INSS – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Wed, 07 Feb 2018 17:45:30 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 O fator e o favor previdenciário https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3161&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-fator-e-o-favor-previdenciario Wed, 07 Feb 2018 17:45:30 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3161 Em 6 de dezembro, o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), José Robalinho Cavalcanti publicou no JOTA o artigo Previdência: prendam os suspeitos de sempre. Contrário à reforma da Previdência discutida atualmente no Congresso, Robalinho reconhece que há um ‘problema’ previdenciário no País, mas ele estaria no Regime Geral (INSS).

O artigo critica as medidas que afetam os servidores públicos, especialmente os que ingressaram antes de 2003, já que reformas anteriores já teriam deixado a trajetória do Regime Próprio da União equilibrada no longo prazo. Assim, para Robalinho, os servidores teriam sido escolhidos como “espantalho” pelo governo, que desejaria criar um “inimigo externo”. O procurador também acusa o objetivo das medidas de irem “muito além da previdência”, uma vez que afetariam servidores de carreiras de estado que investigam forças políticas: teria a reforma da Previdência, portanto, “o objetivo final de manter o sistema político corrompido”.

Apesar de algumas considerações apropriadas – especialmente em relação à ausência dos militares da proposta -, há muito que ressaltar no texto do presidente da ANPR. Se é verdade que a situação futura do Regime Geral é muito mais grave do que a do Regime Próprio da União, também é verdade que os regimes próprios dos servidores dos entes subnacionais – na ausência de reformas – vão transformar vários Estados brasileiros em novos “Rios de Janeiros” nos próximos anos.

Igualmente, se é verdade que o menor desequilíbrio em longo prazo entre todos os regimes é mesmo o do Regime Próprio dos servidores da União, também é verdade que reformas anteriores ainda levarão tempo para surtir efeitos – o que diante do teto de gastos ameaça diversos investimentos e políticas públicas do governo federal. Os efeitos regressivos do ponto de vista da distribuição de renda também continuarão existindo por muito tempo: embora alcance poucas famílias, os regimes próprios seriam sozinhos responsáveis por 7% de toda a desigualdade de renda do país, segundo Pedro Souza e Marcelo Medeiros, os pesquisadores que estão na fronteira desta linha de pesquisa.

Para que o leitor entenda com mais clareza quais são as regras atuais do Regime Próprio (RPPS) dos servidores e como elas mudam na reforma, contemos a história de Antônio e Victor. Consideremos Antônio e Victor “gêmeos” para todos os fins: são trabalhadores que ingressaram no mercado de trabalho com a mesma idade, com uma mesma qualificação e em uma mesma profissão, receberam sempre a mesma remuneração, contribuíram sobre iguais valores e se aposentaram na mesma data: aos 55 anos, com 35 de contribuição.

Adicionalmente, suponha também o leitor que a média salarial ao longo da carreira de Antônio e Victor tenha sido de R$ 3 mil, e o último salário, de R$ 4 mil. Agora, suponha uma única diferença entre Antônio e Victor: Antônio trabalhava na iniciativa privada e está sujeito às regras do Regime Geral, Victor trabalhava no setor público e está sujeito às regras do Regime Próprio.

Antônio estará sujeito ao fator previdenciário, que aplicado a sua média salarial de R$ 3 mil, resultará em uma aposentadoria de cerca de R$ 2 mil1. Victor estará sujeito ao favor previdenciário, chamado de “integralidade”: se aposentará com os R$ 4 mil de último salário.

A integralidade ignora a média salarial de R$ 3 mil e a expectativa de sobrevida contida no fator previdenciário. Note que o termo integralidade pode confundir: ao contrário do que os segurados do INSS estão acostumados, o “integral” aqui se refere ao último salário, não à média salarial: com efeito, a aposentadoria não é a média integral, mas um valor maior do que a média.

No exemplo simples colocado, as regras diferentes entre os regimes levam a uma redução de R$ 1 mil sobre a média salarial de Antônio e um aumento de R$ 1 mil na média salarial de Victor, resultando em uma aposentadoria com o dobro do valor. Ressaltemos: Victor e Antônio sempre tiveram os mesmos salários e contribuíram sobre os mesmos valores.

A integralidade, ou o favor previdenciário como chamamos neste texto, é a principal fonte de iniquidade entre os regimes, e de pressão no gasto público. Contrariamente ao que algumas corporações veicularam nas redes sociais na última semana, o fato de servidores mais bem remunerados contribuírem sobre salários acima do teto do INSS não gera a contrapartida proporcional à integralidade. Se Victor ganhasse R$ 10 mil ou R$ 20 mil, certamente contribuiria com mais do que Antônio, mas o favor continuaria embutido.

Voltando à opinião de Robalinho, é verdade que servidores que ingressaram depois de 2003 não tem direito à integralidade, e os que ingressaram depois de 2013 (na União) possuem regras inclusive mais restritivas do que as do INSS (mesmo teto, idade mínima maior). O desafio é que o contingente de servidores com direito a esta vantagem – que o governo e os jornais chamam de privilégio – ainda é e será muito significativo, especialmente na próxima década. Em 2015, 93% dos servidores que se aposentaram na União tinham integralidade.

Diante do teto de gastos (Emenda Constitucional no 95, de 2016), os altos gastos com aposentadorias e pensões do Regime Próprio comprimem despesas de políticas públicas e investimentos na União, inclusive os voltados à população mais pobre – ainda que a tendência partir da década de 2030 tenda ao equilíbrio. Frisa-se que diante do teto e sem reformas, o próprio reajuste do funcionalismo de servidores ficará pressionado, o que adiciona complexidade à atuação corporativa de entidades como a ANPR: os interesses de servidores pré-2003 definitivamente se conflitam com os dos que ingressaram posteriormente.

Neste sentido, é pertinente olhar os indicadores de deficit atuarial dos diversos regimes.  O resultado atuarial – superavit ou deficit – é considerado o indicador mais relevante para a saúde de um regime previdenciário. Ele se contrapõe ao resultado financeiro, que é um indicador corrente, do presente; enquanto o resultado atuarial indica o equilíbrio futuro. Simplificadamente, este é a soma dos fluxos futuros de receitas e despesas, trazidas a valor presente. Em um sistema estritamente equilibrado, não há deficit (ou superavit) atuarial.

O deficit atuarial do regime próprio na União é de R$ 1,4 trilhão. Observe que enquanto Robalinho tem razão de que a trajetória no Regime Geral (INSS) é muitíssimo pior (R$ 7,9 trilhões!), o valor não é nada desprezível. Em especial, o Regime Próprio da União possui as mesmas regras dos regimes próprios de Estados e Municípios, com deficits atuariais somados de R$ 5,4 trilhões, em entes que não podem emitir moeda e tem restrições a se endividar.

A alarmante situação previdenciária dos Estados é parcialmente explicada pela integralidade, conjugada com regras especiais de aposentadoria que afetam a maior parte dos funcionários, como professores, policiais e profissionais de saúde. Segundo o Banco Mundial, mesmo o rico Estado de São Paulo terá ao redor de 2030 o mesmo comprometimento da receita com previdência que o Rio, falido, tem hoje. Os Estados – e a prestação de serviços básicos à população – não resistirão a mais uma década com as atuais regras previdenciárias. Não há sentido em se opor a esta reforma porque haverá equilíbrio nos regimes próprios em 2035 ou 2040.

Então o que muda na polêmica versão atual da proposta? A mudança é simples. Servidores que ainda têm direito ao favor previdenciário, a integralidade, continuarão tendo direito a ela – desde que esperem até os 65 anos de idade (homem) e 62 anos (mulher) para se aposentar. Podem se aposentar antes disso? Sim, mas sem a integralidade. Neste caso, este servidor leva “só” 100% da média salarial.

Voltando ao exemplo de Antônio e Victor, Victor continuaria tendo direito à integralidade se esperasse até os 65 anos. Se ainda quisesse se aposentar antes disso, teria direito a 100% da sua média, de R$ 3 mil. O valor é certamente inferior ao último salário (R$ 4 mil), mas ainda muito acima do da aposentadoria de Antônio (R$ 2 mil). Por quê? Se não incide mais o favor previdenciário aumentando a média, tampouco incide algo parecido com o fator previdenciário: pode-se levar 100% dela.

Note que é, portanto, absolutamente falsa a afirmação de Robalinho em seu texto de que não há regra de transição para servidores (“quer-se que a nova idade mínima seja fixada no dia seguinte à eventual promulgação”). Sustenta o presidente da ANPR, antes de concluir com a frase “prendam-se os suspeitos de sempre” que batiza o artigo, que haveria um tratamento diferenciado e desrespeitoso com o servidor que tornaria a proposta inconstitucional. Perceba: só é necessário continuar contribuindo até os 65/62 anos para manter a integralidade. Isso não é necessário para quem quiser sair antes levando 100% da média.

Agora imagine Victor, chateado com a proposta, explicando para Antônio a injustiça de levar como aposentadoria sua média salarial, sem fator previdenciário ou qualquer outro índice que considere sua (longa) expectativa de sobrevida. Ademais, a possibilidade de aposentadoria com 100% da média só existirá para servidores que ingressaram antes de 2003 – uma clara concessão a quem já foi afetado por reformas anteriores e feito seu planejamento familiar de acordo com elas –, enquanto os servidores que ingressaram posteriormente ficam sujeitos ao mesmo cálculo que valerá para os trabalhadores do INSS.

Há outros pontos a discordar no artigo aqui comentado. De menos relevante, soa incorreta a afirmação que “na verdade, é banal e intuitivo que a despesa previdenciária é anticíclica”: ela parece acíclica, pois cresce vigorosamente independentemente da atividade econômica. Talvez alguns ainda a considerem prócíclica, porque os reajustes do salário mínimo (o valor da maior parte dos benefícios) são influenciados pelo crescimento do PIB, mas com uma defasagem de mais de 1 ano. Anticíclica dificilmente ela é – como podem ser benefícios da Seguridade como o Bolsa Família e o seguro-desemprego –, se não se reduziria quando o PIB voltasse a crescer, o que coadunaria com o argumento de Robalinho de que os deficits altos são conjunturais.

De mais relevante, é extremamente controversa a afirmação de que “o governo mente quando diz que a reforma não atinge os mais necessitados” e que irá “reduzir em 40% a aposentadoria dos que chegarem aos requisitos com o tempo mínimo de contribuição (15 anos)”. De fato isso seria extremamente preocupante, porque possui razão o procurador quando diz que os trabalhadores mais pobres têm dificuldade de comprovar tempo de contribuição.

No entanto, a proposta atual, contrariamente à versão original, mantém o mínimo atual de 15 anos de contribuição, não mudando em nada o requisito para estes trabalhadores. Principalmente, a PEC não propõe a desvinculação do piso previdenciário do salário mínimo. Esta vinculação faz com que a maior parte dos beneficiários da Previdência, especialmente os mais pobres, recebam como valor do benefício mais do que a média salarial com que contribuíram. Para eles, é irrelevante a fórmula de cálculo do benefício, pois sempre tende a estar abaixo do salário mínimo atual – o piso previdenciário pela Constituição – que foi muito valorizado nos últimos 20 anos, especialmente nos governos do Partido dos Trabalhadores.

Ilustrativamente, um trabalhador que tenha recebido sempre o salário mínimo desde os anos 90, e contribuído sobre ele, teria média salarial atualizada em 2017 de pouco mais de R$ 600. Qualquer fórmula de cálculo de aposentadoria, seja a da reforma ou seja a vigente, leva a um valor inferior ao salário mínimo atual. Com 15 anos, o menor tempo de contribuição exigido para aposentadoria, ele já tem a média salarial integral como benefício, ou mais que integral, uma vez que o piso previdenciário é de R$ 937. Quase 70% dos benefícios do INSS são de 1 salário mínimo.

Desta forma, a tese do presidente da ANPR em relação aos trabalhadores pobres do INSS não apenas contrasta com o fechamento de seu artigo (“É no regime geral que está o problema”), como não tem amparo à luz da PEC e da realidade previdenciária.

Finalmente, chama atenção o argumento de que objetivo final da reforma da Previdência é manter o sistema político corrupto, uma vez que ela afeta servidores de carreiras que “investigam, fiscalizam, processam, incomodam as forças políticas que estão no poder”.  Não seria o caso então de possibilitar logo a aposentadoria destes servidores, permitindo a corruptos que se livrem de seus investigadores? Grandes personagens da luta recente contra a corrupção no País estão se aposentando pelas regras atuais, como o delegado ex-diretor da Polícia Federal Leandro Daiello (51 anos), o procurador da Lava Jato Carlos Fernando dos Santos Lima (53 anos, que anunciou aposentadoria para o ano que vem), e o próprio ex-Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot (61 anos) que se aposentadoria após deixar o cargo.

Ademais, a estranha lógica que relaciona a reforma da Previdência com o combate à corrupção poderia induzir o leitor menos esclarecido a inferir como corolário –equivocadamente – que ações anticorrupção são usadas contra a reforma: um infeliz argumento que já foi usado por opositores da Lava Jato.

A lembrança do ex-PGR Rodrigo Janot, aliás, é oportuna para encerrarmos este texto. Em agosto, o PGR ajuizou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 476, relativa ao Plano de Seguridade Social dos Congressistas (também afetado pela atual reforma). Esta previdência parlamentar, que contrariamente ao senso comum exige tempo de contribuição de 35 anos, possui na prática idade mínima maior do que a do Regime Próprio dos servidores e não conta com integralidade, pagando valores médios que são pouco mais da metade das aposentadorias do Regime Próprio no Judiciário, no MP e no Legislativo. Ressalta-se que a ação do PGR não se refere ao Instituto de Previdência dos Congressistas (IPC), este sim com regras mais vantajosas, mas extinto em 1997.

Os argumentos trazidos na ADPF são extremamente pertinentes na discussão da reforma que aproxima o favor previdenciário do Regime Próprio ao fator previdenciário do Regime Geral. Peço licença ao leitor para encerrar o texto reproduzindo três trechos, convidando-o a refletir se os argumentos se mantêm se substituirmos os termos “agentes políticos” por “servidores”.

  1. “Além de igualdade de oportunidades, o princípio republicano busca assegurar tratamento igualitário a todos os cidadãos e repudia privilégio ou regalia que beneficie, sem fundamento jurídico suficiente, determinado grupo ou classe em detrimento dos demais. É refratário à instituição de privilégios, pois se baseia no
    reconhecimento da igual dignidade de todos os cidadãos, donde a temporariedade do exercício do poder, precisamente para impedir perpetuação de privilégios.”
  2. “Concessão de benefícios previdenciários com critérios especiais distingue indevidamente determinados agentes políticos dos demais cidadãos e cria espécie de casta, sem que haja motivação racional – muito menos ética – para isso”.
  3. “Os princípios republicano e da igualdade exigem que, ao final do exercício de cargo eletivo, seus ex-ocupantes sejam tratados como os demais cidadãos, sem que haja razão para benefícios decorrentes de situação pretérita, muito menos de forma vitalícia. Mesmo durante a ocupação de cargos é desejável que os mandatários do povo sejam tanto quanto possível tratados com direitos e deveres idênticos aos de seus compatriotas”.

Publicado originalmente no JOTA em 11 de dezembro de 2017.

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1 R$ 2.124, com o fator previdenciário de 0,708.

 

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Cumpra-se https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2829&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=cumpra-se https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2829#comments Mon, 08 Aug 2016 12:39:26 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2829 O governo interino editou a Medida Provisória no 739, uma espécie de “pré-reforma” da Previdência, destinada a reduzir em pelo menos R$ 6 bilhões por ano, por meio de medidas administrativas, o pagamento de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez para quem  não se encontraria incapacitado para o trabalho.

Pode-se dizer que a MP simultaneamente:

  1. faz parte do esforço de ajuste fiscal, sendo um dos frutos baixos da árvore, ao não exigir aumento de tributos ou a repactuação com o Congresso de novas regras para benefícios;
  2. prepara o terreno para a terceira reforma da Previdência, ao apresentar à sociedade que pagamentos indevidos estão sendo revistos antes de medidas mais impopulares serem tomadas; e
  3. tenta responder aos efeitos da judicialização da Previdência, tema introduzido neste texto.

O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), maior litigante da Justiça Federal, já teria 10% de seus benefícios sendo pagos por decisão judicial, segundo a Associação Nacional dos Médicos Peritos (ANMP). Isso seria equivalente a cerca de 3 milhões de benefícios pagos por mês. Entre os benefícios mais concedidos por decisão judicial1, além dos objetos da MP 739/2016 (auxílio-doença e aposentadoria por invalidez), estão a aposentadoria rural (a Justiça pode aceitar provas alternativas de comprovação do tempo de trabalho no campo) e o Benefício de Prestação Continuada (a Justiça pode reavaliar a incapacidade de quem alega deficiência ou modificar o critério  usado para aferir pobreza – o que já foi discutido no blog). A judicialização atinge milhares de casos individuais, mas também dezenas de ações civis públicas propostas principalmente pelo Ministério Público em diferentes regiões do país.

Auxílio-doença e aposentadoria por invalidez

A exposição de motivos da MP 739 aponta que as despesas com auxílio-doença cresceram 85% em apenas 10 anos, atingindo R$ 23,2 bilhões em 2015. Em especial, chama a atenção a quantidade de benefícios sendo pagos há mais de 2 anos: quase 850 mil, mais da metade de todos os benefícios. Apenas nesses casos a despesa total por ano é de R$ 13 bilhões2,  ou  o equivalente a dois terços das despesas com o Minha Casa Minha Vida em 2015.  Por que tantas pessoas recebem um benefício provisório por tanto tempo?

Além da crônica dificuldade do INSS de realizar perícias médicas e de reabilitar os segurados3, a judicialização desempenha um papel.  Nos casos individuais, o Judiciário pode discordar da perícia do INSS que não considerava alguém incapacitado, e conceder o benefício. Também são muitos os casos em que a Justiça até mesmo expande a lista de doenças que, independentemente de contribuição, dão direito à aposentadoria por invalidez e ao auxílio-doença. Os peritos previdenciários se queixam que o Judiciário não teria a expertise necessária para tomar tais decisões. Por sua vez, o INSS não tem tido capacidade de deslocar peritos para participar de audiências na Justiça: casos em que há participação do perito do INSS tendem a ter decisões mais favoráveis ao órgão.

Já nas ações civis públicas a Justiça tem obrigado o INSS a conceder automaticamente o auxílio-doença, aposentadoria por invalidez e o BPC da pessoa com deficiência se a perícia não puder ser realizada em um determinado prazo. Note que, também nesse caso, a dificuldade da Previdência com a mão de obra pericial tem um papel fundamental.

Entretanto, como esse prazo máximo para que a perícia seja feita não está previsto em lei, as ações civis públicas também tem o efeito adverso de adicionar mais complexidade à operação do INSS, um órgão nacional com a missão de administrar a segunda maior folha de pagamento do mundo. Nas agências de Roraima, ação civil pública determina que perícia deve ser feita em no máximo 30 dias ou os benefícios devem ser automaticamente concedidos, prazo que é de 45 dias nas agências Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina e Maranhão.

Os problemas com perícias e a judicialização se relacionariam com os R$ 13 bi pagos por ano a quem recebe o auxílio-doença por mais de 2 anos.

Por isso, a MP 739 propõe que o auxílio-doença concedido judicialmente tenha uma estimativa de quando o pagamento deverá ser cessado (já há recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no mesmo sentido). Caso não haja a previsão sobre a recuperação do beneficiário, ele será interrompido após quatro meses. Prevê ainda que a qualquer momento quem recebe auxílio-doença e aposentadoria por invalidez por determinação judicial poderá ser reavaliado.

(Do lado administrativo, a MP prevê um bônus por perícia para os médicos do INSS, na tentativa de manter os médicos no quadro e efetivamente trabalhando nas agências. Nesse sentido, o ano passado foi marcado por uma malsucedida tentativa de terceirizar as perícias no âmbito da MP 664 (para o setor privado e o SUS) e por uma longa greve da categoria).

O governo pretende, com a Medida Provisória, reduzir em cerca de R$ 6 bilhões os benefícios pagos a quem não está incapacitado, ou mesmo quem de fato continua trabalhando. O grosso da redução deve ser no auxílio-doença e, residualmente, na aposentadoria por invalidez. Grupos contrários receiam que a MP prejudique subgrupos com incapacidade menos evidente, como pessoas com transtornos psiquiátricos, e anunciam intenção de recorrer a cortes internacionais4.

Benefício de Prestação Continuada

O BPC, operado pelo INSS, é objeto residual da MP 739, mas é alvo de intensa judicialização. Previsto na Constituição, trata-se de benefício assistencial destinado ao idoso ou deficiente pobre. A Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), que concretizou o benefício, considera como critério de pobreza para recebimento do benefício a renda per capita familiar abaixo de um quarto de salário mínimo. Ou seja, em valores de 2016, a renda per capita de até R$ 220 na família do idoso ou deficiente pobre daria direito ao recebimento do benefício no valor de R$ 880.

Note que há uma enorme discrepância em relação à linha de corte e ao valor do benefício em relação aos critérios do Bolsa Família (renda per capita de até R$ 85 para um benefício de R$ 85, ou renda per capita de até R$ 170, se houver crianças para um benefício de R$ 39). Assim, o critério de pobreza do BPC pode ser quase 3 vezes maior do que o do “famigerado” Bolsa Família, para um benefício 22 vezes maior de acordo com a legislação.  Mesmo assim, o critério de pobreza do BPC é considerado inadequado, e é o principal tema das ações judiciais que tratam do benefício.

Existem no Brasil dezenas de ações civis públicas em relação ao BPC. No que tange ao critério de pobreza, elas dividem-se em dois tipos: i) as que excluem do cálculo da renda per capita a renda recebida a título de BPC por outra pessoa da família ou até mesmo a aposentadoria ou pensão (de um salário mínimo); e ii) as que avaliam a pobreza subjetivamente ou que desconsideram no cálculo despesas essenciais, notadamente com medicamentos.

O Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA, 2016) aponta que contribuiu para essa tendência a previsão do Estatuto do Idoso (Lei no 10.741, de 1º de outubro de 2003) de desconsiderar no cálculo da renda o BPC recebido por outro idoso da família, entendimento que foi sucessivamente expandido pelo Judiciário (ex: desconsiderar o BPC da pessoa com deficiência, aposentadorias e pensões).

As ações também ganharam fôlego com um importante julgado recente do Supremo Tribunal Federal (STF)5, discutido previamente no blog, que reviu o posicionamento da corte e ampliou o critério da pobreza para recebimento do BPC de um quarto do salário mínimo como renda per capita para meio salário mínimo (ou de R$ 220 para R$ 440 em 2016).

Além da óbvia iniquidade e dificuldades administrativas causadas por essa série de decisões serem descoordenadas e aplicadas em regiões diferentes do país, o atropelo dos critérios pactuados pelo Executivo e o Legislativo causam distorções impressionantes. Se uma decisão individual está guiada por boas intenções e pode ter custos baixos, o seu acúmulo vai exatamente à direção contrária a pretendida, retirando recursos dos que mais precisam.

Conjugando os critérios dessas decisões, podemos, ilustrativamente, analisar as distorções em quatro famílias fictícias de três pessoas. Uma primeira família tem dois aposentados que ganham o salário mínimo, de R$ 880, vivendo com um deficiente com renda de R$ 1320 (total R$ 3080). Essa família não seria considerada pobre pela legislação, mas seria pelos critérios do Judiciário apresentados acima. Ela teria o direito de receber o BPC, no valor de R$ 880, totalizando uma renda de R$ 3960 (ou R$ 1320 per capita).

Suponha uma segunda família, também com três pessoas: um deficiente sem renda, um desempregado sem renda e alguém recebendo um salário de R$ 1321. Ela não se enquadra nos critérios de pobreza definidos pelo legislador ou pelo Judiciário e sequer receberia o benefício. A renda dessa segunda família fica sendo 3 vezes menor do que a da primeira, porque o Judiciário decidiu que o dinheiro recebido a título de aposentadoria não é renda para a definição de pobreza, o que permitiu aquela família receber além desses proventos, também o benefício assistencial para o deficiente.

Ainda ilustrativamente, considere outra família de três pessoas com renda total de apenas R$ 511.  Elas não têm direito nem ao BPC nem ao Bolsa Família, se não houver no grupo familiar idoso, deficiente ou criança. Esta é uma família significativamente mais pobre, com capacidade muito menor de judicializar a questão. Assim, a primeira família de três pessoas, com renda de R$ 3080, pode receber mais R$ 880 pelo entendimento do Judiciário, mas a terceira família com renda de R$ 511, sequer pode receber os R$ 85 do benefício básico do Bolsa Família. A diferença da renda per capita será de 8 vezes, por distorções, cumulativamente, das leis que regem o Bolsa Família e o BPC, e da intervenção do Judiciário.

Partindo desde último exemplo, podemos chegar a uma quarta família: se uma das pessoas do terceiro exemplo fosse uma criança (ex: uma mãe desempregada, um pai com salário de R$ 511 e um filho de até 15 anos), a família poderia receber o benefício variável de R$ 39 do Bolsa Família. Este é o auxílio que esta criança pobre poderá receber, ainda significativamente abaixo dos R$ 880 que a primeira família, com renda de mais de R$ 3 mil, teria direito. (Cabe observar que os valores usados aqui para o Bolsa Família já contam com o controverso reajuste dado pelo presidente interino Michel Temer).

Os casos são ilustrativos e anedóticos. Porém, já fica claro que: i) benefícios direcionados a crianças pobres têm menor chance de serem, e não são, judicializados; e ii) os benefícios recebidos por este grupo possuem valores muito menores e parâmetros mais duros para o recebimento. O mais grave é um terceiro ponto: é justamente nas famílias com crianças que a pobreza se concentra no Brasil.

Camarano et al. (2014) mostram que, no estrato de renda mais pobre, um terço dos indivíduos são crianças, mas apenas 6% tem mais de 60 anos. Por sua vez, no estrato de renda mais alto, somente cerca de 10% são crianças6. A discrepância na legislação e nas decisões judiciais em relação aos benefícios voltados para crianças e para idosos não seria um problema se fosse comum uma configuração familiar em que idosos vivessem com crianças.Entretanto, o que ocorre no Brasil é exatamente o oposto. Tafner, Botelho e Erbisti (2015) mostram que, no caso de benefícios previdenciários, 88% dos idosos beneficiários não possuem crianças ou jovens abaixo de 15 anos em sua família. Apenas 3,5% possuem pelo menos duas crianças.

Tafner (2006) mostra ainda que este fato (a pobreza no Brasil ser desproporcionalmente concentrada nas crianças em relação às outras faixas etárias) quase não encontra paralelo no resto do mundo. Seria razoável, por óbvias diferenças no padrão de consumo, que houvesse distinção nos benefícios direcionados a estes dois grupos demográficos, mas está claro que a magnitude da discrepância acumulada pela legislação e pelo Judiciário é preocupante.

Ainda, os gastos pró-crianças têm evidentemente um potencial maior para transformar o futuro, estando cada vez mais claro o seu importante papel não só em combater a pobreza, mas também a desigualdade e em aprimorar o crescimento da produtividade da economia. Esta é em especial uma bandeira do Prêmio Nobel James Heckman, que defende que políticas para este grupo beneficiam não só as crianças, mas a sociedade como um todo78.

No Brasil, este grupo vulnerável está desamparado por essas decisões e não tem quase nenhuma capacidade de judicializar a questão: crianças não contratam advogados ou batem nas portas da Defensoria Pública, e seus pais, que recebem os benefícios voltados a ela, são pouco estimados pela sociedade (nas últimas eleições apenas 40% da população era a favor do programa9).

Só que este não é o único problema: o foco dos três Poderes nas transferências para grupos mais velhos drena quantidade significativa de recursos, sufocando ações que beneficiam este grupo, como o investimento em saneamento básico, creches e educação básica (além de transferências diretas como o próprio Bolsa Família). Segundo a ANMP, em 2015 o INSS pagava R$ 20 bilhões em benefícios decididos judicialmente. No total do orçamento, o Brasil já gasta 54% apenas com benefícios previdenciários e o BPC.

Este é um debate difícil: é evidente que os entusiastas da judicialização estão bem intencionados e que os critérios legais para concessão dos benefícios são discutíveis. Entretanto, a invasão da competência do Executivo e do Legislativo (mais bem posicionados para avaliar a questão) e a expressiva quantidade de decisões concedendo benefícios sem fonte de custeio podem não ser a melhor maneira de erradicar a pobreza no Brasil, reduzir as desigualdades e promover o crescimento da renda.

É possível que o governo lance mão de medidas administrativas para identificar pagamentos indevidos do BPC a quem não se enquadraria nos critérios de renda, bem como é provável que o benefício seja incluído na reforma da Previdência (transformando o valor recebido proporcional às contribuições do beneficiário ao INSS). No entanto, é incerta a maneira que a judicialização do benefício vai evoluir nos próximos anos: eventuais mudanças legislativas vão dirimir ou estimular a judicialização? Hoje, de cada 4 BPC concedidos, 1 já seria por decisão judicial1011. No total de benefícios mantidos, a estatística varia de 28% no benefício da pessoa com deficiência em Alagoas a 1% no do idoso no Amazonas, segundo o MDSA.

Outras ações civis públicas

Além das dezenas de ações civis públicas sobre a concessão automática do auxílio-doença e aposentadoria por invalidez e os critérios do BPC, outros casos anedóticos de judicialização da Previdência por este instrumento incluem:

  • pagamento de BPC para estrangeiros, proposta pelo Ministério Público Federal em  Rondônia;
  • pagamento do salário-maternidade a índias de tribos específicas, independentemente de contribuição ou da idade mínima de 16 anos para se tornar segurada (adolescentes pobres da cidade não são contempladas, podendo contar somente com o Bolsa Família); e
  • pagamento do salário-maternidade sem comprovação de relação de emprego a desempregadas pelo INSS no Rio de Janeiro.

Causas da judicialização

Marques (2016) relaciona a judicialização, entre outros:

  • ao alto volume de segurados e ao aumento do número de advogados no país (o que alude ao termo “advogado de porta de INSS”);
  • à fraqueza da defesa do INSS;
  • ao número insuficiente de servidores; e
  • a minúcia da Constituição ao tratar de Previdência.

Já Coelho (2014) ressalta a interiorização da Justiça Federal, enquanto o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (2016) aponta também a possibilidade de delegação da competência em ações que envolvam o INSS da Justiça Federal para a Justiça estadual. Marques aponta ainda que apenas cerca de um terço das ações contra o INSS são consideradas improcedentes.

Considerações finais

Tratando de maneira mais ampla do problema da judicialização de políticas públicas, Di Pietro (2014) aponta que a intervenção judicial é feita a partir de casos concretos, que quando somados correspondem a políticas públicas:

feitas sem qualquer planejamento (que o Judiciário, pela justiça do caso concreto, não tem condições de fazer) e sem atentar para as deficiências orçamentárias que somente se ampliam em decorrência de sua atuação, desprovida que é da visão de conjunto que seria necessária para a definição de qualquer política pública que se pretenda venha em benefício de todos e não de uma minoria privilegiada pelo acesso à Justiça.

A MP 739/2016 trouxe à tona a judicialização da Previdência, questão de difícil solução e que carece de mais estudo. É necessário identificar quando existem vácuos que corretamente são preenchidos pelo Judiciário ou quando há invasão de competência da Presidência e do Congresso, mais aptos e legitimados para aprovação das normas que guiam a máquina previdenciária.

Para os próximos anos, não se pode descartar que a judicialização aumente ainda mais, frente ao natural crescimento da demanda por benefícios previdenciários decorrente do envelhecimento da população e das inevitáveis alterações legislativas que serão feitas (reformas), que podem inspirar os operadores do Direito (como no caso do Estatuto do Idoso e o BPC) ou dar vazão ao discurso de “perdas de direitos” típico desse tipo de mudança.

 

Referências

CAMARANO, A, A; KANSO, S.; BARBOSA, P.; ALCÂNTARA, V. S. Desigualdades na Dinâmica Demográfica e as suas Implicações na Distribuição de Renda no Brasil. In: CAMARANO, A. A. (Org.). Novo Regime Demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento?. Rio de Janeiro: Ipea, 2014. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article &id=23975.

COELHO, S. M. A problemática da judicialização dos conflitos previdenciários e a ação civil pública como instrumento processual de efetivação da proteção constitucional previdenciária. Jus Navigandi. Julho de 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30085/a-problematica-da-judicializacao-dos-conflitos-previdenciarios-e-a-acao-civil-publica-como-instrumento-processual-de-efetivacao-da-protecao-constitucional-previdenciaria.

DI PIETRO, M, S. Z. Judicialização de políticas públicas pode opor interesses individuais e coletivos. Consultor Jurídico. 28 de maio de 2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-mai-28/interesse-publico-judicializacao-politicas-publicas-opoe-interesses-individuais-coletivos.

MARQUES, C. Possíveis causas e consequências da judicialização dos benefícios do RGPS. Jusbrasil. Março de 2016. Disponível em:  http://supercassius.jusbrasil.com.br/artigos/316638102/possiveis-causas-e-consequencias-da-judicializacao-dos-beneficios-do-rgps.

MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E AGRÁRIO. Nota Técnica nº 03/2016/DBA/SNAS/MDS. Brasília, 21 de março de 2016. Disponível em: http://conpas.cfp.org.br/wp-content/uploads/sites/8/2014/11/Nota-T%C3%A9cnica-n%C2%BA-03-Judicializa%C3%A7%C3%A3o-do-BPC-2.pdf. TAFNER, P. S. B. (Ed.). Brasil: O Estado de uma Nação, 2006: Mercado de Trabalho, Emprego e Informalidade. Rio de Janeiro: IPEA, 2006. TAFNER, P.; BOTELHO, C.; ERBISTI, R. Debates sobre Previdência: Confusões, Polêmicas Iniciais e Mitos. In: TAFNER, P.; BOTELHO, C.; ERBISTI, R. (Org.). Reforma da Previdência: A Visita da Velha Senhora. Brasília: Gestão Pública, 2015.

________________

1 Considerando a desaposentadoria como revisão de um benefício, e não concessão.

2 http://odia.ig.com.br/economia/2016-07-01/inss-vai-passar-pente-fino-para-detectar-fraudes-em-auxilio-doenca.html.

3 No ritmo atual e apenas com o estoque existente hoje, levariam 50 anos para o INSS reabilitar os que recebem o benefício há mais tempo. Ver: http://noticias.r7.com/economia/metade-dos-segurados-que-recebem-o-auxilio-doenca-do-inss-vao-passar-por-reavaliacao-26072016

4 Ver: http://www.redebrasilatual.com.br/trabalho/2016/07/sindicatos-va-questionar-mp-que-mexe-com-beneficios-da-previdencia.

5 Recurso Extraordinário (RE) nº 567.985/MT, julgado em 2013.

6 Cabe observar que o resultado dos autores, obtido a partir do Censo do IBGE, leva em conta a renda per capita de uma família. Crianças entre os 20% mais pobres estão em famílias pobres, enquanto crianças entre os 20% mais ricos estão em famílias ricas. Assim, não se considera “natural” este resultado, o que poderia ser argumentado caso se interpretasse erroneamente que crianças estão entre os 20% mais pobres simplesmente porque não trabalham.

7 Entre outros: HECKMAN, J. J.; MASTEROV, D. V. The Productivity Argument for Investing in Young Children. 2007. Disponível em: http://jenni.uchicago.edu/human-inequality/papers/Heckman_final_all_wp_2007-03-22c_jsb.pdf. e ALMOND, D.; CURRIE, J. Human Capital Development Before Age Five. Handbook of Labor Economics. Volume 4b. Elsevier, 2010. Disponível em: https://www.princeton.edu/~jcurrie/publications/galleys2.pdf.

8 Co-autor frequente de Heckman no tema, o pesquisador Flávio Cunha aparece como o brasileiro mais citado na academia nos últimos 25 anos. Ver: https://t.co/VvLrwKQFVs.

9 Ver: https://www.academia.edu/13218971/Mapping_and_understanding_perceptions_about_the_
Family_Stipend_based_upon_a_mixed_methods_approach?auto=download
.

10 Alguém tem que Cuidar da Qualidade do Gasto. Valor Econômico, 8 de julho de 2016.

11 Proporção próxima do benefício mais judicializado, a aposentadoria rural, com 30%, segundo o Relatório do Fórum de Debates sobre Políticas de Emprego, Trabalho e Renda e de Previdência Social de 2016.

 

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Por que o julgamento do STF sobre desaposentadoria é importante? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2328&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-o-julgamento-do-stf-sobre-desaposentadoria-e-importante https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2328#comments Tue, 04 Nov 2014 14:20:31 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2328 Introdução à desaposentadoria (desaposentação)

 A “desaposentadoria” (ou “desaposentação”) é tema que vem ganhando cada vez mais destaque, no Judiciário e no Legislativo1: o direito é pleiteado por centenas de milhares de aposentados e tem custos estimados em dezenas de bilhões de reais pelo governo. No Supremo Tribunal Federal, caminha para ser “o julgamento do ano”: o Plenário da Corte começou em outubro a analisar o Recurso Extraordinário nº 661.256, que tem repercussão geral – o que significa que a decisão deve ser estendida aos casos idênticos em todas as instâncias inferiores.

O julgamento começou com voto do ministro relator Roberto Barroso favorável à desaposentadoria, e também o ministro Marco Aurélio já votou também de maneira favorável em outra ação. Existem mais de cem mil ações no Judiciário pedindo a desaposentadoria, segundo a Advocacia-Geral da União (AGU). O governo ainda estima em meio milhão a quantidade de aposentados que continuam trabalhando e contribuindo para a Previdência, mas o número de afetados pode ser bem maior, considerando que a decisão favorável à desaposentadoria – pelo Congresso ou pelo STF – deve levar muitos trabalhadores que já são elegíveis a se aposentar; muitos aposentados que não trabalham a voltar ao mercado de trabalho formal; e muitos segurados a buscar judicialmente compensações por terem seguido as regras vigentes (tendo eles já se aposentado ou não).

Mas o que é a desaposentadoria? Conforme o texto publicado em junho (O que é desaposentadoria e qual o seu impacto?), simplificadamente, trata-se do direito ao recálculo do valor da aposentadoria para aqueles que continuaram trabalhando depois de se aposentar, de modo que seja incorporado ao benefício o valor das contribuições feitas à Previdência depois que se aposentaram (a contribuição previdenciária é devida por todos aqueles que trabalham).

Assim, a desaposentadoria guarda semelhança com o instituto da “reversão”, que permite, sob certas condições, que servidores públicos inativos voltem à atividade. Entretanto, os institutos são marcadamente diferentes: ao contrário do que a expressão “desaposentadoria” pode indicar, não se pleiteia meramente a possibilidade de se deixar de ser aposentado e voltar ao mercado de trabalho (como na reversão), mas de acumular trabalho e aposentadoria, pedindo, por uma segunda vez – quando de fato se para de trabalhar -, que as contribuições feitas se revertam em benefício. Nesse sentido, a expressão “reaposentadoria” ilustraria melhor o direito do que o termo “desaposentadoria”, já que não se trata da mera renúncia à aposentadoria acompanhada do retorno ao trabalho.

 

O fator previdenciário

 A desaposentadoria está intimamente ligada ao descontentamento com o “fator previdenciário”, e também com o fato de ele ser mal compreendido. Entendido como um “desconto” no valor que seria considerado justo para as aposentadorias, o fator, na verdade, busca contornar a ausência de idade mínima para aposentadoria no Regime Geral de Previdência Social (RGPS) – característica que faz do Brasil uma exceção entre os sistemas de seguridade existentes no mundo. Em geral, as aposentadorias no País se dão de maneira muito precoce quando comparadas a outros países, sejam eles países desenvolvidos ou mesmo países em desenvolvimento.

Para tornar o sistema mais equilibrado e sustentável, o fator previdenciário faz com que os benefícios dos que se aposentam mais cedo sejam menores do que os daqueles que escolhem se aposentar mais tarde. Assim, para dois segurados que começaram a trabalhar exatamente no mesmo dia, com a mesma idade e que receberam sempre os mesmos salários, a aposentadoria daquele que se aposentar, por exemplo, aos 55 anos, será menor do que a daquele que se aposentar cinco anos depois, aos 60 anos. O fator considera que o que se aposentou com 55 anos contribuirá por menos tempo e receberá por mais tempo o benefício do que aquele que se aposentou com 60, e por isso este último receberá um valor maior2.

Assim, o fator previdenciário deveria induzir os segurados a apenas começar a receber a aposentadoria em idades mais próximas daquelas praticadas mundo afora, remendando o problema da ausência de idade mínima para aposentadoria no RGPS. Isso, em parte, não aconteceu: as aposentadorias continuam se dando em idades baixas3. Estando aposentado em idade ainda jovem, o trabalhador tem plenas condições de voltar ao mercado de trabalho. Muitos destes trabalhadores se sentem injustiçados pelo fator, e buscam, administrativa ou judicialmente, o recálculo do benefício. Tal recálculo levaria em conta não apenas as contribuições adicionais feitas pelo indivíduo no novo emprego, após à aposentadoria, como também a sua idade mais avançada (que reduz o desconto aplicado pelo fator previdenciário).

O desequilíbrio prejudicial à previdência decorrente desse recálculo vem do fato de que entre o momento da aposentadoria e o momento do recálculo o indivíduo recebeu pagamentos a título de aposentadoria. Se ele deseja anular a aposentadoria anterior e recalculá-la com sua nova idade e tempo de contribuição, deveria, então, devolver todos os recursos que recebeu a título de aposentadoria. Tudo se passaria como se ele não tivesse se aposentado antes e estivesse pedindo aposentadoria agora. Recalcular o valor a receber, sem devolver o que recebeu até então, significa óbvio ônus ao erário.

 

O que apenas Brasil, Irã, Iraque e Equador têm em comum?

 Ainda pouco se fala no Brasil que somos um dos poucos países do mundo que permitem a aposentadoria por tempo de contribuição (anteriormente aposentadoria por tempo de serviço) – sem uma idade mínima. Juntam-se à exceção brasileira apenas o Irã, o Iraque e o Equador, sendo que este último exige um mínimo de 40 anos de contribuições. Não apenas o Brasil está acompanhado nesse quesito por economias nada modernas, mas, dentre elas, pode ser considerado o mais generoso nas condições de elegibilidade para concessão do benefício: Irã, Iraque e Equador só concedem a aposentadoria caso o segurado efetivamente pare de trabalhar.

Na verdade, a maioria dos países trata a aposentadoria de fato como um “seguro”. A noção por trás da aposentadoria é justamente que o segurado contribui para o sistema e, quando se encontra incapacitado de trabalhar (o equivalente a um sinistro em outros tipos de seguro), recebe um benefício para se manter.  É por isso que quase todos os países possuem uma idade mínima para a aposentadoria, já que seria a idade avançada que inviabilizaria o trabalho. Outro exemplo de ocorrência de “sinistro” seria a aposentadoria por invalidez, em que o segurado perde as condições de trabalhar normalmente, ainda que jovem, e recebe um benefício da seguridade social por isso, ou ainda o auxílio-doença.

As aposentadorias estão longe de ser entendidas como um “seguro” pela sociedade brasileira, seja no RGPS (Regime Geral de Previdência Social, o regime administrado pelo Instituto Nacional do Seguro Social – INSS) ou no serviço público (Regime Próprio de Previdência Social – RPPS), e são entendidas como uma renda que o trabalhador tem direito a receber como recompensa por décadas de trabalho, sendo considerado natural que ele ainda esteja em condições de trabalhar quando se aposenta. De acordo com o art. 194 da Constituição da República, integram o nosso sistema de seguridade social não apenas a previdência, mas também a assistência social e a saúde – esta última é financiada pelos segurados via tributos: na ocorrência de um “sinistro” (um problema de saúde), o segurado tem direito a ser tratado na rede pública de saúde.

Ressalta-se mais uma vez que a idade mínima para aposentadoria é a regra mesmo em países em desenvolvimento. Essa idade mínima, em geral, vai de pelo menos 60 anos para homens até um mínimo de 66, em Portugal, e 67, na Grécia e em países de renda alta (como os escandinavos). Como apresentado no texto anterior, entre os nossos vizinhos, México, Colômbia, Argentina, Chile e Peru têm, por exemplo, idade mínima de 65 anos.

O caso brasileiro é ainda mais discrepante quando se considera a expectativa de sobrevida da população idosa. Apesar de a expectativa de vida ao nascer no Brasil ainda estar abaixo da de outros países (74,6 anos em 2013, segundo o IBGE), ao contrário do que se pensa, não é esse o dado relevante para a seguridade social, e sim a expectativa de vida condicionada a idades mais avançadas4 (ou expectativa de sobrevida). A expectativa de vida daqueles com 65 anos no Brasil é próxima da de países desenvolvidos (83 anos em 2012, de acordo com o IBGE) e a OCDE estima que no futuro ela deve superar ligeiramente até a dos Estados Unidos e a da Dinamarca, chegando a quase 90 anos (24,6 anos de expectativa de sobrevida aos 65)5.

A falta de compreensão dessa realidade e do mecanismo que buscou corrigi-la (o fator previdenciário) está diretamente relacionada aos pleitos de desaposentadoria e à sua aceitação por parte da classe política e do Judiciário. Contudo, o instituto da desaposentadoria não parece consoante com a nossa Constituição, como veremos a seguir.

 

Sobre constitucionalidade: (des)equilíbrio atuarial, diferenciação dos segurados, majoração de benefícios sem fonte de custeio e a escolha do constituinte pelo modelo de repartição  

A preocupação com o equilíbrio da Previdência Social não é recente e não é apenas do governo ou dos economistas: está explícita no texto constitucional. No julgamento do STF, naturalmente é sob a luz da Constituição que a desaposentadoria é analisada.   No art. 201 consta que a organização da Previdência observará critérios de preservação do equilíbrio financeiro e do equilíbrio atuarial. Esses não são termos abstratos ou sem significado, apesar de o debate sobre a desaposentadoria por vezes parecer ignorar a presença do “equilíbrio financeiro e atuarial” na Constituição.

O Ministério da Previdência Social (MPS) define de maneira objetiva o equilíbrio financeiro como a equivalência entre receitas e obrigações em cada exercício financeiro, o que já não ocorre, apesar de ainda sermos um país com população jovem: o deficit estimado para 2014 é de R$ 55 bilhões. Já o equilíbrio atuarial seria a “equivalência, a valor presente, entre fluxo de receitas estimadas e obrigações projetadas, apuradas atuarialmente, a longo prazo”6. Ou seja, de maneira simplificada, o equilíbrio atuarial existe quando o valor esperado da diferença entre receitas e despesas futuras é zero: a arrecadação equivaleria às despesas e não haveria desequilíbrio.

A desaposentadoria vai de encontro com o equilíbrio atuarial. Isso porque desconsidera as variáveis atuariais usadas no cálculo do benefício e presentes no fator previdenciário. O fundamental é que o cálculo do valor da “primeira” aposentadoria não considera que o benefício será aumentado anos depois (como na desaposentadoria), e sim que o beneficiário permanecerá recebendo como provento aquele valor (em termos reais) que foi concedido, residindo justamente aí a fonte do desequilíbrio.

Naturalmente, o valor do benefício guarda relação com o valor da contribuição, mas também, entre outros fatores, com o tempo esperado de usufruto. Como o tempo esperado de usufruto é o mesmo com a desaposentadoria (logicamente a expectativa de sobrevida não diminui), o aumento do benefício gera o desequilíbrio: não há equivalência entre o valor esperado que o segurado receberá e o que ele contribuiu. A “premissa” dos pleitos de desaposentadoria é que seria justo que o beneficiário receba mais porque contribui mais quando continuou trabalhando, mas com a desaposentadoria o que de fato temos é o desequilíbrio do ponto de vista atuarial. Em outras palavras, como o trabalhador se aposenta cedo e tem longa expectativa de vida, mesmo com a aplicação do fator previdenciário, as contribuições que ele pagou não são suficientes para cobrir os benefícios que receberá. Tampouco “cobrem o buraco” as contribuições que ele paga quando volta à ativa, após à aposentadoria. Assim, o aumento do benefício via desaposentadoria apenas agrava o desequilíbrio atuarial.

Tal desequilíbrio atuarial seria minorado se o beneficiário devolvesse os valores recebidos entre o primeiro pedido de aposentadoria e o segundo pedido (desaposentadoria), mas não é esse o tratamento que tem sido dado à questão, caracterizando possível ofensa ao texto constitucional7.

O desequilíbrio é facilmente percebido quando se compara a situação dos “desaposentados” com a daqueles que, em vez de pedir a aposentadoria quando ficaram elegíveis, esperaram anos para pedir a aposentadoria definitiva, seguindo as regras vigentes e a lógica do fator previdenciário (que faz com que o valor do benefício seja maior quanto mais se espera para pleitear a aposentadoria). Com a desaposentadoria, os trabalhadores que esperaram (ou esperam) vão fazer jus a benefícios com o mesmo valor dos desaposentados, sem que tenham recebido os milhares de reais que os desaposentados receberam entre o primeiro e o segundo pedido de aposentadoria.

A situação, além de ser sobremaneira injusta e ilógica, ilustra o desequilíbrio atuarial que acompanha a desaposentadoria: segurados que contribuíram durante um mesmo período de tempo e sobre um mesmo salário vão receber da Previdência quantias muito diferentes, sendo que aqueles que seguiram as regras receberão muito menos do que os que pleitearam a desaposentadoria. Ou seja, mesmo que os valores de variáveis atuariais como idade e expectativa de sobrevida sejam idênticos, os montantes recebidos serão bastante diferentes.

Ainda, essa distorção pode ser interpretada como um afronta ao § 1º do art. 201 da Constituição, que veda a ação de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria no RGPS8.

Com efeito, a revisão dos benefícios que ocorre com a desaposentadoria majora as aposentadorias, o que confrontaria também o § 5º do inciso IV do art. 195 da Constituição. Tal dispositivo condiciona a criação, majoração ou extensão de benefícios ou serviços da seguridade social à existência de uma fonte de custeio total específica. A desaposentadoria aumentaria as despesas da seguridade sem especificar de onde viriam os recursos para custeá-las, especialmente caso seja reconhecida por decisão do Judiciário.

No entanto, os possíveis conflitos com o texto constitucional não se resumem somente à ausência do equilíbrio atuarial, à diferenciação dos segurados ou à majoração de benefícios sem a fonte dos recursos. A escolha do constituinte para o regime de custeio da Previdência foi o de “repartição”, como em geral os países escolhem para a previdência pública, e não o de “capitalização”, o regime de custeio usado na previdência privada.

No regime de repartição, os trabalhadores ativos financiam as aposentadorias dos inativos. Já no regime de capitalização, as contribuições do trabalhador ativo, quando está em atividade, são investidas individualmente e revertidas futuramente no valor da aposentadoria. A escolha pelo regime de repartição está expressa no art. 195, em que se estabelece que a seguridade social será financiada por toda a sociedade. A revisão dos benefícios, pleiteada na desaposentadoria, se apoia na ideia de que as contribuições do segurado devem ser revertidas em benefício, mesmo que feitas depois que ele já se aposentou. Ideia semelhante motiva os pedidos para que as contribuições deixem de ser cobradas quando o segurado acumula trabalho e aposentadoria.

Evidentemente esses argumentos fazem sentido apenas no regime de capitalização, como em uma previdência privada, mas não no caso dos benefícios do INSS. Se o nosso regime é, para todos os outros fins, o de repartição, não há que se considerar que os valores das novas contribuições sejam transformados em benefícios, porque, conforme a interpretação feita do art. 195, o benefício do segurado seria financiado por toda a sociedade, e não por sua contribuição individual.

Naturalmente existe uma confusão, já que a aposentadoria precoce (por conta da ausência de idade mínima), concedida sem estar condicionada à efetiva interrupção do trabalho, faz com que o trabalhador possa estar na peculiar condição de ativo e inativo simultaneamente – e isso ocorre ou ocorreu com milhões de trabalhadores.

Cabe observar que o fato de termos apontado aqui controvérsias em relação a pontos explícitos (como o equilíbrio atuarial) e implícitos (como a escolha pelo regime de repartição) no texto constitucional não implica que os segurados que pedem a desaposentadoria ajam de má-fé. O que parece ocorrer, como ressaltado anteriormente, é uma incompreensão sobre a realidade da ausência de idade mínima e da solução do fator previdenciário. Ainda, esses segurados certamente consideram o valor dos benefícios insatisfatórios, mas isso decorre da própria situação econômica do país, que ainda está longe de ser considerado um país com renda média alta. Em geral, a renda desses beneficiários já não podia ser considerada satisfatória quando estavam na ativa, e o valor da aposentadoria reflete esse quadro.

 

Ausência de omissão legislativa: as Leis nº 9.876, de 1999; nº 9.032, de 1995; nº 9.528, de 1997; e nº 8.870, de 1994.         

 Um dos argumentos usados para que o Judiciário reconheça a desaposentadoria é que existe omissão legislativa em relação à matéria – questão destacada inclusive no STF. No entanto, um conjunto de leis aprovadas pelo Congresso Nacional nos anos 90 gerou arcabouço bastante claro em relação às regras de concessão de benefício, sem previsão de desaposentadoria (além dos pontos já citados em relação à Constituição). Essas normas alteraram a Lei Orgânica da Seguridade Social e o Plano de Benefícios da Previdência Social9.

Essas leis são claras, respectivamente, em relação ao cálculo do valor dos benefícios (Lei nº 9.876/199910), à obrigatoriedade da contribuição pelo aposentado que continua trabalhando (Lei nº 9.032/1995, art. 12, § 4º 11), e à inexistência de benefício decorrente dessa contribuição (Lei nº 9.528/1997, art 2º 12). Dessa forma, não há que se falar em “omissão legislativa” em relação à desaposentadoria. O mero fato de a legislação ir de encontro com a desaposentadoria não deve ser considerado omissão do legislador.

A legislação anterior previa instituto próximo da desaposentadoria: o pecúlio, que consistia na devolução dos valores contribuídos pelo aposentado que continuava trabalhando. Entretanto, a Lei nº 8.870, de 15 de abril de 1994, acabou com essa possibilidade13.

 

Riscos fiscais e insegurança jurídica

 A desaposentadoria naturalmente se apresenta como um grande desafio para as finanças públicas do País e para a sustentabilidade da Previdência. Porém, além disso, destaca-se ainda que uma decisão favorável do Legislativo ou do Judiciário em relação a esse instituto pode trazer insegurança jurídica e riscos fiscais no futuro, ao abrir precedentes para que outros segurados invistam em ter pleitos atendidos baseados na lógica da desaposentadoria, notadamente os “não desaposentados” e os servidores inativos do RPPS, como se mostra adiante.

O MPS estima, de forma conservadora, em R$ 70 bilhões os custos da desaposentadoria a longo prazo14. A cifra é considerada subestimada (pelo próprio órgão) porque levou em conta apenas os custos advindos da revisão do valor das aposentadorias por tempo de contribuição que estavam ativas em 2010, se referindo, portanto, a apenas uma primeira dimensão dos custos. Mesmo essa “subestimativa” impressiona quando é analisada conjuntamente com as realidades das contas públicas no Brasil e as previsões para o futuro da seguridade.

Com a carga tributária situando-se ao redor de 37,5% do PIB (inviabilizando aumentos de tributos) e uma população cobrando maior qualidade dos serviços públicos (trazendo pressão constante pelo aumento de gasto), parece difícil incluir a variável desaposentadoria na equação de receitas e despesas do país. A situação é agravada pela perspectiva de rebaixamento da nota de crédito das contas públicas brasileiras pelas agências de risco internacionais. Nesse contexto, só se pode prever que uma decisão favorável à desaposentadoria terá impactos significativos.

No que tange à sustentabilidade do sistema, a desaposentadoria aparece como um delicado movimento de contrarreforma, anulando, pelo menos parcialmente, os ganhos da primeira (1998) e da segunda (2003) reformas da Previdência. É essencial salientar que mesmo essas reformas não foram suficientes para alterar o preocupante futuro que as contas da Previdência desenham para o país. Se hoje o Brasil, jovem, tem para 2014 um déficit previdenciário estimado em R$ 55 bilhões, para o futuro – na ausência de novas reformas – a situação da seguridade deve ser gravíssima e essa percepção já hoje afeta a economia brasileira (por exemplo, através de pouco investimento privado de longo prazo no país). Segundo o MPS, em 2010 havia nove pessoas em idade ativa (com capacidade para trabalhar), para cada idoso15. Já em 2050 serão apenas três para cada idosos, em uma Previdência custeada pelo regime de repartição (em que as contribuições dos ativos financiam os benefícios dos inativos), como ressaltado anteriormente.

Se o cenário já era preocupante sem a desaposentadoria, é importante explicitar outros riscos fiscais que uma decisão favorável apresentará. Os riscos fiscais são entendidos como gastos que o governo pode ter que incorrer no futuro, mas que são imprevisíveis no momento. A estimativa direta do custo da desaposentadoria pode ser calculada, como mostrado nos parágrafos anteriores (R$ 70 bilhões), mas nesse caso os riscos fiscais residiriam em “custos indiretos”, em consequências menos óbvias da desaposentadoria.

Se a estimativa de R$ 70 bilhões considerava apenas o estoque de aposentadorias em 2010, é de se imaginar que os gastos serão muito maiores ao longo do tempo, na ausência de novas mudanças de regras. Em primeiro lugar, somando-se a este estoque de 2010, há todo ano um fluxo contínuo de novas aposentadorias por tempo de contribuição, que não integram a estimativa de R$ 70 bilhões e encarecerão a conta. Em segundo lugar, além do fluxo “normal” de aposentadorias por tempo de contribuição, deve-se observar um aumento no número de segurados que optarão por esse benefício nos próximos anos: com a desaposentadoria reconhecida, o esperado é que os segurados negligenciem o fator previdenciário, se aposentem o mais cedo possível, continuem trabalhando e peçam a revisão dos benefícios. Este custo também não faz parte da estimativa de R$ 70 bilhões.

Em terceiro lugar, será natural que ocorra uma “corrida à aposentadoria” assim que a desaposentadoria for aprovada, por parte daqueles que já são elegíveis e esperavam para pedir um benefício maior no futuro: o racional é que se aposentem imediatamente e continuem trabalhando, para pedir futuramente a desaposentadoria visando a um benefício maior. Por último, também deve haver uma corrida, ainda que bem menor, de volta ao mercado de trabalho por parte dos aposentados que acreditavam que não compensava voltar a trabalhar: com a perspectiva de que o retorno à atividade possa elevar seus proventos futuramente, muitos devem se sentir encorajados. Esses últimos dois movimentos também devem aumentar sobremaneira os custos da Previdência futuramente, mas também não fazem parte da estimativa de R$ 70 bilhões.

A conta, talvez, não se feche aí. Existem ainda riscos fiscais porque um entendimento favorável à desaposentadoria deve incentivar outros segurados a buscarem direitos que incorram em mais gastos para Previdência. Um caso é o dos “não desaposentados”, aqueles trabalhadores e aposentados que não pediram de imediato a aposentadoria por tempo de contribuição, esperando anos, em atividade, para conseguir um benefício de valor maior, de acordo com a fórmula do fator previdenciário.

A situação desses segurados já foi citada anteriormente: eles receberiam daqui em diante benefício igual ao dos desaposentados (que fizeram o pedido de revisão da aposentadoria), sem terem recebido por anos as aposentadorias que os desaposentados receberam entre o primeiro e o segundo pedido de aposentadoria. Diante dessa enorme frustração por terem seguido às regras vigentes, parece natural que eles busquem reparação, já que um desaposentado e um “não desaposentado” receberão quantias muito diferentes ainda que tenham, rigorosamente, trabalhado e contribuído pelo mesmo período de tempo e com os mesmos valores, com a única distinção sendo a escolha por tentar a revisão do beneficio ou se conformar em seguir a legislação.

Outro risco fiscal que surge com a desaposentadoria, menos intuitivo, decorre da contribuição feita pelos servidores públicos inativos. Se a lógica da desaposentadoria for aplicada a esse caso, a contribuição pode acabar, ter seus valores devolvidos ou justificar o aumento da aposentadoria de milhares de servidores públicos. Desde a Emenda à Constituição nº 41, de 19 de dezembro de 2003, – segunda reforma da Previdência – os aposentados e pensionistas do serviço público (RPPS) devem pagar a contribuição previdenciária, ao contrário do que ocorre com os aposentados do INSS (RGPS)16.

A controvérsia em relação a essa contribuição não é nova, mas, caso o Judiciário seja favorável à desaposentadoria, estará entendendo que a contribuição de um inativo deve ser posteriormente revertida em benefício, abrindo margem para um novo entendimento em relação à contribuição dos servidores públicos inativos que veio com a última reforma da previdência. O STF decidiu, dez anos atrás, no julgamento das ADIs 3105 e 3128, que a contribuição era constitucional, com o voto contrário de quatro ministros e parecer contrário da Procuradoria-Geral da República.

A controvérsia pode ser ressuscitada, já que há uma pressão forte e contínua por parte dos inativos e pensionistas atingidos, visível no grande apoio que recebeu a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 555, de 2006, que acaba com a cobrança e tramita atualmente na Câmara dos Deputados. À época das ADIs, o entendimento do STF foi de que a implantação da contribuição obedecia “aos princípios da solidariedade e do equilíbrio financeiro e atuarial, (…) aos objetivos constitucionais de universalidade, equidade na forma de participação no custeio e diversidade da base de financiamento”.

Embora o valor médio dos benefícios do RGPS seja muito inferior ao do RPPS, e embora a Constituição trate o RGPS e o RPPS de maneira separada, – com o princípio da solidariedade estando explícito para o RPPS e não para o RGPS – a referida lógica da desaposentadoria no RGPS poderia dar embalo ao persistente movimento de contrarreforma no RPPS, que também defende que deve haver uma relação entre o benefício e a contribuição de um inativo.

Tanto o possível fim da contribuição dos inativos do RPPS como a “reparação”17 que os “não desaposentados” podem conseguir constituem riscos fiscais substanciais, ou seja, o custo da desaposentadoria pode ser bem superior a R$ 70 bilhões.

 

Considerações finais: o “custo de oportunidade” da desaposentadoria

 Economistas são constantemente acusados de se preocupar apenas com “custo financeiro” e não “com as pessoas”. O custo da desaposentadoria (e tantos outros custos) não se refere meramente a uma cifra que poderia ser economizada, um valor sem significado. Deve-se concebê-la como um “custo de oportunidade”, conceito básico da economia que pode ser entendido, simplificadamente, como o melhor uso que se pode fazer de um recurso – dentre várias possibilidades a serem escolhidas.

Pelos custos que trará e pelos riscos fiscais, caso uma decisão favorável do Judiciário saia em breve, ela constituirá verdadeira “herança maldita” para o governo 2015-2018, ainda que seus efeitos sejam modulados. Pela ótica do “custo de oportunidade”, a desaposentadoria sugará recursos valiosos que poderiam ser usados em outras políticas públicas, como as que objetivam a erradicação da pobreza, a redução da desigualdade e o crescimento econômico – além de tirar espaço fiscal de áreas como a educação e a saúde.

Frisa-se que, muito embora a maioria dos segurados beneficiários do RGPS não considere a sua renda satisfatória, o instituto da desaposentadoria é considerado de caráter regressivo pelo próprio MPS18. Isso implica que ele acentua, e não reduz a desigualdade de renda. Segundo o MPS, os “aposentados contribuintes” (candidatos à desaposentadoria, ainda em atividade) estão em melhor situação que a dos aposentados que não trabalham e em melhor situação que a dos trabalhadores não cobertos pela Previdência. Dentre esses candidatos à desaposentadoria, 96% estaria na metade mais rica da população do País, e 52% estaria entre o grupo dos 10% de brasileiros mais ricos. Ainda, a média do valor das aposentadorias por tempo de contribuição (a relacionada à desaposentadoria) corresponde ao dobro da média do valor das aposentadorias por idade e a mais de 50% da média do valor das aposentadorias por invalidez19.

Quando se manifesta a preocupação com o custo da desaposentadoria ou com a sustentabilidade do sistema como um todo, devem ser vislumbrados também os custos de oportunidade que existirão futuramente, com grandes quantias de recursos públicos sendo destinadas à Previdência – trazendo um impacto não apenas nas contas públicas, mas em toda a economia. Nossas escolhas hoje, criando um gigantesco déficit previdenciário nos próximos anos, afetarão não apenas a próxima geração de aposentados, mas também toda uma geração de trabalhadores – e a sociedade brasileira como um todo.

Portanto, parece essencial que as regras do sistema previdenciário sejam mais claras e melhor entendidas, a fim de se criar um sistema mais sustentável. Ao não impormos regras que acompanhem as práticas internacionais, acaba se fazendo necessária a invenção de remendos no sistema, que terminam incompreendidos e contestados, como acontece com o fator previdenciário ou a contribuição dos servidores inativos.

Outra possível consequência da escolha pela desaposentadoria, devido aos seus grandes impactos, é a precipitação de uma reforma que finalmente imponha a idade mínima, como já existe no RPPS, e que acabou não sendo aprovada junto com a Emenda à Constituição nº 20, de 1998. Ou seja, pode ser que, mais de dezesseis anos depois de o problema ter sido diagnosticado e de mudanças terem sido propostas, a desaposentadoria dê ímpeto ao estabelecimento da idade mínima no RGPS (com uma regra de transição justa que respeite os planos dos segurados). Por fim, no caso de uma decisão pela desaposentadoria vinda do Judiciário, se os ministros acompanharem o relator, o Legislativo ainda teria seis meses para vedá-la – prazo dado no voto do relator para que a decisão do STF começasse a valer.

 

(Este texto é baseado no trabalho “A DECISÃO DE R$ 70 bilhões: sobre constitucionalidade, ausência de omissão legislativa e riscos fiscais da desaposentadoria”. O estudo integral consta do Boletim do Legislativo nº 15 do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado, disponível no seguinte link: http://www.senado.gov.br/estudos)

__________________

1 É objeto dos Projetos de Lei do Senado (PLS) nº 214, de 2007, e nº 91, de 2010, ambos de autoria do Senador Paulo Paim. Com objetos diferentes, mas motivação semelhante, também tramitam na Casa os PLS nºs 464, de 2003; 56, de 2009; e 188, de 2011.

2 O fator previdenciário é regido pela Lei nº 9.876, de 26 de novembro de 1999.

3 A idade média de aposentadoria por tempo de contribuição dos brasileiros é de apenas 55 anos no caso dos homens e de 52 anos nos casos das mulheres. O número impressiona: em se tratando de uma média, o valor sintetiza a ocorrência de muitas aposentadorias em idades bastante precoces.

4 Essa expectativa não é afetada, por exemplo, pela mortalidade infantil ou por causas de morte comuns em faixas etárias menores, como a violência ou doenças cardíacas.

5 Pensions at Glance – 2013: OECD and G20 indicators. Disponível em: http://www.oecd.org/els/public-pensions/

6 Portaria do MPS nº 403, de 10 de dezembro de 2008.

7 Outras opções para corrigir o desequilíbrio atuarial, pouco factíveis, seriam a incorporação, pelo fator previdenciário – já no primeiro pedido –, da possibilidade de desaposentadoria (o que seria injusto com quem de fato pretende se aposentar cedo), ou a contabilização das contribuições feitas depois do primeiro pedido para uma nova aposentadoria, mas conforme as regras já existentes para concessão do benefício (como os 35 anos de contribuição, para homens).

8 Salvo casos definidos em lei complementar em relação a condições que prejudiquem a saúde ou a integridade física e o caso dos portadores de deficiência.

9 Respectivamente a Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, e a  Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991.

10 A Lei, que instituiu o fator previdenciário, prevê a possibilidade de o segurado optar por ter benefício em que não incida o fator. Ela garante, em seu art. 7º, “a opção pela não aplicação do fator previdenciário”, caso a opção seja pela aposentadoria por idade (que, em geral, se dá mais tarde do que à por tempo de contribuição). Cabe observar ainda que essa norma é bastante clara em relação à fórmula de cálculo do valor dos benefícios.

11 Prevê que o aposentado pelo RGPS que exercer atividade abrangida pelo Regime Geral será segurado obrigatório em relação a tal atividade, estando sujeito à contribuição previdenciária, “para fins de custeio da Seguridade Social”.

12 Estipula que o aposentado pelo RGPS que continua em atividade abrangida pelo regime “não fará jus a prestação alguma da Previdência Social em decorrência do exercício dessa atividade”.

13 Determinando que fosse feito pagamento em parcela única para aqueles aposentados que estavam contribuindo até à vigência dessa nova lei (art. 24, Parágrafo único).

14 CONSTANZI, R. N. “Evolução e Situação Atual das Aposentadorias por Tempo de Contribuição”. Informe da Previdência Social, vol. 23, nº 8. Ministério da Previdência Social, 2011.

15 BARBIERI, C. V. “Cuidados de Longa Duração no Brasil: As Possibilidades do Seguro-Dependência”.  Informe da Previdência Social, vol. 25, nº 4. Ministério da Previdência Social, 2013

16 Essa contribuição, de 11%, incide apenas sobre os benefícios de servidores civis com valores acima do teto do INSS (R$ 4.390,24 em 2014).

17 Os escritórios especializados em direito previdenciário ainda não deram um nome para esse possível tipo de ação. Chama a atenção que, no julgamento do STF, que tem como partes o INSS e um segurado, participa como amicus curiae o Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP), defendendo a desaposentadoria. Trata-se de entidade sem fins lucrativos, mas que tem a diretoria composta por vários advogados sócios de escritórios que atuam de maneira explícita em ações pró-desaposentadoria.

18 CONSTANZI, R. N.  Obra citada, pág. 7

19 Segundo o Boletim Estatístico da Previdência Social de Agosto/2014, o valor médio das aposentadorias concedidas naquele mês foi de R$ 1.740,01 (tempo de contribuição), R$ 1.149,31 (invalidez) e R$ 863,60 (idade).

 

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Por que precisamos reformar a previdência? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=162&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-precisamos-reformar-a-previdencia https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=162#comments Sun, 20 Feb 2011 23:48:12 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=162 No Brasil existem dois regimes de previdência pública: o dos servidores públicos e o do INSS. Além disso, há a previdência privada. Já empreendemos duas reformas da previdência social, uma no Governo FHC, outra no Governo Lula. No entanto, ambas repercutiram basicamente no regime próprio de previdência dos servidores e, em menor proporção, no regime privado de previdência complementar, deixando as condições que regem o regime geral de previdência social praticamente inalteradas.

Enquanto isso, a restrição fiscal que motivou o encaminhamento ao Congresso Nacional da primeira proposta de reforma previdenciária, em 1995, continua. Agora potencializada pelo aumento dos gastos do INSS.

Entre 1988 e 2009, a despesa do INSS triplicou seu peso relativo na economia, passando a comprometer 7,2% do PIB e perto de um terço da despesa não financeira da União (despesa total menos juros). É o maior item de despesa da União, superando os gastos com o pagamento de pessoal (4,8% do PIB) e com juros (4% do PIB).

Quase metade da receita líquida federal é hoje destinada à previdência (36,8% para o INSS e 10,2% para inativos e pensionistas). A metade que sobra tem, assim, que custear todos os outros gastos da máquina pública, cuja maioria não pode ser descontinuada. Resultado: nosso ajuste fiscal acaba sendo feito pela compressão do investimento público, que representa apenas 1% do PIB e menos de 7% da despesa primária.

Estudos mostram que, embora ainda sejamos um país jovem, gastamos com previdência o mesmo que gastam países desenvolvidos e com estrutura etária já envelhecida, como o Reino Unido, e que, para custear tal nível de despesas, também aplicamos elevadíssimas alíquotas de contribuição previdenciária.

Essa asfixia fiscal, ao comprometer a necessária expansão dos investimentos em infraestrutura, educação e capacitação da mão-de-obra (afora outras áreas fundamentais, como saúde e segurança pública), compromete nosso potencial de crescimento e de melhoria da qualidade de vida da população mais pobre.

A situação é ainda mais grave quando confrontada com os prognósticos demográficos. A população brasileira está envelhecendo, e a uma velocidade mais rápida do que a verificada nos países do Velho Mundo, que, ao contrário de nós, enriqueceram antes de envelhecer. A proporção de idosos (indivíduos com mais de 60 anos) na população total do Brasil triplicará nos próximos quarenta anos, passando de 6,8% para 22,7%. O impacto desse envelhecimento na previdência social é grande.

Sendo nossa previdência pautada pelo “regime de repartição”[1],

é a população em idade ativa que sustenta a inativa. Isso significa que, enquanto hoje 6,45 indivíduos em atividade potencialmente podem gerar recursos para cada beneficiário, em 2050 deverão ser apenas 1,9. Em outras palavras, haverá cada vez menos pessoas trabalhando e, assim, sustentando o crescente número de idosos no Brasil.

Nesse contexto, fica evidente que, se nada fizermos agora, nossas despesas previdenciárias simplesmente explodirão, comprometendo o futuro das próximas gerações de brasileiros.

O irreversível envelhecimento da população no mundo representa uma questão tão grave, que pode hoje ser considerada como uma das principais variáveis a definir o futuro econômico e social das nações. Diante disso, muitos países se encontram engajados na reformulação dos seus sistemas de previdência, movidos pela assunção de que é melhor aumentar agora os anos de contribuição em relação aos de aposentadoria, bem como reduzir um pouco o benefício em relação ao salário, do que, daqui a alguns anos, ser forçado a elevar sobremaneira as contribuições sociais e/ou diminuir o valor dos benefícios previdenciários em manutenção.

Suas experiências constituem importantes ensinamentos. Em primeiro lugar, mostram que as idades de aposentadoria nos países avançados são bem maiores do que as relativas à aposentadoria por tempo de contribuição dos trabalhadores brasileiros da iniciativa privada (54 anos para homem e 52 para mulher). Isso ocorre porque continuamos a ser um dos únicos países do mundo que concede aposentadoria sem impor limite mínimo de idade (os outros são Nigéria, Argélia, Turquia, Eslováquia e Egito). Ademais, ao contrário do que aqui ocorre, muitos países aplicam a mesma idade mínima para homens e mulheres.

A experiência internacional também mostra que o valor dos nossos benefícios previdenciários como proporção dos salários é muito elevado. No caso da aposentadoria, embora muitos países permitam aposentadoria antecipada aos 60 anos de idade (vejam bem: antecipada), depois de 40 anos de contribuição (enquanto aqui o máximo exigido são 35 anos), isso implica redução de 40% no valor de benefício. No Brasil, um homem na mesma situação não terá qualquer perda monetária. Ou seja, sua aposentadoria equivalerá a 100% do salário.

Além disso, em relação à aposentadoria por idade, embora haja limite etário para a concessão do benefício, exige-se apenas quinze anos de contribuição, o que é muito pouco, especialmente quando se compara ao que ocorre no mundo. Afinal, um homem que espere 50 anos para começar a contribuir para a previdência poderá se aposentar aos 65 anos e receber o benefício por mais 16,3 anos, de acordo com sua expectativa de sobrevida. No caso da mulher, serão 15 anos de contribuição versus 19,1 de recebimento do benefício. Ademais, esses segurados receberão aposentadorias equivalentes a 100% de seus salários, enquanto que, se forem empregados, terão recolhido 8%, 9% ou 11% dos salários, de acordo com o rendimento que tinham, que, somados aos 20% do empregador, corresponderão à contribuição mensal de apenas 28%, 29% ou 31% do salário. É fácil perceber que a conta não fecha e será cada vez mais inconsistente, em vista dos prognósticos populacionais.

No caso das pensões, a situação é ainda mais discrepante. Representamos um dos poucos países que não exige qualquer condição de qualificação para a concessão do benefício. Não há, por exemplo, qualquer limitação relacionada à carência contributiva, ao tempo de casamento ou união, à idade do cônjuge sobrevivente e dos filhos, ao número de filhos, à renda do cônjuge sobrevivente, ao período de recebimento do benefício ou ao seu acúmulo com outros benefícios. Como resultado, nosso gasto com pensões é tão significativo que representa o segundo maior na estrutura de despesas do INSS, e, em termos de participação no PIB, representa o triplo da média internacional.

Mas é na indexação do piso previdenciário ao salário mínimo onde reside o maior propulsor da elevação das despesas com benefícios. Entre 1995 e 2010, o salário mínimo teve um aumento real de 122% (44% no Governo FHC e 54% no Governo Lula). Como o piso da previdência social é vinculado a esse salário, isso significa que o valor do piso foi elevado na mesma proporção; o que também é verdade para o benefício de prestação continuada da assistência social (que favorece idosos e deficientes físicos de baixa renda), igualmente atrelado ao mínimo.

A despesa da previdência social é fortemente influenciada pelo piso dos benefícios, já que dois em cada três segurados o recebem. A receita, por outro lado, depende principalmente dos benefícios superiores. Por isso, a elevação do salário mínimo impacta mais a despesa que a receita: a cada R$ 1 real de aumento do salário mínimo, os gastos com benefícios previdenciários sobem R$ 198 milhões e as receitas, apenas R$ 14 milhões, fazendo com que o déficit cresça em R$ 184 milhões. Agregando as despesas da previdência e da assistência social, observa-se que o déficit do INSS cresce R$ 230 milhões a cada R$ 1,00 de elevação no valor do mínimo.

É importante sublinhar que, no âmbito da assistência social, a vinculação do benefício de prestação continuada ao salário mínimo, além das implicações fiscais diretas, carrega consigo outro importante condicionante: desestimula a inclusão previdenciária, limitando, assim, o universo de contribuintes e, consequentemente, a elevação das receitas do sistema.

Isso ocorre porque a maior parte dos trabalhadores informais, mesmo sem qualquer contribuição prévia, quando atingirem 65 anos (mesma idade exigida dos homens para efeito de concessão da aposentadoria previdenciária por idade), poderão pleitear um benefício assistencial de valor idêntico ao piso da previdência social, desde que comprovem possuir renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo.

Daí cabe perguntar: qual o incentivo que esses trabalhadores têm para contribuir para a previdência social quando sabem que poderão usufruir, a partir da mesma idade (no caso dos homens), da mesma aposentadoria que será concedida à maioria dos trabalhadores do mercado formal de trabalho, que, com muito esforço, contribuem sistematicamente sobre seus rendimentos mensais de um salário mínimo?

Outro importante ponto a destacar é que o efeito do salário mínimo sobre a pobreza é quase residual atualmente e, no que diz respeito à pobreza extrema, é nulo. Resultado da expressiva escalada de aumentos reais verificada nos últimos anos, quem hoje recebe aposentadoria não mais pode ser considerado pobre.

Assim, defender os elevados gastos com a previdência social sob o argumento de que constituem importante instrumento de redução da pobreza esconde uma grande verdade: se parcela dos gastos redundantes do sistemático aumento do piso previdenciário for alocada na expansão de programas sociais focalizados nos estratos inferiores de renda, como por exemplo, o Programa Bolsa Família, que representa menos de 2% da despesa primária da União, a pobreza e a miséria diminuirão muito mais

As constatações apresentadas reclamam a urgente modificação de parâmetros básicos no âmbito da previdência dos trabalhadores da iniciativa privada, a maior parte de cunho constitucional, com destaque para as seguintes alterações:

a)      aposentadoria por tempo de contribuição: imposição de idade mínima;

b)      aposentadoria por idade: aumento da carência para concessão do benefício;

c)      pensão por morte: imposição de condicionalidades que reflitam o grau de dependência do cônjuge ou parceiro sobrevivente e filhos;

d)     piso da previdência social: fim da vinculação ao salário mínimo (atualização pela inflação passada);

e)      diferenças por sexo, setor (rural versus urbano) e categoria profissional (professor em sala de aula versus demais trabalhadores): extinção;

f)       benefício de prestação continuada da assistência social: fim da vinculação ao mínimo (atualização pela inflação passada), valor inferior ao do piso previdenciário e elevação da idade de 65 para 70 anos.

Ressalte-se, por fim, que as mudanças propostas não devem afetar os aposentados e pensionistas, devendo ser, em contraposição, integralmente aplicadas aos novos trabalhadores. Com relação aos trabalhadores em atividade, sugere-se o estabelecimento de regras de transição com extensa carência e lenta progressividade. A carência para início da aplicação das regras de transição poderia ser de quatro, cinco ou mais anos e a implantação progressiva dos novos parâmetros poderia ocorrer durante uma ou mais décadas. As únicas alterações que deveriam ter aplicação imediata para todos são as relativas à vinculação dos benefícios ao salário mínimo e às novas regras para concessão de pensão.

A extensa carência e lenta progressividade na aplicação das regras de transição aos trabalhadores já inseridos no mercado de trabalho é fator fundamental para que se consiga apoio político às mudanças. Outra opção, talvez mais pragmática, do ponto de vista político, seja executar imediatamente as mudanças relativas ao mínimo e às pensões e aplicar as demais alterações apenas aos novos trabalhadores.

Se houvéssemos considerado isso em 1995, quando começaram os debates em torno da necessária reformulação da nossa previdência social e o Poder Executivo apresentou sua primeira proposta sobre a matéria, e tivéssemos efetuado uma reforma mais profunda que se aplicasse apenas aos novos trabalhadores, por exemplo, todos aqueles que entraram no mercado de trabalho nos últimos quinze anos já seriam regidos pelo novo sistema. Assim, já teríamos passado pela fase mais dura do período de transição e, certamente, as contas públicas estariam em condições muito melhores, permitindo ao governo investir em infraestrutura e educação, dois itens fundamentais para o sucesso das futuras gerações de brasileiros.

Para ler mais sobre o tema:

AMARO, Meiriane N. Terceira Reforma da Previdência: até quando esperar? Brasília: Centro de Estudos da Consultoria do Senado, fev/2010 (Texto para Discussão nº 84). Disponível no site: http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao.htm

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[1] No regime de repartição, os trabalhadores ativos financiam as aposentadorias e pensões em curso, esperando que, no futuro, seus benefícios previdenciários sejam custeados por outros. No de capitalização, ao contrário, o trabalhador financia sua própria aposentadoria, aportando contribuições em sua conta individual que, capitalizadas, serão depois retiradas na forma de uma renda mensal.

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