investimento público – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Sat, 19 Mar 2022 13:10:45 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Investimentos também crescem muito pouco https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3597&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=investimentos-tambem-crescem-muito-pouco Sat, 19 Mar 2022 13:10:23 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3597 Investimentos também crescem muito pouco

 

Em linha com o fraco desempenho da economia, números da Formação Bruta de Capital Fixo também estão fragilizados.

 

 Por Roberto Macedo*

 

Prossigo minha pregação de que a situação da economia brasileira é muito pior do que se vê no noticiário e nas discussões sobre o assunto. Aliás, o fraco crescimento da economia não é sequer discutido seriamente pelo Congresso Nacional, ao qual também caberiam providências para tratar dela, e o Executivo passa por uma fase de desgoverno populista e eleitoreiro, que tampouco dá a devida atenção ao crescimento.

Começarei com um retrato muito feio da economia, com o propósito de difundi-lo e, quem sabe, despertar reações em contrário da sociedade e do governo. Em seguida, passarei aos investimentos em Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF), como em máquinas e equipamentos, que têm grande impacto sobre o crescimento e que também, em linha com o fraco desempenho deste, estão fragilizados.

Olhando a economia desde a década de 1900, os dados mostram inicialmente um crescimento médio do PIB perto de 4,5% ao ano, e alcançando a expressiva taxa de 8,8% na década de 1970, tornando-se, então, uma das economias que mais cresciam no mundo.

Contudo, a partir da década de 1980 e até a década de 2010, que vai até 2019, este crescimento despencou para uma taxa média anual de apenas 2,4%. Esta década de 2010 teve um crescimento médio de apenas 1,4% e foi a de pior desempenho de toda a série de dados, que cobriu 12 décadas(!).

A década de 2020 já começou pior ainda, pois, principalmente pelo efeito da pandemia de covid-19 nos seus dois primeiros anos, o PIB teve um crescimento anual médio de ínfimo 0,35%, que não cobriu sequer o crescimento da população, estimado em 0,7% ao ano, caindo, assim, o PIB per capita. Este período pós 1980 pode ser visto como de estagnação, que meu dicionário define como uma economia crescendo abaixo do seu potencial. Como muita gente, acredito que com uma boa arrumação o Brasil poderia crescer bem mais. Com este desempenho desde 1980, o Brasil é tido como um país que caiu na chamada armadilha da renda média.

Além dessa desastrosa estagnação, desde 2014 o Brasil entrou numa depressão – algo mais longo do que as duas recessões ocorridas neste período –, e essa depressão ainda não foi superada, pois até hoje o PIB não voltou ao valor que tinha naquele ano (!). Portanto, este retrato da economia em estagnação e depressão é algo realmente lamentável, mas ainda não despertou um movimento em sentido contrário do País e de seu governo. É preciso que a sociedade perceba este desastre, cobrando providências dos governantes e dos políticos em geral.

Passando aos investimentos em FBCF, eles são importantes para o crescimento porque aumentam a oferta de bens e serviços, ao mesmo tempo que estimulam a sua demanda ao expandirem o emprego e o pagamento de salários e de lucros.

O mais recente relatório do IBGE sobre as contas nacionais trimestrais – do quarto trimestre de 2021 – apresenta um gráfico em que a FBCF aparece como porcentagem do PIB desde 2000, começando com o valor de 18,3% e alcançando 20,9%, o valor máximo de todo o período, em 2013. A partir daí, passou a cair até 14,6%, em 2017, ficando um pouco acima disso nos dois anos seguintes. Contudo, em 2020 e 2021, surpreendeu ao passar para 16,6% e 19,2%, respectivamente, de forma inconsistente com o crescimento do PIB neste período, que, conforme mostrado acima, apresentou taxas muito baixas.

Buscando uma explicação, consultei o economista Cláudio Considera, da FGV-Rio, conhecedor reconhecido das Contas Nacionais, que me sugeriu um artigo recente do economista Gilberto Borça Jr. O texto, apropriadamente intitulado Investimento em alta no Brasil, mas nem tudo que reluz é ouro, esclareceu que cerca de 40% do aumento da porcentagem da relação FBCF/PIB entre 2018 e 2021 foram devidos ao crescimento dos preços dos bens de capital acima do índice de preços do PIB e à internacionalização contábil de plataformas de exploração de petróleo, de alto custo, até então contabilizadas no exterior. Estes 40% não significaram, assim, um crescimento real da FBCF.

Cabe examinar, também, o investimento público, componente do investimento total, pois sua queda foi mais forte. No site do Observatório de Política Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da Fundação Getúlio Vargas (Rio), há o gráfico de uma série de 1947 a 2020 deste investimento como porcentagem do PIB. Depois de subir, desde o início da série, de perto de 3% do PIB para o recorde de cerca de 10%, em 1974 – na década de 1970, a de maior crescimento do PIB em 12 décadas, conforme apontado acima –, ele foi caindo até chegar a perto de apenas 2% do PIB, em 2020, revelando-se como um dos fatores que levaram à armadilha da renda média.

Para o leitor ter uma ideia da importância da taxa de investimento em FBCF relativa ao PIB, no período em que a China crescia perto de 10% ao ano, essa taxa chegou próxima de 45% ao ano. O Brasil jamais chegaria a tanto, mas ao menos poderia começar com a meta de 25% ao ano.

 

* Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 17 de março de 2022.

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Mais sobre o plano CASGIP https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3580&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=mais-sobre-o-plano-casgip Fri, 04 Mar 2022 02:06:36 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3580 Mais sobre o plano CASGIP

Caberia perguntar a Bolsonaro e aos presidentes das Casas do Congresso o que fizeram para o País crescer economicamente.

 

 Por Roberto Macedo

 

Meu artigo passado, neste espaço, tratou de um plano de governo diferente, porque fiquei frustrado com a fragilidade normativa e executiva de planos apresentados por candidatos em campanhas anteriores. Planos como estes devem reaparecer nos debates da eleição presidencial deste ano, e, assim, optei por outro plano, a ser cobrado de governantes e de políticos em geral.

Adotei para ele a sigla CASGIP, que sintetiza seus pilares e facilita referências a ele, inclusive para o interessado se lembrar do seu significado. Também voltarei a ele futuramente neste espaço, pois carece de esclarecimentos adicionais a alguns já apresentados a seguir.

A sigla vem dos nomes dos seis pilares do plano, com letras maiúsculas apontando o aspecto central de cada um deles, que são: Crescimento econômico mais acelerado, Ambientalmente sustentável, Socialmente inclusivo, com efetiva Governança do Estado, maior inserção Internacional do Brasil e intensa Participação da sociedade na cobrança de governantes e políticos.

Note-se a presença das letras ASG na sigla do plano, o que é uma tentativa de trazer os temas da conhecida plataforma ESG para o âmbito nacional, pois originalmente ela é limitada a empresas e investidores. O E desta plataforma representa o environment, ou meio ambiente, em inglês. As outras duas letras de ESG se referem a termos quase idênticos nas duas línguas.

Abordarei, agora, a questão do crescimento econômico. Sem ele, não haverá recursos para avançar nos quatro pilares no centro da sigla. O impacto sobre esse crescimento deveria ser parâmetro de decisões sobre políticas públicas. Ele depende fundamentalmente de mais investimentos em capital produtivo, o que gera empregos, renda e tributos, ou recursos para o setor público. E há o investimento privado e o investimento público, do qual tratarei a seguir.

À minha frente tenho um gráfico do investimento público como porcentagem do PIB no período 1947-2020, elaborado pelo Observatório de Política Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da Fundação Getúlio Vargas (FGV), do Rio de Janeiro.

Sobre 2020, falou-se muito de uma recuperação em V do PIB dentro do ano, mas ficou nisso, pois ao longo de 2021 o crescimento foi muito fraco. Este gráfico do investimento tem, também, um formato de V, mas invertido, pois começa com uma taxa perto de 3%, em 1947, e sobe até alcançar 10% na segunda metade da década de 70 do século passado – coincidentemente a década em que o PIB brasileiro mais cresceu no mesmo século. Depois disso, a linha do gráfico cai, até voltar a cerca de míseros 2%, em 2020.

Esse investimento público não é só federal, mas abrange as demais esferas de governo. E a relação dele com o crescimento econômico é evidente, carecendo de medidas para que volte a crescer.

Quanto a isso, é preciso atuar contra a frágil governança do governo federal e do setor público em geral. Ela sucumbiu ao populismo ao acomodar um amplo leque de interesses políticos e econômicos que prejudicou o Orçamento. Este, ainda que ampliado pelo forte aumento da carga tributária, passou a apresentar déficits primários que excluem o pagamento de juros, e agora, com o aumento da Selic, esses juros voltaram a preocupar.

O que fazer? É preciso passar um pente-fino nas despesas públicas, seguindo prioridades, em particular a de abrir espaço para investimentos e a de criar confiança na gestão fiscal. Exemplo de medida nesta linha seria uma reforma administrativa que buscasse aumentar a eficácia e a eficiência do setor público, como ao combater supersalários e “indenizações” autoconcedidas, como ocorre no Judiciário.

Alguma elevação da carga tributária será necessária, e chamo a atenção para os chamados gastos tributários, que reduzem a tributação de diversos grupos econômicos e sociais. Como as demais despesas, esses gastos tributários precisam ser revistos, cabendo também aí um pente-fino. Falta, ainda, transparência quanto a esses incentivos, como no caso dos que reduziram encargos sociais para expandir o emprego, pelo que sei, sem que isso fosse cobrado dos setores beneficiados.

E há questões cujo conhecimento é muito restrito, mas que também merecem atenção. Por exemplo, no dia 27 passado, o renomado economista Affonso Celso Pastore, num artigo neste jornal, sugeriu a tributação de ganhos auferidos pelos “fundos fechados e offshores, taxando seus proprietários com a alíquota do Imposto de Renda igual à de todos os demais rendimentos”. Poucos sabem o que são esses objetos da proposta de Pastore.

Como fica? O governo e a classe política não dão bola para propostas como esta, pois a cabeça de ambos é outra, voltada para seus interesses pessoais – em particular a reeleição – e de grupos que os apoiam. Por isso é preciso que a sociedade passe a cobrar de governantes e de políticos um plano adequado.

Por exemplo, caberia perguntar ao presidente Bolsonaro e aos presidentes da Câmara e do Senado: o que já fizeram pelo efetivo crescimento econômico do País?

 

Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 3 de março de 2022.

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Quanto custa um estádio de futebol? Ou: ainda temos tempo de economizar 42 Maracanãs https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1883&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=quanto-custa-um-estadio-de-futebol-ou-ainda-temos-tempo-de-economizar-42-maracanas https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1883#comments Wed, 26 Jun 2013 15:56:09 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1883 Apesar do caráter difuso dos protestos populares que tomaram conta do país neste mês de junho de 2013, um ponto parece claro: a população está indignada com as prioridades adotadas pelos governantes. Tomou-se consciência de que os governos federal, estaduais e municipais preferiram construir estádios de futebol a investir na superação dos nossos crônicos problemas de transporte urbano ou na melhoria da oferta de serviços de saúde e educação.

A indignação não é apenas com a inversão de prioridades, mas também com os custos totais dos estádios, que levantam suspeitas acerca de superfaturamento e corrupção.

Será que os estádios brasileiros realmente custaram caro, quando comparados com outros construídos para copas do mundo anteriores? Essa comparação pode ser feita consultando-se a base de dados da ONG Play the Game (www.playthegame.org), uma entidade com sede na Dinamarca, cujo objetivo é fortalecer a ética no esporte. O critério básico de custo utilizado por essa entidade é o custo total dos estádios dividido pela sua capacidade (custo por assento).

A Tabela 1 compara o custo médio por assento dos seis estádios brasileiros já concluídos e dos estádios utilizados nas Copas de Japão/Coréia do Sul, Alemanha e África do Sul. Observa-se que o custo por assento da Copa brasileira ficou 10% acima do observado na Copa da África do Sul e 14% superior ao da Copa de Japão e Coréia do Sul. Há grande diferença em relação à Alemanha, cujo custo de estádios foi quase 40% menor que o brasileiro.

Ainda que diferenças no poder de compra das moedas possa afetar essa comparação, é surpreendente que o Brasil não tenha gasto muito mais que Japão e Coréia do Sul, que são países muito mais produtivos e com processo de engenharia mais avançado que o Brasil. Todos aqueles que conhecem o Brasil esperariam preços muito acima da média internacional, não só devido a uma percepção de alta corrupção e ineficiência, como também pelo fato de que o custo de investir no Brasil é elevado1.

A grande diferença entre a Alemanha e as outras sedes de Copas se deve ao fato de que aquele país já dispunha, antes de sua Copa, de diversos estádios que atendiam ao padrão da FIFA, e que necessitavam de apenas alguns ajustes. Isso reduziu fortemente os custos de reforma e construção. Para a Copa brasileira todos os 12 estádios foram construídos do zero ou fortemente reformados. Um exemplo oposto ao do Brasil foi o da Copa dos EUA, para a qual não foi preciso construir um estádio sequer, pois bastou adaptar os já existentes campos de futebol americano.

Paira a dúvida se todos os estádios brasileiros realmente precisavam ser totalmente reconstruídos, ou se faltou capacidade de negociação de nossas autoridades junto à FIFA, no sentido de flexibilizar exigências. Principalmente no caso do Maracanã, que passou por ampla reforma há poucos anos.

Tabela 1 – Custo Médio dos Estádios das Últimas Quatro Copas do Mundo (US$ por assentos)

Fontes:www.playthegame.org (estádios internacionais) e Portal da Transparência da Copa 2014. Elaborado pelos autores.
(*) Seis estádios já concluídos em junho de 2013 e utilizados na Copa das Confederações.
(**) Os valores dos estádios internacionais foram corrigidos de US$ de 2010 para US$ de 2013 pela taxa de inflação ao consumidor dos EUA. Os valores dos estádios brasileiros foram convertidos para dólar pela taxa média do período janeiro de 2012 – maio de 2013 (R$ 1,97).


A Tabela 2, abaixo, apresenta estádios dos outros países que foram inteiramente construídos ou sofreram grandes reformas, para tornar a comparação mais equilibrada com as arenas brasileiras, que, como afirmado acima, estão todas na categoria de nova construção/grande reforma. Para tanto, utilizamos os estádios de maior custo porque o relatório da Play the Game não especifica quais foram os estádios das três copas passadas que estão na categoria construção/grandes reformas2.

Tabela 2 – Custo por Assento de Estádios Construídos ou Submetidos a Grandes Reformas para as Últimas Quatro Copas do Mundo (US$ por assentos)

Fontes: Fontes:www.playthegame.org (estádios internacionais) e Portal da Transparência da Copa. Elaborado pelos autores.
(*) Valor inclui despesas a realizar relativas à infraestrutura no entorno dos estádios
(**) Todos os estádios brasileiros incluem custos de infraestrutura no entorno, tais como acesso viário e estações de metrô.
(***) Os valores dos estádios internacionais foram corrigidos de US$ de 2010 para US$ de 2013 pela taxa de inflação ao consumidor dos EUA. Os valores dos estádios brasileiros foram convertidos para dólar pela taxa média do período janeiro de 2012 – maio de 2013 (R$ 1,97).


Nessa comparação os estádios brasileiros não parecem estar fora do padrão de preço internacional. Apenas o Mané Garrincha, em Brasília, e o Maracanã estão entre os mais caros, mas há na experiência internacional estádios que custaram ainda mais caro. Quatro dos seis estádios brasileiros representados na amostra estão abaixo da média da amostra. É verdade que estamos comparando com os estádios mais caros de cada um dos demais países, mas o retrato mostrado na Tabela 2 não parece ser o de um “desastre” generalizado de custos unitários. O que as Tabelas 1 e 2 estão mostrando é que estádio de futebol custa muito caro: aqui e no exterior.

A Tabela 3, por sua vez, compara o custo projetado para cada um dos estádios em 2010 com a despesa efetivamente verificada. Existem três casos distintos. O Maracanã e o Mané Garrincha sofreram claros estouros de orçamento, o que os levou a serem os dois estádios mais caros.

O Mineirão também estourou o orçamento, porém devido a uma mudança de planos no meio da execução da obra. Após a demolição resolveu-se alterar o projeto. Pelos custos estimados para o novo projeto, no momento da sua reformulação, praticamente não houve estouro de orçamento. Porém, a necessidade de alterar o projeto durante a execução da obra revela fragilidade técnica e/ou excesso de otimismo inicial.

Por fim, há os três estádios da Região Nordeste, que foram executados dentro da expectativa e, em dois casos, custaram menos que previsto.

Tabela 3 – Diferença entre o custo final da obra e a estimativa inicial de custo (%)

Fontes: Matriz de responsabilidade da Copa 2010 e Tabelas 1 e 2. Elaborado pelos autores.


O que diferencia o Maracanã e o Mané Garrincha dos demais estádios é que ambos foram reformados pelos respectivos governos estaduais, por meio de contratação de empreiteiras. Nos demais casos a execução da obra foi pela modalidade de PPP, em que as empresas que construíram as arenas serão responsáveis por sua gestão, contando com uma subvenção estatal. Tais empresas tinham, portanto, incentivos para reduzir os custos, pois quanto maiores fossem seus custos, menor o retorno que elas obteriam com a gestão do estádio. Já no caso do Maracanã e do Mané Garrincha esse incentivo não existia, pois as empreiteiras envolvidas na construção não iriam gerir os estádios posteriormente; estavam apenas recebendo pelo serviço de construção.

A história que parece ser contada pelas Tabelas 1 a 3 não é simplesmente de superfaturamento e corrupção na construção de estádios. Isto pode ter ocorrido, em especial nos estádios que tiveram maior custo por assento. Mas há outros fatores envolvidos.

Em pelo menos três casos (Maracanã, Mané Garrincha e Mineirão) o custo inicialmente apresentado era muito otimista, quando comparado com a experiência internacional e com a obra que efetivamente se executou.

Além disso, mesmo nos estádios em que não houve otimismo na estimativa de custos, houve superestimação dos benefícios a serem proporcionados pela Copa: investimentos complementares nas infraestruturas urbanas, estímulo à economia pelo aumento do turismo, melhoria da imagem internacional do país.

Com alguns estádios tendo seu custo subestimado e o evento como um todo tendo benefícios superestimados, a diferença entre benefícios e custos tornou-se douradamente positiva.

Igualmente otimista foi o argumento adicional de que parte substancial dos investimentos seria feita pela iniciativa privada, não onerando o erário. Na prática, mesmo nos projetos contratados sob a forma de PPP, há significativos recursos públicos envolvidos, seja na participação direta dos governos estaduais no financiamento das obras, seja no financiamento subsidiado concedido pelo BNDES, que, em última instância, obtém seus recursos por meio de receitas tributárias federais e de transferências do Tesouro Federal.

Superestimou-se, também, a capacidade de planejamento e execução do setor público brasileiro. Acreditou-se que seria possível fazer não só estádios, mas também ampla reformulação da infraestrutura urbana. Na prática, o esforço financeiro, de logística e organização para a construção dos estádios subtraiu recursos, capacidade de planejamento e tempo de trabalho que se pretendia investir na ampliação da infraestrutura urbana. Em vez de mais e melhores meios de transportes e equipamentos urbanos, a Copa deixará como legado um conjunto de estádios que implicarão custos de manutenção. Mesmo os que estão contratados sob a forma de PPP requererão participação pública em sua manutenção.

Muitos estádios não gerarão receita suficiente para cobrir tais custos. Compare-se, por exemplo, o Mané Garrincha com o Saporo Dome, do Japão. Este é o estádio mais caro entre os elencados na Tabela 2. No entanto, de acordo com o já citado relatório da Play the Game, o estádio japonês é intensamente utilizado e lucrativo, recebendo eventos tão distintos quanto competições de esqui, jogos de baseball e de futebol. Já o Mané Garrincha tem poucas possibilidades de utilização após a Copa, dada a fragilidade da liga brasiliense de futebol e a baixa flexibilidade do estádio para receber outros tipos de eventos.

O excesso de otimismo em projetos de engenharia e a consequente apresentação de relação benefício-custo superestimada é um fenômeno muito comum em todo o mundo sendo, inclusive, objeto de estudos acadêmicos. Bent Flyvbjerg3, por exemplo, afirma que:

A psicologia e a economia política explicam a imprecisão das estimativas. A psicologia explica a imprecisão em termos de viés de otimismo, ou seja, uma predisposição cognitiva, encontrada na maioria das pessoas, para julgar os eventos futuros em uma perspectiva mais positiva do que aquela oferecida pela experiência passada. A economia política, por sua vez, explica a imprecisão em termos de deturpação estratégica. Nesse caso, os planejadores deliberadamente superestimam os benefícios e subestimam os custos para aumentar a probabilidade de que os seus projetos, e não os projetos rivais, recebam aprovação e financiamento. (…)Embora os dois tipos de explicação sejam diferentes, o resultado é o mesmo: estimativas imprecisas e relação benefício-custo inflada. (tradução livre – grifo nosso)

Com relação aos estádios brasileiros, o leite está derramado ou, como gostam de dizer os economistas, o custo dos estádios está “afundado”. Não há como recuperá-lo. Mas ainda há como a população brasileira tirar proveito da experiência e obter um legado efetivamente positivo. As instituições públicas e privadas, tais como o TCU, o Ministério Público, as comissões temáticas do legislativo, as associações de classe, a imprensa e as ONGs precisam tomar consciência da existência do viés de otimismo e da deturpação estratégica. Cada vez que um planejador público apresentar um projeto de alto custo, é preciso questionar as estimativas de custos e benefícios que são apresentadas.

Outra lição fundamental a ser aprendida pelos brasileiros é de que é fundamental elencar os investimentos por ordem de prioridade. Não é possível fazer tudo ao mesmo tempo, ainda mais com a restrição fiscal e a baixa capacidade de planejamento/execução do nosso setor público. O governo, ainda que conte com a participação da iniciativa privada, não consegue, ao mesmo tempo, construir estádios, ampliar metrôs, redesenhar corredores de ônibus, ampliar o saneamento básico, construir hospitais ou aperfeiçoar a educação. É imperioso ter uma lista de prioridades.

Há atualmente no Brasil um projeto de engenharia que tem “toda pinta” de, assim como os estádios da Copa, ser um caso clássico de baixa prioridade associada à  superestimativa de retorno econômico-social. Trata-se do chamado trem-bala, que ligará o Rio a São Paulo.

O projeto não é prioritário porque será um meio de transporte de luxo, com passagens caras, destinado a transportar pessoas de renda alta entre Rio e São Paulo. O nó urbano em que vivemos evidentemente indica que o prioritário é fazer São Paulo, Rio e demais cidades saírem do engarrafamento permanente que existe dentro de cada cidade, em vez de investir em transporte rápido, acessível a poucos, entre as cidades.

Quando questionado sobre quão prioritário seria o trem-bala em relação a outros projetos de infraestrutura, uma autoridade governamental diretamente encarregada de desenvolver o projeto deu clara demonstração de não estar preocupada com o adequado ordenamento de prioridades:

o que temos que entender no Brasil é que esse falso dilema de prioridades levou o País a parar. Quer dizer, vai lá no Pará e no Amazonas e vê se a Transamazônica não tem nenhuma funcionalidade lá hoje, se ela não gerou nenhuma transformação naquela região.

Quer dizer, a gente tem que perceber que temos que olhar este País no que ele precisa e buscar fazer o que ele precisa. Vamos supor: vamos abandonar o trem de alta velocidade, vamos puxar um projeto e colocá-lo em pé. E qual será o projeto?4 (grifo nosso)

Fazer uma lista de prioridades é, para essa autoridade, um “falso dilema”, ou seja, uma perda de tempo. Não importa buscar o projeto de maior retorno econômico e social: escolha-se qualquer um e toque-se em frente. É esse mesmo raciocínio que coloca estádios de futebol à frente de saneamento básico, transporte urbano e outras prioridades gritantes da realidade urbana brasileira.

Os sinais de subestimativa de custos e superestimativa de benefícios no projeto do trem-bala estão por toda a parte. O leitor que se interessar pode vê-los em outro artigo neste site (Vale a pena construir o trem-bala?5).

O enredo da novela é muito parecido com o dos estádios da Copa. Inicialmente, as autoridades afirmavam que não haveria um centavo de dinheiro público no projeto. Na formatação atual o governo já admite forte envolvimento de recursos públicos e subsídios do Tesouro via financiamento do BNDES, bem como está disposto a dar todo tipo de garantias e a absorver riscos.

Mesmo antes do início das obras, a estimativa de custo já pulou de R$ 18 bilhões para R$ 35,6 bilhões. Este é o valor atualmente apresentado pelas autoridades, mas com a ressalva de que está a preços de 20086. Corrigindo-se tal custo pelo índice de preços da construção civil (INCC) chegamos a R$ 50 bilhões! Essa é a estimativa oficial, provavelmente subestimada, como analisado nos estudos acima citados, que apontam indícios de viés de otimismo e deturpação estratégica no projeto do trem de alta velocidade.

R$ 50 bilhões são nada menos que 42 Maracanãs! Se a experiência negativa da sociedade brasileira com os estádios da Copa servir para que possamos definitivamente interromper o projeto do trem-bala, recanalizando os recursos para prioridades mais urgentes, isso valerá mais que um hexacampeonato.

*Agradecemos a Gustavo Mendes que contribuiu para o levantamento estatístico usado neste texto.

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1 Sobre esse ponto ver, por exemplo, http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/2013/05/24/preco-do-investimento-no-brasil/

2 Relatório completo sobre os estádios das Copas Coréia/Japão, Alemanha e África do Sul está disponível em http://www.playthegame.org/knowledge-bank/theme-pages/world-stadium-index.html

3 Flyvbjerg,B.  Curbing Optimism Bias and Strategic Misrepresentation in Planning: Reference Class Forecasting in Practice, European Planning Studies, v. 16, n. 1, p. 3-21, 2008.

4 Transcrição do depoimento de Bernardo Figueiredo, então presidente da ANTT, atual presidente da Empresa de Planejamento e Logística (EPL) à Comissão de Infraestrutura do Senado, em debate sobre o trem-bala, em 12/4/2011.

5 Análises mais detalhadas estão publicadas nos seguintes textos para discussão Trem de Alta Velocidade: caso típico de problema de gestão de investimento e Trem de Alta Velocidade: novas informações para debater o projeto

6 Fonte: http://www.epl.gov.br/tav

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https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=1883 15
O que são Parcerias Público-Privadas (PPP)? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1166&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-que-sao-parcerias-publico-privadas-ppp https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1166#comments Mon, 09 Apr 2012 03:01:55 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1166 A literatura internacional define uma PPP como sendo um contrato de longo prazo entre um governo (federal, estadual ou municipal) e uma entidade privada, no qual essa entidade se compromete a oferecer serviços de infraestrutura. Há diferentes tipos de contrato, em que o setor público e o parceiro privado dividem entre si as responsabilidades referentes ao financiamento, projeto, construção, operação e manutenção da infraestrutura. A empresa privada pode ser remunerada tanto pela cobrança de tarifas diretamente aos usuários (pedágio, por exemplo), quanto por pagamentos feitos a ela diretamente pelo governo (Banco Mundial, 2012).

A definição acima  difere do conceito de PPP estipulado pela legislação brasileira, que é bem mais restrito. Neste artigo apresenta-se primeiro a definição internacional e, em seguida, mostra-se como a definição brasileira é um subconjunto daquela definição mais ampla.

No conceito internacional, mais amplo, podemos citar como exemplo de PPP  um contrato para que uma empresa passe a cuidar da manutenção de uma estrada, cobrando pedágio dos usuários. Também temos uma PPP quando uma empresa constrói uma prisão e opera os serviços de limpeza, alimentação, manutenção predial, entre outros, enquanto o governo se encarrega da atividade-fim do presídio, que é o serviço de controle e escolta de presidiários. Outro exemplo de PPP seria a construção e operação de uma linha de metrô por uma empresa privada, em que a remuneração do parceiro privado vem de duas fontes:  a tarifa cobrada dos usuários e um  pagamento mensal feito pelo governo.

Na definição apresentada no primeiro parágrafo, dois termos estão grifados: “longo-prazo” e “serviços de infraestrutura”. Esses são aspectos importantes da caracterização de uma PPP. O termo “serviços de infraestrutura” indica que o parceiro privado não vai simplesmente construir uma estrada, uma ferrovia, um hospital ou um aeroporto e entregá-lo para ser administrado pelo governo ou empresa estatal. Ele vai construir e operar uma parte ou todos os serviços oferecidos por aquela infraestrutura. Ou então ele vai simplesmente operar (sem construir ou apenas reformar) os serviços de uma infraestrutura já existente, de propriedade do governo. Ou seja, para caracterizar uma PPP é importante que o parceiro privado atue na provisão do serviço público associado à infraestrutura que lhe foi confiada.

Os contratos são de longo-prazo porque, em primeiro lugar, estão relacionados a serviços públicos que exigem investimentos de grande vulto, seja na construção, seja na manutenção: estradas, portos, aeroportos, ferrovias, prédios públicos com características especiais (hospitais, prisões) ou construídos em grande quantidade (escolas), etc. Portanto, nos casos em que o parceiro privado investe seu capital, ele precisa que o contrato tenha um prazo dilatado, para dar tempo de pagar o investimento.

Mesmo quando não há uma elevada imobilização de capital pelo parceiro privado (por exemplo, contratos para operar infraestrutura já existente), pode ser interessante estabelecer um contrato de longo-prazo, pois seria ineficiente trocar o administrador da infraestrutura diversas vezes em prazos curtos, tendo em vista o custo de licitação e o custo de aprendizagem, associado ao período em que o novo concessionário está ajustando a oferta do novo serviço, quando usualmente há quebras na qualidade dos serviços.

Note que não se encaixam na definição de PPP os contratos mais simples, como os que preveem a prestação de serviços de limpeza e vigilância de prédios públicos, fornecimento de alimentação, conservação de jardins, assistência técnica em informática, etc. Esses são contratos de curto-prazo, normalmente conhecidos como “terceirização”. Enquanto os contratos de PPP normalmente têm prazos que superam vinte anos, os contratos de terceirização de serviços duram por volta de cinco anos (sobre contratos de terceirização no Brasil e seus problemas ver, neste site, Por que o governo gasta tanto com terceirização?)

Um ponto central para o sucesso de uma PPP está na divisão de riscos entre o setor público e o parceiro privado. A construção e operação de uma rodovia, por exemplo, implica diversos riscos financeiros: a obra pode custar mais que o projetado (risco de construção), o volume de tráfego (e, portanto, a receita de pedágio) pode ser menor que o esperado (risco de demanda), a eleição de um novo governante pode colocar em risco o cumprimento do contrato (risco político), etc.

Não é trivial, portanto, a redação de um contrato de PPP, que deve ser o mais detalhado possível no que diz respeito a qual das partes deve assumir que tipos de riscos. Essa é uma condição necessária, mas não suficiente. É preciso, também, que haja um Poder Judiciário com capacidade para impor o cumprimento dos contratos. Em países em que o Judiciário é influenciado pelo Poder Executivo, o risco político incorrido pelos parceiros privados é alto.

Os contratos de PPP em geral associam a revisão dos pagamentos feitos aos parceiros privados, ao longo da vida do contrato, com base no cumprimento de metas de qualidade e quantidade do serviço oferecido. Por exemplo, em um contrato de PPP de um aeroporto, o parceiro privado terá direito a um maior reajuste da tarifa se conseguir fazer todos os investimentos de expansão do aeroporto que estavam previstos no contrato inicial. Ou, alternativamente, será punido com um reajuste menor se os índices de qualidade dos serviços prestados estiverem abaixo das metas contratuais (tempo de espera no check-in, atraso nos voos de responsabilidade do aeroporto, etc.).

Essa característica dos contratos pressupõe a existência de uma agência reguladora com suficiente capacidade e independência técnica para dar pleno cumprimento à verificação das metas contratuais e efetivamente punir ou premiar o parceiro privado. Agências reguladoras sem autonomia em relação ao governo, ou cujos cargos de comando sejam distribuídos ao sabor de negociações partidárias, acabam aproximando perigosamente a necessidade de recursos dos partidos políticos (para financiamento de campanha) do poder institucional de conferir ganhos financeiros não merecidos a parceiros privados que não cumprem contratos.

E qual seria a grande vantagem de um contrato de PPP em relação ao modelo tradicional, em que o governo contrata a construção de uma infraestrutura junto a empresas privadas e depois opera, ele próprio, o serviço oferecido por essa infraestrutura? A vantagem é que, ao se contratar uma mesma empresa para construir (ou reformar/ampliar) uma infraestrutura e, em seguida, passar a operá-la, essa empresa terá incentivos para fazer uma construção (reforma/ampliação) de boa qualidade. Isso porque uma infraestrutura bem construída vai reduzir os custos de manutenção e reparo ao longo do contrato de operação, bem como vai permitir a prestação de um serviço de maior qualidade (viabilizando ganhos financeiros quando a tarifa estiver atrelada à qualidade do serviço prestado).

Em um contrato comum de simples construção e entrega da infraestrutura ao governo, as empresas têm incentivos para construir rapidamente e economizar nos custos, colocando em segundo plano a qualidade final do trabalho. O governo, por sua vez, não tem informação suficiente sobre o andamento das obras e seus detalhes para exigir maior qualidade.

Outra vantagem das PPP é que elas trazem capital privado para investimentos em que antes só havia dinheiro público. Como os orçamentos públicos estão cada vez mais restritos frente à necessidade de manter o equilíbrio fiscal, a entrada de capital privado é um bem-vindo reforço ao financiamento das obras de infraestrutura.

Há dois conceitos relevantes acerca de rentabilidade de projetos que devem ser analisados quando se fala em PPP: a viabilidade financeira e a viabilidade econômica. Um projeto tem viabilidade financeira quando, estimados todos os seus custos e receitas, o resultado é um lucro que seja suficiente para atrair uma empresa privada para operar o negócio. Trata-se, pois, de um conceito de rentabilidade privada.

A viabilidade econômica leva em conta, além das receitas e custos financeiros, os benefícios e custos sociais decorrentes do projeto. Por exemplo, uma nova rodovia pode gerar como benefícios sociais a economia de tempo de deslocamento dos usuários, o aumento da produtividade das empresas, que podem entregar seus produtos com mais rapidez, etc; por outro lado, essa mesma rodovia pode gerar custos sociais, como o aumento da poluição em cidades que fiquem à beira da rodovia ou um custo de pedágio que seja incompatível com o nível de renda da população local.

Quando um projeto tem viabilidade financeira e econômica (benefícios maiores que os custos nos dois conceitos), então é interessante para o país que ele seja desenvolvido. E sendo sustentável do ponto de vista financeiro, o governo pode fazer uma licitação para que um parceiro privado cuide sozinho do negócio, sendo remunerado mediante tarifas pagas pelo usuário.

Quando um projeto tem viabilidade econômica, mas não financeira, temos uma situação em que vale a pena para a sociedade implementar o projeto, mas não haverá nenhum parceiro privado disposto a se responsabilizar sozinho por ele, pois se trata de um negócio que não dá lucro. Nesses casos, o governo pode fazer uma PPP na qual se comprometa a pagar um subsídio ao parceiro privado, elevando a sua rentabilidade até um ponto em que valha a pena investir no negócio.

Por exemplo, pode ser importante para o desenvolvimento econômico de uma região do país a construção de uma nova estrada. Porém, o fluxo previsto de veículos nos primeiros anos pode ser baixo, e há um risco considerável de esse fluxo não aumentar nos anos seguintes em decorrência de eventual insucesso do plano de desenvolvimento. Eventuais tarifas cobradas, portanto, seriam insuficientes para remunerar o setor privado, tanto pelo capital investido, como pelo risco incorrido. Nesse caso, o governo pode arcar com parte dos custos do negócio. Seriam várias as opções: pagar parte do custo de construção, pagar um valor mensal ao parceiro privado durante a operação da estrada, conceder ao parceiro privado um financiamento subsidiado para custear a construção, etc. Com esse subsídio, a construção de uma infraestrutura que gere mais benefícios que custos para a sociedade passa a ser viável.

A legislação brasileira considera como sendo PPP apenas os casos em que os projetos têm viabilidade econômica, mas não têm viabilidade financeira. Ou seja, os projetos que, como no exemplo acima, requerem algum tipo de subsídio governamental. Os projetos financeiramente viáveis são conceituados como “concessões comuns”, enquanto os projetos que requerem algum tipo de complementação financeira estatal são conceituados como PPP e divididos em dois grupos distintos: as PPP patrocinadas (em que o parceiro privado obtém sua remuneração mediante cobrança de tarifas e subsídios estatais) e as PPP administrativas (nas quais a remuneração do parceiro privado é paga integralmente pelo governo). As concessões comuns estão reguladas pelas Leis nº 8.987 e nº 9.074, ambas de 1995, enquanto às PPP se aplicam os dispositivos daquelas leis e, adicionallmente, a Lei nº 11.079, de 2004.

Note-se que esta é uma distinção apenas no campo legal e semântico. Do ponto de vista da análise econômica, as considerações feitas acima valem tanto para as concessões comuns quanto para as PPP no conceito brasileiro.  Ambas requerem agências reguladoras e instituições judiciais capazes de impor o cumprimento do contrato, geram potenciais benefícios quanto à eficiência dos projetos desenvolvidos, atraem capital privado para o investimento em infraestrutura, requerem contratos que dividam claramente os riscos entre as partes, etc.

Uma constatação que se faz ao observar o caso brasileiro é que as PPP no conceito local (concessões patrocinadas e administrativas) têm enfrentado grandes dificuldades para serem postas em prática, ao passo que as concessões comuns têm sido feitas com mais frequência.

Até hoje o governo federal não concretizou uma única PPP. A que está mais avançada refere-se à construção de um datacenter pelo Banco do Brasil e Caixa Econômica, no qual um parceiro privado irá construir, equipar e gerir o banco de dados. Há, ainda, um projeto de irrigação e Petrolina-PE, a instalação de um sistema nacional de TV digital pública e a construção, lançamento e operação de um satélite geoestacionário. Todas as iniciativas, a exceção do datacenter, ainda estão nos passos iniciais.

Os governos estaduais andaram um pouco mais rápido e já colocaram em prática alguns projetos, tais como:  construção e gestão de estádio de futebol, conjuntos habitacionais de baixa renda, centros de atendimento ao cidadão, emissão submarina de esgotos, hospitais. O Estado de São Paulo é o que tem mais se destacado na implantação das concessões patrocinadas e administrativas, com projetos de maior vulto nas áreas de de transportes (linhas de metrô, trem e sistema metropolitano de ônibus), esgotamento sanitário e abastecimento de água.

São vários os fatores que têm emperrado as “PPP brasileiras” (concessões patrocinadas e administrativas).  Em primeiro lugar, elas necessitam de contratos mais complexos que os das concessões comuns; pois além de toda a partilha de risco entre as partes, é preciso que se estime qual será o subsídio público pago ao parceiro privado. Isso implica não só dificuldade no desenho dessa relação financeira de longo prazo, como também embute risco de corrupção, de acusações políticas de beneficiamento de empresas, etc.

Em segundo lugar, o Tesouro Nacional e os tesouros estaduais têm sido bastante cautelosos em relação ao risco fiscal que existem no fato de o governo assumir o compromisso de fazer pagamentos ao longo de muitos anos a uma empresa privada. Existe a possibilidade de que agentes governamentais passem a usar esse mecanismo para driblar as regras da Lei de Responsabilidade Fiscal relativas a limite máximo de endividamento dos entes públicos, e a fazer gastos públicos sem registrá-los no orçamento. O resultado é o estabelecimento de inúmeras instâncias burocráticas para autorização das concessões administrativas ou patrocinadas, que emperram o processo.

As concessões comuns, por sua vez, em vez de criar obrigações financeiras para o governo, muitas vezes geram receitas imediatas, nos casos em que os seus editais preveem o pagamento de um valor de outorga pela empresa vencedora. No leilão de concessão de três aeroportos federais (Guarulhos, Brasília e Campinas), realizado em fevereiro de 2012, por exemplo, as empresas vencedoras comprometeram-se a pagar outorgas que somaram R$ 24,5 bilhões. Politicamente é mais interessante mostrar ao eleitorado que se está fazendo grandes obras e, ao mesmo tempo, obtendo receita para o governo.

Surge, com isso, o incentivo ao governo de modelar as parcerias com o setor privado sob a forma de concessão simples, com vistas a obter ganhos fiscais. Isso é um problema, pois projetos com benefício social positivo, que poderiam ser objeto de  concessão patrocinada ou administrativa, são colocados em segundo plano.

O terceiro problema está na baixa capacidade do setor público brasileiro para prospectar e formular projetos de infraestrutura. Ao lidar com esses projetos, as agências públicas acabam, muitas vezes, não sendo capazes de avaliar e distinguir corretamente a viabilidade financeira e a viabilidade econômica. Em consequência, acaba-se dando preferência para os projetos mais rentáveis, que são implementados por meio de concessões comuns.

O quarto problema está no fato de que a Lei nº 11.079, de 2004, em seu art. 7º,, ao contrário do que ocorre em outros países, não admite que sejam pagos subsídios aos parceiros privados durante a fase de construção (reforma/ampliação) da infraestrutura. Tal pagamento só pode ser feito quando tiver sido iniciada a operação dos serviços. Isso inviabiliza as concessões patrocinadas e administrativas que requerem um grande investimento inicial e um longo tempo de atividades pré-operacionais.

O quinto problema é o baixo grau de autonomia política e financeira das nossas agências reguladoras, que reduzem o grau de segurança do investidor privado (que teme ser pressionado por questões políticas) e da população (que vê a possibilidade de corrupção nas relações com os parceiros privados). Igualmente problemática é a dificuldade do sistema judiciário brasileiro para impor o cumprimento de contratos com rapidez e com procedimentos claros e previsíveis.

Tendo em vista a baixa disponibilidade orçamentária do setor público brasileiro e a grande carência de infraestrutura que vivemos, parece ser prioritário o aperfeiçoamento da legislação e das instituições (em especial das agências reguladoras) que viabilizem a expansão das PPP em sentido amplo, sejam elas concessões simples, sejam concessões administrativas ou patrocinadas.

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Para ler mais sobre o tema:

Banco Mundial (2012) Best practices in public-private partnerships financing in Latin-America:  the role of subsidy mechanisms. Washington – DC.

Paiva, S. e Rocha, C. (2004) A parceria público-privada: o papel do Senado Federal na discussão e aprovação da Lei nº 11.079, de 2004. Núcleo de Estudos e Pesquisas do Senado Federal. Texto para Discussão nº 25.

UNESCAP (2007) Public-private partnership in infrastructure development: an introduction to issue from different perspectives. Transport and Tourism Division UNESCAP. Bangkok, Thailand.

Consulte também o site www.pppbrasil.com.br para diversos artigos e comentários sobre as PPP no Brasil.

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https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=1166 11
Será o pré-sal um bilhete premiado, sem riscos ou custos? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=528&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=sera-o-pre-sal-um-bilhete-premiado-sem-riscos-ou-custos https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=528#comments Tue, 17 May 2011 17:08:36 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=528 Em visita a Brasília, em 1976, Takeo Fukuda, que logo se tornaria primeiro-ministro do Japão, disse a seus anfitriões: “após a crise do petróleo, tornou-se claro que os recursos são limitados. Este é um grande evento na história da humanidade. Seu país é uma potência no século 21, uma potência de recursos”[1]. Esse tipo de discurso tornou-se corriqueiro, passando a ser um protocolo da diplomacia de outros países em relação ao Brasil. Agora o discurso está se tornando realidade.

A expansão das exportações de commodities trouxe uma abundância de recursos ao Brasil, uma vez que é líder mundial nas exportações de minério de ferro, soja, carne bovina, aves, celulose e muitos outros. Guiado pela Embrapa, instituto de pesquisa agrícola do governo, o país passou a utilizar novas técnicas, transformando o cerrado em uma das regiões agrícolas mais produtivas do mundo.

No entanto, o mais rico dos recursos brasileiros deve ser a água. O Brasil é dotado de 13% do abastecimento mundial de água doce. Um membro do Instituto Fernand Braudel, residente em Pequim, Arthur Kroeber, editor do China Economic Quarterly, disse, em um de nossos seminários no mês passado, que a maior limitação no desenvolvimento a longo prazo da China é a água. Ele acrescentou que a China espera importar água do Brasil, sob a forma de produtos agrícolas. Enquanto isso, o Brasil terá que superar a escassez iminente de abastecimento de água para suas próprias cidades, devido à má gestão e falta de investimento público[2].

A idéia do Brasil como “potência de recursos” foi reforçada por uma nova fronteira na exploração petrolífera. Possivelmente uma das últimas fronteiras desse tipo de recurso natural. Em 2006, a Petrobras, em parceria com empresas privadas, começou a perfurar a cerca de 7.000 metros abaixo da superfície do Atlântico Sul, penetrando sedimentos antigos que se encontram abaixo de uma cama de sal de mais de 2.000 metros de espessura, para encontrar os restos de micróbios fossilizados que viveram 130 milhões anos atrás, quando dinossauros ainda vagueavam pelo interior do continente brasileiro. Presos sob estrutura maciça de sal, estes micróbios foram transformados pelo calor, pressão e tempo no hoje conhecido campo de Tupi. Já rebatizado de “Lula”, esse é um dos maiores campos do mundo em petróleo e gás, também considerado a maior descoberta das últimas décadas. Ao todo, dez campos gigantes foram anunciados até agora nas águas profundas da Bacia de Santos.

O Brasil é hoje o maior mercado do mundo para bens e serviços do setor petrolífero em alto mar. A Petrobras é a maior compradora individual. Alguns consultores acreditam que a Petrobrás poderá gastar US$ 1 trilhão nos próximos anos, em investimentos e custos operacionais do projeto em águas profundas[3], valor equivalente à metade do Produto Interno Bruto (PIB) de 2010, no maior empreendimento industrial da história do Brasil. Os gastos anuais de capital da Petrobrás nesta década já acumulam mais de US$ 45 bilhões. São muito mais do que o orçamento anual da Nasa nos anos 60, em dólares atualizados, quando os Estados Unidos se preparavam para enviar um homem à Lua[4]. Em cinco anos a estatal receberia 224 bilhões de dólares em investimento: o maior investimento do setor petrolífero nos dias atuais, que corresponde a 10% do investimento bruto em capital fixo do Brasil.

Riscos sempre foram inerentes à indústria petrolífera, tanto em termos físicos quanto financeiros. No entanto, isso pode ser mitigado quando as companhias conseguem a integração vertical, controlando o fluxo da produção, transportes, refino e comercialização. A Standard Oil Trust, de John D. Rockefeller, conseguiu a integração nos primeiros anos de existência do setor, assim como as maiores companhias – Exxon, Shell e algumas outras – até que a revolução da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), nos anos 70, reduziu o controle delas sobre as reservas.

Desde a sua criação em 1954, a Petrobras desenvolveu-se espetacularmente. Com suas descobertas desde a década de 70, a Petrobras agora se posiciona como uma das empresas petrolífera mais importantes e integradas do mundo, dominando seu grande mercado nacional, com apoio do governo e com acesso privilegiado às enormes reservas em águas profundas das bacias de Campos e Santos. No entanto, o sucesso comercial da exploração do pré-sal depende da superação de desafios relacionados à geologia, tecnologia, logística, segurança, finanças, política, recursos humanos e governança corporativa. Descrevo alguns desses desafios a seguir.

Desafio Político

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva chamou essas descobertas de um “bilhete premiado”. A euforia do pré-sal produziu na classe política a ilusão de recursos ilimitados no horizonte. Ao propor uma legislação para criar um novo conjunto de leis para regular a exploração dessa riqueza, os ministros do governo Lula declararam que os riscos da exploração são extremamente baixos, com grande rentabilidade esperada. A sucessora de Lula, Dilma Rousseff, coordenou a elaboração da nova legislação enquanto presidia o conselho da Petrobras, antes de entrar na campanha eleitoral de 2010.

O intenso debate dessa nova proposta legal no Congresso centrou-se quase exclusivamente na distribuição de royalties entre estados e municípios, negligenciando a governança e as questões técnicas decorrentes da exploração e produção em águas profundas. Tudo se passava como se os recursos já estivessem disponíveis, e restasse apenas a tarefa de dividir o dinheiro.

Em seu discurso de posse como presidente, Dilma declarou que as descobertas do pré-sal seriam “o nosso passaporte para o futuro”, mas advertiu que “recusaremos o gasto apressado que reserva às futuras gerações apenas as dívidas e o desespero“. No entanto, o novo regime de partilha de produção fortifica um regime de capitalismo de Estado, sujeito a amplo poder discricionário do governo e pouca transparência. Reforçou-se o monopólio da Petrobras, reduzindo-se a concorrência de mercado e a diversificação de risco entre várias empresas. A nova legislação obriga a Petrobras a se tornar a operadora, com uma participação de 30%, no mínimo, de todas as fases de exploração na “estratégica” zona de águas profundas, abrangendo 149.000 km2. Tal obrigação pode ser um peso grande para uma empresa que já se encontra sobrecarregada em relação a recursos humanos e capacidade técnico-financeira.

Todas as decisões operacionais da Petrobras e das empresas privadas, incluindo contratação de pessoal, fornecedores e prestadores de serviços, serão decididas pelo comitê operacional, que terá metade de seus integrantes, incluindo o presidente, com direito a veto, indicado por uma nova empresa estatal, Petróleo Pré-Sal S/A, criada para fiscalizar as empresas da área do pré-sal. O espaço para intervenção política nas decisões técnicas é, portanto, muito grande.

Desafio Geológico

As camadas de sal na Bacia de Santos são muito espessas, chegando em alguns lugares a cinco mil metros. São plásticas, móveis e heterogêneas, contendo tipos diferentes de sal. Elas mudam de posição à medida que as perfurações são realizadas. Essas formações geológicas, com potencial de petróleo, se estendem mar adentro no Atlântico Sul em profundidades ainda maiores.

Estas formações não seriam acessíveis hoje sem os recentes desenvolvimentos das sondas de sísmica e no processamento de dados sísmicos. “Perfurar esses reservatórios de pré-sal implica desafios gigantescos”, observaram os engenheiros da Petrobrás durante a Offshore Technology Conference (OTC), em Houston[5]. “De todos esses desafios, o deslizamento do sal é o mais comum e mais difícil de administrar”. As camadas de sal são tão instáveis que podem engolir as brocas de perfuração e derrubar a carcaça que envolve o tubo de perfuração. “Os reservatórios de microcarbonatos ainda são pouco conhecidos”, disse um engenheiro veterano. “O petróleo sai do reservatório muito quente para chegar a um ambiente frio, com apenas 4º centígrados, e congela, virando uma cera, bloqueando o tubo, a menos que produtos químicos especiais sejam adicionados e esse tubo seja continuamente lubrificado.” A instabilidade das camadas de sal impede a perfuração horizontal para aumentar a recuperação dos reservatórios imediatamente abaixo do sal. Este é apenas um dos problemas envolvidos no desenvolvimento desses recursos.

Desafio de Engenharia e Logística

“Nas descobertas de pré-sal, temos dois tipos de problemas logísticos”, disse o presidente da Petrobrás, José Sérgio Gabrielli, numa entrevista: “O primeiro tem a ver com pessoas, e é um problema de distância. Na Bacia de Campos, atualmente nossa principal área de produção, transportamos em helicópteros mais de 60 mil pessoas entre a costa e as plataformas, que se situam a 150 km de distância. Mas os blocos de pré-sal na Bacia de Santos podem estar a uma distância de 300 quilômetros, longe demais para transportarmos tanta gente por helicóptero. Assim, precisamos, em primeiro lugar, reduzir o número de pessoas trabalhando nas plataformas, por meio de maior automação. Precisamos colocar plataformas a meio caminho entre a costa e as descobertas de pré-sal para servirem como centros logísticos e também como dormitórios, de modo que os trabalhadores que chegam por barcos possam ser distribuídos por helicópteros para as plataformas de produção, depois de passarem a noite no centro logística. O segundo problema é o suprimento de equipamentos para as operações em alto-mar. É preciso transportar produtos químicos, máquinas, eletricidade. Provavelmente teremos plataformas especiais para geração de eletricidade e outras para a mistura de substâncias química para os fluidos de perfuração.”[6]

Uma dificuldade para criar essas plataformas logísticas é garantir a estabilidade em mar agitado para permitir a atracação segura, como também a chegada e saída de navios e helicópteros. “Todo mundo acha que é óbvio, mas não é”, disse José Formigli, diretor de operações do pré-sal da Petrobrás. “E o preço? Já foi oferecido até um porta-aviões. Só que um porta-aviões se ficar parado tem o péssimo hábito de ficar virando de um lado para outro. Tem casco fininho porque precisa ter velocidade, e quando para, rola. E aí o helicóptero não pousa”.[7]

A estratégia da Petrobras pode ser a automação de operações sempre que isso for possível, reduzindo o número de trabalhadores no mar. Na Bacia de Santos, base para grandes frotas de helicópteros e navios de apoio, devem ocorrer mudanças na ecologia do litoral, com o porto de Santos se tornando um novo centro de gerenciamento das explorações em alto-mar. Guilherme Estrella, diretor de exploração e produção da Petrobrás, imagina 50 plataformas operando na área das descobertas iniciais, cada uma consumindo 100 megawatts de eletricidade. Isso totaliza 5 mil megawatts de capacidade gerada por 200 turbinas movidas a gás, o equivalente ao consumo de energia na região da Grande São Paulo, que tem aproximadamente 20 milhões de habitantes.

Desafio no suprimento industrial

Em 2009, a Petrobrás dominava o mercado mundial em sistemas de produção flutuantes em águas profundas (FPSOs), na maior parte superpetroleiros adaptados para receber, armazenar e descarregar petróleo e gás extraídos do leito marinho. A Petrobras opera 23 dos 49 FPSOs em uso no mundo atualmente, e 10 das 17 plataformas de produção semi-submersíveis usadas globalmente[8]. Em 2020, as operações da Petrobrás absorverão mais 58 plataformas de perfuração (que custam mais de US$ 600 milhões cada uma), 45 plataformas de produção adicionais e 300 superpetroleiros e barcos de apoio.

Nos próximos anos, a Petrobrás deverá encomendar 330 geradores à turbina, 610 mil válvulas, 10 mil quilômetros de cabos elétricos submarinos, 17 mil quilômetros de tubos flexíveis, 4,8 milhões de toneladas de aço, milhares de peças de complexos equipamentos submarinos. Tudo isso envolverá 68 milhões de homens-hora de engenharia e um bilhão de horas de trabalho para a construção e montagem[9].

Gabrielli alertou para “áreas críticas” ou “estrangulamento” na cadeia de abastecimento. “Uma delas é a de sondas. Uma sonda leva de três a quatro meses para perfurar poços a mais de 2 mil metros de profundidade da lâmina d’água. Uma FSPCO (sigla em inglês de plataforma de produção de petróleo) usa de 15 a 20 poços. Portanto, com uma sonda você leva quatro anos para montar um sistema de produção. É um elemento crítico e o Brasil não fabrica”. Também faltam “sistemas submersos, tubulações que ligam o fundo do mar à superfície (…). Hoje, temos a capacidade mundial praticamente contratada e vamos precisar de mais. Empresas inglesas e francesas estão vindo para o Brasil porque aqui é onde está a demanda. Precisamos avançar na área de grandes turbo-compressores, que são geradores flutuantes de eletricidade. É uma área que precisa crescer para atender à nossa demanda. Estamos falando de uma quantidade gigantesca de equipamentos (…)Cada sistema de produção produz entre 100 e 180 mil barris por dia. Então, se vamos produzir 4,5 milhões de barris por dia em 2020, precisamos ter 40, 41 sistemas desse. Cada sistema custa algo em torno de US$ 3 bilhões. Para funcionar, cada um precisa, em média, de cinco barcos de apoio. Estamos falando, portanto, de 200 barcos de apoio de todo tipo (rebocadores, chata, ‘anchor handling’, navio-bombeiro etc.). Para produzir 4 milhões de barris, vamos precisar de muitos petroleiros para transportar tudo isso. Se pensarmos em termos de Suezmax [petroleiro com capacidade de carga de 1,1 milhão de barris], vamos precisar diariamente em torno de 20 a 30 navios.”[10]

Desafio Financeiro

Em setembro de 2010, a Petrobras captou 70 bilhões de dólares com lançamento de ações. Deste, US$ 45 bilhões foram em dinheiro do governo, incluindo US$ 16 bilhões do seu fundo soberano e do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), elevando a participação federal na Petrobras de 40% para 48%. O Ministério da Fazenda emitiu R$ 30 bilhões em títulos e os repassou ao BNDES, e este usou os recursos para comprar ações da Petrobras. Dos US$ 70 bilhões recebidos pela Petrobras, a título de capitalização, US$ 45 bilhões foram devolvidos ao Tesouro para pagar os direitos de exploração de um reservatório que, supostamente, contém 5 bilhões de barris de óleo. Estas transferências representam uma operação circular, que eleva o grau de estatização e de dependência da Petrobras em relação ao Tesouro. Alguns analistas dizem que a Petrobras pode ter de levantar ainda mais capital em poucos anos.

Conclusões

A Petrobras e o governo podem vencer todos esses desafios? Políticos, gestores e técnicos se deparam com esses riscos com uma coragem beirando a temeridade. As descobertas do pré-sal criaram o mito dos recursos ilimitados, que acabam gerando incentivos a gastos sem comedimento. O Brasil realmente precisa investir no desenvolvimento do pré-sal a esta velocidade e escala? Será que esses investimentos acelerados não criarão distorções na economia do país? Serão os investimentos em petróleo os mais importantes para o futuro do Brasil? Ou seriam preferíveis investimentos para corrigir enormes deficiências como no ensino público, portos, aeroportos, geração e transmissão de eletricidade, comunicações, saneamento básico e infra-estrutura de transporte?

Embora os recursos de petróleo do Brasil em águas profundas sejam um dos principais alvos na busca mundial por novas reservas, a Petrobras pode ter de trabalhar com mais cautela e tempo para superar as limitações na capacidade financeira, técnica e de recursos humanos. Terá sido correto estabelecer em lei a obrigatoriedade de participação da Petrobras em pelo menos 30% de todos os campos de exploração de petróleo? Isso não levará a empresa a uma exaustão financeira?

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Para ler mais sobre o tema:

Gall, N. (2011) O risco do petróleo em águas profundas. O Estado de S. Paulo, 30 de janeiro de 2011. Disponível em:  http://pt.braudel.org.br/noticias/arquivos/downloads/tecnologia-e-logistica-em-aguas-profundas.pdf

Gall, N. (2011) Tecnologia e logística em águas profundas. O Estado de S. Paulo, 27 de fevereiro de 2011. Disponível em:  http://pt.braudel.org.br/noticias/arquivos/downloads/tecnologia-e-logistica-em-aguas-profundas.pdf

Gall, N. (2011) O desafio industrial do pré-sal. O Estado de S. Paulo, 27 de março de 2011. Disponível em:  http://pt.braudel.org.br/noticias/arquivos/downloads/o-desafio-industrial-do-pre-sal.pdf


[1] Citado em Gall, Norman, “The rise of Brazil”, Commentary, Janeiro de 1977, p. 45.

[2] Roberto Rockmann, “Especial Água: segurança na fonte”, Valor Econômico, 22 de março de 2011.

[3] Veja, por exemplo: Steve Robertson e Thom Payne, Global Offshore Prospects. Londres; Douglas-Westwood, apresentação em 17 de fevereiro de 2011, p. 29; Joe Leahy, Brazil, plataform for growth, Financial Times, 15 de março de 2011.

[4] Wikipedia, NASA Budget. Consultado em 20 de fevereiro de 2011.

[5] Alves, I. et all. Pre-salt Santos basin: well construction learning curve aceleration. OTC 20177, maio de 2009.

[6] Entrevista gravada com Sérgio Gabrielli em 30 de outubro de 2009.

[7] Cláudia Schuffner, Petrobras já planeja novo gasoduto e dez plataformas no pré-sal. Valor Econômico, 27 de dezembro de 2010.

[8] Douglas-Westwood, The world deepwater market report 2010-2014. pp. 91 e 97.

[9] Booz & Co., Agenda de competitividade da cadeia produtiva de óleo e gás offshore no Brasil. Agosto de 2011, p. 82-86.

[10] Cristiano Romero, Licitação acelerada do pré-sal pode levar a desindustrialização, Valor Econômico de 6 de dezembro de 2010.

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Vale a pena construir o Trem Bala? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=454&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=vale-a-pena-construir-o-trem-bala https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=454#comments Wed, 13 Apr 2011 03:01:29 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=454 Está em andamento um projeto para construir um trem de alta velocidade (TAV), popularmente conhecido como “trem-bala” entre Rio e Campinas, passando por São Paulo. É um trem de passageiros (sem possibilidade de uso para transporte de cargas, a não ser pequenas encomendas), com possíveis estações intermediárias em São José dos Campos, Aparecida do Norte, Resende, Volta Redonda e Barra Mansa. Os aeroportos de Viracopos (Campinas), Guarulhos (São Paulo) e Galeão (Rio de Janeiro) também seriam servidos por estações. A distância total a ser percorrida é de 511 km, sendo que o trecho principal (Rio – São Paulo) teria 412 km. O tempo mínimo de viagem entre Rio e São Paulo seria de 1 hora e 33 minutos, caso venha a ser possível atingir velocidade máxima de 300 km por hora e sem paradas. A viagem do Rio a Campinas, com paradas, levaria 2 horas e 27 minutos.

No atual estágio de desenvolvimento da infraestrutura no Brasil, este não parece ser um investimento que valha a pena. A razão é simples: ele vai consumir um volume elevado de recursos públicos (entre R$ 15 bilhões e R$ 36 bilhões)[1], fora o montante adicional a ser aportado por investidores privados (o custo total da obra está orçado oficialmente em R$ 34,6 bilhões, mas pode chegar facilmente aos R$ 50 bilhões, devido a subestimativas de custos no projeto de viabilidade).

Para que se tenha uma idéia de como o projeto é caro, a tabela abaixo compara o orçamento oficial do TAV com outras obras. Colocar entre R$ 15 bilhões e R$ 36 bilhões de dinheiro do Tesouro em um único projeto, significa gastar mais do que tudo o que foi investido em ferrovias entre 1999 e 2008. Trata-se, portanto, de um gasto de vulto que vai drenar dinheiro que poderia ser aplicado em outros investimentos públicos.

Custo total estimado para construção do TAV Rio de Janeiro – Campinas, para outros projetos de infraestrutura de grande vulto e despesa efetivamente realizada em infraestrutura ferroviária e aeroportuária

R$ bilhões

TAV 1 34,6
Usina Hidrelétrica de Belo Monte 2 19,0
Usina Hidrelétrica de Santo Antônio 3 8,8
Usina Hidrelétrica de Jirau 4 8,7
Ferrovia Norte-Sul 5 6,5
Ferrovia Transnordestina 6 5,4
Transposição do Rio São Francisco 7 4,5
   
Invest. público e privado em ferrovias de 1999 a 2008 8 16,6
Invest. público em aeroportos de 1999 a 2008 9 3,1

Elaborado pelo autor. Fontes: ver http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/NOVOS%20TEXTOS/TD%2082%20-%20Marcos%20Mendes.pdf

Sem dúvida que a idéia de viajar do Rio a São Paulo em um transporte moderno, sem correr o risco de aeroportos fechados ou congestionados, é atrativa. Porém, sempre que se pretende colocar dinheiro público em um empreendimento, a primeira pergunta a ser feita é: existe aplicação melhor para esse dinheiro? E no caso do TAV, parece haver muitos outros investimentos de retorno econômico e social mais elevados, que deveriam ser considerados prioritariamente.

O PROJETO NÃO É PRIORITÁRIO

O principal serviço a ser prestado pelo TAV é o transporte de pessoas de alta renda no eixo Rio – São Paulo – Campinas. Trata-se de um serviço que já é prestado (ainda que com alguns problemas) pela ponte aérea e pelas rodovias, sem necessidade de subsídio público. Em um país com grandes carências na área de infraestrutura, o TAV não passa de um bem de luxo.

Apenas para citar um exemplo, no Brasil apenas 59% dos domicílios particulares permanentes são atendidos por rede coletora de esgoto ou fossa séptica ligada à rede coletora e 84% são atendidos por rede geral de abastecimento de água; enquanto países do leste asiático e da OCDE já universalizaram esse atendimento.

O que será que geraria maior benefício à população brasileira: um transporte rápido entre Rio e São Paulo, ou um investimento maciço na direção da universalização do acesso á água e esgoto? Estudo coordenado pelo economista Marcelo Neri mostra que a disponibilidade de água filtrada e acesso à rede de esgoto diminuem em 24% a probabilidade de uma mulher ter algum filho nascido morto. Mostra também que as crianças pobres, do sexo masculino, entre 1 e 6 anos são as principais vítimas da falta de saneamento[2]. Estudo da Agência Nacional de Águas (ANA) indica que até 2015, 55% dos municípios brasileiros (3.059 cidades) poderão ter problemas com abastecimento de água. Com R$ 9,6 bilhões seria possível solucionar o problema nas 256 maiores cidades, que concentram quase a metade da população do país[3].

Ser desenvolvido é viabilizar transporte em trem-bala para a população de alta renda ou é garantir o abastecimento de água e reduzir a mortalidade infantil decorrente da falta de saneamento? Os países que se dão ao luxo de investir nesse trem ultrarápido há muito já resolveram suas carências básicas em infraestrutura.

Para colocar a comparação no campo da infraestrutura de transportes, podemos perguntar se não seria mais interessante investir no transporte público urbano, para reduzir os congestionamentos e aumentar a qualidade do serviço prestado à população (majoritariamente de baixa renda) que dele necessita nos deslocamentos cotidianos. Enquanto o estudo de viabilidade do TAV prevê a realização de 35 milhões de passageiros por ano, o metrô de São Paulo transporta 3,4 milhões de passageiros por dia, o que equivale a 1,24 bilhão de passageiros por ano. O impacto da ampliação da rede de metrô e sua integração com outros transportes públicos sobre a qualidade de vida e a produtividade dos grandes centros urbanos possivelmente seria muito superior ao impacto do TAV.

Não é preciso ser especialista em infraestrutura para saber que outras áreas também estão muito atrasadas no Brasil: estradas necessitam de recuperação e duplicação; há grande concentração de habitações em áreas de risco que precisam ser removidas; os aeroportos são acanhados e estão congestionados; os portos são ineficientes e insuficientes; há déficit na geração e distribuição de energia elétrica, há inúmeros projetos de ferrovias de carga por desenvolver e as já existentes necessitam de investimentos para aumentar sua produtividade.

O PROJETO CONFLITA COM A POLÍTICA MACROECONÔMICA

Mas o problema do TAV não está apenas no fato de não ser um investimento prioritário. Outro problema é que o projeto conflita com as diretrizes de política econômica do governo. Sabe-se que um dos principais problemas macroeconômicos do País é a valorização do real frente ao dólar, que encarece as exportações brasileiras e reduz a competitividade dos produtos nacionais no exterior. Para enfrentar essa dificuldade, nada melhor que investir na redução dos custos incorridos pelos exportadores (o famoso “Custo Brasil”). Na área de infraestrutura, a melhor maneira de fazê-lo parece ser por meio de investimentos no transporte ferroviário de carga e na modernização dos portos. Investir em transporte ferroviário de passageiros em nada ajuda nesse processo.

Outra forma de enfrentar a desvalorização do dólar é por meio de um ajuste fiscal, que reduza a despesa pública como proporção do PIB. Expandir a despesa pública com a construção do TAV não apenas vai contra essa necessidade, como também torna ainda mais restrita a disponibilidade de recursos para outros investimentos de maior prioridade.

O TESOURO ASSUME RISCO FINANCEIRO EXCESSIVO

Outro problema grave está no mecanismo financeiro criado para financiar o investimento. O risco é suportado inteiramente pelo Tesouro Nacional. Isso ocorre porque o BNDES concederá um investimento de R$ 20 bilhões ao consórcio escolhido para fazer a obra. O Tesouro será o garantidor do empréstimo: se o consórcio não pagar, o Tesouro paga ao BNDES. Para tanto, o Tesouro receberá contragarantias da parte do consórcio. Se tiver que honrar o empréstimo, o Tesouro acionará tais contragarantias para ser ressarcido. O problema é que tais contragarantias são muito frágeis. Ficou estabelecido que elas serão representadas pelas ações do consórcio e pela sua receita operacional. Ora, se o TAV enfrentar dificuldades financeiras, as ações vão valer pouco (ações de empresas com problemas se desvalorizam) e a receita operacional será baixa. Logo, as contragarantias não serão suficientes para ressarcir o Tesouro.

E mesmo que o Tesouro receba as ações do consórcio para se ressarcir, isso significará uma estatização do TAV. E o que o governo vai fazer: passar a operar o trem com uma empresa estatal, engordando a administração pública com uma atividade não-típica de governo, e com incentivos à ineficiência? A outra opção seria leiloar novamente a concessão, mas um novo concessionário fará grandes exigências financeiras para assumir o negócio, tendo em vista que as perspectivas de ganho já se mostraram restritas, a ponto de o primeiro concessionário não ter conseguido pagar a dívida do empreendimento.

Frente à ameaça de ter que estatizar o TAV, o resultado provável é que o governo fique refém do consórcio operador do trem, concedendo-lhe mais e mais subsídios fiscais e creditícios ao longo do tempo.

O ESTUDO DE VIABILIDADE É VAGO QUANTO AOS POSSÍVEIS BENEFÍCIOS

Há que se questionar, também, quais seriam os benefícios trazidos pelo TAV. Nesse ponto, o que chama atenção é a superficialidade dos estudos técnicos[4]. Não há qualquer análise oficial que detalhe ou quantifique os benefícios a serem gerados pelo TAV. São apresentadas apenas referências genéricas a potenciais ganhos. Muitos desses alegados benefícios poderão ser, na prática, reduzidos por efeitos colaterais não levados em conta pelo estudo de viabilidade, que deveria não só considerá-los, mas, também, quantificá-los na medida do possível.

O primeiro argumento é o de que a ligação Rio – São Paulo está saturada, e que é fundamental um novo modal de transportes de passageiros além do rodoviário e do aéreo. Mas o próprio estudo de viabilidade mostra que pelo menos 60% do tráfego estimado de passageiros será no eixo São Paulo – Campinas – São José dos Campos. O trecho Rio – São Paulo ficaria com apenas 18% das viagens. Ora, nesse caso, seria muito mais interessante pensar em um sistema de trens que ligasse, inicialmente, apenas as três cidades paulistas, deixando para uma segunda etapa a extensão até o Rio de Janeiro (que, diga-se de passagem, representa o trecho da obra com maiores desafios de engenharia, devido à necessidade de lidar com o declive da Serra das Araras). Já existe, no âmbito do Governo do Estado de São Paulo, projetos de ferrovias que atenderiam bastante bem, a custo muito menor, a demanda por transporte ferroviário de passageiros entre as cidades paulistas. A ligação Rio – São Paulo poderia ser atendida por meio de ampliação de aeroportos ou construção de novos aeroportos, que serviriam não apenas essa ligação, mas todos os demais destinos nacionais e internacionais.

Alega-se que o TAV irá reduzir o tráfego de automóveis e ônibus nas estradas, minimizando congestionamentos, elevando a segurança dos viajantes e gerando impacto ambiental positivo, pela substituição do consumo de combustíveis fósseis pela energia elétrica renovável a ser usada na propulsão dos trens.

Há que se considerar, porém, que a construção do TAV irá drenar significativos recursos financeiros e impedirá a realização de investimentos no transporte ferroviário de carga em todo o País. A consequência será a expansão do número de caminhões trafegando nas estradas de todo o país (que poderiam ser substituídos por trens de carga), queimando óleo diesel, aumentando o tráfego e os riscos de acidentes.

A respeito desse efeito, é interessante citar a comparação feita por O´Toole (2008, p.12-13) entre o transporte de cargas nos EUA (que não têm TAV) e a Europa (onde há ampla rede de TAV): “a ênfase da Europa no uso de trens para o transporte de passageiros teve profundo efeito na movimentação de cargas. Nos EUA, um pouco mais de um quarto das cargas são transportadas por estradas e mais de um terço por trens. Na Europa quase ¾ seguem pela estrada (…). A baixa capacidade de transporte de carga das ferrovias da Europa e do Japão indicam que um país ou região pode usar seu sistema ferroviário para passageiros ou carga, mas não para os dois.  Gastar US$ 100 bilhões por ano em transporte ferroviário de passageiros pode tirar uma pequena porcentagem de carros das estradas, mas uma possível consequência é um grande aumento no número de caminhões nas estradas” – tradução livre.

O’Toole (2008, p. 6 e 8) também contesta idéia de que o TAV é capaz de promover significativo desafogamento de rodovias. Afirma que, no caso do projeto em estudo na Flórida – EUA, “os planejadores estimaram que a linha de trem removeria apenas 2% dos carros de um segmento não-saturado da rodovia I-4, e parcelas ainda menores de outros segmentos(…)[Na Califórnia] o trem de alta velocidade tiraria, em média, 3,8% dos carros das rodovias paralelas às linhas férreas” – tradução livre.

O benefício ambiental decorrente da substituição da queima de combustíveis fósseis por energia elétrica renovável também pode vir a ser eliminado pelo impacto ambiental causado pela construção do TAV: uma grande quantidade de carbono será liberada durante o longo processo de construção, lembrando que o projeto brasileiro atravessará ampla área de mata atlântica e nascentes. O estudo de viabilidade deveria mostrar esses dados e fazer as devidas comparações. Mas simplesmente silencia a respeito.

Outro argumento apresentado pelos defensores do trem bala consiste no fato de que o investimento no TAV reduziria os investimentos necessários na reforma e ampliação de aeroportos. Tal idéia só se aplica aos aeroportos de Santos Dumont e Congonhas, que atualmente operam a ponte aérea, e aos do Galeão e de Guarulhos, que estão na rota do TAV. O outro aeroporto inserido no trajeto – Viracopos, Campinas – teria seu tráfego ampliado, ao se tornar uma opção atraente de acesso à cidade de São Paulo, exigindo mais investimentos. Além disso, a realização de grandes eventos esportivos nos próximos anos e o atraso histórico na capacidade e eficiência dos aeroportos brasileiros exigirão grandes investimentos em aeroportos, independentemente de se construir ou não o TAV.

Há, também, o argumento de que o TAV utilizaria faixa de terreno mais estreita que as rodovias, o que propiciaria economia em termos de uso do solo. Tal argumento parece ser válido apenas para os trechos não urbanos, pois as rodovias acabam na entrada da cidade e, a partir dali, utilizam-se as pistas já existentes. No caso do trem será preciso desapropriar solo urbano (em geral mais caro que o não urbano) para uso exclusivo da linha férrea, que entra na cidade para chegar até a estação. Há que se considerar, ainda, os custos gerados pelo seccionamento das cidades pela linha férrea. No caso do TAV, que não admite o cruzamento da linha por carros ou pedestres, e que fica isolado por altas grades e muretas, será preciso criar túneis, pontes ou trechos subterrâneos de modo a não bloquear a livre circulação da população no interior das cidades por onde passar.

E o que dizer do argumento de desenvolvimento regional? De fato o TAV tende a gerar prosperidade para as cidades que, incluídas em seu trajeto, são contempladas com estações. Ahlfeldt e Feddersen (2010) mostram evidências estatísticas de progresso econômico em cidades do interior da Alemanha que se tornaram mais acessíveis aos grandes centros de Colônia e Frankfurt. Mas esse benefício tem como contrapartida os custos impostos às cidades onde o trem passa, mas não pára: essas cidades sofrem os efeitos negativos (poluição sonora e visual, seccionamento do seu território, demolição de equipamentos públicos preexistentes, etc.), sem ter o benefício de serem servidas pelo trem. Ademais, o TAV irá circular sobre a região mais desenvolvida do País. Do ponto de vista de impacto regional, e lembrando que haverá gastos do governo federal para viabilizá-lo, o TAV representa, assim, uma transferência de renda das regiões mais pobres do País para o eixo Rio – São Paulo – Campinas.

Há, também, que se comparar os benefícios das cidades contempladas com estações aos custos pagos pelos contribuintes de todo o país, muitos dos quais jamais utilizarão o trem nem tampouco receberão benefícios indiretos gerados por esse equipamento.

A assertiva de que a construção do TAV permitirá a absorção de tecnologia pelo país suscita a seguinte dúvida: tal tecnologia tem aplicação em outras áreas da indústria ou se limita à construção de trens velozes? Se não tiver externalidades para outro segmento será inútil absorvê-la, pois não parece haver outros trechos com possível viabilidade para construção de TAV no país.

Alega-se que os trens de alta velocidade de outros países geram redução do tempo total de viagem em relação ao avião, pois não exigem gasto de tempo com check in, além de terem estações mais próximas aos centros das cidades que os aeroportos, que costumam se situar fora da área urbana. No caso brasileiro esse último argumento não se aplica, pois os aeroportos Santos Dumont e Congonhas, que servem a ponte aérea entre Rio e São Paulo, têm localização mais privilegiada que aquelas planejadas para as estações do TAV, fato que é reconhecido pelo estudo de viabilidade. Além disso, inovações tecnológicas, como o check-in prévio, via web, e o check-in eletrônico disponível no próprio aeroporto reduzem esse diferencial de tempo sem a necessidade de grandes investimentos.

Em suma, se o Governo pretende lançar dinheiro público em um projeto arriscado, que pode custar entre R$ 14 e R$ 36 bilhões ao contribuinte, é preciso muito mais do que simplesmente apresentar uma lista de possíveis benefícios. É essencial que se façam estudos aprofundados e detalhados desses alegados benefícios, para verificar se, de fato, eles se materializarão, com que intensidade, e quais os possíveis efeitos colaterais que reduzirão o ganho líquido estimado. Além disso, esses benefícios precisam ser superiores aos gerados por outros investimentos de infraestrutura.

Referências bibliográficas

Ahlfeldt e Feddersen (2010) From periphery to the core: economic adjustments to high speed rail. Disponível em http://www.ieb.ub.edu/aplicacio/fitxers/WS10Ahlfeldt.pdf

O’Toole, Randal (2008) High-speed rail: the wrong road for America. Policy Analysis, nº 625. CATO Institute. Disponível em http://www.cato.org/pubs/pas/pa-625.pdf

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Para ler mais sobre o tema:

Mendes, Marcos (2010) Trem de alta velocidade: caso típico de problema de gestão de investimentos. Centro de Estudos da Consultoria do Senado. Texto para Discussão nº 77. Disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/NOVOS%20TEXTOS/Texto%2077%20-%20Marcos%20Mendes%20-%20TAV.pdf

Mendes, Marcos (2010) Trem de alta velocidade: novas informações para debater o projeto. Centro de Estudos da Consultoria do Senado. Texto para Discussão nº 82. Disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/NOVOS%20TEXTOS/TD%2082%20-%20Marcos%20Mendes.pdf


[1] Estas estimativas foram feitas em artigo do autor sobre o tema, disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/NOVOS%20TEXTOS/TD%2082%20-%20Marcos%20Mendes.pdf

[2] http://www3.fgv.br/ibrecps/CPS_infra/sumario.pdf

[3] Fonte: Valor Econômico, edição de 22 de março de 2011.

[4] Tais estudos estão disponíveis em www.tavbrasil.gov.br

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