pareceres independentes com objetivos estritamente jurídicos, não perseguindo estratégias, a análise da sua localização em relação aos ministros indicaria a validade do modelo para o STF.

Não é possível concluir, portanto, que algum dos três modelos analisados é mais pertinente do que outro para explicar o comportamento judicial no STF. A aplicação do modelo de votação espacial vai ao encontro de outros trabalhos empíricos para o STF: de que o voto de um ministro pouco se correlacionaria com a ideologia do Presidente que o indicou, contrariamente ao que parte da opinião pública pensa sobre a questão. Uma explicação plausível para isso é que, a partir de sua nomeação, o ministro não depende mais do que Presidente que o indicou: não há qualquer mecanismo de recondução, devido à vitaliciedade do cargo.

4. Considerações finais: breve análise do mensalão

A possibilidade deste “comportamento determinístico” do Ministro de acordo com o Presidente que o indicou, conforme o caso Bush v Gore, encontrou respaldo na atuação de parte dos ministros na Ação Penal 470 (mensalão), conforme a Figura seguinte.

Figura 7 – Pontos ideais estimados – Mensalão

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Sem a pretensão de analisar exaustivamente esse julgamento, as coordenadas na dimensão horizontal (esquerda-direita) se relacionam com uma maior ou menor incidência de votos pró-réu, conforme comparação com o ponto estimado do PGR (que em uma ação penal tem o papel de acusador – neste tipo de processo não há participação do AGU).

Embora ministros indicados por Lula estejam dispersos pelo gráfico, na verdade, a divisão esquerda-direita do gráfico parece opor ministros mais novos na corte (indicados depois da divulgação do escândalo) de ministros mais antigos, à exceção de Fux. Essa divisão, por exemplo, seria consoante com o modelo atitudinal, conforme a percepção da opinião pública, dando ensejo à alteração no processo de escolha dos ministros.

 

Este texto é baseado no paper  “How Judges Think in the Brazilian Supreme Court: Estimating ideal points and identifying dimensionse na dissertaçãoComo Decidem os Ministros do STF: Pontos Ideais e Dimensões de Preferências”.

 

Leituras recomendadas:

Teorias de comportamento judicial:

EPSTEIN, L.; KNIGHT, J., The Choices Justices Make. Washington: CQ Press, 1998. 186 p.

EPSTEIN, L.; KNIGHT, J.; MARTIN, A. The Supreme Court as a Strategic National Policymaker. Emory Law Journal, v. 50, p. 583-612, 2001.

POSNER, R How judges think. Cambrige: Harvard University Press, 2008. 400 p.
SEGAL, J.; SPAETH, H. The Supreme Court and the Attitudinal Model. New York: Cambridge University Press, 1992.

 

Modelo espacial de votação (NOMINATE):

EVERSON, P.; VALLELY, R.; WISEMAN, J. NOMINATE and American Political History: A Primer. VoteView Working Paper, 2009.

POOLE, K.; ROSENTHAL, H. A Spatial Model for Legislative Roll Call Analysis. GSIA Working Paper #5-83-84, 1983.

 

Literatura empírica para o STF:

JALORETTO, M.; MUELLER, B. O Procedimento de Escolha dos Ministros do Supremo Tribunal Federal – Uma Análise Empírica. Economic Analysis of Law Review, v. 2, p. 170-187, 2011.

LANNES, O.; DESPOSATO, S.; INGRAM, M. Judicial Behavior in Civil Law Systems: Changing Patterns on the Brazilian Supremo Tribunal Federal. In: CICLO 2012 DO PROGRAMA DE SEMINÁRIOS CIEF-CERME-LAPCIPP-MESP, 2, Brasília, 14. nov 2012.

LEONI, E.; RAMOS, A. Judicial Preferences and Judicial Independence in New Democracies: the Case of the Brazilian Supreme Court. Disponível em: http://eduardoleoni.com/workingpapers/>. Acesso em: 14 out. 2012.

RIBEIRO, R. Política e Economia na Jurisdição Constitucional Abstrata (1999-2004). Revista Direito GV, v. 8, p. 87-108, 2012.

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Qual o critério para ser miserável no Brasil? (e como o Judiciário agrava a miséria) https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2444&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=qual-o-criterio-para-ser-miseravel-no-brasil-e-como-o-judiciario-agrava-a-miseria https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2444#comments Mon, 23 Mar 2015 13:22:09 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2444 A Constituição Federal de 1988 assegurou ao idoso e ao portador de deficiência que comprovarem não possuir meios de prover a própria subsistência, ou de tê-la provida por sua família, o direito à percepção de um salário mínimo mensal, a título de benefício assistencial (art. 203, V).

Esse é o Benefício do Prestação Continuada, regulamentado pela Lei nº 8.742/93 (Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS), com a atual redação dada pela Lei nº 12.435/11. Nessa norma, estabeleceu-se que se considera “incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo” (art. 20, § 3º).

Desta forma, segundo a LOAS, há dois requisitos que devem ser atendidos em situação de cumulativa ocorrência para que o cidadão faça jus ao benefício assistencial: (i) ser idoso ou portador de deficiência; e (ii) encontrar-se em situação de miserabilidade econômica, ocorrente quando a renda familiar per capita for inferior a ¼ do salário mínimo nacional.

Já se discutiu neste site o custo do Benefício de Prestação Continuada no texto “Qual o programa assistencial mais caro do Brasil? (Não é o Bolsa Família)”, no qual se mostrou que o BPC é o programa social que mais onera os cofres públicos, superando inclusive o dispêndio com o Bolsa Família. Estima-se que em 2015 o gasto será de quase R$ 42 bilhões, havendo ainda questionamento quanto à sua eficiência, pois, em relação à pobreza, o BPC não é considerado o instrumento mais efetivo para reduzi-la.

Inicialmente, cumpre salientar que este padrão objetivo de aferição de miserabilidade foi estabelecido por Lei e, portanto, foi alvo de aprofundada reflexão no Poder Executivo e no Legislativo, onde se entendeu que a concessão do benefício àqueles que comprovassem renda familiar inferior a ¼ do salário mínimo não oneraria demasiadamente o erário, e que a instituição dessa política pública, tal como preconizado pelo constituinte, seria salutar, nos moldes desenhados pela Lei nº 8.742/93.

Seguindo os ditames legais, a administração pública passou a negar a concessão do benefício assistencial ao idoso ou deficiente que integrava família com renda per capita superior ao limite máximo legalmente estabelecido. Muitas dessas pessoas recorreram ao Poder Judiciário, pleiteando o estabelecimento do benefício, a despeito do não preenchimento de um dos requisitos.

A orientação predominante nos Tribunais Regionais Federais firmou-se pela possibilidade da concessão do benefício assistencial, ainda que a renda familiar per capita superasse ¼ do salário mínimo, desde que houvesse outros elementos que indiciassem a situação de miserabilidade econômica (e.g. necessidade de comprar remédios caros não fornecidos pelo SUS, custear tratamento médico especializado, contratar enfermeira).

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, consolidou-se que “A limitação do valor da renda per capita familiar não deve ser considerada a única forma de se comprovar que a pessoa não possui outros meios para prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, pois é apenas um elemento objetivo para se aferir a necessidade, ou seja, presume-se absolutamente a miserabilidade quando comprovada a renda per capita inferior a 1/4 do salário mínimo1.

Em 1998, o STF, divergindo do entendimento jurisprudencial prevalecente, reconheceu a constitucionalidade do critério legal matemático estabelecido na LOAS, ao julgar improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 1.232/DF. Naquela oportunidade, consignou o Min. Nelson Jobin que “compete à lei dispor sobre a forma de comprovação. Se a legislação resolver criar outros mecanismos de comprovação, é problema da própria lei. O gozo do benefício depende de comprovar na forma da lei, e esta entendeu de comprovar dessa forma [1/4 do salário mínimo per capita]. Portanto, não há interpretação conforme possível, porque, mesmo que se interprete assim, não se trata de autonomia de direito algum, pois depende da existência da lei, da definição2.

Assim, naquela ocasião, o Supremo Tribunal Federal foi deferente à decisão dos Poderes Legislativo e Executivo.

Todavia, em 2013, a própria Corte Suprema reviu seu posicionamento quando do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) nº 567.985/MT. Os ministros passaram a admitir que outros critérios fossem utilizados pelos magistrados para aferir a miserabilidade econômica dos postulantes ao benefício assistencial.

O fundamento da reversão jurisprudencial (overruling) foi, em síntese: (i) que o parâmetro objetivo legalmente estabelecido poderia acarretar a exclusão do direito assistencial a pessoas miseráveis, que realmente precisariam do auxílio estatal; e (ii) que, “Paralelamente, foram editadas leis que estabeleceram critérios mais elásticos para a concessão de outros benefícios assistenciais, tais como: a Lei nº 10.836/2004, que criou o Bolsa Família; a Lei nº 10.689/2003, que instituiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação; a Lei nº 10.219/01, que criou o Bolsa Escola; a Lei nº 9.533/97, que autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro a Municípios que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas”.

Ao desconsiderar a escolha política (1/4 do salário mínimo), o STF acabou exercendo, obliquamente, controle de decisões técnicas de órgãos políticos (Presidência da República e Casas do Congresso Nacional).

Desde essa decisão paradigmática, os Tribunais, de forma amplamente majoritária, se não unânime, têm aceitado outras provas de miserabilidade, reconhecendo o direito à percepção de um salário mínimo legal mesmo para aqueles que auferem renda familiar per capita superior a ¼ do salário mínimo3.

Já se discutiu também neste site qual é o ponto ótimo de intervenção do Poder Judiciário nas políticas públicas, considerando o bem-estar da sociedade (Qual a quantidade ótima de intervenção judicial nas políticas públicas?). No presente caso, relativo à definição do conceito de miserabilidade, não há negar que a intervenção do Judiciário colaborou para colocar o BPC como o programa assistencial mais caro do País. Alargam-se os benefícios vinculados aos direitos sociais, mas não se prevê uma harmonização entre esses direitos e os recursos disponíveis para a concretização das políticas públicas (regra da contrapartida), tampouco com a necessidade de aplicação dos escassos recursos em outras finalidades que poderiam gerar maior bem-estar à sociedade.

Para agravar a situação, consagrou-se situação de insegurança jurídica que apenas sobrecarrega o próprio Judiciário. Isso porque a administração deve sempre pautar sua atuação em lei. Assim sendo, está impedida de apreciar se, no caso, apesar da renda familiar superar ¼ do salário mínimo, o postulante está em situação de miserabilidade (uma vez que a lei não lhe confere tal discricionariedade e, ainda que assim não fosse, a autoridade administrativa possui limitados instrumentos para apurar a condição social e econômica do requerente). Logo, só resta ao pretenso beneficiário recorrer ao Judiciário e, em realidade, por vezes nem mesmo ele sabe se faz jus ao benefício, já que a aferição da miserabilidade passou a ser bastante flexível e subjetiva.

Em outras palavras, o STF permitiu que mais pessoas sejam enquadradas como miseráveis sem realizar prévio estudo técnico quanto ao impacto orçamentário de sua decisão. Indo além, desconsiderou o critério objetivo traçado pelos Poderes Executivo e Legislativo. Tal proceder, que poderia ser qualificado por alguns como “ativista”, impõe um enorme custo social que suga considerável alocação orçamentária para atender às demandas judiciais, restando menos recursos para o desenvolvimento de políticas públicas que poderiam atender à sociedade de forma generalizada e criando mais obstáculos para o desenvolvimento econômico.

___________

1REsp (Recurso Especial) nº 1.112.557/MG, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, STJ – 3ª Seção, DJe 20/11/2009.

2ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) nº 1.232-1/DF, Rel. Min. Ilmar Galvão, STF – Pleno, julgado em 27/08/1998.

3Nesse sentido, ver TRF-1, AC 180146120134019199, DJe 16/10/2013; TRF-2, AC/RE 201402010065423, DJe 09/10/2014; TRF-3, AC 00337173720124039999, DJe 13/09/2013; TRF-4 AG 200104010887366; e TRF-5, REO 00034470620104058201.

 

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Qual a quantidade ótima de intervenção judicial nas políticas públicas? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2123&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=qual-a-quantidade-otima-de-intervencao-judicial-nas-politicas-publicas https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2123#comments Mon, 10 Feb 2014 11:31:13 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2123 Quando uma empresa maximiza seu lucro, o ponto ótimo é aquele em que o custo marginal (custo para produzir uma unidade adicional do produto) e a receita marginal (receita obtida com a venda de uma unidade adicional) se igualam. Isso porque, para a empresa, é bom produzir mais bens até o momento em que o benefício desse bem adicional compense o custo de produzi-lo.

Pode-se adaptar esse raciocínio para o Sistema Judicial de forma a se determinar qual será o ponto ótimo de intervenção do Poder Judiciário nas políticas públicas, considerando o bem-estar da sociedade.

Parte-se do pressuposto de que a intervenção judicial irá agregar bem-estar por meio do incremento de utilidade dos membros da sociedade. Mede-se a intervenção judicial pelo valor das causas concedidas a favor dos litigantes e em detrimento da Administração Pública, no bojo de alguma prestação social a cargo do Estado. O benefício marginal da intervenção é o incremento na utilidade total por consequência do gasto de um Real a mais decorrente de ordem judicial. Por outro lado, o custo marginal da intervenção é a diminuição no bem-estar social por conta do gasto de um Real a mais oriundo de algum mandamento do Judiciário. O gráfico a seguir ilustra a ideia.

Gráfico I – Quantidade socialmente ótima de intervenção judicial

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A reta denominada BM retrata o benefício marginal para a sociedade resultante da intervenção do Judiciário em uma determinada política pública. Note que a linha é decrescente. Isso denota que o incremento no bem-estar social diminui à medida que a intervenção judicial nas políticas públicas aumenta. Tal tendência decorre do princípio da utilidade marginal decrescente. Parece razoável supor que quanto mais recursos o Judiciário determinar que a Administração repasse aos cidadãos, menor será o bem-estar adicional promovido pelo repasse.

Para facilitar o entendimento, pode-se exemplificar o benefício marginal da intervenção judicial decrescente da seguinte maneira: imagine um hospital público que possui uma unidade de tratamento intensivo (UTI) com uma quantidade determinada de leitos disponíveis. Se a capacidade da UTI está ociosa e uma decisão judicial determina a internação de um cidadão, o benefício marginal da atuação judicial é elevado, pois o benefício para esse cidadão é grande e não há prejuízo para os pacientes que já estavam lá. No entanto, se a UTI está lotada e um juiz determina a internação de mais um cidadão, o bem-estar social será acrescido pelo benefício que esse último internado receberá individualmente, mas cairá pelo efeito negativo que promoverá sobre os demais pacientes que já estavam lá (falta de equipamentos para todos, falta de médicos e enfermeiros em quantidade suficiente para atender o excesso da lotação na UTI, etc.). Se as ordens de internação continuarem a ocorrer muito além da capacidade de atendimento da UTI, o benefício marginal da intervenção judicial pode até ser negativo, pois além da falta de equipamentos e pessoal, há riscos de contaminação, de infecção hospitalar e mesmo de morte de pacientes, uma vez que o sistema de saúde não comportava toda aquela demanda.

Outro exemplo que ilustra o benefício marginal decrescente da intervenção judicial pode ser dado na área de educação. É comum haver decisões judiciais em que uma escola pública é obrigada a matricular um aluno, mesmo não havendo mais vagas. Nesse caso, o benefício marginal dessa decisão do juiz será pequeno, podendo até ser negativo, pois trará um ganho para o aluno extra que foi atendido, mas prejudicará todos os demais que já estavam na escola (a sala ficará mais apertada, o professor não conseguirá dar a atenção devida a todos, etc.).

Discutido o benefício da atuação do Judiciário, há que se tratar dos custos. A reta designada por CM no Gráfico I representa o custo marginal da intervenção judicial. No caso dessa reta, ela apresenta um comportamento ascendente. Isso acontece porque, nas primeiras intervenções, é fácil para o Poder Executivo atendê-las, necessitando pouca mobilização da Administração Pública. No entanto, à medida que cresce a quantidade de intervenção, o custo social aumenta, pois exige mais logística da Administração Pública, bem como maior alocação orçamentária para atender às demandas judiciais, restando menos recursos para o desenvolvimento de políticas públicas que atendam à sociedade de forma generalizada.

Tal situação é assim revelada por conta de o ordenamento jurídico estabelecer um caráter prestacional aos direitos sociais, mas não prever uma harmonização entre esses direitos e os recursos disponíveis para a concretização das políticas públicas.

Um exemplo desse fato encontra-se na discussão dos subsídios dados para manter baixo o preço das passagens do transporte público nas cidades brasileiras. Quanto mais subsídios, mais custos para a administração pública e para a sociedade, pois o recurso terá que ser tirado de outra parte do orçamento ou terá que haver aumento da arrecadação tributária, causando desvios alocativos e mais custos aos contribuintes.

No encontro da reta do benefício marginal com o  custo marginal, há o ponto ótimo que ilustra o valor ideal de interferência do Poder Judiciários nas políticas públicas. No Gráfico I, este ponto está reprentado por I*.

Até atingir o valor I*, é recomendável que o Poder Judiciário intervenha, pois há uma redução da ineficiência social. No entanto, qualquer intervenção além de I* irá trazer menos benefícios sociais do que o custo associado para executá-la e, portanto, o Judiciário está piorando a alocação de recursos.

Na prática não é simples mensurar esses custos e benefícios. Todavia, os magistrados devem ter em mente que suas decisões implicam não apenas benefícios para os reclamantes, mas também custos para a sociedade.  Nesse sentido, cabe mencionar o dilema entre eficiência e legalidade, já discutido em outro  texto neste site (“As leis podem atrapalhar a eficiência?” )

Tanto o Poder Judiciário quanto o Tribunal de Contas da União já acenam para a possibilidade de afastamento pontual de escolhas normativas que se reputem ineficientes, desde que, harmonizado com o interesse público, sejam asseguradas (i) a inocorrência de prejuízo ao erário; (ii) a boa-fé e a probidade dos agentes envolvidos; (iii) a ausência de violação ao núcleo essencial dos demais direitos e garantias fundamentais (a título de exemplo, o contraditório, a ampla defesa, a duração razoável do processo, a isonomia, etc); e (iv) a obtenção de resultado prático com preponderância considerável de benefícios sobre os custos, tanto para a Administração, como para os administrados.

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Como as Leis e o Poder Judiciário afetam a Economia? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=33&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=como-as-leis-e-o-poder-judiciario-afetam-a-economia https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=33#comments Sun, 13 Feb 2011 23:58:58 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=33 As leis e as decisões judiciais, juntamente com os instrumentos que obrigam todos os cidadãos a cumpri-los (polícia, judiciário, fiscalização sanitária, Receita Federal, agências reguladoras, etc. ), fornecem um conjunto de incentivos aos cidadãos e empresas, que têm reflexos sobre a eficiência das transações econômicas. Uma legislação que estabeleça impostos muito elevados, por exemplo, representa um incentivo à sonegação. Uma adequada lei de patentes, que proteja as inovações tecnológicas e gere lucros aos inventores, por sua vez, será um incentivo para o desenvolvimento científico.

Há uma série de situações econômicas que não podem ser deixadas ao livre arbítrio do mercado, precisando ser reguladas por lei e que, por isso, ficam sob a influência das leis e das instituições citadas acima. Por exemplo: é preciso impor regras e penalidades para que as fábricas não lancem nos rios e mares os dejetos gerados durante o processo produtivo; é preciso criar impostos para financiar atividades que são importantes para a sociedade, mas que não dão lucro e, por isso, não são oferecidas no mercado privado (construção de estradas, saneamento básico, saúde preventiva, preservação de florestas); é preciso oferecer a toda a sociedade alguns bens e serviços que, se deixados ao mercado, seriam acessíveis apenas às populações de maior renda (educação, saúde); é preciso evitar a formação de monopólios e cartéis que prejudiquem a concorrência e tornem os produtos mais caros e de menor qualidade. Tais fenômenos são conhecidos pelo termo genérico “falhas de mercado”, que se refere a situações em que o livre funcionamento do mercado leva a situações socialmente indesejáveis.[1]

Na prática, as leis e instituições destinadas a corrigir falhas de mercado têm diversos graus de qualidade. Tanto podem ser eficazes na redução das falhas de mercado, quanto podem introduzir distorções adicionais na economia. Nessa situação, há leis editadas com o objetivo de congelar preços, prejudicando o equilíbrio natural do mercado. O Plano Cruzado é um exemplo típico, pois, ao promover o congelamento de preços para combater uma hiperinflação, não permitiu o ajuste dos valores de mercadorias sujeitas à sazonalidade, gerando um desequilíbrio de preços. Como resultado disso, vieram o desabastecimento de bens (ninguém se dispunha a vender com prejuízo ou perder oportunidades de lucro) e o surgimento de ágio para compra de produtos escassos, principalmente os que se encontravam na entressafra, como carne e leite.

Outro ponto importante na relação entre a área jurídica e a econômica é o “direito de propriedade”, conceito jurídico que se refere ao fato de que o proprietário é livre para usar seus bens como quiser (desde que dentro da lei) sem a interferência ou intromissão de outros. Direitos de propriedade que não são perfeitamente seguros desestimulam os investimentos, reduzindo o potencial de crescimento da economia. Produtores rurais que se sintam sob ameaça de invasão de suas terras por movimentos de “sem-terra” reduzirão os investimentos em infraestrutura e melhoria da terra, pois temem o risco de perder esse investimento no caso de uma invasão. Países que costumeiramente confiscam investimentos feitos por estrangeiros ou não pagam suas dívidas externas se tornam perigosos para os investidores internacionais e deixam de ser atrativos para empresas que poderiam ali se instalar, produzir e gerar empregos.

O Teorema de Coase[2] ensina que, se não houver custos de transação, basta que os direitos de propriedade sejam bem definidos para que uma negociação entre os interessados aconteça e os recursos sejam utilizados da forma mais eficiente possível. Os custos de transação são os gastos necessários à realização de um negócio no mercado, como pagamento de taxas, advogados, corretores, cartórios e outros envolvidos na transação. Assim, para a literatura de Análise Econômica do Direito, as leis deveriam ser elaboradas de forma a remover os obstáculos à negociação privada, reduzindo ao máximo os custos de transação para melhorar o desempenho da economia. Essa deveria ser uma das principais funções das instituições de forma geral (regramentos jurídicos, tribunais, etc).

Também relevante é o impacto da ação do Poder Judiciário na economia. Uma importante distorção da Justiça brasileira consiste no fato de que as disputas de baixo valor não chegam às mãos dos juízes, pois, se chegassem, as custas processuais e os honorários advocatícios consumiriam o crédito a receber. Esse problema foi resolvido em parte pelos juizados de pequenas causas, mas o problema ainda persiste. Em regra, a Justiça só é acionada se o valor do litígio for alto ou quando o litigante possui uma estrutura jurídica permanente, como é o caso das grandes empresas. Tal situação coloca em desvantagem a camada mais baixa da sociedade, que vê sua pior condição socioeconômica ser perpetuada pela maneira de funcionar das instituições.

Além disso, esse alto índice de exclusão judicial tem efeitos sobre os contratos de crédito e os contratos trabalhistas, pois, como as empresas sabem da baixa possibilidade de recorrer à Justiça, não se preocupam com a formalização dos negócios, ou seja, existe um incentivo para o trabalho precário (informalidade no mercado de trabalho) e para empréstimos que passam ao largo do sistema financeiro tradicional (agiotagem).

Outro problema é a morosidade do Poder Judiciário. Em média, demora-se anos para que se consiga uma decisão final. Essa dificuldade de receber créditos na Justiça afeta diretamente a conjuntura econômica, pois propicia uma taxa de juros mais elevada. Como não há segurança judiciária de que o crédito será recuperado rapidamente, a tendência é que já se inclua na taxa de juros um adicional para cobrir as perdas com créditos não pagos. Isso tem consequências extremamente negativas para a economia: diminuição dos investimentos, crédito mais caro ou, ainda, restrição ao crédito.

O problema não é privilégio da recuperação de contratos de crédito. A mesma situação se repete em litígios da área cível como pagamento de verbas indenizatórias.

No entanto, avanços estão acontecendo. Um exemplo atual pode ser encontrado no mercado de locação de imóveis. Foram promovidas alterações na Lei do Inquilinato com a publicação da Lei 12.112, de 2009. O objetivo foi conceder mais segurança aos proprietários dos imóveis urbanos. Depois dessa mudança na legislação, é mais habitual que os locadores tenham sucesso rápido em ações de despejo por falta de pagamento do aluguel.  Essa sistemática traz mais tranquilidade ao mercado e segurança para quem investe em imóveis para locação, que resulta em maior oferta de imóveis e redução do valor médio do aluguel, beneficiando o inquilino que paga em dia suas obrigações.

Em conclusão, uma política de desenvolvimento nacional não passa apenas pelas variáveis macroeconômicas como inflação, juros ou taxa de investimento. É importante considerar também o impacto da legislação e do funcionamento das instituições sobre o comportamento de indivíduos e empresas. A análise econômica do direito afeta áreas tão distintas quanto a flexibilidade do mercado de trabalho, o aperfeiçoamento do mercado de crédito e do sistema financeiro, a melhoria da tributação e do ambiente de negócios. Todos esses tópicos dependem de aprovação de leis. Elas é que, se bem desenhadas, fornecerão os incentivos corretos para que indivíduos e empresas, ao buscarem o melhor para si, também atuem de forma eficiente.

Por fim, cabe enfatizar a necessidade de redução do custo de resolução de conflitos. Isso se consegue com uma reforma do Poder Judiciário. Tal aprimoramento vem sendo realizado paulatinamente, como os novos Códigos de Processo Penal e Civil aprovados recentemente no Senado.

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Para ler mais sobre o tema:

Referências específicas para o tema “falhas de governo”:

Arvate, P., Biderman, C. (2006) Vantagens e desvantagens da intervenção do governo na economia. In: Mendes, M. (Org.) Gasto público eficiente: 91 propostas para o desenvolvimento do Brasil. Instituto Fernand Braudel/Topbooks. São Paulo, p. 45-70.

Andrade, E. (2004) Externalidades. In: Arvate, P., Biderman, C. (Orgs.) Economia do setor público no Brasil.FGV/Campus. São Paulo., p. 16-33

Stiglitz, J. (1999) Economics of the public sector. W.W. Norton & Company, 3rd edition. Capítulos 1 e 4.

Referências para “análise econômica do direito”:

Cooter, Robert; Ulen, Thomas. (2010). Direito & Economia, 5ª edição. Porto Alegre: Bookman.

WORLD BANK DOCUMENT. Brazil, Judicial performance and private sectors impacts: findings from World Bank sponsored research. Report 26261- BR. July, 1, 2003.

Zylbersztajn, Decio; Sztajn, Rachel. (2005). Direito & Economia: Análise Econômica do Direito e das Organizações. Rio de Janeiro: Elsevier.


[1] O leitor pode conhecer mais sobre o tema consultado a bibliografia sugerida ao final do texto.

[2] Ronald Coase – Prêmio Nobel de Economia em 1991.

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