Instituições – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Wed, 05 Jan 2022 14:33:22 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Democracia, bem comum e prosperidade no Brasil https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3553&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=democracia-bem-comum-e-prosperidade-no-brasil Wed, 05 Jan 2022 14:33:22 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3553 Democracia, bem comum e prosperidade no Brasil

 

O que há de errado com a economia brasileira?

 

Por Eiiti Sato*

 

Democracia e prosperidade

Desde o fim dos governos militares, diante de qualquer problema, os sucessivos governos no Brasil têm insistido na sua preocupação com a “defesa da democracia”, como se fora uma explicação e até uma justificativa para qualquer dificuldade ou para qualquer desenvolvimento em curso. A democracia, no entanto, é um conceito que, no mundo real, só existe no plural, isto é, trata-se de um conceito que, quando levado à prática, transforma-se em “democracia americana”, “democracia francesa”, “democracia britânica” etc., que são substancialmente diferentes entre si, tanto em suas trajetórias históricas quanto na organização e no funcionamento de suas instituições políticas. Além disso, entre as democracias, há também diferenças quanto ao desempenho econômico, que é uma dimensão essencial para qualquer nação tanto na esfera doméstica quanto nas relações com outras nações.

Uma confusão muito frequente nas análises correntes entre regimes e formas de governo é imaginar que cada forma de governo, inevitavelmente, se associa a um determinado padrão de desempenho no funcionamento do Estado e da economia quando, na realidade, monarquias ou repúblicas podem ser mais autoritárias ou mais democráticas, e podem também ser bem administradas ou podem ser mal governadas. Em termos de padrão, ou de prática democrática, uma monarquia pode ser muito mais parecida com uma república do que dois países que adotam formalmente regimes semelhantes com eleições periódicas de seus governantes e de seus deputados. Durante os muitos séculos em que as monarquias governavam a Europa, havia monarquias tirânicas e havia também monarquias governadas por príncipes sensatos, prudentes e sábios. Ou seja, havia diferenças marcantes nos regimes monárquicos que governaram por séculos a Europa. Em geral, regimes tirânicos tinham mais dificuldades para promover a prosperidade por muitas razões, entre as quais estava o fato de que regimes autoritários tendiam a se fechar em si mesmos e, em virtude da desconfiança em relação às mentes independentes, geralmente os tiranos tendiam a desprezar o trabalho e a criatividade de mentes engenhosas e capazes. Na história do Brasil, embora o movimento pela República justificasse suas demandas sobre “vícios da monarquia”, as crônicas relatam que Rojas Paul – presidente da Venezuela – ao tomar conhecimento da Proclamação da República no Brasil em 1889, teria lamentado “Este é o fim da única república que jamais existiu na América”.[1]

Em Siena, há um famoso conjunto de afrescos de meados do século XIV pintados por Ambrogio Lorenzetti para decorar o Salão da Paz no Palácio Público de Siena, que ilustra essa dicotomia entre reinos governados por regentes sensatos e benéficos ao povo e reinos governados por tiranos.[2] Esses afrescos retratam bastante o entendimento da época e identificam o Bom Governo com monarcas portadores de virtudes como o senso de justiça, a honestidade, a temperança e a preocupação com a busca do bem comum, e o resultado desse bom governo seria um ambiente de ordem e prosperidade que beneficiava todo o povo, inclusive o próprio governante, que se tornava respeitado e próspero como seu povo. Por outro lado, no afresco pintado na parede em frente, Lorenzetti retratou o que seria um Mau Governo, que seria caracteristicamente comandado por um rei tirano, sem qualquer preocupação com o bem comum, e marcado por vícios como o egoísmo, a inveja e a crueldade, espalhando a desconfiança e o divisionismo entre seus governados. O produto desse governo tirânico, dominado por vícios, seria um reino assolado pela pobreza, e por um ambiente de desconfiança, e pela infelicidade. Esse ambiente, dominado pelo egoísmo a pela falta de confiança, afasta qualquer possibilidade de ações coletivas tais como investir em negócios e apostar no futuro.

Assim, há muito tempo que a percepção comum em toda parte é a de que a prosperidade é um produto que não depende tanto de formas de governo, mas muito mais das virtudes de seus governantes e da preocupação genuína com a promoção do bem comum. Em outras palavras, mais importante do que formas de governo é a maneira como os governantes encaram suas responsabilidades e como as instituições do Estado são manejadas por aqueles que ocupam cargos de liderança e de responsabilidade pública em seus países. Em suma, o regime considerado democrático não constitui garantia de um Estado operante e de governos capazes de promover o progresso e a prosperidade da nação. No caso do Brasil, há vários fatos que, claramente, indicam que, muito embora o regime possa ser caracterizado como “democrático”, o Estado claramente está doente, isto é, suas instituições públicas e seus governantes não cumprem, ou cumprem apenas precariamente o papel que deveriam cumprir.

Um Estado doente

De acordo com dados do Banco Mundial, entre 2010 e 2020 a economia brasileira teve um desempenho muito ruim – na realidade, uma recessão de mais de 30% em dez anos – e, pior, os dados mais recentes indicam que esse baixo desempenho não tem perspectivas de melhorar nos próximos anos. A economia brasileira, que vinha se mantendo como a 9ª economia do mundo, vai saindo da pandemia como a 13ª economia mais rica do mundo em termos nominais. O que parece claro é que esse desempenho ruim não pode ser atribuído à pandemia e a fatores externos, uma vez que o Brasil ficou bem abaixo da média mundial e abaixo até mesmo da média dos países da região. Considerando as dimensões e o peso da economia brasileira na região, as cifras sugerem que o Brasil foi o principal responsável por “puxar” para baixo a média ruim da América Latina e Caribe.

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Taxa de Crescimento no período 2010-2020 (%)

 

Mundo:                                    27,8

Brasil:                                      (-34,5)

Argentina:                                  (-9,5)

Chile:                                           15,8

Peru:                                            36,9

Uruguai:                                      33,0

México:                                       1,7

Am. Latina & Caribe         (-12,3)

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Fonte: Banco Mundial

O Brasil parece ser hoje uma nova versão da expressão “the sick man of Europe” usada pelo czar Nicolau II para designar o Império Otomano que, nos fins do século XIX, vivia o final de um período de continuada decadência, marcado por tensões políticas internas, pela desindustrialização e pelo crescente empobrecimento. No Brasil, embora não haja grandes tensões internas, a desindustrialização é bastante visível e a desconexão com a economia mundial é crescente, em um ambiente em que até mesmo economias comandadas por um Partido Comunista, como a China e o Vietnã, aumentam seus níveis de integração com a economia mundial.

Além do sentimento de satisfação ou de preocupação, o desempenho econômico pode ser visto também como sintoma de um ambiente político e institucional que favorece ou que dificulta a geração de atividade econômica que resulta em riqueza ou empobrecimento. É certo que o desempenho econômico de um país depende de muitos fatores, mas isto não quer dizer que não seja possível apontar um ou mais fatores que, aparentemente, desempenham papel de relevo no bom ou no mau desempenho de uma economia. Ao se observar o caso brasileiro, a primeira conclusão inevitável, como mostram os dados acima, é que as possíveis razões ou fatores que podem explicar o desempenho negativo da economia, devem ser procurados na esfera doméstica. Além disso, considerando o fato de que o desempenho ruim é um fenômeno consistente, que se estende por sucessivos governos de diferentes orientações políticas, também não se pode culpar eventuais equívocos ou falhas na formulação de políticas econômicas. Assim, só resta entender que os possíveis fatores ou causas do baixo desempenho econômico devem estar situados no ambiente institucional, que orienta a vida econômica e política da nação. Em outras palavras, a única conclusão possível parece ser o entendimento de que Estado está doente – the sick man of Latin America – e a principal enfermidade é a deterioração da ordem, que gera incertezas e afasta os investimentos, sejam de origem doméstica ou internacional. A deterioração da ordem não aparece (por enquanto) na forma de inquietação social, mas na forma de incapacidade de as instituições transmitirem confiança e segurança para a nação e de uma agenda de preocupações da classe governante desacoplada das expectativas das populações. São muitos os sintomas bastante visíveis da deterioração da ordem que, de muitas formas, comprometem o crescimento econômico e complicam até mesmo o dia-a-dia dos cidadãos.

A política e o significado da deterioração da ordem

De forma resumida, a deterioração da ordem pode ser definida como a incapacidade de o Estado fazer cumprir as leis vigentes, isto é, de exercer com eficácia sua soberania. Desde Jean Bodin, nos primórdios do Estado moderno, os teóricos definem soberania como sendo um fenômeno com duas faces. Uma face externa pela qual o Estado soberano revela ser capaz de agir com independência diante de outros Estados e, de outro lado, uma face interna pela qual as instituições do Estado soberano revelam ser capazes de produzir leis e de exercer o poder para fazer com que essas leis sejam cumpridas com respeito e com eficácia no âmbito de seu próprio território. No mundo atual essas duas faces da soberania – externa e interna – tornaram-se mais integradas e, pode-se dizer, que se tornaram até mesmo complementares.[3] Com efeito, na política internacional desde os fins do século XX, as fronteiras perderam muito de sua importância tradicional como peça essencial de demarcação física do espaço de soberania e de independência em relação a outras nações. Excetuando casos absolutamente excepcionais como o da Coreia do Norte que, por razões ideológicas, continua mantendo pesada vigilância militar sobre suas fronteiras, no mundo em geral, as fronteiras são vigiadas e observadas apenas em relação ao fluxo de mercadorias e de migrantes, ou ainda na movimentação de recursos financeiros, para os quais as fronteiras físicas não passam de referenciais contábeis. Ou seja, de muitas formas, as faces externa e interna da soberania hoje se integram e são, na verdade, muito mais complementares do que elementos de separação como o foram em tempos passados. A existência de uma União Europeia é um exemplo visível dessa complementaridade entre os elementos da independência externa e o bom funcionamento das instituições domésticas. Os países que formam a União Europeia jamais deixaram de valorizar a sua independência e a sua individualidade, mas não viram grandes problemas, na verdade viram muitas vantagens em se integrarem em um arranjo regional. Outro exemplo interessante é o caso das fronteiras dos EUA com o Canadá e com o México. Com o Canadá raramente se tem notícia de problemas de fronteira, uma vez que muitos padrões econômicos e sociais internos dos dois países guardam muitas semelhanças entre si enquanto, por outro lado, na fronteira com o México, as notícias na imprensa sobre problemas e preocupações são frequentes, inclusive porque o México tem sido destino de muitas correntes migratórias que tentam ingressar nos EUA em vista das dificuldades vividas por muitas populações em seus países de origem.

O Brasil, que costumava apresentar com orgulho sua história de grande país receptor de migrantes do mundo todo, nos últimos anos, para tristeza da nação, tem sido crescente o número de brasileiros presos tentando entrar ilegalmente nos EUA pelas fronteiras do México. Assim, no caso do Brasil de hoje, a face doméstica do exercício da soberania é que tem sido desafiada de forma bastante generalizada comprometendo a ordem e o funcionamento regular das atividades civis, trazendo como efeito o comprometimento da sua posição da esfera internacional de muitas maneiras.

Do ponto de vista da construção da ordem, o cumprimento e o respeito às leis domésticas são essenciais, uma vez que constituem os sinais mais visíveis daquilo que é valorizado e daquilo que é rejeitado pela nação. Com efeito, a aplicação das leis e o funcionamento da ordem doméstica têm sido continuamente desafiadas no Brasil por variadas forças ou grupos de indivíduos, por vezes estruturados em organizações, tais como traficantes que passam a dominar bairros e regiões inteiras de grandes cidades, grupos marginalizados que formam guetos e que simplesmente se recusam a cumprir as leis vigentes. Há também os interesses corporativos geralmente organizados em sindicatos, muitos deles entranhados no próprio Estado, que são capazes de manter a paralisação de serviços públicos essenciais para a população por semanas e até por meses seguidos. A ordem é desafiada até mesmo por grupos difusamente definidos que alegam direitos de etnias sobre áreas urbanas ou rurais, que fazem prevalecer suas vontades mesmo que precariamente sustentados por documentos ou por meio de outros comprovantes previstos em lei. Uma breve observação de alguns fatos e cifras pode ser bastante ilustrativa e esclarecedora do fenômeno.

Indicadores da deterioração da ordem interna

Um primeiro indicador ou componente institucional dessa deterioração da ordem pode ser observado nos índices de criminalidade de todos os tipos no Brasil que são substancialmente mais elevados do que o da esmagadora maioria dos países. No Brasil, os homicídios são contados anualmente aos milhares. Se forem incluídas as mortes no trânsito, as cifras de mortes violentas praticamente dobram, contrastando fortemente com os padrões internacionais. Enquanto em outros países o número de assassinatos varia em torno de um ou dois assassinatos por ano para cada grupo de 100 mil habitantes, no Brasil esse índice tem permanecido acima de 20 assassinatos a cada ano por grupo de 100 mil habitantes. Nas grandes cidades brasileiras há bairros ou setores urbanos em que as forças policiais são virtualmente impedidas de exercer seu trabalho de contenção do tráfico de entorpecentes e de outros ilícitos tais como construções irregulares de moradias e comercialização de produtos contrabandeados e de sinais de TV a cabo por grupos criminosos que se apropriam criminosamente dos sinais e dos programas de empresas legalmente organizadas. Os casos mais notáveis são as favelas do Rio de Janeiro e a “cracolândia” e a “zona do Glicério” em São Paulo, mas em toda grande cidade brasileira há bairros inteiros nos quais comerciantes e cidadãos ficam à margem da autoridade e da proteção do Estado, vivendo à mercê de grupos de foras-da-lei de todos os tipos. Fenômenos geralmente tratados de forma distinta como a violência contra a mulher e contra crianças fazem parte desse quadro mais geral do fracasso do Estado em proteger e dar segurança ao indivíduo contra o crime e a violência em todas as suas formas. Além dos efeitos imediatos em termos de sofrimento e de frustração, a criminalidade elevada compromete de muitas formas o crescimento econômico, começando pelo estímulo a atividades ilegais, que apenas consomem recursos públicos sem proporcionar retribuição na forma de impostos. Atividades econômicas que não conseguem se desenvolver em um ambiente de insegurança como a indústria do turismo (eventos, hotelaria, bares e restaurantes etc.) são também formas pelas quais a criminalidade prejudica o aparecimento e o desenvolvimento de atividades econômicas. Além disso, de forma generalizada, o comércio e a indústria se ressentem diretamente dos elevados custos para compensar a falta de segurança que deveria ser proporcionado pelo Estado, como ocorre em outros países. Vale lembrar também que roubo de cargas e comercialização em grande escala de mercadorias roubadas é uma forma significativa pela qual a criminalidade dificulta o desenvolvimento regular das atividades econômicas.

Outro sintoma da deterioração da ordem no Brasil, e que o Estado tem responsabilidade direta, são as diversas formas de tolerância a transgressões. Uma prática que se tornou corrente na administração pública brasileira é a adoção do perdão fiscal como procedimento regular. Em geral, sob a justificativa de recuperar receitas e de incentivar e de trazer de volta os inadimplentes, isto é, as pessoas e as empresas que se encontram à margem da ordem legal, as autoridades federais, estaduais e municipais transformaram um recurso de política fiscal, que deveria ser ocasional, aplicada apenas em circunstâncias excepcionais, em prática corrente regular que, ao final, o resultado mais relevante é o incentivo à inadimplência e à desmoralização do sistema fiscal. Diante do fato de que, periodicamente, o poder público promove um “perdão fiscal”, o pagamento de impostos de forma correta e dentro dos prazos estabelecidos por lei passa a ser um “mau negócio”, ou seja, enquanto o mau pagador ganha descontos e vantagens, o bom pagador – grande ou pequeno – sente que, ao pagar corretamente seus impostos, perdeu uma oportunidade de ganhar com a inadimplência e que, afinal, fez papel de tolo aos olhos da sociedade. Em outras palavras, a prática regular do recurso do “perdão fiscal”, faz com que, mais do que as perdas de arrecadação, os prejuízos morais sejam mais relevantes. Embora não seja possível precisar em cifras, é muito provável que a maioria das empresas brasileiras hoje tenham um serviço jurídico e uma área financeira organizados com o propósito específico de avaliar as perspectivas de ganhos com a administração do não pagamento dos impostos no tempo devido. No longo prazo, não apenas o regime fiscal torna-se vicioso, mas a própria atividade empresarial desenvolve distorções incompatíveis com a competição justa, especialmente na esfera internacional.

Outro exemplo notável de sintoma da deterioração da ordem no Brasil pode ser observado no processo de desenvolvimento do Distrito Federal e que, até por ser a capital da nação, o fenômeno pode ser entendido como sendo comum ao país como um todo. Brasília geralmente é apresentada como cidade planejada e notável por sua arquitetura. Apesar de tudo, há muito tempo que os fatos deixaram de respaldar essa visão de Brasília e do Distrito Federal. Com efeito, passados os primeiros anos, os conceitos e os ensinamentos da boa arquitetura foram completamente esquecidos à medida que Brasília se expandia transformando completamente seus padrões de convivência urbana. Seus governantes e representantes – presumidamente eleitos de forma democrática – deixaram completamente de lado os benefícios e as vantagens de uma cidade planejada e construída com elevados padrões arquitetônicos. Um após outro, os governos que se sucederam no comando do Distrito Federal desprezaram a rara oportunidade de uma cidade planejada desde sua fundação, que dispunha inclusive de um plano diretor para orientar legalmente seu desenvolvimento futuro. Com efeito, em pouco mais de duas décadas, Brasília e o Distrito Federal foram diluídos em um aglomerado urbano disforme, sob o comando de predadores e de oportunistas de todos os matizes, que contaram com o beneplácito, e até mesmo com a cumplicidade, de seus governantes que, sistematicamente, vêm mudando ou simplesmente abolindo leis e normas de urbanização em atenção aos interesses e às ações de grileiros e de falsários que passaram a se apropriar de terras públicas e a vender ilegalmente essas terras. Após o loteamento e a ocupação ilegal dessas terras, os governos passaram a promover a “regularização” dos loteamentos sob o argumento do “fato consumado” e de haver um “déficit de moradias” no Distrito Federal.

Hoje a população do Distrito Federal já ultrapassou os 3 milhões de habitantes, dos quais apenas o equivalente a cerca de um quinto dessa população reside em moradias que guardam alguma característica ou padrão urbanístico da cidade originalmente planejada. A construção de espaços urbanos para acomodar a adição dos quase 2,5 milhões de habitantes foi feita abandonando completamente o plano original da cidade e desprezando totalmente as noções e os conceitos da boa arquitetura. Não há qualquer exagero em dizer que toda a expansão urbana de Brasília e do Distrito Federal nas últimas três décadas foi feita substituindo-se o termo planejamento urbano pela expressão regularização, que é exatamente o oposto da boa arquitetura e da organização dos espaços urbanos de acordo com os conhecimentos da arte e da ciência do urbanismo.

Em outras palavras, o planejamento urbano pressupõe a existência de uma autoridade legal e institucional que estabelece os propósitos, os padrões e as características dos espaços urbanos a serem construídos seguindo-se as normas técnicas que devem levar em conta as características geológicas e topográficas da região sobre as quais são traçadas as vias, os logradouros e as construções para atender os requisitos da boa convivência urbana e social em todos os sentidos. A regularização, por sua vez, é o oposto dessa prática, isto é, todo o plano da cidade ou do bairro é feito pelo grileiro, que ocupa ilegalmente uma área de terra que não lhe pertence, e faz o traçado dos lotes e das vias públicas levando em conta apenas as vantagens a serem extraídas do traçado urbano. As autoridades aparecem apenas para “regularizar” as construções feitas ou ainda em curso sob a justificativa de “razões sociais”, mas que, na verdade, são razões apenas políticas pois têm em vista somente o processo eleitoral que se aproxima. Não se afigura necessário comentar as perdas e prejuízos, além dos custos em termos de recursos públicos decorrentes de áreas urbanas mal construídas. O fato é que até mesmo o núcleo original da cidade, que a duras penas, de algum modo, tem sido preservado, passa a sofrer os efeitos deletérios da expansão urbana desordenada do Distrito Federal na forma de inundações, de precariedade dos sistemas de transporte público e da proliferação das variadas formas de ilegalidade e até de ações criminais abertas.

A constituição federal e a deterioração da ordem

Na lista de sintomas da deterioração da ordem no Brasil muitos outros casos poderiam ser incluídos, mas seria um exercício entediante. Apesar de tudo, parece útil comentar mais um fator, que poderíamos chamar de estrutural, que tem contribuído significativamente para a deterioração da ordem no Brasil: a constituição brasileira vigente. Parece paradoxal que o documento básico na construção da ordem, que é a constituição, possa ser visto como fator de deterioração da ordem, mas vale refletir sobre a percepção dessa possibilidade presente na constituição. Com efeito, a constituição, ao definir a estrutura e o funcionamento das instituições centrais do Estado, é a peça central da ordem política e econômica dos países e, no caso do Brasil, muito embora a constituição vigente esteja centrada na orientação democrática, apresenta cláusulas potencialmente problemáticas para o funcionamento regular das instituições do Estado e também para a ordem econômica e social da nação de uma forma geral. Nesta análise parece importante destacar duas dessas dificuldades, particularmente problemáticas para o bom funcionamento da ordem econômica e social da nação.

A primeira dessas dificuldades trazidas pela constituição de 1988 – e a mais evidente – é o fato de que, ao procurar enunciar explicitamente cada possível direito do cidadão em todas as esferas, a constituição traz como consequência imediata o fato de que qualquer pendência envolvendo direitos na esfera civil, penal ou social torna-se uma pendência constitucional. Isto é, passível de ser levada à justiça federal até à mais alta corte da Justiça – ao Supremo Tribunal Federal (STF).

De fato, no momento em que a constituição declara formalmente que “garante o direito de propriedade” e, além disso, que “a propriedade atenderá sua função social”, qualquer disputa envolvendo o direito de propriedade como, por exemplo, a ocupação de terras por invasores ou ainda uma iniciativa de desapropriação ou de venda de terras públicas, a questão se torna constitucional. Em termos processuais, significa que os litigantes poderão levar suas demandas até o STF. Assim sendo, objetivamente, a questão nem deveria ser julgada em instâncias inferiores, uma vez que as cortes inferiores, ao julgar uma demanda sobre propriedade, estarão apenas procrastinando um processo judicial, pois a parte perdedora sempre poderá interpor recurso até que, finalmente – anos mais tarde – vir a ser julgado pelo STF, além do mais porque a constituição estabelece que o resultado de um julgamento se torna passível de aplicação somente após o “trânsito em julgado” (outra cláusula constitucional). O mesmo pode ser dito sobre “a defesa do consumidor”, “a prática do racismo”, a concessão ou não de “habeas corpus” ou de “habeas data”, ou ainda sobre os direitos “à educação”, “à saúde”, “à alimentação”, “ao trabalho”, “à moradia”, “ao transporte”, “à segurança”, “ao lazer”, “à previdência social”, “à proteção da infância e da maternidade”, e “à assistência aos desamparados”, que são mencionados de forma específica no texto da constituição brasileira vigente.[4]

A menção explícita e detalhada desses direitos na constituição deveu-se, basicamente, ao ambiente político de 1988, que ainda vivia a euforia do fim do regime de exceção dos governos militares, que havia se estendido por duas décadas. Nesse ambiente, enunciar e detalhar explicitamente esses direitos na constituição parecia um gesto de cidadania e de apreço pela democracia. O problema é que, do ponto de vista processual, a menção de forma específica e detalhada desses direitos na constituição traz consequências inevitáveis, entre elas a perda praticamente completa da importância e do papel das instâncias jurídicas inferiores e o acúmulo de processos no STF e, ao final, o substancial aumento no tempo de tramitação dos processos.[5] O fato é que para o cidadão individualmente, ou para as organizações empresariais, a demora na tramitação de processos judiciais significa essencialmente a sensação incômoda de que as instituições jurídicas apenas favorecem o malfeitor. Além disso, mesmo que o julgamento final seja favorável à parte prejudicada, na maioria esmagadora das vezes a demora favorece o mau pagador de impostos, o estelionatário, o agente corrupto, o falsário e a todos aqueles que agem de forma ilegal em prejuízo de outros cidadãos ou em detrimento do próprio Estado. Em outras palavras, a demora na tramitação dos processos acarreta prejuízos apenas para aqueles que buscam a Justiça na defesa de seus direitos. “A justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta” é uma das frases mais frequentemente lembradas de Rui Barbosa, mas incapaz de sensibilizar governantes e legisladores.[6]

De um ponto de vista da ordem econômica, a demora exagerada significa incerteza jurídica, afastando investidores potenciais, nacionais ou estrangeiros. Ninguém irá investir na criação ou na expansão de qualquer atividade econômica sabendo que seu capital investido e possíveis ganhos podem estar sujeitos a perdas pela ação de predadores (estelionatários, fraudadores, autoridades corruptas etc.) que têm a seu favor o labirinto de uma justiça lenta, complicada e dispendiosa. Não se trata de argumentar em favor de uma “justiça sumária”, mas apenas de uma justiça capaz de acompanhar os padrões internacionais das sociedades organizadas em termos de tempo de tramitação que, conforme estudos realizados por pesquisadores e por entidades como o Conselho Nacional de Justiça é, ao menos, duas vezes maior do que em outros países.

Uma outra cláusula presente na constituição que revela mais uma face bastante problemática da administração do Estado no Brasil refere-se à prática de inserir “emendas ao orçamento” por parlamentares. De uma forma geral, tal como ocorre em outros países democráticos, o orçamento previsto para os gastos públicos deve ser submetido à aprovação pelo Poder Legislativo, que discute e aprova o orçamento introduzindo emendas a respeito de como o Poder Executivo deve gastar o que foi arrecadado da atividade econômica da população, em geral por meio de impostos, de taxas, e das variadas formas de arrecadação de recursos pelo Estado. No entanto, no caso do Brasil, a interpretação dessa prerrogativa dada pelo Legislativo é que difere dos padrões internacionais criando vícios e distorções no emprego do dinheiro público. O termo emendas ao orçamento no caso brasileiro significa basicamente o direito que deputados e senadores têm de se apropriar de parte da arrecadação do Estado e gastar essa parcela sem qualquer consideração a respeito do bem comum e da necessidade de aprovação por qualquer instância. Deputados e senadores agem como se fossem verdadeiros lords de “feudos” obtidos ao conquistarem seus mandatos parlamentares. O Artigo 166, § 9º. da constituição diz que: “As emendas individuais (de deputados e senadores) ao projeto de lei orçamentária serão aprovadas no limite de 1,2% (um inteiro e dois décimos por cento) da receita corrente líquida prevista no projeto encaminhado pelo Poder Executivo, sendo que a metade deste percentual será destinada a ações e serviços públicos de saúde.” O entendimento praticado dessa cláusula é que 1,2% de toda a arrecadação pública deve ser distribuída entre deputados e senadores, que podem gastar esses recursos de forma completamente discricionária, isto é, sem qualquer consideração a outras instâncias normativas ou de controle pelo Estado. Trata-se de um privilégio que distorce substancialmente as funções legislativas uma vez que, por definição, executar o orçamento é prerrogativa exclusiva do Poder Executivo. Uma vez que o país é uma federação, essa mesma interpretação é estendida também ao Poder Legislativo dos Estados.

No conjunto, o fato de que o Poder Executivo no Brasil dispõe de um total aproximado de apenas 5% da arrecadação para ser gasto discricionariamente em políticas governamentais dá uma ideia das dimensões dessa distorção.[7] Em termos de valores, em 2020 significaram cerca de R$ 17 bilhões a serem gastos com emendas parlamentares uma vez que a arrecadação do ano foi de R$ 1,479 trilhão.[8] Para se ter uma ideia do que essas emendas  representam no orçamento público brasileiro, vale lembrar que o total de recursos previstos para investimentos no ano de 2021 foi de R$ 7,5 bilhões para o Ministério da Economia, R$ 1,18 bilhão para o Ministério da Infraestrutura, R$ 1,65 bilhão para o Ministério da Defesa, R$ 235 milhões para o Ministério da Saúde e de apenas R$ 7 milhões para o Ministério da Ciência e Tecnologia. Assim, verifica-se o fato de que o valor previsto como “emenda parlamentar” para apenas um deputado ou para um senador ultrapassa várias vezes o total previsto para investimento pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. A diferença é que até mesmo os ridículos R$ 7 milhões previstos para o Ministério da Ciência e Tecnologia foram um valor examinado e discutido quanto à pertinência e quanto a seus benefícios em termos de “bem comum”, enquanto os R$ 17 bilhões, foram distribuídos aos parlamentares sem discussão de propósitos e na simples presunção de que apenas o fato de que serão gastos por parlamentares é razão suficiente para considerar que serão bem gastos em um país notavelmente carente de recursos financeiros para investimentos sociais e para investimentos capazes de estimular a geração de riquezas.

Obviamente que não é apenas por conta dos montantes de recursos envolvidos em si que o peculiar entendimento do conceito de “emenda parlamentar” produz reflexos no comportamento e no desempenho econômico da nação. Na realidade, muito mais importante do que os montantes financeiros distribuídos entre deputados e senadores, o sentido moral envolvido nas negociações desses valores é que produz os efeitos mais deletérios para a ordem política. A discussão despudorada sobre a distribuição e o uso político dessa interpretação dada ao termo “emenda parlamentar” tem sido elemento de corrosão da confiança na relação entre governantes e governados, uma vez que a confiança constitui um valor essencial para se manter a coesão numa sociedade política organizada sobre valores democráticos.

A construção da ordem na reflexão teórica

Mancur Olson, em seu livro publicado post morten intitulado “Poder e Prosperidade”, discute a velha questão: por que alguns países são ricos e prósperos, enquanto outros vivem às voltas com a pobreza e o atraso? Olson argumenta que tudo começa com o fato de que em alguns países as instituições do Estado são mais efetivos em mostrar que, entre os papéis mais importantes a serem desempenhados pelos governos, destaca-se o de deixar claro o que deve ser reconhecido e recompensado distinguindo-o do que deve ser visto com reprovação e até punido pela sociedade que governa.[9] A estruturação do argumento de Olson acerca dessa hipótese explora o conceito de externalidade econômica de forma ampla. Conceitualmente, as externalidades econômicas podem ser positivas ou negativas. Um exemplo de externalidade positiva seria a construção de uma rodovia, cuja existência passa a estimular e, por vezes, até a viabilizar certas atividades econômicas ao facilitar o transporte de pessoas e de mercadorias naquela região. Por outro lado, exemplos correntes de externalidades negativas são os elementos geralmente referidos de forma conjunta como “custo Brasil” nas análises da imprensa especializada e nas discussões sobre economia brasileira. Burocracia dispendiosa e demorada, infraestrutura precária de comunicações e de transportes e elevados custos de produção de energia são frequentemente lembrados como componentes que tornam muitos produtos brasileiros comparativamente mais caros do que similares produzidos por outros países onde essas externalidades negativas não existem ou existem em escala muito menor do que no Brasil.

Numa sociedade democrática, uma autoridade pública que não coloca o bem comum acima de seus interesses pessoais é um notável elemento de externalidade negativa. Aos olhos do povo, a autoridade torna-se um hipócrita, um falsário, uma vez que foi eleito prometendo colocar sempre o bem comum acima de seus interesses pessoais. Uma economia comandada autoritariamente não depende tanto dessa imagem. Geralmente os governos assumem o poder pela aplicação de regras e do apoio direto de forças políticas e, assim, as autoridades estabelecem taxas e impostos ou realizam gastos públicos sem a necessidade de convencer as populações da real necessidade dessas medidas. Para um governo autoritário vale a máxima com que Maquiavel chocou os pensadores de seu tempo: “o governante precisa ser temido”. Na realidade, nas sociedades democráticas a força das autoridades, em todos os níveis e em todos os ramos do Estado, reside na credibilidade e na confiança que seus governados depositam nas palavras e, principalmente, nas intenções manifestas de seus governantes. Ou seja, credibilidade e confiança são essenciais para que impostos sejam pagos com naturalidade e para que leis e medidas sejam respeitadas, muito embora limitem as ações de indivíduos e de empresas, havendo credibilidade na justificativa de que tais leis e medidas realmente comprometem bens públicos, como o meio ambiente, ou que simplesmente prejudicam outras pessoas e outras organizações que formam a tessitura social e econômica da cidade e da nação.

Além disso, Olson acrescenta outro argumento crucial para o bom funcionamento das sociedades democráticas: o de que os interesses organizados em corporações constituem verdadeiros obstáculos ou empecilhos à promoção do bem comum. Enquanto os bens públicos, como qualidade do meio ambiente ou benefícios advindos da preservação de valores sociais e culturais são generalizados, difusos e de longo prazo (educação de qualidade, segurança pública, saneamento, qualidade ambiental etc.), os interesses corporativos tendem a ser específicos e organizados em associações sindicais, por vezes entranhados no próprio Estado. Nesses casos, o Estado se torna uma espécie de butim a ser disputado e dividido entre interesses corporativos, deixando de ser uma fonte de geração e de proteção de bens públicos necessários à existência de um ambiente de estímulo à inovação e à competição sadia na produção de bens e de serviços pelos indivíduos e pelas organizações empresariais.[10] A defesa despudorada de recursos públicos destinados a “emendas parlamentares” e com gastos eleitorais não ajuda a transmitir o sentimento de que deputados, senadores e outras autoridades eleitas estejam, de fato, interessados em defender e promover bens públicos, além de seus próprios interesses pessoais.

Outro pensador que desenvolveu argumento na mesma direção foi Alain Peyrefitte, para quem a confiança é tida como um valor fundamental para que as instituições de uma sociedade democrática funcionem de modo efetivo. Em sua obra A Sociedade da Confiança, Alain Peyrefitte discute o papel central da confiança como fator fundamental no desenvolvimento ou no atraso econômico dos países.[11] Em uma incursão pela antropologia política, Peyrefitte identifica dois tipos de sociedade na história: as sociedades da confiança e as sociedades da desconfiança. As sociedades do primeiro tipo tendem a desenvolver relações harmônicas e construtivas, enquanto as sociedades do segundo tipo são definidas pelo conflito e pela disputa constante e, portanto, por um clima de insegurança permanente na qual a ordem só pode ser conseguida por meio do emprego da força pela autoridade. No caso do Brasil, com grandes carências sociais bastante evidentes, gastos públicos voltados claramente para beneficiar ganhos e interesses da própria classe política corroem o respeito e a credibilidade de seus governantes. A falta de credibilidade da classe política compromete o uso da força necessária à manutenção da ordem. Além disso, no Brasil, o uso da força pelas autoridades para a manutenção da ordem é significativamente limitada por disposições legais que, na constituição vigente, aceita a existência de poderes concorrentes com a autoridade do Estado como a dos interesses corporativos organizados em sindicatos e em outras organizações genericamente referidas como “sociedade civil organizada”.

Sob um ponto de vista ainda mais geral, isto é, da filosofia política, vale lembrar a obra de Thomas Hobbes. Para muitos historiadores a figura de Hobbes ficou associada ao absolutismo, no entanto, um olhar mais atento revela que a preocupação de Hobbes não era justificar o emprego da força pelos príncipes, mas sim o fato de que sem “ordem”, não apenas o progresso se torna difícil, mas a própria liberdade política e civil torna-se impossível. Sem essa forma de ver a questão da ordem e do exercício da autoridade pelo Estado, a obra de Hobbes não poderia ser apreciada com respeito e até com admiração pelos pensadores da tradição liberal, que sempre rejeitaram a tirania e a intervenção do Estado. Com efeito, particularmente no século XVII, a ordem só poderia ser produto da ação de príncipes bem instruídos – alegoricamente ilustrada nos afrescos de Ambrogio Lorenzetti.

A famosa frase atribuída a Louis XIV “l’État c’est moi” pode ser vista como uma afirmação de sua autoridade diante de seus ministros e de seus súditos mas, muito provavelmente, seria mais apropriado entender essa afirmação como uma simples constatação de um fato corrente, uma vez que, à época, as instituições do Estado moderno e democrático ainda não existiam. Com efeito, até o século XVII eram os reis que se sucediam de forma hereditária, ouviam seus súditos e distribuíam diretamente a justiça, além de decidir sobre a guerra e a paz. Os reis podiam manter um pequeno círculo de conselheiros e até convocar estados gerais, mas era apenas para serem consultados. Tais instâncias colegiadas até podiam ter algum poder, mas esse poder era sempre exercido através do soberano. No século XVI, juristas como Francisco de Vitória não tinham qualquer dúvida quando perguntados sobre “a quem cabia declarar a guerra”, a resposta era simples e imediata: cabia ao soberano.[12] É o que explica os afrescos alegóricos de Ambrogio Lorenzetti sobre “O Bom Governo” e “O Mau Governo”, e explica também a preocupação dos iluministas do século XVIII sobre a necessidade de príncipes e de reis serem bem instruídos e educados para produzir governos prudentes e sábios. Em suma, foi somente a partir do século XVIII que os Estados passaram a estabelecer instituições políticas e jurídicas que hoje chamamos de democráticas para construir e manter a ordem em substituição a “déspotas esclarecidos”.

A ordem nos Estados modernos

Na realidade, uma das facetas mais admiráveis do movimento liberal que se disseminou a partir do século XVIII foi a capacidade de conceber, de construir e de garantir a ordem social e política por meio de instituições e não mais por meio de governantes hereditários, que usassem seu poder e sua autoridade com sensatez, prudência e sabedoria em benefício da nação. A criação de instituições substituía com vantagens os déspotas esclarecidos, uma vez que, por mais sábios e mais benevolentes, os déspotas esclarecidos seriam um dia substituídos por outros governantes sobre os quais não havia qualquer garantia de que usariam seu poder com justiça, moderação e sabedoria. Louis XIV foi um governante que levou a França a viver uma era de realizações e de notável esplendor a ponto de Voltaire comparar os tempos de Louis XIV com a era de ouro da Grécia de Péricles e com a Itália renascentista.[13] Após duas gerações, no entanto, Louis XVI herdou a mesma França, o mesmo Estado, com as mesmas instituições e com as mesmas crenças, que haviam servido tão bem a Louis XIV, mas viu o colapso da ordem política e social até viver sua própria desgraça pessoal na guilhotina. Os historiadores dizem que Louis XVI era um bom homem, mas sem qualquer interesse pela política e desprovido da personalidade e da capacidade de liderança de Louis XIV. Ou seja, o Estado não poderia depender tanto de seu governante que, por melhor que fosse, um dia morreria e seria substituído.

Assim, sem sombra de dúvida, foi uma aposta de enorme ousadia e de notável visão política dos liberais dos séculos XVIII e XIX investir no desenvolvimento de instituições políticas de grande complexidade que substituíssem a formação e a educação de príncipes que, na imagem alegórica de Ambrogio Lorenzetti, fossem capazes de produzir bons governos. Isto é, para dar certo, as instituições políticas do Estado moderno deveriam ser capazes de produzir a ordem social e política por meio de um delicado equilíbrio entre governantes capazes de gozar da confiança da sociedade e que passavam a aceitar limites ao seu poder enquanto, de outro lado, o povo, isto é, os governados, por sua vez, precisariam ser capazes de aceitar o fato de que seus interesses particulares deveriam ser sempre avaliados à luz do bem comum.

No mundo atual, pode-se dizer que a China é um caso notável de sociedade organizada por meio de um partido político único, que não constrói a ordem a partir de instituições liberais que manejam e que exercem o poder por meio desse delicado equilíbrio entre diferentes ramos do poder do Estado e por meio da substituição de governantes com eleições periódicas das quais participa toda a população adulta. De certo modo, a ordem na sociedade chinesa é assegurada por uma grande e complexa burocracia estruturada não mais em torno de uma ideologia comunista – apesar de a denominação do partido permanecer a mesma – mas em larga medida a ordem é estruturada a partir dos ensinamentos recuperados da sabedoria milenar do confucionismo.[14] A eficácia dessa solução para a construção da ordem é visível na transformação da China – de nação pobre e inexpressiva em um país capaz de exercer papel de liderança econômica e tecnológica no mundo. Com efeito, quando as nações do Ocidente liberal, a partir dos fins da década de 1970, lideradas pelos Estados Unidos, passaram a investir na China, uma crença bastante central dos formuladores dessa estratégia era a de que um eventual sucesso econômico da China levaria à democratização daquela sociedade comandada pelo Partido Comunista. Ou seja, acreditava-se que, à medida que a nação prosperasse e que bolsões de eficiência econômica e de mercados dinâmicos se formassem, haveria também uma crescente formação de focos de pressão sobre as instituições políticas restritivas do Estado, que seriam vistas cada vez mais como burocracias resistentes a mudanças e, principalmente, refratárias à adoção de políticas de integração aos grandes mercados internacionais. Após mais de três décadas de sucesso econômico persistente e consistente da China, os teóricos do Ocidente, que viam o sucesso econômico como um fenômeno associado aos Estados organizados por meio de instituições políticas liberais, passaram a rever seu entendimento sobre essa relação entre sucesso econômico e ordem política liberal. Além do mais, os casos de sucesso econômico nas últimas décadas não se restringem ao caso da China, que continua comandada pelo Partido Comunista, mas também tem ocorrido em várias outras nações da Ásia, que vêm obtendo notável sucesso econômico, embora continuem comandadas por instituições governamentais com forte viés intervencionista na ordem econômica.

Considerações finais

 Em linhas gerais, pode-se dizer que a adoção da democracia – ou, mais especificamente, da democracia liberal – como forma de governo, não significa, por si só, que a nação será, ou que esteja sendo bem governada. Na realidade, no caso do Brasil, as cifras mostram que os sucessivos governos têm fracassado em promover a ordem e em produzir um nível de desempenho econômico capaz de reduzir a pobreza e, assim, proporcionar mais e melhores oportunidades de trabalho a seus cidadãos. Em termos objetivos, esse mau desempenho não se reflete e não é visível apenas na estagnação ou na redução do PIB, mas se reflete também em outros indicadores que derivam diretamente desse mal desempenho. Por exemplo, no comércio exterior, apesar dos superávits comerciais, as exportações passaram a se concentrar, cada vez mais, em commodities e em bens de baixo valor agregado. A produção de commodities, apesar de ser um desenvolvimento desejável, proporcionalmente, gera muito menos oportunidades de trabalho do que a indústria e a produção de serviços. Assim, não basta “apostar” na produção agrícola e na produção de outras commodities. No comércio mundial, na década de 1950 os bens agrícolas eram ainda responsáveis pela metade das exportações mundiais, enquanto, neste início do século XXI, os bens agrícolas respondem por menos de 10% das exportações mundiais. Ou seja, os dados revelam que a evolução da economia brasileira nas últimas décadas não tem acompanhado tendências mundiais importantes. Assim, o pouco dinamismo da economia brasileira também é visível na evolução da pauta de exportações, cada vez menos diversificada em razão da pouca integração à economia mundial. O resultado é que, em termos dos benefícios que uma nação pode auferir do comércio internacional, observa-se que, enquanto outras nações em desenvolvimento têm expandido significativamente sua participação nos fluxos de comércio mundial por meio da diversificação, há décadas a participação brasileira no comércio mundial tem permanecido em torno de 1%.[15] Em larga medida, essa diferença entre o desempenho do setor agrícola e de produção de commodities em relação aos setores da indústria e de serviços pode ser explicada pelo fato de que as principais motivações na produção de commodities estão nos mercados internacionais onde há ordem e consistência, enquanto a produção industrial e de serviços dependem basicamente dos mercados domésticos nos quais a ordem tem sido precária.

Um Estado democrático precisa ouvir a sociedade, principalmente as demandas não expressas – as demandas mais íntimas, mais caras e mais difíceis de serem expressas em manifestações ruidosas. Mas ouvir não basta, é preciso discernimento, integridade e coragem para transformar as demandas da sociedade em providências e em medidas sempre à luz do bem comum. O termo bem comum pode parecer algo difuso, mas não o é para o Estado. Para o Estado, bem comum deve ser o objetivo primário a ser promovido e a ser buscado por governantes e por todos aqueles que ocupam cargos públicos. Aumentos salariais, subsídios a certas atividades econômicas, perdão fiscal, e até mesmo ajudas emergenciais são medidas que a sociedade pode demandar a qualquer tempo e a qualquer hora, mas cabe às autoridades públicas examinar essas demandas à luz do bem comum, que é um termo que o economista pode utilizar como sinônimo de externalidade econômica positiva. A economia, como qualquer atividade humana, depende da dedicação e dos talentos individuais, no entanto a produção econômica é também uma atividade social, e sua vitalidade e seu bom desempenho dependem do comportamento e dos níveis de organização social das nações. Nesse quadro, a ordem social é a condição necessária – embora não suficiente – para o sucesso de qualquer economia. A ordem social é a externalidade econômica cuja deterioração compromete não apenas o bom funcionamento dos mercados, mas o próprio futuro econômico e político da nação.

Do ponto de vista social, o mau desempenho da economia se reflete claramente nos movimentos migratórios. As nações bem governadas e cujas economias crescem e oferecem estabilidade e boas oportunidades profissionais tendem a atrair fluxos de migrantes enquanto, por outro lado, as sociedades que não prosperam e nas quais as oportunidades de bons empregos e de boas oportunidades profissionais se tornam mais escassos “exportam” migrantes. Em um extremo está um país como os EUA que constroem barreiras normativas e até físicas para conter os fluxos de migrantes que querem ingressar no país em busca de oportunidades de trabalho. No outro extremo, estão as nações muito pobres ou vítimas de crises sociais e políticas persistentes que, sistematicamente, “expulsam” suas populações. O Brasil é um caso de nação que não chega a viver crises sociais e políticas graves e generalizadas, mas tem sido um país em que o mau funcionamento da economia vem produzindo continuados déficits no balanço entre estrangeiros que procuram se estabelecer no país e o fluxo de brasileiros que vão para outros países em busca de oportunidades. Apesar de continuar fazendo parte do entendimento popular corrente de que o Brasil é um país que recebe imigrantes, esse entendimento não é mais confirmado pelos fatos. Além de os balanços nos fluxos migratórios serem negativos, significando que o número de estrangeiros que ingressam no país tem sido menor do que o de brasileiros que deixam o país, recentemente, dados divulgados pelo Itamaraty e pelo Ministério da Justiça mostram que no ano de 2020 havia cerca de 3 milhões de brasileiros residindo em outros países (destaque para Portugal, Estados Unidos e Japão), enquanto havia o registro de apenas 750 mil estrangeiros residindo no Brasil, um número significativamente menor do que em países vizinhos como Argentina, Uruguai e Paraguai. Tais dados revelam uma faceta preocupante desse processo. Na essência, revela que o Brasil está “exportando” profissionais qualificados, isto é, pessoas de talento e nas quais a sociedade brasileira investiu por anos a fio, para serem aproveitados por outras sociedades. Assim, ao observar fatos como esses, é inevitável a tentação de – tal como ocorreu com o sociólogo Robert Merton – refletir com humildade e com espírito construtivo sobre a sabedoria dos Evangelhos: àquele que tem, mais lhes será dado, e terá em abundância; mas ao que não tem, até aquilo que tem ser-lhe-á tirado (Mateus 25, 14-30).[16]

 

 

[1] Ernest Hambloch, Sua Majestade o Presidente do Brasil. Senado Federal, Brasília, 2000 (p. 34)

[2] Randolph Starn. Ambrogio Lorenzetti. The Palazzo Pubblico, Siena. George Braziller, N.York, 1994.

[3] Há uma extensa literatura que, sob o tema “globalização”, discute essas mudanças no conceito de soberania e de seu exercício diante de um mundo cada vez mais integrado social e economicamente.

[4] O Artigo 5º. enuncia 78 direitos individuais e coletivos, bem como mecanismos de proteção desses direitos. O Artigo 6º. afirma que “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”. O Artigo 7º. lista 34 direitos sociais e as circunstâncias e condições em que o Estado deve proteger esses direitos. O Artigo 8º. trata com detalhes o direito de associação de trabalhadores em sindicatos, enquanto o Artigo 9º. trata especificamente do direito de greve.

[5] Enquanto a Suprema Corte dos EUA julga anualmente algumas poucas dezenas de processos, segundo dados do CNJ, o STF no Brasil proferiu 17.400 julgamentos no ano de 2020, ou seja, o STF julgou uma média de 66,9 processos por dia útil. Por quanto tempo esses processos tramitaram na Justiça? Será que é possível julgar uma tal quantidade de processos com o devido rigor e cuidado?

[6] Extraída da “Oração aos Moços” dirigida aos formandos da Faculdade de Direito de São Paulo (1921).

[7] Nada menos do que 95% da arrecadação do Estado por meio de impostos, taxas e outras receitas são usados para pagar despesas sobre as quais o Poder Executivo não tem poder discricionário tais como folha de pagamento do serviço público, despesas com previdência oficial, pensões estabelecidas por lei, transferências para estados e municípios etc.

[8] O que representa cerca de R$ 30 milhões para cada senador e para cada deputado.

[9] Mancur Olson, Power and Prosperity. Outgrowing Communist and Capitalist Dictatorships. Basic Books, 2000.

[10] Na realidade esse argumento foi que deu grande notoriedade a Mancur Olson, quando publicou seu livro intitulado The Logic of Collective Action em 1971.

[11] Alain Peyrefitte, A Sociedade da Confiança. Topbooks, 1999.

[12] Não apenas Francisco de Vitória, mas os juristas em geral nos séculos XVI e XVII ao discutirem o conceito de “guerra justa”, em suas obras afirmaram essa prerrogativa exclusiva dos soberanos. Algo bem diferente, por exemplo, do que ocorreu com Roosevelt que, em 1941, após o ataque de Pearl Harbor, concentrou sua preocupação em levar uma mensagem ao Congresso oferecendo razões para sustentar os congressistas a declararem a guerra ao Império Japonês.

[13] Voltaire, Le Siècle de Louis XIV, 1751.

[14] Embora a intervenção do Estado continue muito forte, propriedade privada e mercados dinâmicos, inclusive de ativos financeiros, hoje fazem parte da ordem social e econômica da China.

[15] No início da década de 1980 a China tinha uma participação no comércio mundial menor do que a brasileira; atualmente, responde por 14,5%. Outro caso notável de evolução da participação no comércio mundial é o da Coreia do Sul, que hoje responde por cerca de 3% do comércio mundial, isto é, praticamente três vezes maior do que a brasileira.

[16] O sociólogo Robert Merton, refletindo sobre a lógica dos avanços no pensamento científico, que tende a premiar mais facilmente aqueles que já ganharam notoriedade na atividade de pesquisa científica, encontrou nesse Evangelho uma maneira de explicar essa estranha e incômoda lógica presente nas coisas humanas (R. K. Merton, The Matthew Effect in Science. Science, 159(3810) 56-63, January, 1968).

 

*Eiiti Sato é professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.

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Qual indicador prevê melhor o futuro da economia? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2745&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=qual-indicador-preve-melhor-o-futuro-da-economia https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2745#comments Thu, 17 Mar 2016 13:36:00 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2745 1. Introdução

A complexidade de uma economia seria a explicação para a divergência nos níveis de renda entre países ricos e países pobres que não é esperada por vários modelos tradicionais de crescimento econômico. Ao contrário, tais modelos têm como hipótese a convergência da renda dos países.  Por complexidade econômica, Hidalgo (2015) entende a diversidade de “capacidades” de um país, medida pela diversidade e sofisticação de sua estrutura produtiva. Tais capacidades incluem desde habilidades específicas no mercado de trabalho (que são de difusão difícil e estão contidas em redes de profissionais), até direitos de propriedade e regulação. Como tais capacidades não podem ser exportadas ou importadas (non-tradable), elas se concentram no espaço geográfico, gerando a desigualdade entre regiões ricas e pobres.

Em uma tentativa de medir esse conjunto de capacidades, foi criado o Índice de Complexidade Econômica (ECI) por pesquisadores do Instituto de Tecnologia do Massachusetts (MIT) e do Centro para o Desenvolvimento Internacional da Universidade de Harvard. Em especial, este esforço tem sido capitaneado pelos pesquisadores sul-americanos César Hidalgo e Ricardo Hausmann, cujo trabalho é introduzido aqui.

O Índice tem se mostrado bem-sucedido em prever o crescimento da economia de diversos países no médio e no longo prazo, superando a previsão de modelos baseados em indicadores de educação ou instituições/governança, duas das principais variáveis usadas nas últimas décadas para explicar o crescimento econômico.

Embora seja de formulação recente (2009) e exija para seu cômputo grandes bases de dados, há paralelismos em sua lógica com o trabalho de teóricos do desenvolvimento do século passado, como Wassily Leontief (matriz insumo-produto), Béla Balassa (vantagem comparativa revelada) e Albert Hirschman (encadeamentos para frente e para trás).

Hidalgo e Hausmann (2009) argumentam que a complexidade de uma economia seria capaz de prever que tipos de produto ela poderá produzir no futuro, porque novos produtos dependeriam substancialmente das capacidades já acumuladas em um país referentes a diversos fatores de produção, do capital humano ao respeito pela lei. No entanto, a construção do Índice desconsidera quaisquer detalhes específicos relativos a essas variáveis, que estariam na verdade refletidas na diversidade e sofisticação da estrutura produtiva de um país. Por sua vez, como proxy dessa estrutura produtiva são usados dados de comércio internacional, em especial a vantagem comparativa revelada.

Neste texto, introduzimos na próxima seção a visão de produtos como “cristais de imaginação”, que fundamentam a ênfase dos criadores do Índice na diversidade e sofisticação da estrutura produtiva como preditivas do crescimento. A seguir, detalhes do cálculo do Índice de Complexidade Econômica são apresentados. A seção 4 discute resultados e aplicações, inclusive para o caso brasileiro. A seção 5 traz o espaço de produto (product space), uma atraente ferramenta de visualização de uma economia apresentada pelos criadores do Índice. Uma última seção discute política industrial.

 

2. Prosperidade e imaginação

Hidalgo (2015) descreve a economia como um sistema em que as pessoas acumulam conhecimento para criar produtos, que, por sua vez, podem aumentar nossa própria capacidade de acumular mais conhecimento.

Como indivíduos, não seríamos tão mais capazes do que nossos ancestrais, mas como sociedade sim. As sociedades modernas são aquelas que conseguiriam acumular muito conhecimento produtivo ao distribuí-lo entre os seus membros. Assim, o progresso e a prosperidade dos países ricos não seriam fruto da inteligência individual de moradores inteligentes, mas do fato de tais sociedades possuírem grande diversidade de knowhow recombinado para criar uma grande variedade de produtos, e de produtos melhores (Hausmann et al., 2011).

A desigualdade no mundo decorreria da “finitude” dos homens e das redes por eles formadas, que limitam a possibilidade de acumular e transmitir conhecimento1, tornando este conhecimento acumulado no espaço. Os produtos que produzimos e consumimos nada mais seriam do que expressões deste conhecimento.

Nesse sentido, as exportações de um país, usadas no Índice de Complexidade Econômica, revelariam não somente informação sobre capital ou trabalho presente nele, mas, mais importante, sobre a capacidade que sua população tem de criar objetos que antes eram apenas imaginados (na terminologia particular de Hidalgo, “cristais de imaginação”). A prosperidade de um país, a médio e longo prazo, seria determinada não pela sua capacidade de comprar, mas pela sua capacidade de criar produtos.

Ilustrativamente, em 2012, o Brasil teria tido um saldo positivo na balança comercial com a China de mais de US$ 7 bilhões.  No entanto, o país teria tido uma “balança da imaginação” deficitária, pois o Brasil exporta principalmente minério de ferro e soja, e importa da China eletrônicos, químicos e metais processados. Hidalgo faz uma provocação em relação ao argumento, popular em países em desenvolvimento, de que a exportação de matéria-prima para países que exportam produtos mais elaborados seria um ato de exploração. Defendendo que a criação de valor decorre não da atividade extrativa, mas da imaginação, seriam os exportadores de matéria-prima os “exploradores”. Tratando do seu país natal, Hidalgo afirma que o Chile exploraria a imaginação de inventores como Michael Faraday e Nikola Tesla, que permitiram que produtos feitos a partir do cobre (principal produto da pauta de exportação chilena) tivessem valor (HIDALGO, 2015):

Produtores de petróleo como Venezuela e Rússia exploram a imaginação de Henry Ford, Rudolf Diesel, Gottlieb Daimler, Nicolas Carnot, James Watt e James Joule ao estarem envolvidos no comércio de uma gosma gelatinosa preta que era virtualmente inútil até a invenção de motores de combustão.

Segundo Hidalgo, a diferença entre riqueza e desenvolvimento econômico residiria na distinção entre “geração de valor” e “apropriação de compensação monetária”. O desenvolvimento não se basearia na capacidade que uma economia tem em consumir, mas na capacidade que sua população tem em transformar sonhos em realidade: a capacidade de produzir (não de comprar). Tal ênfase parte do entendimento de que a economia seria um “sistema que amplifica os usos práticos do conhecimento”2.

 

Desigualdade e divergência: o papel de redes de conhecimento

A concentração, em apenas algumas partes do mundo, da capacidade de produzir produtos sofisticados, como motores de avião e dispositivos de memória, não é óbvia. Hidalgo (2015) ressalta que vários modelos econômicos, para ele excessivamente otimistas, supunham que a produção de qualquer produto poderia ser estimulada apenas pela demanda e por incentivos.  Segundo o autor, no entanto, o fundamental para compreender tal desigualdade no mundo seria o acúmulo de conhecimento em redes de profissionais: para produzir algo, é necessário aprender.

O papel desse acúmulo não é trivial. Pelo contrário, o conhecimento seria tão “pesado” que seria muito mais fácil, ilustrativamente, retirar lítio do deserto do Atacama e enviá-lo para a Coreia do Sul para produzir bateria de celulares do que enviar cientistas coreanos ao Chile para ensinar mineiros a produzir as baterias.

A difusão do conhecimento seria difícil porque o aprendizado seria “social” e “experiencial” (HIDALGO, 2015):

A natureza experiencial e social do aprendizado não apenas limita o conhecimento que indivíduos podem conquistar, mas também enviesa a acumulação de conhecimento para o que já está disponível nos lugares onde esses indivíduos residem. Isso implica uma acumulação de conhecimento que é geograficamente enviesada.

Vasconcelos (2013) explica que o valor do conhecimento decorre de ele ser non- tradable, isto é, não poder ser comercializado como um bem físico. Ao contrário, a transferência de conhecimento estaria ligada à noção de “conhecimento tácito”, que decorre da própria experiência de trabalho, de anos de aperfeiçoamento e da convivência com profissionais mais experientes.

Tal desigualdade daria ensejo à quantificação das capacidades produtivas de um país, que reflete as diferenças de conhecimento.  É este o propósito do Índice de Complexidade Econômica (ECI).  Para, Britto et al. (2014), economias complexas seriam as economias com elevado nível de conhecimento relevante, presente em amplas redes de pessoas e organizações, capazes de gerar uma diversidade de produtos intensivos em conhecimentos. Já economias menos complexas teriam redes de interações menores e mais simples, com nível baixo de conhecimento e capazes apenas de produzir poucos produtos e produtos mais simples.

Para Hausmann (2012), um indicador de complexidade seria útil não apenas para explicar a “Grande Divergência” na renda per capita de países ricos e pobres, mas também a convergência que alguns países têm conseguido nas últimas décadas (como China e Índia), enquanto outros grandes emergentes ficam para trás (como a Nigéria).

 

3. O Índice de Complexidade Econômica (ECI)

Como o conhecimento é difícil de mensurar, são necessárias expressões que forneçam informações indiretas sobre a localização onde o conhecimento está presente (Hidalgo, 2015). Essas expressões podem ser patentes, produção industrial ou, na versão mais comum do Índice de Complexidade Econômica, o comércio internacional.

Nesta seção, apresentamos a intuição de como funciona o cálculo do Índice. O Índice de Complexidade é calculado para países (ECI) e para produtos (PCI).

Entendendo a complexidade econômica de um país como a diversidade e sofisticação da estrutura produtividade, um ponto de partida para mensurá-la seria a diversidade de produtos ali feitos.

Já o indicador da complexidade de um produto parte do conceito de ubiquidade, medida de quantos países produzem um determinado bem. Intuitivamente, bens mais ubíquos, produzidos em muitas localidades, seriam menos complexos (exemplo: algodão é mais ubíquo do que aparelhos de radiologia).

Entretanto, nem a diversidade de um país ou a ubiquidade de um produto são suficientes para medir sua complexidade. É possível que um país produza muitos produtos, mas sem sofisticação. É possível ainda que um produto seja pouco ubíquo apenas por ser raro (como urânio), e não por conta do nível de conhecimento de sua produção.  A medida de diversidade é corrigida pela ubiquidade, e vice versa.

Assim, no Índice, a medida de diversidade de um país A é corrigida de acordo com a ubiquidade dos produtos produzidos em A, e corrigida também de acordo com a diversidade presente em países que exportam o mesmo produto. Analogamente, a medida de ubiquidade de um produto B é corrigida pela diversidade de produtos dos países que o exportam, bem como de acordo com a ubiquidade de outros produtos produzidas pelos países que exportam B.

Em verdade, a matriz “país-produto” que gera o Índice de Complexidade considera apenas os produtos que um país possui vantagem comparativa revelada (VCR), conforme o conceito de Balassa (1965). Existe vantagem comparativa revelada quando a participação de um produto na pauta de exportação de um país é maior do que a média internacional (grosso modo, sua participação no comércio mundial). É o caso do minério de ferro ou da soja no Brasil, por exemplo.  Há ainda uma correção para atenuar o impacto de flutuações de preço, com o uso da média dos três anos anteriores a um determinado período. Para quem quiser conhecer mais sobre a formulação matemática do Índice, recomenda-se a leitura de Hausmann et al. (2011).

Hidalgo e Hausmann (2009) defendem que o Índice de Complexidade Econômica vem suprir uma lacuna da pesquisa empírica, considerando que a teoria econômica já atribuía à complexidade papel no crescimento econômico desde a mão invisível de Adam Smith até as teorias de crescimento endógeno de Romer (1990) e Grossman e Helpman (1991).

A lógica por trás do índice é a mesma exposta na seção anterior, que agora recapitulamos:  a prosperidade de um país vem de sua capacidade de criar. Em verdade, este é um conjunto de capacidades de sua população, difícil de difundir no espaço, e que é refletida na diversidade e na sofisticação de sua estrutura produtiva. No Índice, como exposto acima,  a diversidade e a sofisticação da estrutura produtiva, por sua vez, são medidas de acordo com a vantagem comparativa revelada, seguindo as noções de diversidade e de ubiquidade.

Para ilustrar tal lógica, Vasconcelos (2013) reproduz o exemplo de Felipe et al. (2012), que compara Canadá e Vietnã. Inicialmente, o Canadá tem menos diversidade do que o Vietnã: possuía vantagem comparativa revelada em 893 produtos, contra 902 do Vietnã. Os produtos do Canadá são menos ubíquos: na média produzidos em 20 países, contra 25 do Vietnã.  Adicionalmente, o Índice de Complexidade Econômica contempla ainda uma outra interação: a diversidade  dos países que também produzem, ou melhor, têm vantagem comparativa, nestes produtos. O resultado é que em 2013 o Canadá possuía um Índice de Complexidade Econômica de 0.70 (33º entre 186 países), com uma pauta exportadora que inclui em grande medida carros e produtos ligados ao transporte;  máquinas e equipamentos; e produtos químicos. Já o Vietnã tinha um ECI que, embora em alta, era de -0.27 (71º), refletindo uma pauta em que tem grande peso produtos têxteis e vestuário. O Canadá teria uma economia mais complexa, com redes de profissionais e instituições mais capazes de trazer prosperidade.

Desta forma, o Índice confirmaria a crítica de Leontief ao uso exagerado na economia de índices agregados, que desconsideram informação sobre indústrias específicas (Hidalgo, 2015).  Leontief se baseava nas famosas matrizes insumo-produto que lhe renderam um dos primeiros prêmios Nobel em Economia (1973). Já o Índice, contrariamente a essas matrizes, não possui informações ligando diferentes setores. Entretanto, os dados de comércio internacional teriam como vantagem a disponibilidade para muitos países e um amplo período de tempo, além de serem muito mais desagregados: são milhares de produtos, enquanto as matrizes de Leontief se baseiam em algumas dezenas de indústrias (Hidalgo, 2015).

A próxima seção traz outros resultados do índice e analisa suas aplicações, com ênfase no Brasil.

 

4. Resultados e aplicações

Hausmann e Hidalgo (2011) defendem que o Índice de Complexidade Econômica (ECI) foi capaz de explicar 75% da variação da renda em 75 países de sua amostra. O Índice teria poder explicativo muito maior do que um conjunto de indicadores de governança e qualidade de instituições do Banco Mundial (Worldwide Governance Indicators, WGI) e do que indicadores de educação. Um exemplo ilustrativo seria a trajetória de Gana e da Tailândia: o primeiro investiu mais em educação, enquanto o segundo, com uma estrutura produtiva mais complexa, cresceu mais.

Em verdade, o próprio ECI já refletiria também essas variáveis (instituições e educação). No caso da educação, ao contrário dos indicadores de provas padronizadas, o ECI seria capaz inclusive de refletir habilidades como criatividade e capacidade de trabalhar em equipe, essenciais para complexidade econômica (Hidalgo, 2015). O próprio uso de dados de comércio internacional poderia absorver a qualidade da governança e de instituições, uma vez que até a exportação de frutos frescos requer uma aduana minimamente eficiente, bem como conformidade com padrões sanitários ou fitossanitários internacionais. Seus criadores defendem também que o Índice de Complexidade Econômica refletiria também o capital social presente em um país, o que inclui valores culturais (Hidalgo, 2015).

Concretamente, não é o Índice de Complexidade Econômica por si que apresenta grande poder preditivo, mas o resíduo de uma regressão entre o Índice e a renda per capita dos países. Esse resíduo indica países que estão vivendo acima de suas capacidades, por possuírem renda per capita alta em níveis relativos, quando se leva em conta a sua estrutura produtiva. Por outro lado, indica também países com potencial para crescer, ou seja, aqueles que ainda possuem uma renda relativamente baixa para uma estrutura produtiva razoavelmente desenvolvida.  O resíduo seria preditivo da trajetória dos países em médio e longo prazo (HIDALGO, 2015):

É interessante notar que a complexidade econômica não prevê o crescimento econômico acuradamente para escalas de tempo pequenas, de menos de cinco anos. Esses tendem a ser dominadas por flutuações causadas por períodos de crise, mudanças nos preços das commodities, e em alguma extensão variações das taxas de câmbio. Durante períodos de tempo mais longo (dez a quinze anos), a complexidade econômica é altamente preditiva do crescimento econômico futuro, significando que essas medidas capturam informação da capacidade de uma economia de gerar renda no longo prazo.

Hausmann (2012) exemplifica a lógica da comparação da renda per capita com a complexidade usando os casos de Grécia e Índia. Em 2013, estes países tinham ECI próximos: 0.27 para Grécia (48º do mundo) e 0.26 para a Índia (50º). No entanto, a Grécia é significativamente mais rica do que a Índia em termos per capita. Mesmo em 2014, anos depois do início da grave crise grega, o país possuía uma renda per capita que era a 44ª do mundo, quatro vezes maior do que a indiana (125ª do mundo apenas, segundo dados do FMI).

De fato, a Índia tem crescido velozmente, enquanto a Grécia se encontra em uma crise prolongada desde 2009. A discrepância da renda per capita em relação aos índices de complexidade indicaria que a Grécia está vivendo acima do que seria possível no futuro, enquanto a Índia possuiria enorme potencial de crescimento. Para Hidalgo (2015), o conjunto de produtos que um país exporta seria altamente preditivo do nível futuro de sua renda porque indica o conhecimento presente em uma sociedade hoje que contribuirá para o seu nível de prosperidade amanhã. Em Hidalgo e Hausmann (2009), a ligação entre complexidade e crescimento, como no caso da Índia, é atribuída ao potencial que um país tem no futuro de desenvolver todos os produtos que são factíveis para o seu conjunto de capacidades.

Já o Brasil possuía em 2013 um índice de 0.15, o 56º do mundo. Este seria um avanço de 21 posições desde 1964, mas um retrocesso de impressionantes 32 posições desde 1993 (20 anos antes) ou de 13 posições desde 2003 (10 anos antes), que coadunaria com a tese de desindustrialização da economia brasileira. Trata-se de trajetória oposta à da China, que em 1994 estava quase 20 posições atrás do Brasil, mas nos últimos 20 anos saltou quase 30 posições, chegando ao 22º maior índice de complexidade. Os dois países praticamente trocaram de lugar em duas décadas.

Para Hausmann (2012), a convergência que China ou Índia tem experimentado ocorreu porque a produção em cadeias globais de valor permitiu que países menos desenvolvidos fossem pouco a pouco entrando na produção de bens mais sofisticados, permitindo que as capacidades fossem se acumulando. Este processo gradual seria vantajoso, uma vez que seria difícil dar um grande salto de uma vez de uma estrutura pouco complexa para uma muito complexa.

Em 2013, os dez países com maior Índice de Complexidade Econômica, seriam, em ordem, Japão, Suíça, Alemanha, Suécia,      Reino Unido, República Tcheca, Coreia do Sul, Finlândia, Áustria e Singapura. Na América Latina, estariam na frente do Brasil: México (23º), Panamá (44º), Uruguai, (52º), Argentina (53º), Colômbia (54º) e Costa Rica (55º). Outros emergentes que também estão na frente do Brasil incluem China (22º), Tailândia (29º), Malásia (34ª), Rússia (38º), Turquia (40º), África do Sul (45º), Filipinas (49º), e Índia (50º).

 

Gráfico 1 – Posição do Brasil no ranking de complexidade econômica – 1964-2013

img_2745_1

Fonte: The Observatory for Economic Complexity (OEC). Disponível em: http://atlas.media.mit.edu/en/.

 

Em 2013, o Brasil estava na mesma colocação que estava 40 anos antes – vide gráfico acima. Neste sentido, a perda de complexidade da economia brasileira a estaria tornando menos “adaptável”, com menor potencial para usar uma nova habilidade (Britto et al., 2014). Britto et al. afirmam que a perda de competitividade da indústria brasileira nos últimos anos foi concentrada nas indústrias manufatureiras de média de tecnologia (MMT) e de baixa tecnologia (MBT).

Já Vasconcelos (2013) analisa o período quando a complexidade da economia brasileira esteve crescendo, concluindo que tiveram grande importância os períodos do Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG), do milagre econômico e do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND).  Tais períodos teriam sido bem sucedidos, não em investir nas vantagens comparativas do país, mas em mover a estrutura produtiva ao centro do espaço de produtos – conceito que será apresentado a seguir.  Por ora, o centro do espaço de produtos é onde estariam os produtos mais sofisticados, com maior potencial de encadeamento (a la Hirschman).

Segundo o Atlas de Complexidade Econômica de 2011, os produtos mais complexos pertenciam aos grupos de máquinas e equipamentos ou química (como utensílios que fazem uso de radiação ou raios-X), enquanto os produtos menos complexos eram commodities como petróleo bruto, minério de estanho, algodão e grãos de cacau.

Para o Brasil, o portal DataViva3, criado por uma série de organizações e com o apoio do Governo de Minas Gerais, traz uma grande quantidade de informações para estados e municípios. Em 2014, as economias mais complexas seriam as de São Paulo (com ampla margem), Rio de Janeiro e Amazonas, enquanto as menos complexas as de Bahia, Pará e Santa Catarina4. O Gráfico 2, abaixo, relaciona os dados de complexidade de 2014 com os dados o PIB per capita em 2013.

 

Gráfico 2 – Índice de Complexidade e PIB per capita, por unidade federativa.

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Fonte: Elaboração própria, a partir de dados do DataViva e do IBGE.

 

O Gráfico revela que, embora o índice de complexidade seja muito similar para os estados brasileiros (com a exceção do outlier São Paulo), o PIB per capita diverge muito. As unidades federativas (UF) destacadas são algumas daquelas que, segundo a lógica apresentada anteriormente, teriam maior ou menor potencial para crescer no médio e no longo prazo, de acordo com a sua posição em relação à linha de regressão.

Nesse sentido, as UF que teriam menor potencial para crescer no futuro, por já terem um nível de renda elevado face à sua estrutura produtiva, seriam o Distrito Federal e estados muito dependentes de commodities como o Rio de Janeiro (petróleo), Espírito Santo (petróleo e minério de ferro) e Mato Grosso/Mato Grosso do Sul (soja, carne). Por outro lado, se esperaria crescimento mais acelerado, no médio e longo prazo, para cinco estados nordestinos: Piauí, Maranhão, Alagoas, Paraíba e Ceará, que possuem um PIB per capita bem abaixo de outros estados com complexidade semelhante.  Note que isto não quer dizer que estes estados liderariam o crescimento do país, mas teriam grande potencial para convergir partindo de seus níveis atuais de PIB per capita, que são muito baixos.

Gráfico análogo é apresentado abaixo para países, enfatizando a posição do Brasil, e de Grécia e Índia, países comparados anteriormente.

 

Gráfico 3 – Índice de Complexidade e renda per capita (log) por país – 2008

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Fonte: Hausmann et al. (2011).

 

5. O espaço de produtos

Os criadores do Índice de Complexidade Econômica também apresentaram outra interessante ferramenta para analisar a economia de um país: o espaço de produtos, disponível para dezenas de países na página do Atlas de Complexidade Econômica. Ainda de acordo com os dados de comércio exterior, o espaço de produtos permite visualizar a estrutura produtiva de uma economia em apenas uma figura. No espaço, cada ponto corresponde a um produto, que pode estar ligado a um outro ponto, ou a vários outros pontos, de acordo com a probabilidade que os produtos têm de serem exportados conjuntamente (o que reflete a conexão na produção deles). Assim, produtos mais complexos tendem a ter várias ligações e se situar no meio do espaço, como máquinas e equipamentos, químicos e metais processados, enquanto commodities tendem a ficar na periferia do espaço.

O espaço de produtos é o mesmo para todos os países, e foi gerado computacionalmente a partir dos dados de comércio exterior, sem que tenha sido necessário fazer qualquer hipótese a respeito dos produtos ou das indústrias. O que muda, de país para país, é o destaque dado para os produtos em que existe vantagem comparativa: eles aparecem coloridos e serão tão maiores quanto maior for o seu peso no comércio. As cores diferentes se referem a indústrias diferentes, escolhidas pelos pesquisadores que o criaram (ex: tons de azul se referem a máquinas ou eletroeletrônicos, a cor rosa se refere a químicos).

As Figuras 1 e 2 apresentam o espaço de produtos da economia brasileira em 1963 e em 2013.

Figura 1 – Espaço de produtos – Brasil (1963)

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Fonte: The Observatory for Economic Complexity.

 

Figura 2 – Espaço de produtos – Brasil (2013)

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Fonte: The Observatory for Economic Complexity.

 

Neste período, a estrutura produtiva foi migrando ao centro do espaço de produtos, ilustrando a vantagem comparativa em produtos mais complexos, como caminhões e tratores. No entanto, um dos principais produtos do país (revelado pelo tamanho do ponto) é a soja, em cor bege e abaixo, um produto que seria periférico, com poucas conexões com outros produtos e baixo potencial para desenvolver novas indústrias.  Já a Figura 3 apresenta o espaço de produtos da China em 2013.

 

Figura 3 – Espaço de produtos – China (2013)

img_2745_6

Fonte: The Observatory for Economic Complexity.

 

A página do Atlas mantida pelo Observatório de Complexidade Econômica do MIT, bem como o DataViva para o caso brasileiro, permitem visualizar com detalhes o espaço de produto de vários países.

 

6. Considerações finais: complexidade e política industrial

Com base em instrumentos como o Índice de Complexidade Econômica e o espaço de produtos, a pesquisa em complexidade daria ensejo a prescrições de política industrial que lembram muito a pesquisa de autores considerados heterodoxos, apesar de ter       florescido em centros como MIT e Harvard.

Hidalgo e Hausmann (2009), explicitamente retomando as ideias de Albert Hirschman, defendem uma estratégia de desenvolvimento que promova produtos de modo a criar incentivos para o acúmulo de mais capacidades. Essas capacidades adicionais poderiam sucessivamente trazer mais produtos e mais capacidades. Isso equivaleria, no espaço de produtos, a tentar chegar mais próximo do núcleo, por meio do caminho menos arriscado, conforme as vantagens comparativas reveladas atuais. Conforme o espaço de produtos, a ênfase em commodities levaria a becos praticamente sem saída.  Já Hausmann (2012) defende uma política industrial que invista em indústrias mais parecidas com as que existem em um país.

A discussão sobre política industrial no Brasil esteve repleta de controvérsias nos últimos anos, com destaque para temas como a política de “campeões nacionais” e a desindustrialização. Instrumentos como o Índice de Complexidade Econômica ou o espaço de produtos permitiriam uma análise mais criteriosa sobre os setores de nossa economia, o que poderia ser útil até mesmo para aqueles que defendem uma política industrial mais agressiva e menos horizontal (o que tende a ser mais caro à “heterodoxia”). Para qualquer ponto de vista neste debate, a pesquisa sobre complexidade de Hidalgo e Hausmann, aqui apresentada, parece promissora por fornecer para a discussão insumos com bases mais empíricas.

 

Referências

BALASSA, B. Trade Liberalization and Revealed Comparative Advantage. Manchester School of Economic and Social Studies, vol. 33, p. 99-123, 1965.

BRITTO, G.; FREITAS, E.; ROMERO, J. P. Competitividade Industrial e Inovação na Abordagem da Complexidade: uma análise do caso brasileiro. 2014. Disponível em: http://sicetel.org.br/sicetel2014/wp-content/uploads/2014/09/gustavo-brito.pdf.

FELIPE, J. ; KUMAR, U. ; ABDON, A. Using capabilities to project growth 2010-2030. Journal of Japanese and International Economies, v. 26, p. 153-166, 2012.

GROSSMAN, G. M.; HELPMAN, E. Quality ladders in the theory of growth. Review of Economic Studies, 58?43-61, 1991.

HAUSMANN. R. Taking Stock of Economic Complexity. Conferência do  New Institute for Economic Thinking.  2012. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EysLMxRt3Dg.

HAUSMANN, R.; HIDALGO, C. A.; BUSTOS, S.; COSCIA, M.; CHUNG, S.; JIMENEZ, J.; SIMÕES, A.; YILDIRIM, M. A. The Atlas of Economic Complexity: Mapping Paths to Prosperity. 2011. Disponível em: http://atlas.cid.harvard.edu/about/data/sitc4/.

HIDALGO, C. Why Information Grows: The Evolution of Order, from Atoms to Economies. New York: Basic Books, 2015.

HIDALGO, C.; HAUSMANN, R. The building blocks of economic complexity. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, vol. 106(26), p. 10570–10575, 2009.

______________________. The network structure of economic output. Journal of Economic Growth, v. 16 (4), p. 309–342, 2011.

ROMER, P. Endogenous technological change. Journal of Political Economy, vol. 98 (5), p. S71–S102, 1990.

VASCONCELOS, T. C. S. O Índice de Complexidade Econômica: Uma Revisão Teórica e Aplicações ao Caso Brasileiro. Monografia de conclusão do curso de Bacharel em Ciências Econômicas da Universidade de Brasília. Apresentação em 19 de novembro de  2013.

_____________

1Hidalgo (2015) diferencia os termos knowledge e knowhow. Por simplificação, tratamos aqui ambos como “conhecimento”.
2 Especificamente, para Hidalgo, produtos (os cristais de imaginação) teriam três atributos que justificariam sua importância: a ampliação da capacidade humana (ex: voar), criatividade combinatória (a possibilidade de criação de novos produtos a partir de outros) e o seu papel como meio de expressão da criatividade humana.
3 http://pt.dataviva.info/.
4 Ao invés de dados sobre comércio internacional, o DataViva usada dados de emprego.

 

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O que são “instituições fiscais independentes”? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2221&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-que-sao-instituicoes-fiscais-independentes https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2221#comments Mon, 05 May 2014 13:58:43 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2221 O Estado brasileiro passa por um processo de deterioração fiscal que tem componentes de curto e longo prazo. No curto prazo observa-se a queda dos resultados primários do setor público, que passaram de 3,8% do PIB em 2008 para 1,9% em 2013. Há, também, uma deterioração na qualidade deste superávit e das contas públicas, em que procedimentos contábeis pouco usuais têm sido utilizados com o intuito de mascarar parte da deterioração fiscal (sobre tal ponto ver, neste site, “O que é contabilidade criativa?”).

É forçoso, contudo, reconhecer que, mesmo quando o setor público apresentava superávits primários robustos e contabilidade mais clara, a qualidade da nossa política fiscal já não era das melhores. Ano após ano a despesa total cresce e, com ela, a carga tributária. A despesa primária do governo central pulou de 14% do PIB para 19% do PIB entre 1997 e 20131, e a carga tributária nos três níveis de governo saltou de 28% para 34% do PIB no mesmo período2. Os superávits primários têm sido feitos não apenas por meio de aumento de tributos, que sufocam os contribuintes e desestimulam o crescimento econômico, mas também com base em repressão dos investimentos públicos, tornando a infraestrutura do país precária. Este é o componente de deterioração de longo prazo da política fiscal.

O processo orçamentário se dá de uma forma em que os poderes Executivo e Legislativo têm interesse em fixar receitas superestimadas e despesas elevadas. O Executivo o faz porque, dispondo do poder de contingenciar gastos, pode escolher quais despesas executará ou não. Assim, quanto mais amplo o espectro de despesas disponíveis, mais espaço tem para distorcer o orçamento a favor de suas prioridades. Já o legislativo tem interesse em ampliar as despesas para encaixar os gastos de interesse dos parlamentares e de suas bases. O controle fiscal se faz na boca do caixa, sem transparência ou ordenamento de prioridades sociais.

No campo da qualidade do gasto público, inexiste no país a prática de se avaliar benefícios e custos gerados pelos programas patrocinados pelo governo. Os programas são postos em prática, o gasto se eleva ano após ano, mas pouco se avalia se eles constituem benefício para a sociedade como um todo ou apenas mais uma fonte de renda para grupos específicos com poder de pressão política. Os investimentos públicos não passam por planejamento cuidadoso, sua execução usualmente estoura os orçamentos prévios e, depois de prontos, têm manutenção deficiente, o que reduz a vida útil de estradas, portos e equipamentos urbanos (mais sobre isso, em outro texto neste site: “Por que é importante investir em infraestrutura?”).

Não será simples corrigir todas essas distorções. Um caminho promissor, contudo, pode ser a criação de uma “instituição fiscal independente” ou “conselho fiscal” – doravante chamados de IFI – nos moldes de instituições que já funcionam em vários países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A mais famosa dessas instituições é o Congressional Budget Office (CBO) dos Estados Unidos. Mas há também o Office for Budget Responsibility (OBR) no Reino Unido, o Conselho de Finanças Pública (CFP) em Portugal e mais outras vinte e seis instituições similares em países tão distintos entre si quanto Quênia e Coréia do Sul. A expansão desses órgãos ganhou impulso especialmente na Zona do Euro, com a necessidade de promover ajustes fiscais estruturais após a crise de 2008, que afetou fortemente a Europa.

Tais instituições são órgãos de Estado, com estrutura similar a de agências reguladoras (dirigentes com formação técnica, com mandatos predefinidos e protegidos de pressões políticas). Sua função é a de ser uma espécie de cão de guarda da estabilidade fiscal e da qualidade do gasto público. Devem fazer análises técnicas isentas, tornando-as públicas, buscando dar o máximo de transparência possível a suas avaliações.

Certamente uma agência com essa natureza ajudaria a melhorar a qualidade da política fiscal no Brasil, pois atuaria sobre pontos críticos que precisam ser aperfeiçoados. Em primeiro lugar, poderia fazer estimativas independentes da receita orçamentária, que colocaria em xeque as estimativas usualmente superestimadas feitas pelo Executivo e o Legislativo. Estes teriam que, no mínimo, explicar porque suas receitas esperadas estariam acima daquela estimada pela IFI. Não conseguindo fazê-lo, seriam forçados a moderar a fixação da despesa orçamentária.

A IFI também poderia atuar avaliando a qualidade de políticas públicas. Estudos de custo-benefício, que requerem grande quantidade de informações e alta especialização técnica para que sejam bem feitos, poderiam indicar à sociedade quais são os programas públicos que merecem ter continuidade e quais deveriam ser extintos por trazerem mais custos que benefícios.

Isso permitiria não apenas melhorar a qualidade do gasto público, introduzindo no país uma cultura de avaliação dos gastos, como também permitiria conter a expansão do gasto agregado. Menor carga tributária seria necessária para dar conta de despesas em menor nível. As avaliações de custos e benefícios poderiam ser feitas, inclusive, antes de os projetos serem postos em prática, por meio de avaliação de impacto de proposições em tramitação no Congresso que visem instituir novos gastos, conceder isenções tributárias ou outros tratamentos preferenciais a grupos específicos.

Outra área de relevante atuação desta instituição independente seria na fixação de critérios contábeis de alta qualidade, o que deixaria explícito os casos em que os governos estariam tentando iludir a população com o uso de contabilidade criativa.

É importante notar que a criação de uma IFI não significa retirar do Executivo e do Legislativo o poder para programar e executar a política fiscal. Não se trata de aplicar, na área fiscal, princípio similar ao de independência do Banco Central, pelo qual o governo amarra suas mãos e dá à autoridade monetária o poder para gerir a oferta de moeda à sociedade. A política fiscal não pode ser executada dessa forma, pois ela é a essência da atividade de governar. O que a instituição fiscal independente deve fazer é, como dito acima, funcionar como um “cão de guarda” das finanças públicas, apontando excessos, ineficiências e distorções; oferecendo parâmetros para avaliar a trajetória de longo prazo da política fiscal; estabelecendo critérios contábeis lastreados na transparência das contas públicas.

Ela deve usar a sua comunicação com o público, em especial com a imprensa, para divulgar o que se espera do governo em termos de adoção de boas práticas fiscais. Deve explicitar custos e benefícios dos programas públicos. Mas jamais deve determinar o corte ou expansão desta ou daquela despesa, a interrupção deste ou daquele programa.

Não se deve confundir, também, a ação de uma instituição fiscal independente com a de instituições voltadas à auditoria e controle, como os tribunais de contas. Estes atuam avaliando o passado, estudando o resultado de programas em andamento ou já encerrados, aprovando ou rejeitando as contas públicas. As instituições fiscais independentes atuam olhando para o futuro: avaliam os prováveis cenários para a receita e a despesa, estudam benefícios e custos de programas visando seu aperfeiçoamento, definem critérios de qualidade para a contabilidade pública.

O Brasil já tem, na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), um embrião de instituição fiscal independente. Trata-se do Conselho de Gestão Fiscal (CGF), instituído pelo art. 67 daquela Lei. Todavia, o CGF não foi instituído até hoje.

Tal demora deve-se a dificuldades envolvidas na regulamentação. Isso porque a LRF exige que o CGF tenha representantes de todos os poderes, em todos os níveis de governo, além de representantes de entidades técnicas da sociedade civil. Surgem aí alguns problemas práticos e algumas incongruências com a ideia de entidade independente. Em primeiro lugar, o CGF teria número excessivo de representantes, dificultando a obtenção de quorum e o processo decisório. Em segundo lugar, a participação de membros do poder público, eles próprios executores de políticas que seriam avaliadas pelo conselho, reduziria o grau de independência e imparcialidade nas avaliações feitas pela entidade. Em terceiro lugar, é muito difícil estabelecer critérios práticos para se escolher, por exemplo, quem seria o representante de todos os legislativos municipais do país, Como fazê-lo? Uma eleição na qual votariam todos os vereadores do Brasil? Dificuldade similar surgiria para escolher o representante dos judiciários estaduais ou para definir quais seriam as entidades da sociedade civil contempladas com o direito de participar do CGF.

Para que o CGF pudesse ser convertido em uma verdadeira instituição fiscal independente, seria necessário alterar a LRF com vistas a dar ao Conselho um perfil similar ao das agências reguladoras: nomeação de um pequeno número de diretores, com perfil técnico, evitando-se dar representação a entidades, órgãos governamentais ou poderes públicos. Deve-se, ademais, prover a entidade com equipe técnica qualificada e abrir a possibilidade de atuar em conjunto com universidades e outras instituições capacitadas para fazer as análises que se espera de uma IFI.

Este seria um grande passo no sentido de se mudar o perfil expansionista de nossa política fiscal, de melhorar a qualidade da intervenção do governo na economia e, com isso, elevar o potencial de crescimento do país.

Já há evidências empíricas de que as IFI têm efeito concreto. Um estudo do FMI3 mostra que países com IFI que atendem a alguns requisitos básicos apresentam desempenho fiscal mais sólido e orçamentos mais realistas. Esses requisitos são: ter independência operacional, realizaranálise de projeções fiscais, estar presente na mídia e monitorar metas fiscais.

O Brasil, sem dúvida, carece de um aperfeiçoamento institucional dessa natureza. O que não falta é literatura sobre o tema, conforme lista apresentada abaixo, e possibilidade de assistência técnica por parte do FMI, da OCDE e das próprias IFI já em funcionamento.

 

Para ler mais sobre o tema:

Bos, F., Teulings, C. CPB and Dutch fiscal policy in view of the financial crisis and ageing. http://www.cpb.nl/en/publication/cpb-and-dutch-fiscal-policy-view-financial-crisis-and-ageing

Calmfors, L. (2010) The swedish fiscal policy council – experience and lessons. http://people.su.se/~calmf/Wipol_2011_Calmfors.pdf

Calmfors, L., Kopits, G., Teulings, C. (2010) A new breed of fiscal watchdogs. EVRO Inteligence. http://www.finanspolitiskaradet.se/download/18.55431e1f13f86263d6a1c5a/1377195290368/Calmfors,+Kopits+%26+Teulings+(2010).pdf

Debrun, X. (2011) Democratic accountability, deficit bias, and independent fiscal agencies. FMI – Working Paper WP/11/173.

Debrun, X., Kinda, T. (2014) Strengthening post-crisis fiscal credibility: fiscal councils on the rise – a new dataset. FMI – Working Paper WP/14/58.

Eichengreen, B., Hausmann, R., von Hagen, J. (1999) Reforming budgetary institutions in Latin America: the case for a National Fiscal Council. Open Economies Review, 10: 415-442.

FMI (2013) The functions and impacts of fiscal councils. http://www.imf.org/external/np/pp/eng/2013/071613.pdf

Hagemann, R. (2011) How can fiscal councils strengthen fiscal performance? OECD Journal: economic studies, vol. 2011/1, http://dx.doi.org/10.1787/19952856

Kopits, G. (2011) Independent fiscal institutions: developing good practices. 3rd Annual Meeting of OECD Parliamentary Budget Officials – Estocolmo, Suécia.

Marinheiro, C.F. (2011) Fiscal sustainability and the accuracy of macroeconomic forecasts: do supranational forecasts rather than government forecasts make a difference? International Journal of Sustainanble Economy, v. 3, n. 2

OCDE (2013) OECD principles for independent fiscal institutions. http://acts.oecd.org/Instruments/ShowInstrumentView.aspx?InstrumentID=301&InstrumentPID=316&Lang=en&Book=False

Szpringer, Z. (2013) A parliamentary view of Poland’s plans to enhance the role of existing institutions in place of establishing an independent fiscal institution. Mimeo – Varsóvia, Polônia. http://www.pbo-dpb.gc.ca/files/files/D1-AM%20-%20Roundtable%20-%20Zofia%20Szpringer%20-%20POLAND.pdf

_______________

1 Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional
2 Fonte: Receita Federal do Brasil
3“Strenghening Post-Crisis Fiscal Credibility: Fiscal Councils on the Rise – A New Dataset”, de Xavier Debrun e Tidiane Kinda.

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Como tornar a gestão pública mais eficiente? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1596&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=gestao-publica-mais-eficiente https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1596#comments Wed, 21 Nov 2012 11:44:59 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1596 A consolidação institucional ocorrida no país nas últimas décadas está associada ao grande esforço de criação de um marco legal capaz de proteger o cidadão e combater a corrupção no setor público. A reforma gerencial, as agências regulatórias, o novo Ministério Público, a Controladoria Geral da União, o Conselho Nacional de Justiça, a Lei da Ficha Limpa, são diferentes facetas dessa evolução institucional.

No ordenamento jurídico atual, existem leis extremamente complexas e rígidas em relação ao trato com a coisa pública, como a Lei nº 8.666, de 1993 (licitações e contratos administrativos) e a Lei nº 8.429, de 1992 (improbidade administrativa). Tais normas visam garantir a lisura na gestão pública; no entanto, elas impõem muitas amarras e restrições para os gestores públicos.

A própria Constituição Federal, em seu art. 37, caput, expressamente dispõe que a Administração Pública, em sua atuação, está sujeita a observar o princípio da legalidade em suas atividades. Isso significa que os gestores públicos, atuando em nome da Administração Pública, só podem realizar atos devidamente respaldados em prévia determinação legal. Essa realidade é diferente para a iniciativa privada, em que os particulares dispõem de ampla liberdade para sua atuação, com a única restrição de não praticarem atos vedados em lei. Em suma, enquanto o gestor da iniciativa privada pode fazer tudo aquilo que não esteja proibido pela lei, o gestor público só pode realizar o que estiver autorizado em lei.

Além do ordenamento jurídico, há ainda o papel desempenhado pelas instituições, como o Ministério Público e a imprensa, que estão constantemente vigiando a administração pública, seja por dever de ofício, seja pela procura incessante por furos jornalísticos.

Deve-se ressaltar que o funcionamento das instituições, no qual se inclui a legislação, precisa estar corretamente calibrado de forma a contribuir com uma eficiente coordenação do sistema econômico. A definição de Douglass North, renomado autor institucionalista, deixa clara essa importância: “as instituições são as regras do jogo em uma sociedade ou, mais formalmente, são as restrições elaboradas pelos homens que dão forma à interação humana. Em consequência, elas estruturam incentivos no intercâmbio entre os homens, seja ele político, social ou econômico”.  Portanto, essas instituições, se demasiadamente frouxas podem gerar abusos de toda sorte e se excessivamente rígidas podem gerar comportamento exageradamente cauteloso por parte dos indivíduos.

Por outro lado, a eficiência no uso dos recursos públicos é cada vez mais uma exigência da sociedade. Esta espera que a prestação de serviços governamentais ocorra com qualidade, utilizando racionalmente os recursos dos contribuintes. Nesse sentido, diversos estudos têm surgido a fim de discutir a qualidade das administrações públicas.

O que se nota é que o maior controle está associado à maior rigidez institucional, o que, se por um lado, pode coibir o comportamento corrupto do gestor público, por outro lado pode também reduzir seu incentivo em adotar comportamento inovador por temer que a inovação seja considerada ilegal, comprometendo sua carreira.

Dessa maneira, torna-se fundamental estudar os incentivos gerados pelas instituições no comportamento do gestor público. Será que o excesso de fiscalização não impede soluções inovadoras do gestor correto, o que aumentaria a eficiência na administração pública? As punições advindas do ordenamento jurídico são realmente efetivas e coíbem as práticas irregulares no serviço público? Ou será que, apesar da legislação restritiva, as sanções não chegam a ser aplicadas, o que incentiva o gestor desonesto a perpetuar práticas ilegais visando o benefício privado?

Para facilitar a análise da situação, propusemos a construção de um modelo de economia dos incentivos em que os gestores pertencem a duas categorias, os funcionários de carreira e aqueles temporários em funções comissionadas. Ademais, podem ser de dois tipos, aqueles que atribuem elevada importância ao retorno social de sua gestão e aqueles que estão mais preocupados com o benefício pessoal. Cada gestor, qualquer que seja sua categoria ou seu tipo, se defronta com três possíveis formas de atuação. Pode adotar atitude burocrática, visando reduzir a probabilidade de ser questionado quanto à legalidade de suas ações. Pode ainda adotar atitude inovadora, no sentido de gerar o melhor benefício social possível, embora corra o risco de ser questionado quanto à legalidade de suas ações. Finalmente, pode investir em atividades corruptas, visando obter maior benefício privado.

A solução do modelo permite inferir que regras exageradamente rígidas tendem a fazer com que o gestor de carreira adote uma postura mais cautelosa, evitando inovar e tomar decisões que possam ser futuramente questionadas, que poderiam inclusive implicar a perda do cargo público. Esse resultado mostra tanto um aspecto positivo como um aspecto negativo. O positivo refere-se ao menor envolvimento do gestor de carreira com atividades corruptas. O aspecto negativo refere-se ao menor investimento do gestor em atividades inovadoras que poderiam gerar maior benefício social. O modelo ainda sugere que, nesse caso de regras muito rígidas, serão basicamente os gestores com posições temporárias, não servidores de carreira, que mais se arriscarão na execução de suas atividades profissionais, tanto inovando em prol do bem-estar social, para aqueles que atribuem elevado valor a essa atividade, como em atividades ilícitas visando o benefício pessoal.

Um aspecto importante capturado pelo modelo, e que reflete a realidade, é que desvios da regra legal tendem a ser tratados com a mesma severidade, caso descobertos, sendo eles motivados por corrupção, portanto nocivo à coisa pública, ou por desejo de melhorar o resultado social das políticas públicas.

Tais evidências sugerem algumas reflexões sobre a direção que devem tomar as políticas públicas. A primeira delas é que se deve pensar em maneiras para motivar o servidor de carreira, incentivando-o a tomar ações que propiciem melhoras na administração pública. Isso passa tanto pela oferecimento de treinamento adequado, quanto por uma uma maior interação entre órgãos de controle, como Controladoria-Geral, Tribunal de Contas, Ministério Público e o restante da administração pública.

Outra ideia para motivar os servidores públicos de carreira é a regulamentação da possibilidade de ascensão funcional, de atividades de nível médio para outras de nível superior, por meio de concursos internos. Os concursos públicos, em seus modelos atuais, exigem um esforço elevado de preparação, e dão pouca importância à experiência profissional acumulada.

No que diz respeito à rigidez da legislação, a principal contribuição do modelo teórico de incentivos construído é que, se por um lado, o Brasil encontra-se no caminho certo ao reforçar o controle do gasto público, por outro lado, mais abertura e flexibilização à atuação do gestor, permitindo que este comprove o resultado socialmente superior de certas condutas não previstas originalmente na norma legal, podem trazer grandes benefícios à sociedade. Inicialmente, tal flexibilização estimularia gestores honestos a inovarem sem medo de serem futuramente punidos pela inovação. Como consequência, mais gestões honestas inovando em prol do bem estar social significam melhores resultados com o mesmo orçamento, gerando, portanto, aplicação mais eficiente dos recursos públicos.

Explicitando os incentivos que definem o comportamento dos gestores públicos, abre-se caminho para o desenho de políticas públicas que tenham por objetivo tornar o serviço público mais profissional e eficiente, fazendo com que o Estado melhore seu atendimento à sociedade.

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Este artigo é basedo no trabalho “O Papel das Instituições nos Incentivos para a Gestão Pública”, agraciado com o primeiro lugar no Prêmio Tesouro Nacional-2012, tema Tópicos Especiais de Finanças Públicas. O estudo integral consta do Texto para Discussão nº 118, disponível no seguinte link: http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao.htm.

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Como as Leis e o Poder Judiciário afetam a Economia? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=33&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=como-as-leis-e-o-poder-judiciario-afetam-a-economia https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=33#comments Sun, 13 Feb 2011 23:58:58 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=33 As leis e as decisões judiciais, juntamente com os instrumentos que obrigam todos os cidadãos a cumpri-los (polícia, judiciário, fiscalização sanitária, Receita Federal, agências reguladoras, etc. ), fornecem um conjunto de incentivos aos cidadãos e empresas, que têm reflexos sobre a eficiência das transações econômicas. Uma legislação que estabeleça impostos muito elevados, por exemplo, representa um incentivo à sonegação. Uma adequada lei de patentes, que proteja as inovações tecnológicas e gere lucros aos inventores, por sua vez, será um incentivo para o desenvolvimento científico.

Há uma série de situações econômicas que não podem ser deixadas ao livre arbítrio do mercado, precisando ser reguladas por lei e que, por isso, ficam sob a influência das leis e das instituições citadas acima. Por exemplo: é preciso impor regras e penalidades para que as fábricas não lancem nos rios e mares os dejetos gerados durante o processo produtivo; é preciso criar impostos para financiar atividades que são importantes para a sociedade, mas que não dão lucro e, por isso, não são oferecidas no mercado privado (construção de estradas, saneamento básico, saúde preventiva, preservação de florestas); é preciso oferecer a toda a sociedade alguns bens e serviços que, se deixados ao mercado, seriam acessíveis apenas às populações de maior renda (educação, saúde); é preciso evitar a formação de monopólios e cartéis que prejudiquem a concorrência e tornem os produtos mais caros e de menor qualidade. Tais fenômenos são conhecidos pelo termo genérico “falhas de mercado”, que se refere a situações em que o livre funcionamento do mercado leva a situações socialmente indesejáveis.[1]

Na prática, as leis e instituições destinadas a corrigir falhas de mercado têm diversos graus de qualidade. Tanto podem ser eficazes na redução das falhas de mercado, quanto podem introduzir distorções adicionais na economia. Nessa situação, há leis editadas com o objetivo de congelar preços, prejudicando o equilíbrio natural do mercado. O Plano Cruzado é um exemplo típico, pois, ao promover o congelamento de preços para combater uma hiperinflação, não permitiu o ajuste dos valores de mercadorias sujeitas à sazonalidade, gerando um desequilíbrio de preços. Como resultado disso, vieram o desabastecimento de bens (ninguém se dispunha a vender com prejuízo ou perder oportunidades de lucro) e o surgimento de ágio para compra de produtos escassos, principalmente os que se encontravam na entressafra, como carne e leite.

Outro ponto importante na relação entre a área jurídica e a econômica é o “direito de propriedade”, conceito jurídico que se refere ao fato de que o proprietário é livre para usar seus bens como quiser (desde que dentro da lei) sem a interferência ou intromissão de outros. Direitos de propriedade que não são perfeitamente seguros desestimulam os investimentos, reduzindo o potencial de crescimento da economia. Produtores rurais que se sintam sob ameaça de invasão de suas terras por movimentos de “sem-terra” reduzirão os investimentos em infraestrutura e melhoria da terra, pois temem o risco de perder esse investimento no caso de uma invasão. Países que costumeiramente confiscam investimentos feitos por estrangeiros ou não pagam suas dívidas externas se tornam perigosos para os investidores internacionais e deixam de ser atrativos para empresas que poderiam ali se instalar, produzir e gerar empregos.

O Teorema de Coase[2] ensina que, se não houver custos de transação, basta que os direitos de propriedade sejam bem definidos para que uma negociação entre os interessados aconteça e os recursos sejam utilizados da forma mais eficiente possível. Os custos de transação são os gastos necessários à realização de um negócio no mercado, como pagamento de taxas, advogados, corretores, cartórios e outros envolvidos na transação. Assim, para a literatura de Análise Econômica do Direito, as leis deveriam ser elaboradas de forma a remover os obstáculos à negociação privada, reduzindo ao máximo os custos de transação para melhorar o desempenho da economia. Essa deveria ser uma das principais funções das instituições de forma geral (regramentos jurídicos, tribunais, etc).

Também relevante é o impacto da ação do Poder Judiciário na economia. Uma importante distorção da Justiça brasileira consiste no fato de que as disputas de baixo valor não chegam às mãos dos juízes, pois, se chegassem, as custas processuais e os honorários advocatícios consumiriam o crédito a receber. Esse problema foi resolvido em parte pelos juizados de pequenas causas, mas o problema ainda persiste. Em regra, a Justiça só é acionada se o valor do litígio for alto ou quando o litigante possui uma estrutura jurídica permanente, como é o caso das grandes empresas. Tal situação coloca em desvantagem a camada mais baixa da sociedade, que vê sua pior condição socioeconômica ser perpetuada pela maneira de funcionar das instituições.

Além disso, esse alto índice de exclusão judicial tem efeitos sobre os contratos de crédito e os contratos trabalhistas, pois, como as empresas sabem da baixa possibilidade de recorrer à Justiça, não se preocupam com a formalização dos negócios, ou seja, existe um incentivo para o trabalho precário (informalidade no mercado de trabalho) e para empréstimos que passam ao largo do sistema financeiro tradicional (agiotagem).

Outro problema é a morosidade do Poder Judiciário. Em média, demora-se anos para que se consiga uma decisão final. Essa dificuldade de receber créditos na Justiça afeta diretamente a conjuntura econômica, pois propicia uma taxa de juros mais elevada. Como não há segurança judiciária de que o crédito será recuperado rapidamente, a tendência é que já se inclua na taxa de juros um adicional para cobrir as perdas com créditos não pagos. Isso tem consequências extremamente negativas para a economia: diminuição dos investimentos, crédito mais caro ou, ainda, restrição ao crédito.

O problema não é privilégio da recuperação de contratos de crédito. A mesma situação se repete em litígios da área cível como pagamento de verbas indenizatórias.

No entanto, avanços estão acontecendo. Um exemplo atual pode ser encontrado no mercado de locação de imóveis. Foram promovidas alterações na Lei do Inquilinato com a publicação da Lei 12.112, de 2009. O objetivo foi conceder mais segurança aos proprietários dos imóveis urbanos. Depois dessa mudança na legislação, é mais habitual que os locadores tenham sucesso rápido em ações de despejo por falta de pagamento do aluguel.  Essa sistemática traz mais tranquilidade ao mercado e segurança para quem investe em imóveis para locação, que resulta em maior oferta de imóveis e redução do valor médio do aluguel, beneficiando o inquilino que paga em dia suas obrigações.

Em conclusão, uma política de desenvolvimento nacional não passa apenas pelas variáveis macroeconômicas como inflação, juros ou taxa de investimento. É importante considerar também o impacto da legislação e do funcionamento das instituições sobre o comportamento de indivíduos e empresas. A análise econômica do direito afeta áreas tão distintas quanto a flexibilidade do mercado de trabalho, o aperfeiçoamento do mercado de crédito e do sistema financeiro, a melhoria da tributação e do ambiente de negócios. Todos esses tópicos dependem de aprovação de leis. Elas é que, se bem desenhadas, fornecerão os incentivos corretos para que indivíduos e empresas, ao buscarem o melhor para si, também atuem de forma eficiente.

Por fim, cabe enfatizar a necessidade de redução do custo de resolução de conflitos. Isso se consegue com uma reforma do Poder Judiciário. Tal aprimoramento vem sendo realizado paulatinamente, como os novos Códigos de Processo Penal e Civil aprovados recentemente no Senado.

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Para ler mais sobre o tema:

Referências específicas para o tema “falhas de governo”:

Arvate, P., Biderman, C. (2006) Vantagens e desvantagens da intervenção do governo na economia. In: Mendes, M. (Org.) Gasto público eficiente: 91 propostas para o desenvolvimento do Brasil. Instituto Fernand Braudel/Topbooks. São Paulo, p. 45-70.

Andrade, E. (2004) Externalidades. In: Arvate, P., Biderman, C. (Orgs.) Economia do setor público no Brasil.FGV/Campus. São Paulo., p. 16-33

Stiglitz, J. (1999) Economics of the public sector. W.W. Norton & Company, 3rd edition. Capítulos 1 e 4.

Referências para “análise econômica do direito”:

Cooter, Robert; Ulen, Thomas. (2010). Direito & Economia, 5ª edição. Porto Alegre: Bookman.

WORLD BANK DOCUMENT. Brazil, Judicial performance and private sectors impacts: findings from World Bank sponsored research. Report 26261- BR. July, 1, 2003.

Zylbersztajn, Decio; Sztajn, Rachel. (2005). Direito & Economia: Análise Econômica do Direito e das Organizações. Rio de Janeiro: Elsevier.


[1] O leitor pode conhecer mais sobre o tema consultado a bibliografia sugerida ao final do texto.

[2] Ronald Coase – Prêmio Nobel de Economia em 1991.

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