Governança – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Wed, 10 Aug 2022 22:14:37 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 Estaria a saga da regulamentação do lobby no Brasil perto de seu fim? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3669&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=estaria-a-saga-da-regulamentacao-do-lobby-no-brasil-perto-de-seu-fim Wed, 10 Aug 2022 22:14:37 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3669 Estaria a saga da regulamentação do lobby no Brasil perto de seu fim?

 

Por Ricardo José Pereira Rodrigues

 

Ao encaminhar à Câmara dos Deputados, em dezembro de 2021, um projeto para disciplinar o lobby no país, o Poder Executivo não apenas adicionou mais um capítulo à verdadeira saga que se tornou a história da regulamentação da atividade no Brasil.  A ação legiferante promovida pelo Poder Executivo, de fato, colocou em evidência a importância que a regulamentação da representação privada de interesses junto a agentes públicos assumiu como fator de aprimoramento da imagem e do desempenho do país relativo à integridade de sua governança pública, sobretudo para os organismos internacionais.

Foram muitas as tentativas frustradas de regulamentação do lobby no Brasil.  A “saga” teve início ainda nos anos 1980, com a apresentação do Projeto de Lei do Senado nº 25, de 1984, pelo então Senador Marco Maciel.  No Senado federal tramitaram, entre 1984 e 2016, quatro outras proposições sobre o tema, incluindo uma Proposta de Emenda à Constituição.  Na Câmara dos Deputados, no mesmo período e sobre o mesmo tema, tramitaram nada menos que 7 projetos de lei e 11 projetos de resolução da Câmara. São quase 40 anos de iniciativas parlamentares que não resultaram em norma jurídica, com a maioria das proposições sendo arquivada por falta de deliberação.

Mas por que tem sido tão difícil aprovar no Brasil uma lei do lobby?  E, se o país tem vivido sem uma lei de lobby, qual importância teria a regulamentação do lobby?  Por que insistir em regulamentar a atividade?

Primeiramente, cabe salientar que a regulamentação do lobby não é uma empreitada fácil de se operacionalizar até porque compreende desafios nada triviais.  Não se trata apenas de restringir ou proibir a atividade dos grupos ou de lobistas individuais.  Como já tive oportunidade de frisar em outras ocasiões[1], trata-se de viabilizar uma legislação caracterizada por dois objetivos distintos que, para alguns, podem até parecer contraditórios. Por um lado, a regulamentação do lobby deve necessariamente conter dispositivos que estimulem e fortaleçam a pluralidade dos grupos de interesse sem, por outro lado, permitir que tal atuação degenere em tráfico de influência ou corrupção, crimes previstos pelo Código Penal Brasileiro.

O estímulo à representação de interesses no âmbito das esferas públicas, seja realizada por profissionais do lobby, seja realizada por grupos oriundos dos mais diversos setores da sociedade civil organizada, é plenamente amparada por nossa Carta Magna.  Tal estímulo deve-se ao caráter pluralista do próprio modelo democrático adotado pelo Brasil.  Os constituintes alçaram o pluralismo à condição de princípio fundamental do nosso Estado democrático de direito.  A Constituição Federal de 1988 consagra o pluralismo político em seu artigo primeiro, inciso V, como um dos fundamentos da democracia brasileira.

Outros artigos da nossa Constituição reforçam esse estímulo à participação de grupos no processo de tomada de decisão acerca de políticas públicas.  O direito de petição, por exemplo, é assegurado pela Constituição como uma das garantias fundamentais da sociedade.  O inciso XXXIV do art. 5º garante aos brasileiros “o direito de petição aos poderes públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”[2].  Esse direito é ainda reiterado pela Constituição em seu art. 58, § 2º, inciso IV, quando determina às comissões das Casas do Congresso Nacional “receber petições, reclamações, representações ou queixas de qualquer pessoa contra atos ou omissões das autoridades ou entidades públicas”[3].

Cabe salientar que o assunto tem ocupado a agenda de diversos organismos internacionais. A ONU e a OCDE, por exemplo, defendem a adoção da regulamentação do lobby como um requisito para se alavancar a boa governança de seus países membros. Curiosamente, são poucas as democracias que dispõem de normas legais para disciplinar a atividade de representação de interesses.  Neste sentido, continua a valer a conclusão a que chegou Margaret Malone, em 2004, segundo a qual “países com regras específicas para regulamentar as atividades de lobistas e grupos de interesse constituem muito mais a exceção do que a regra”[4].  Tanto assim que na linha do tempo elaborada pela OCDE para detalhar a evolução da regulamentação do lobby no mundo, de 1945 a 2014, constam apenas 15 países. Desses, somente 11 países promulgaram sua regulamentação da atividade depois de 2005.    Para a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, apenas uma minoria dos países no mundo adotou o instrumento da regulamentação para reduzir os riscos representados pelo lobby aos seus arranjos de governança.  Segundo a organização, “em 2020, apenas 23 de 41 democracias analisadas supria (por meio de legislação) algum nível de transparência às atividades de lobby”[5].

Não obstante o baixo número de países com leis para disciplinar as atividades do lobby, o tema tornou-se central para a agenda da OCDE desde 2009 quando lançou seu primeiro relatório dedicado ao assunto[6].  Para a OCDE, a ausência de uma regulamentação do lobby eficaz tem gerado, em muitos países, alocações equivocadas de recursos públicos, muitas vezes escassos, com redução de produtividade e aumento de desigualdades.  De acordo com a OCDE, práticas inapropriadas e censuráveis do lobby contribuem para “debilitar a confiança do cidadão no processo democrático”[7].

Para analistas que acompanham as tratativas do Brasil para integrar a OCDE, a falta de uma regulamentação de lobby representa uma barreira, que embora transponível, dificulta a adesão do país ao organismo.  Complementando um conjunto de leis voltado para o controle da corrupção e a melhoria da integridade no serviço público, a aprovação da regulamentação do lobby poria fim a uma defasagem regulatória que vem marcando a experiência brasileira no que concerne à relação dos agentes públicos com o mercado e os grupos de interesse.  Também consolidaria a convergência do Brasil com os princípios da OCDE relativos à governança pública.  Ressalte-se que numa pesquisa realizada pela OCDE sobre indicadores de regulação de produtos de mercado (PMR) com 46 países, o Brasil obteve a pior colocação do grupo.  Segundo manifestação da representante do Ministério da Economia durante a audiência pública realizada na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público, da Câmara dos Deputados, a aprovação de uma adequada regulamentação do lobby é o caminho para remediar a defasagem regulatória e melhorar o desempenho do país com relação aos índices de PMR (Product Market Regulation) da OCDE.

A apresentação pelo Poder Executivo do Projeto de Lei nº 4.391, de 2021, após quase 40 anos de proposições malogradas por parte de parlamentares, dá revigorada energia ao debate sobre a questão.  Com a importância que o tema assumiu para os organismos internacionais, o disciplinamento legal da representação de interesses privados deixou de ser uma preocupação apenas doméstica para o país.  A temática passou a ser uma questão de Estado, cuja condução e fecho pode ter influência nos objetivos diplomáticos e de comércio exterior do país.

Apensado ao Projeto de Lei nº 4.391, de 2021, tramita o Projeto de Lei nº 1.535, de 2022, de autoria do Deputado Carlos Zarattini. Ambos são compreensivos e abrangentes, incorporando em seus respectivos textos, princípios e diretrizes da OCDE para a regulamentação do lobby.  Espera-se que, desta vez, o Parlamento consiga alcançar um consenso mínimo, para, finalmente, transformar em norma jurídica o disciplinamento de uma atividade que é intrínseca ao processo democrático vigente no país.  Constituiria um passo firme na direção do aprimoramento e do aumento da qualidade de nossa democracia.

 

 

[1] RODRIGUES, Ricardo J. P. A adoção dos parâmetros da OCDE para a regulamentação do lobby no brasil. Revista Eletrônica Direito e Política, v.10, n.3, 2015, p. 1437-1458; RODRIGUES, Ricardo J. P.  A regulamentação do lobby: desafios e parâmetros para sua adoção.  STPC Café, Brasília, 2014, p. 27-35.

[2] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Edições Câmara, 2012, p. 15.

[3] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, p. 51.

[4] MALONE, Margaret M.  Regulation of lobbyists in developed countries.  Current rules and practices.  Dublin: Institute of Public Administration, 2004, p. 3.

[5] OECD.  Lobbyin in the 21st Centurty: transparency, integrity and access. Paris: OECD Publishing, 2021, p. 15.

[6] OCDE.  Lobbyists, government and public trust.  Vol. 1: increasing transparency through legislation.  Paris: OCDE Publishing, 2009

[7] OCDE, 2021, Ibid, p.

 

Ricardo José Pereira Rodrigues é doutor em ciência política pela State University of New York, consultor legislativo na Câmara dos Deputados e professor no curso de pós-graduação em Direito e Relações Governamentais do Uniceub em Brasília.

 

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Um plano para a sociedade cobrar https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3578&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=um-plano-para-a-sociedade-cobrar Fri, 18 Feb 2022 17:42:58 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3578 Um plano para a sociedade cobrar

 

Em vez de um plano para candidatos, este tem seis pilares para a sociedade cobrar do governo e de políticos em geral.

 

 Por Roberto Macedo

 

Já atuei na elaboração de planos para candidatos a governador de São Paulo e a presidente da República, inclusive em propostas apresentadas a todos os candidatos, num trabalho para a Associação Comercial de São Paulo, em 2010. Mas perdi o entusiasmo por esses planos e optei por outro, desta vez para a sociedade cobrar do governo e dos políticos em geral.

Há tempos sigo os debates eleitorais presidenciais, e em geral os candidatos focam muito pouco num plano de governo. É preciso ter um, porque alguém pode cobrar, mas fica por aí. Minha impressão é de que temem apresentar propostas mais elaboradas, com receio de repercussões negativas de suas ideias. Seus marqueteiros se preocupam mais com explorar as ditas virtudes pessoais de cada um e criticar as dos demais candidatos. Eleitores tampouco cobram planos, nem se interessam pelos apresentados.

Apresentada a seguir, sucintamente, em razão da limitação de espaço, minha proposta também foi influenciada por estudo da consultoria internacional McKinsey, propositivo e dirigido a quem promove mudanças nos negócios, no governo e na sociedade. Este estudo, que abordei aqui no meu artigo passado, propõe maior crescimento econômico, socialmente inclusivo e ambientalmente sustentável.

Seguem-se os seis pilares do plano: além dos três citados acima, uma eficaz e eficiente governança do Estado, maior inserção internacional do País e participação efetiva da sociedade cobrando a sua execução.

Explicando os pilares: sem um bem maior crescimento econômico do Brasil, com aumento de produtividade, a solução de problemas pelo governo é dificultada pela carência de recursos. O impacto sobre este crescimento deveria ser um parâmetro de decisão quanto a políticas públicas.

O crescimento também gera empregos, e sem isso a inclusão social deixa de ocorrer. Com o maior crescimento, eles ajudam na progressão social dos cidadãos, o que é indispensável neste país de forte desemprego e herdeiro de desigualdades que remontam à sua colonização.

Crescimento ambientalmente sustentável é necessidade imperiosa neste país beneficiado pela natureza, mas muito desleixado ao cuidar dela. Esse desleixo hoje pontifica na região amazônica, praguejada por grandes desmatamentos ilegais que danificam o meio ambiente e também pelos que praticam a mineração sem cuidados com a natureza, tudo isso em prejuízo também dos povos indígenas. Vários estudos argumentam que a biodiversidade da Amazônia pode ser explorada economicamente para o sustento de seus habitantes, inclusive cobrando dos países ricos parte do trabalho ambiental, em face do seu impacto favorável de alcance mundial.

A governança do Estado também é lastimável. Olhando apenas o caso federal, o Executivo já não era grande coisa, mas a situação se agravou sob o desgoverno Bolsonaro. Os investimentos públicos, como em infraestrutura, seguem escassos, há grande resistência a privatizações e concessões e parcerias público-privadas não vieram com a intensidade necessária. Na educação e na saúde ainda há muito por arrumar.

O Judiciário é muito lento, custoso e injusto ao ostentar privilégios. O Legislativo foi dominado pelo Centrão. Em particular, acomoda interesses de grupos, só quer saber da reeleição dos seus membros e não dá a mínima para o fraco crescimento econômico. Alguém já viu este tema ser discutido seriamente pelo Congresso? A frágil governança também se espelha pela necessidade de reformas como a tributária e a administrativa, pois, se é preciso reformar e as reformas não vêm, a governança é frágil.

Quanto à maior inserção internacional, o País também é muito carente e, como é enorme, acha que pode produzir tudo aqui, mesmo que com produtividade muito baixa e em benefício de grupos influentes nas decisões políticas, sempre em busca desta ou daquela vantagem. O sucesso do agronegócio decorreu de seu empenho em buscar o mercado externo. Outros setores precisam fazer o mesmo, em particular a indústria. Foi isso que levou ao forte crescimento da indústria chinesa e de outros países da região.

O sexto pilar, o da efetiva cobrança do governo pela sociedade, é uma inovação em planos, porque em geral são feitos por governos que não querem saber disso. Os diversos segmentos da sociedade precisam se agrupar em torno deste objetivo, inclusive criando instituições para essa finalidade. Grupos de cidadãos, jornalistas, entidades de classe, trabalhadores e empresários, representações da sociedade civil e outros segmentos não podem continuar alheios às barbaridades que vêm do governo e que desde 1980 conduziram o Brasil a uma estagnação do seu crescimento, no sentido de crescer abaixo do seu potencial, depois de cair na chamada “armadilha da renda média” e não reagir a contento.

Creio que os leitores concordariam que, com uma boa arrumação, o Brasil poderia crescer muito mais e dar melhores condições de vida à sua população. Passemos, então, a essa arrumação.

 

 

Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no jornal O Estado de S .Paulo, em 17 de fevereiro de 2022.

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Nem negacionismo, nem apocalipse: o ESG veio para ficar https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3514&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=nem-negacionismo-nem-apocalipse-o-esg-veio-para-ficar Wed, 03 Nov 2021 20:50:00 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3514 Nem negacionismo, nem apocalipse: o ESG veio para ficar

 Por Gesner Oliveira*

Publicamos neste ano pela Editora Bei o livro Nem Negacionismo, nem Apocalips – : Economia do meio ambiente: uma perspectiva brasileira[1]. Seria difícil resumir todos os temas abordados nesta espécie de “terceira via” na questão ambiental. Mas vale a pena neste artigo chamar atenção para a atual discussão sobre a famosa sigla do ESG que abordamos no livro.

O que há de novo no ESG…

A literatura de administração de empresas é repleta de novas siglas e termos da moda. Poucas ganharam tanta repercussão como esta sigla do inglês, ESG, “environment, social responsibility and governance” ou meio ambiente, responsabilidade social e governança em português.

Isso se deve, dentre outras razões, ao marketing que consultorias de gestão, acadêmicos, editores, MBAs e tantas outras instituições fazem para vender seus produtos e serviços.

Faz parte do jogo.

ESG é uma métrica criada para avaliar como uma empresa se comporta com a gestão de riscos não financeiros ligados às áreas socioambientais, que a exemplo de tantas outras vem sendo utilizada para descrever políticas de sustentabilidade em várias dimensões, sujeitas a um aperfeiçoamento contínuo desde meados do século passado e com uma base conceitual desenvolvida a partir do final do século XIX.

Neste sentido, não existem “adeptos do ESG”, assim como não existem “adeptos de compliance” ou mesmo adeptos de “contabilidade regulatória”, ou coisas do gênero.

Tais expressões encerram um conjunto de ferramentas que podem ser úteis e devem ser combinadas e calibradas para cada situação específica. Não constituem “doutrinas” que reúnam aqueles que são a favor ou contra.

As empresas devem evitar dois erros: i) negar que haja qualquer novidade a ser absorvida na atual onda do ESG; ii) deslumbrar-se com o marketing e imaginar que a boa técnica de administração foi refundada em uma suposta “era do ESG”.

Uma administração nunca será “adepta do ESG” ou “contra o ESG”, mas deve procurar a política corporativa mais adequada de ESG, considerando as peculiaridades e características da Companhia o que exige uma elaboração minuciosa de sua matriz de materialidade.

O que há de atual no artigo de Friedman sobre a primazia dos acionistas…

O artigo seminal que Milton Friedman escreveu há meio século é muito citado tanto pelos seus admiradores quanto pelos seus críticos, mas pouco lido pelas duas torcidas.

A questão de Friedman é mais profunda e atual e diz respeito ao problema do agente e do principal. Em uma sociedade democrática e de livre iniciativa o executivo de uma corporação deve ser o agente para a obtenção da maximização de lucro do principal (o acionista), sempre em estrito respeito ao ordenamento jurídico-regulatório. O administrador não tem outra opção a não ser adotar medidas que gerem valor para a Companhia. Por óbvio, deseja-se uma maximização sustentada de valor no longo prazo e não apenas no curto prazo.

Objetivos de política pública, por mais louváveis que sejam, não são responsabilidade dos executivos de uma corporação que têm dever fiduciário com a sociedade anônima que os elegeu como gestores.

Políticas públicas são responsabilidade dos servidores públicos sujeitos à governança do processo político e não dos mecanismos de mercado. Este é o tema do artigo de Friedman que já tinha uma versão em seu livro Capitalismo e Liberdade.

Em uma análise superficial, a onda do ESG poderia parecer contrária à tese de Friedman, como se fosse possível implementar políticas que não levassem em conta a meta de geração de valor para a Companhia.

A atenção das empresas deve recair no rigor e acuidade das métricas ESG e na precisão da matriz de materialidade, assegurando geração sustentada de valor para a Companhia.

Uma forma útil de situar o contexto para os gestores está representada na matriz de recente artigo de Ricardo Assumpção[2], mostrando o necessário alinhamento da política de ESG com a rentabilidade da Companhia. A política de ESG não faz sentido se não contribuir para a geração de valor em linha com o interesse do acionista e com o artigo de Friedman.

O que mudou desde o artigo de Friedman de meio século atrás: cinco macrotendências…

Apesar da correção da noção básica de agente e principal, tendências importantes das últimas décadas precisam ser levadas em consideração para entender como as fronteiras entre a corporação e o ambiente externo à empresa ficaram mais tênues. Isso se aplica não apenas ao mundo corporativo, mas a toda e qualquer organização privada ou estatal.

No contexto atual, os gestores têm de responder a um conjunto mais amplo de stakeholders. Note-se que isso se dá não em detrimento dos interesses dos acionistas, mas em prol da sustentabilidade do negócio, em última análise em prol do interesse dos acionistas.

Pelo menos cinco macrotendências explicam por que foi ampliado o escopo das políticas corporativas.

 Efeito Casa de Vidro

Conforme colocamos no livro, “as fronteiras entre os ambientes externo e interno das empresas tendem a desaparecer”[3]. Em um mundo conectado, as organizações tornaram-se “casas de vidro” sujeitas ao monitoramento e escrutínio permanentes da sociedade.

Qualquer deslize ou dissonância entre a vida interna das empresas e a versão pública de seus valores acarretam efeitos reputacionais potencialmente devastadores e destruidores de valor.

Empresas se tornaram grandes demais para se furtar a participar

As corporações adquiriram um tamanho frente aos estados nacionais que torna impossível pensar questões de política pública sem participação privada. O impacto efetivo das decisões empresariais aumentou, ganhando importância relativamente aos estados nacionais.

Segundo a Organização não governamental Global Justice Now, das 100 entidades de maior relevância econômica, 69 são empresas contra 31 países. A rede norte-americana de supermercados Walmart, por exemplo, ocuparia o 10º posto atrás apenas de Estados Unidos, China, Alemanha, Japão, França, Reino Unido, Itália, Brasil e Canadá.

Responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas

No texto de Friedman, afirma-se que as discussões sobre as responsabilidades sociais das empresas eram notáveis por sua análise como frouxidão e falta de rigor, no sentido de que “negócios” não têm responsabilidades. No entanto, há novas tendências nos ordenamentos jurídicos do mundo e do Brasil.

Para um exemplo conhecido contado em filme com a atriz Julia Roberts, em 1993 a técnica jurídica e ativista ambiental estadunidense Erin Brockovich, descobre processos arquivados da empresa Pacific Gás and Eletric Company, responsável pela disseminação de doenças através do lençol freático, na pequena cidade de Hinkley, no estado da Califórnia.

Trata-se de exemplo de externalidade negativa não internalizada. A empresa respondeu pela responsabilidade civil por danos ao meio ambiente, configurando ato ilícito que gerou à época indenização de US$ 333 milhões.

Este exemplo e tantos outros demonstram a necessidade de um monitoramento amplo de impactos socioambientais que vai muito além dos limites dos sites produtivos da Companhia.

A Constituição Federal prevê que as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.[4] No Brasil, a Lei Anticorrupção nº 12.846/13, trouxe a responsabilidade da pessoa jurídica de forma objetiva.

Aumento do risco socioambiental

Há 50 anos atrás, os impactos da ação humana sobre o planeta eram menos conhecidos. Em contrapartida, nos tempos atuais, tais efeitos são amplamente estudados, documentados e discutidos. Desde 1970 a pegada ecológica supera a bioprodutividade do planeta.

Os riscos socioambientais se agravaram a tal ponto que frequentemente estão no topo da lista de riscos corporativos. Nos documentos do Fórum Econômico Mundial, encontram-se entre os maiores riscos tanto em termos de probabilidade como de possíveis impactos negativos. Em 2021, os 4 maiores riscos em termos de probabilidade estão ligados ao meio ambiente, três dos quais também então no “top 5” dos riscos de maior impacto negativo. O fato de não considerar esses riscos na decisão de alocação de capital leva os investidores a ficarem expostos sem saber e, no longo prazo, a perder muito.

Os impactos potenciais sobre as economias são significativos. Segundo estudo da Swiss RE[5], uma elevação de 2º C acarreta uma perda de PIB da ordem de 11% para a América do Sul. Tal declínio poderia chegar a 17% em cenário de aumento de 3,2º C.

Preferências dos consumidores

As práticas empresariais com direcionamento sustentável são cada vez mais consideradas pelos consumidores em suas decisões de compra, em especial nos países com maiores renda per capita e nível de educação. Nos Estados Unidos, por exemplo, os bens de consumo classificados como “sustentáveis” tiveram um crescimento de mercado 5,6 vezes maior do que os “tradicionais” entre 2013 e 2018. Isso sugere que o posicionamento sustentável das empresas pode representar um diferencial relevante em um mercado competitivo.

Vendas de bens de consumo nos Estados Unidos (2013-2018)

A tentação cada vez maior (e mais arriscada) do Greenwashing na era do ESG…

O termo é mais recente, mas greenwashing é uma prática antiga. Na era do ESG, o greenwashing está cada vez mais tentador, pois pode-se transmitir (pelo menos por algum tempo) uma imagem positiva, mas falsa, da Companhia.

A assimetria de informação, ou seja, a dificuldade para que um cliente ou investidor na ponta receba e entenda todas as informações relevantes à sua decisão de compra ou investimento ainda é um dos maiores desafios no campo da sustentabilidade.

Essa assimetria de informação entre fabricantes e compradores ou investidores pode resultar na “maquiagem” de certos bens ou serviços, anunciados como opções sustentáveis quando, na realidade, provocam impactos socioambientais negativos, equivalentes ou até maiores do que os causados pelos concorrentes. Essa prática recebe o nome de greenwashing e é condenada pela legislação de proteção do consumidor, de defesa da concorrência e pela legislação societária.

Além do óbvio prejuízo aos consumidores, que não recebem aquilo pelo que pagaram, práticas de greenwashing têm efeito negativo no ambiente competitivo: ao abusar da assimetria de informação, empresas capturam a vantagem competitiva das práticas sustentáveis sem o ônus de realmente adotar tais procedimentos, muitas vezes mais custosos. O resultado é incentivar o consumo de produtos danosos ao ambiente.

A forma mais comum de reduzir assimetria de informação é a criação de padrões de uso, avaliados por partes independentes. Essa avaliação pode se dar no nível dos produtos ou no nível das empresas.

O Quadro resume as possibilidades. Na célula 1, a Companhia maximiza valor, trabalhando com produtos e serviços que atendem à demanda crescente dos consumidores por itens amigáveis com o meio ambiente. É a célula a ser perseguida pelo bom gestor.

Na célula 2, a Companhia não comunica o ESG com materialidade, perdendo, portanto, a oportunidade de maximizar valor.

Na célula 3, a Companhia que pratica o Greenwashing e comunica acaba trazendo para si, o ônus do risco de destruição de valor mediante propaganda enganosa, fraude ao investidor e infração concorrencial.

Na célula 4, a Companhia que pratica Greenwashing e não comunica tem a possibilidade de evitar passivos, porém, não maximiza valor aproveitando itens em conformidade com o meio ambiente. 

Informação imperfeita e greenwashing

  Comunica Não comunica
ESG c/ materialidade 1.      Maximiza valor 2.      Perde oportunidade de gerar valor
 
ESG de fachada (Greenwashing) 3.      Risco de destruição de valor mediante propaganda enganosa, fraude ao investidor e infração concorrencial 4.      Evita passivos, mas não maximiza valor

A conclusão é a de que os gestores não podem mais se furtar a ter uma agenda mais ampla de trabalho sem a qual a Companhia não logra obter uma licença social de operação. Não se trata de contradizer a primazia do acionista, mas pelo contrário de reforçá-la.

Nesse contexto, uma política séria de ESG deve estar articulada com o planejamento estratégico da empresa. Comunicá-la eficientemente pode agregar muito valor. Em contraste, tentar iludir os stakeholders com greenwashing expõe a Companhia a vultosos passivos.

 

[1] OLIVEIRA, Gesner; FERREIRA, Artur Vilela. Nem negacionismo nem apocalipse – Economia do Meio Ambiente: uma perspectiva brasileira. 1ª Edição. São Paulo. Editora Bei, 2021

[2] Assumpção, Ricardo – “Cop 26 e ESG: desafios e oportunidades que temos pela frente” in Relatório Executivo da GO Associados publicado em 11/10/21.

[3] OLIVEIRA, Gesner; FERREIRA, Artur Vilela. Nem negacionismo nem apocalipse – Economia do Meio Ambiente: uma perspectiva brasileira. 1ª Edição. São Paulo. Editora Bei, 2021, pg. 37

GIOVANNI, Gianni Di; LUCCHINI, Stefano. La Casa Di Vetro: Comunicare l’azienda nell’era digitale. Editora Rizzoli ETAS, 2013

[4] Artigo 225, parágrafo 3º da Constituição Federal de 1988

[5] Swiss Re Institute The economics of climate change: no action not an option April 2021

 

 

Gesner Oliveira é professor da Fundação Getúlio Vargas, onde coordena o Centro de Estudos de Infraestrutura e Soluções Ambientais. Ex-presidente do CADE (1996-2000), ex-presidente da SABESP (2007-2011) e sócio da GO associados.

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A nova lei de licitações é mais eficiente economicamente? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3424&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-nova-lei-de-licitacoes-e-mais-eficiente-economicamente Mon, 15 Mar 2021 14:22:58 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3424 A nova lei de licitações é mais eficiente economicamente?

Por Eduardo Pedral Sampaio Fiuza[1]

 Introdução

Em votação relâmpago, o Senado aprovou o PL 4253/2020, o qual nada mais é que o Substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei destinado a substituir, no decurso de dois anos, a nada saudosa Lei 8.666 — que vem regendo as licitações e contratações públicas brasileiras desde 1993 –, bem como os seus “puxadinhos”, que vêm regendo respectivamente os pregões (Lei 10.520/2002) e o Regime Diferenciado de Contratações Públicas -RDC (Lei 12.462/2011). Antes do fechamento deste artigo, foi a plenário um parecer da Mesa Diretora para ajustes de redação previamente ao envio à Presidência da República para sanção. É desta versão final do Senado que agora trato, tendo a consciência de que outras alterações podem vir na forma de vetos da Presidência da República, os quais, por sua vez, podem ser em parte reexaminados e eventualmente revertidos pelo Congresso.

O anticlímax na votação morna pode ter sido capaz de obnubilar a cobertura jornalística do desfecho de tão longo processo de tramitação, que começou em 2007[2] e passou duas vezes por cada uma das duas Casas Legislativas. Mas as redes sociais pululam de convites para lives com os maiores juristas especializados em licitações, oferecendo análises com maior ou menor grau de profundidade sobre as mudanças implementadas.

O debate ocorrido nas duas Casas Legislativas foi muito frutífero e produziu grandes avanços na legislação de contratações públicas brasileira. A despeito disso, a peça legislativa aprovada ainda ficou aquém do necessário para ser considerada uma legislação verdadeiramente moderna e trazer maior agilidade, produtividade e competitividade às licitações e contratações brasileiras.

De fato, a despeito dos avanços alcançados até agora, são preocupantes alguns artigos que, ou cristalizam em lei regulamentações que até hoje vinham sendo aperfeiçoadas com maior rapidez por decretos ou outras normas infralegais, ou simplesmente andam na direção contrária à liberalização econômica que o País vem buscando empreender nos últimos anos.

Tendo participado ativamente – ainda que majoritariamente à distância, mas o suficiente para ver diversas sugestões de texto acolhidas pelas relatorias – das discussões sobre os impactos econômicos previstos em cada alteração trazida pela nova Lei, fui convidado por este site a consolidar aqui os pontos que resumem a minha visão sobre o conjunto da nova peça legislativa, utilizando do ferramental de análise microeconômico, que, por vezes, destoa das interpretações jurídicas. Sobre este mister ora me debruço, aproveitando-me principalmente das quatro notas técnicas, dois Textos para Discussão, três capítulos de livros e um artigo de periódico que escrevi, de 2009 a 2020, em sua maioria na companhia de ilustres coautores.

Maximalismo

Para começar, faço coro a vários renomados juristas no refrão de “Menos Lei e Mais Regulação Infralegal, por favor”. Em todas as minhas contribuições, defendi uma lei enxuta e a remissão de numerosos detalhes a regulamentações posteriores.

A nova lei tem 179 artigos em seu núcleo, mais outros 14 artigos contendo disposições transitórias. Esse excesso de detalhes consolida uma tendência maximalista da legislação do tema. Só para ficar nos últimos dois diplomas legais (os únicos do século XX exclusivamente versando sobre licitações), o Decreto-Lei 2300/1986 tinha 90 artigos, e a Lei 8666/1993 contém 126. Além disso, com esse inchaço, a nova Lei esvazia ainda mais as competências regulatórias dos entes subnacionais para essa matéria.

Países vizinhos ao Brasil, com ordenamento jurídico baseado no Direito Romano, e que passaram nos últimos dez anos por revisões de suas legislações de compras públicas em conformidade com recomendações da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), têm legislações bem mais enxutas, deixando para seus regulamentos (exarados pelo Poder Executivo) o maior detalhamento de procedimentos – ver Tabela 1. Na direção oposta, o Brasil incorporou ao texto legal vários detalhes que antes eram regulamentados por diferentes decretos. É o caso do Sistema de Registro de Preços e do pregão eletrônico. Outros detalhamentos — que sempre me esforcei sem sucesso para convencer os legisladores a deixar de fora da lei — dizem respeito aos modos de disputa – embora tenha de reconhecer que houve grandes avanços no leque de modalidades oferecido pela lei.

TABELA 1

GRAU DE DETALHAMENTO DAS LEIS E REGULAMENTOS EM PAÍSES LATINOAMERICANOS DA OCDE

País Ano da última lei ou alteração Artigos permanentes Artigos transitórios Regulamento
Chile 2018 39 11 29+1
Colômbia (duas leis) 2020 80+33 1 162
México 2020 86 5 137

Fonte: elaboração própria, a partir de buscas na Word Wide Web.

De fato, o texto aprovado, ao consolidar três leis anteriores (a Lei 8666/1993, a Lei 10.520/2005 e a Lei 12.462/2011), trouxe ainda elementos do Decreto 7.892/2013, com conteúdo regulamentar sobre procedimentos. Essa riqueza de detalhes torna-se, também, uma fraqueza, na medida em que cristaliza regras que não são baseadas em evidências e são mais difíceis de reverter, requerendo a aprovação de novos projetos de lei ou medidas provisórias. Os trabalhos que já publiquei, em sua maior parte com a coautoria de colegas, sempre defenderam que se deveria deixar o máximo de regulamentação para peças infralegais, e mais abaixo saliento alguns trechos que bem poderiam ser removidos da lei para facilitar essa regulamentação dentro do que há de mais moderno em contratações públicas no mundo.

Inovações

Vamos em seguida destacar as principais inovações do PL 4253 e, a partir do que já foi propugnado e discutido em obras anteriores, situar o leitor sobre seus impactos econômicos esperados.

Como pano de fundo, tentemos ver a floresta, em vez das árvores. Fortini e Amorim[3] fazem uma descrição mais “panorâmica” das mudanças efetuadas. Eles distinguem cinco grandes eixos temáticos em que a nova lei se destaca. O primeiro é a promoção da governança das contratações. O segundo eixo é o da profissionalização dos recursos humanos. O terceiro é o da impulsão ao planejamento das contratações. O quarto é o da absorção das tecnologias da informação e comunicação. O quinto é o do fortalecimento da prevenção a fraudes.

Além dos cinco eixos apontados acima, existem ainda outras dimensões de grande importância: o processo composto de seleção e adjudicação e o grau de coordenação em compras.

Vejamos abaixo cada uma dessas dimensões.

Governança

No que diz respeito à governança, a pregação econômica em favor do uso de seguros-garantias teve uma vitória parcial, na medida em que o art. 99 do PL permite que o edital exija a prestação da garantia na modalidade seguro-garantia em obras, o que é um avanço significativo. Mas este poder deveria ser prerrogativa da Administração, fosse qual fosse o objeto. Ainda perdura a prerrogativa do contratado em escolher o tipo de garantia para a maioria das outras obras. Foi incorporada à Lei principal uma importante inovação: A matriz de risco (art. 22) foi trazida da Lei do RDC – aliás, pela Lei 13.190/2015, que a introduziu no texto-base do RDC, art.9, § 5º — e foi mais detalhada na nova Lei. Nela são atribuídos às partes do contrato os riscos que cada uma tem maior poder de mitigar, como sabiamente ensina a Teoria Econômica de Contratos. O excessivo detalhamento, no entanto, é mais um que poderia ter sido deixado para regulamento.

É claro que a melhor ou pior governança contratual afeta o processo seletivo e por ele é retroalimentada. Tome-se o exemplo dos lances chamados inexequíveis. O art. 59 prevê que “serão desclassificadas as propostas que (…) III – apresentarem preços inexequíveis ou permanecerem acima do orçamento estimado para a contratação”; e que “§ 4º No caso de obras e serviços de engenharia, serão consideradas inexequíveis as propostas cujos valores forem inferiores a 75% (setenta e cinco por cento) do valor orçado pela Administração”. Ao mesmo tempo, porém, prevê que “§ 5º Nas contratações de obras e serviços de engenharia, será exigida garantia adicional do licitante vencedor cuja proposta for inferior a 85% (oitenta e cinco por cento) do valor orçado pela Administração, equivalente à diferença entre esse último e o valor da proposta, sem prejuízo das demais garantias exigíveis de acordo com esta Lei.”

O § 5º já deixa claro que pode ser sanada a “inexequibilidade da proposta”, que, como está definida no § 4º, é uma caracterização meramente baseada em estatística, sem nenhum mérito de revisão da técnica proposta pelo licitante. Portanto é um contrassenso desclassificar um licitante pelo § 4º se ele pode se defender pelo § 5º — que permite a defesa para preços abaixo de 85% do valor de referência, e isso inclui todos os casos particulares dos preços abaixo de 75%. Essa lamentável incongruência jurídica só pode dar margem a questionamentos judiciais, aumentando a judicialização das licitações, que é justamente uma das coisas que a nova Lei pretende evitar. Foi absolutamente infeliz a manutenção de dois parágrafos tão conflitantes quanto esses dois.

Ora, o § 5º é um avanço para a legislação. Como já insisti antes (Fiuza e Medeiros, 2014; Fiuza, Pompermayer e Rauen, 2019), o mais importante é fornecer as garantias, em particular o seguro-garantia com step in das seguradoras. Em particular, na primeira dessas notas técnicas (pp. 70-71), dissemos o seguinte: 

“De fato tende a ser complexa a distinção entre uma proposta boa para a administração pública, na qual o desconto em relação ao preço de referência foi significativo, e uma proposta cujo preço é inexequível ou levará a descumprimento contratual. 

Criar critérios de inabilitação mais rígidos nas licitações públicas poderia melhorar o índice de execução dos contratos. Ao mesmo tempo, correr-se-ia o risco de se descartarem propostas que eventualmente sejam as mais desejadas pelo poder público, por exemplo quando há inovações tecnológicas que permitam a redução significativa do preço em relação ao de referência. 

Uma forma de encaminhar essa questão seria propor a progressividade do percentual a ser segurado. Quanto maior o desconto na licitação em relação ao preço de referência, maior teria que ser a garantia – dentro da lógica em que a redução do valor em relação à referência aumenta o risco de inadimplemento contratual. Desta forma, haveria compatibilidade entre risco e retorno: uma contratação por valor mais baixo tende a ter um risco mais alto. Portanto, uma garantia de execução mais abrangente. 

Essa proposta é também interessante para enfrentar uma tendência de concessão de descontos exagerados. Como os órgãos de controle cada vez mais olham com desconfiança processos licitatórios que não sejam concluídos com desconto sobre o preço de referência, o incentivo da administração é sobre-estimar o valor de referência e o incentivo aos licitantes é conceder descontos mesmo em licitações em que o preço de referência foi bem calibrado. Nesse caso, a progressividade das garantias passa a ser ainda mais interessante, posto que os descontos exagerados levam a maiores riscos de inadimplemento contratual. 

Vale notar que o Art. 57 do Substitutivo [da Câmara, antes da aprovação final] ainda insiste na desclassificação de propostas “manifestamente inexequíveis”, mas cria uma zona cinzenta na qual os licitantes pouco acima do valor de corte por inexequibilidade ainda têm que apresentar garantias adicionais.”

Em seguida, reproduzimos a redação então proposta na Câmara dos Deputados, de uma complexidade extremamente confusa:

Art. 57. Serão desclassificadas as propostas que (…):

III – apresentarem preços manifestamente inexequíveis ou permanecerem acima do orçamento estimado para a contratação; (…)

§ 4° No caso de obras, consideram-se manifestamente inexequíveis as propostas cujos valores sejam inferiores a 80% (oitenta por cento) do menor dos seguintes valores:

I – média aritmética dos valores das propostas superiores a 80% (oitenta por cento) do valor orçado pela Administração;

II – valor orçado pela Administração.

§ 5º Antes de concluído o julgamento das propostas, o licitante poderá demonstrar falhas no cálculo do valor estimado da contratação, que possam impactar na análise da exequibilidade da proposta.

§ 6º Dos licitantes classificados na forma do § 4º que houverem apresentado proposta com valor global inferior a 85% (oitenta e cinco por cento) do menor dos valores a que se referem os incisos do § 4º, será exigida, para assinatura do contrato, prestação de garantia adicional, sem prejuízo das demais garantias exigíveis de acordo com esta Lei, igual à diferença entre o valor da proposta e o menor dos valores a que se referem os incisos do § 4º.

§ 7º A garantia adicional referida no § 6º deverá ser apresentada pelo licitante no prazo de 10 (dez) dias úteis do ato de classificação, sob pena de desclassificação de sua proposta.

Nossa proposta desde aquela época era muito mais clara e eficaz, e pode ser implementada em regulamento, mantendo-se a redação final aprovada no Senado, com a única exceção desse infeliz § 4º. O que propusemos foi o seguinte:

“A regulamentação posterior da Lei poderia perfeitamente disciplinar que essa garantia fosse provida em alíquota superior à das demais garantias exigíveis. Mas note-se que aqui propomos que qualquer desconto em relação ao preço de referência seja objeto de garantia em “dose superior”.

Podem ser previstas regras de proporcionalidade entre o desconto do licitante vencedor em relação ao preço de referência do edital e o valor a ser garantido por meio de seguro-garantia.

Profissionalização

No que diz respeito à profissionalização, Fortini e Amorim (op cit) avaliam que o PL requer da alta administração a promoção da gestão por competências, a exigência da avaliação da estrutura de recursos humanos, a identificação das competências necessárias para cada função e a definição clara das responsabilidades e dos papéis a serem desempenhados e, ao final, seleção e designação de agentes públicos que tenham conhecimentos, habilidades e atitudes compatíveis, sem prejuízo das avaliações de desempenho (arts. 7º e 8º, § 3º, do PL).

Na minha avaliação, porém, a maior frustração com o texto final é que ele ficou aquém de criar ou, ao menos, sugerir uma carreira própria a partir de profissionais com experiência na atividade, o que dependerá muito mais de cada Administração (nas esferas federal, estadual e municipal) em suas respectivas reformas administrativas.

Planejamento

O planejamento das contratações, fundamental para a consolidação e racionalização das compras nas várias esferas administrativas, e que era uma recomendação minha e de vários analistas externos, ganhou espaço na nova Lei: as unidades administrativas poderão ter Planos Anuais de Contratação. Embora a Lei ainda lhes faculte a opção de não elaborar tais planos, vale lembrar que o Poder Executivo Federal já se antecipou à Lei em 2019 e publicou uma Instrução Normativa (1/2019) obrigando as suas unidades administrativas a submeter tais planos.

Tecnologia

Quanto à absorção das tecnologias de informação e comunicação, é verdade que a Lei manda que os processos sejam digitais (art. 12, inciso VI) e os certames também (art. 17, § 2º). Outros elementos, como acompanhamento de obras, modelos de engenharia e obras, e catálogo de padronização de bens e serviços (art. 19), audiências públicas (art. 21), publicação de edital (arts. 31 e 97), submissão de documentos (art. 67) também passam a ser preferivelmente eletrônicos.

OK, os certames passam a ser preferencialmente eletrônicos (art. 17, § 2º), mas somente preferencialmente — o que significa que o órgão contratante ainda tem algumas situações em que pode evocar a necessidade de um certame presencial. Como exaustivamente discutido em notas técnicas anteriores, nenhuma delas realmente justifica a necessidade de um certame presencial, pois já se sabe, tanto por experiência prática quanto por estudos teóricos, que a melhor maneira de desarticular cartéis de licitações é manter a identidade dos licitantes ocultada, pelo menos, até a adjudicação do objeto – lembrando que os pregões eletrônicos federais não seguem essa orientação plenamente, pois as identidades dos licitantes são reveladas ainda na fase de aceitação. A gravação em áudio e vídeo nos casos de certames presenciais, nas condições tecnológicas atuais, é insuficiente para o uso de muitas das técnicas de detecção de cartéis disponíveis.

Quanto à prevenção de fraudes, outro tema que abordei em notas técnicas, ela passa pela difusão de políticas de integridade (tanto de fornecedores como das unidades administrativas), transparência e controle de conflitos de interesse dos agentes de compras. A nova Lei, no entanto, prefere colocar os órgãos de controle diretamente e preventivamente dentro dos processos de compras, fazer treinamentos, etc. Essa visão de que o órgão de controle sabe mais que o próprio agente de compras advém, como tanto faço questão de repisar, da baixa valorização do pessoal engajado em compras, sem carreiras definidas, sujeito a todas as penalidades mas a nenhum reconhecimento verbal nem monetário, em contraste com as carreiras de auditores e analistas de controle, que estão entre as mais bem pagas de todo o Serviço Público. Enquanto não houver um fortalecimento dos quadros e carreiras desta atividade, a presença do órgão de controle continuará pairando como uma ameaça constante e aterradora dos pobres e mal formados agentes de compras.

Seleção e adjudicação

Em primeiro lugar, a inversão de fases, que já existia no pregão e tinha sido ainda mais flexibilizada no RDC, passa a ser a regra, enquanto a habilitação antes do certame passa a ser a exceção (art. 17, § 1º) – essa mudança, ao ser estendida à modalidade concorrência, reduz a incidência de impugnações e recursos direcionados a licitantes que sequer apresentam propostas competitivas. Essa inversão de fases não é, porém, uma vacina infalível contra o uso de impugnações como parte da estratégia de cartéis em afastar licitantes de fora dos seus esquemas.

Ao percorrermos a lei, como não lamentar o excesso de outros detalhes? Vejamos, por exemplo, o cálculo do valor estimado da compra: o artigo 23 lista sistemas específicos mantidos pelo Poder Executivo. O que acontece se o Executivo desenvolver um sistema melhor ou, ainda mais, unificar vários sistemas num só? Deve-se reformar a Lei? Para que trazer tal informação em Lei? Por que a melhor estimativa é uma mediana? Isso vale sempre?

E as modalidades de licitação? Ora, conseguimos enxugar a lista de modalidades de compras (convite, tomada de preço e concorrência) que, originalmente, apenas variavam no grau de restrição, publicidade e prazo de divulgação, mas se resumiam todas (as da Lei 8666) a leilões de envelopes fechados presenciais com habilitação prévia, e praticamente se descartava o critério de adjudicação de técnica e preço, ao limitá-lo a um segmento muito específico dos bens e serviços. Agora todas as modalidades de compras anteriores podem ser resumidas numa só: a concorrência. A manutenção do nome, a meu ver, pode até causar confusão, pois durante dois anos a lei atual e a nova estarão em vigência simultaneamente, e não é difícil imaginar que, por mais que o instrumento convocatório deixe explícita qual lei estará sendo aplicada, sempre haverá a chance de que alguma parte do edital ou outra lei se refira a concorrência ambiguamente.

Mas não é só isso. O pregão foi mantido como modalidade à parte (ela não fazia parte do rol de modalidades original da Lei 8666), embora tenha se tornado tão somente um caso especial da concorrência. O pregão continua destinando-se a bens e serviços comuns, mas passa a poder ter inversão de fases. Curiosamente, não está escrito em nenhum lugar da lei explicitamente que ele não possa ter critério de julgamento diferente do menor preço ou maior desconto. A exclusão é indireta, na medida em que o caput do art. 29 que o objeto a ser licitado deve “possuir padrões de desempenho e qualidade que possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais de mercado”, e o parágrafo único do mesmo artigo diz que ele não se aplica a contratações de serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual e de obras e serviços de engenharia (com a exceção dos serviços “comuns” de engenharia). A lista de situações em que se pode aplicar o critério de julgamento de técnica e preço (art. 36) procura sempre enfatizar o caráter de “especial”, “específico” ou que não possa ser definido de maneira objetiva, o que, em tese, afastaria o uso do pregão. Vale notar que esse critério deve ser escolhido “quando o estudo técnico preliminar demonstrar que a avaliação e a ponderação técnica das propostas que superarem os requisitos mínimos estabelecidos no edital forem relevantes aos fins pretendidos” (art. 36, § 1º).

Mas isso não faz a menor diferença, pois a concorrência tem rigorosamente o mesmo rito do pregão (arts. 18 e 29).  A grande vantagem de se usar a concorrência é, portanto, a possibilidade de adotar critérios de julgamento diferentes do menor preço ou maior desconto. Seria mais fácil e direto, portanto, regular que os bens e serviços comuns devessem ser licitados por menor preço ou maior desconto, e os especiais e “diferenciáveis” por técnica e preço, em vez de se criarem modalidades “separadas”.

O compartilhamento de um mesmo rito procedimental entre a concorrência e o pregão se estende à escolha da fase de disputa, na medida em que a Lei é muito, muito restritiva a como as propostas são apresentadas: ou são apresentadas na forma fechada (disputa fechada) ou em lances sucessivos (disputa aberta). Como insisti ad nauseam em três notas técnicas, essa restrição é descabida. O art. 28, § 2º proíbe a criação de novas modalidades – diga-se de passagem, a antiga lei 8666 tinha a mesma vedação e, no entanto, o pregão e o RDC foram criados por leis subsequentes —, o que não seria uma restrição ativa se fosse possível inovar nas formas de disputa. Em verdade, a restrição está no art. 56, que descreve as formas de disputa aberta e fechada e, numa infeliz decisão dos deputados confirmada pelos senadores, impõe-se a realização de ao menos uma fase de disputa aberta:

Art. 56. O modo de disputa poderá ser, isolada ou conjuntamente: 

I – aberto, hipótese em que os licitantes apresentarão suas propostas por meio de lances públicos e sucessivos, crescentes ou decrescentes;

II – fechado, hipótese em que as propostas permanecerão em sigilo até a data e hora designadas para sua divulgação.

§ 1º A utilização isolada do modo de disputa fechado será vedada quando adotados os critérios de julgamento de menor preço ou de maior desconto.

 Ora, como fartamente exposto nas Notas Técnicas de que participei (Fiuza, Pompermayer e Rauen, 2019; Fiuza e Rauen, 2019), é uma ilusão achar que a disputa aberta aumenta a concorrência. A teoria e a evidência empírica não dão suporte a essa afirmação. Pelo contrário, organismos multilaterais, como a OCDE e o International Competition Network são bastante claros em suas recomendações para combate a cartéis de licitações: o modo de disputa fechado é o mais indicado. Isso porque ele não dá chance para os membros de um cartel se defenderem de “invasores” (isto é, concorrentes sérios, não ligados ao esquema criminoso) que entram no cartel de última hora, desde que o certame proteja o anonimato dos licitantes (o que só é possível se for garantida a obrigatoriedade do certame eletrônico). Os certames com disputa fechada atualmente regulados pela Lei 8666 são eivados de risco de conluio porque são presenciais, e não porque a disputa é por envelopes fechados. Os licitantes que participam de esquemas fraudulentos podem reagir à presença de membros externos através da guerra de impugnações ou, simplesmente, trocando o envelope que será entregue, ao perceberem a presença de concorrentes de fora do esquema. Isso não é possível no certame eletrônico com inversão de fase de habilitação, como disposto no PL 4253 em comento.

Mesmo o pregão presencial, que foi criado antes do eletrônico, tem uma fase de disputa aberta que parece gerar algum tipo de concorrência, mas vale lembrar que, racionalmente, sabendo que há essa fase aberta, os licitantes são menos agressivos em suas propostas iniciais. Só não são menos ainda porque o pregão presencial tem um limite no número de participantes que progridem para a fase de disputa aberta. Mas, mesmo introduzindo essa regra de progressão no pregão eletrônico por decreto, ela não é invulnerável a esquemas fraudulentos. Por exemplo, um cartel de licitantes pode dar propostas iniciais de cobertura bem próximas à do ganhador designado pelo cartel para dificultar a progressão de algum licitante externo ao cartel. É bom notar, também, que a Secretaria de Gestão do Ministério da Economia, que tanto apoiou a fase aberta, produziu o texto do Decreto 10.024/2019. Ao reconhecer que o modelo anterior tinha falhas – no caso, foi reconhecido que a regra de fechamento do pregão era ineficiente – uma das soluções encontradas e propostas foi… fazer mais uma disputa fechada! (copiando, aliás, a ideia do caput e inciso I do art. 59).

Feitas essas considerações sobre formas de disputa, notemos agora que, no fundo, passamos a ter apenas quatro modalidades bem distintas: concorrência (que inclui o pregão), o concurso, o leilão e o novo diálogo competitivo.

O concurso e o leilão não diferem significativamente de como eles eram antes. Embora se presuma que o critério de julgamento de melhor técnica ou conteúdo artístico se aplique tão somente aos concursos, em nenhum momento isso é explicitado. “Maior lance”, no jargão dessa lei, se refere a lances dados apenas em leilões (de venda), embora na ciência econômica os termos “lance” e “leilão” possam ser aplicados com referência tanto a compras (leilão reverso) como a vendas.

O diálogo competitivo é a grande novidade desta Lei, e se inspira na modalidade homônima da União Europeia. Ela começa pela publicação de um edital contendo a necessidade do órgão contratante que deve ser atendida. Os interessados se inscrevem e são pré-selecionados segundo critérios dispostos no edital. Podem ser feitas várias rodadas de consultas estritamente bilaterais e sigilosas entre o órgão contratante e os interessados pré-selecionados para que aquele identifique uma solução que atenda à necessidade apresentada. Esta solução escolhida passa a ser, em seguida, o objeto de novo edital, com “critérios objetivos a serem utilizados para seleção da proposta mais vantajosa”. Essa modalidade só deve ser aplicada em algumas situações especificas, envolvendo algum tipo de inovação, incerteza sobre a melhor solução a ser aplicada para atender às necessidades, ou mesmo a adaptação das soluções disponíveis no mercado.[4]

Mas mesmo aqui volta a crítica sobre a vedação de novas modalidades. No próprio artigo 32, abre-se a possibilidade de usar o diálogo competitivo a situações em que a Administração “III – considere que os modos de disputa aberto e fechado não permitem apreciação adequada das variações entre propostas”.

Ora, o diálogo competitivo é uma modalidade de licitação voltada para contratações nas quais a Administração não tem condições de definir por si só a solução para as suas necessidades, e não para suprir deficiências nos modos de disputa. Eu sugeri ao longo da tramitação dessa Lei muitos outros modos de disputa, tais como leilão de relógio, proxy, relógio-proxy, combinatório e, no entanto, nenhum deles foi acolhido pelas relatorias. Eles são modos de disputa bastante utilizados em leilões de concessões mundo afora, e as contribuições dos Profs. Robert Wilson e Paul Milgrom para a elaboração dessas modalidades foram recentemente agraciadas com o Prêmio Nobel de Economia 2020. Não obstante essa repetida insistência, o pouco conhecimento da Teoria dos Leilões no meio jurídico aparentemente impediu a difusão dessas inovações.

Os leilões de relógio não deveriam ser enquadrados, a princípio e a rigor, nem como disputa aberta nem fechada. Os leilões proxy ainda poderiam, com uma dose de boa vontade, ser entendidos como uma extensão da disputa aberta, pois os licitantes recorrem a uma parametrização que vincula os lances dados por robôs da própria plataforma de leilão. Os leilões combinatórios podem ser aplicados tanto em disputa fechada como aberta ou em disputa proxy, portanto entendo que podem ser introduzidos por regulamento posteriormente. Mas eles também poderiam ser aplicados a leilões de relógio, que, em tese, não estão previstos na Lei. A combinação entre relógio e proxy também seria inviabilizada. Existem ainda leilões pay-as-you-go, em que o valor unitário varia de acordo com a quantidade adquirida.

Em resumo: se a limitação dos modos de disputa é um problema, então seria melhor a Presidência baixar uma Medida Provisória com um novo inciso no art. 56 que abrisse a possibilidade de se criarem novos modos de disputa. Se não é para chegar a tanto, é melhor remover o inciso III do art. 32. O ponto, novamente, é que melhorias pontuais no funcionamento do pregão e da concorrência restam dificultadas porque a Lei é detalhada demais.

Outro problema sério que aparece nos critérios de julgamentos são as distorções causadas pelo que é conhecido na literatura econômica como bid preferences: pensadas como aplicações de funções regulatórias das licitações, essas visam obter outros objetivos além de obter o maior valor (ou, na linguagem econômica, maior “utilidade”) pelo preço pago – correspondente aos critérios de melhor técnica e de técnica e preço — ou o menor preço, sujeito a um nível mínimo de qualidade – correspondente aos critérios de menor preço e de maior desconto. Essas preferências funcionam de duas maneiras principais:

  • Em uma, elas destinam parcelas das compras a fornecedores de um grupo específico – aqui se enquadram os lotes (itens) exclusivos para micro e pequenas empresas e um bom número de incisos do artigo 75 que definem os casos em que se prevê o uso da dispensa de licitação para determinados tipos de fornecedores;
  • Em outra, elas distorcem os preços relativos entre os licitantes, de modo que o melhor lance ao final do certame não necessariamente é o vencedor – nessa classe se enquadram as margens de preferência puras e simples (conhecidas na literatura econômica como bid subsidies) e o chamado empate ficto, que dá a chance à micro ou pequena empresa de cobrir o melhor lance se a diferença entre este e o seu lance estiver abaixo de uma certa margem de desconto.

 Como exaustivamente argumentado em notas técnicas e em um Texto para Discussão (Fiuza e Medeiros, 2014), a maioria das previsões de dispensa de licitação para contratação de fornecedores específicos é resultado da ação de lobbies dos segmentos beneficiados. Tome o exemplo de um fornecedor que tem uma atividade de recuperação de presos pelo trabalho ou de integração de deficientes. Existem várias ONGs e empreendimentos sociais que atendem a esse critério, mas, se a Administração selecionar um único que seja ao seu bel prazer, e conseguir justificar o preço, essa ONG ou empresa não terá que concorrer com outras comparáveis, nem por preço nem por qualidade.

Outras previsões de dispensa são situações de inexigibilidade mal classificadas, compras de emergência, serviços especializados ou que podem comprometer a segurança nacional, e para a maioria delas se poderia introduzir alguma competição. Por exemplo, em outro Texto para Discussão, eu e outros colegas (Fiuza et al, 2020) alegamos que um sistema de registro de preços mais amplo permitiria aos órgãos da Administração introduzir concorrência numa primeira fase, criar um cadastro de fornecedores e acioná-los para rápida entrega com um procedimento tão célere quanto uma dispensa, com bastante transparência, e dando-lhes incentivos a ser agressivos nas condições oferecidas, tanto na primeira como na segunda fase – ver mais sobre o assunto abaixo. Mas, infelizmente, os lobbies venceram, e temos agora uma lei com ainda mais situações de dispensa e inexigibilidade que a anterior.

Quanto aos lotes exclusivos, conhecidos na literatura econômica como set asides, para Micro e Pequenas Empresas, essa prática é bastante difundida em outros países. As avaliações de impacto dessas políticas têm trazido resultados mistos, portanto não se pode descartá-los – de fato, é um tema da minha agenda de pesquisa atual, e em breve espero trazer alguns resultados preliminares, juntamente com uma resenha da experiência internacional digna do nome.

As margens de preferência em favor da produção nacional foram duramente criticadas em minhas notas técnicas, pois: (i) até hoje não foi demonstrada a eficácia das margens de preferência praticadas em observância da Lei 13.249/2010, para produtos nacionais; (ii) vão contra o esforço do Brasil em aderir ao Acordo de Compras Governamentais da Organização Mundial do Comércio[5]. Margens de preferência regionais poderiam ser até mesmo consideradas inconstitucionais por ferirem a vedação à preferência entre brasileiros — art.19, III, da Constituição.

De fato, com relação ao inciso I e § 5º: como fartamente exposto nas Notas Técnicas que coautorei, a margem de preferência vai de encontro ao esforço do Brasil em aderir ao Acordo Plurinacional de Compras Governamentais da Organização Mundial do Comércio, um acordo que tem o potencial de aumentar a concorrência pelos contratos governamentais e a transparência nas contratações, e assim reduzir o espaço para corrupção e cartelização dos mercados de compras governamentais brasileiros. O pedido de acesso foi feito em 2020!

Além disso, algumas Notas Técnicas têm relembrado que as poucas evidências disponíveis sobre a política brasileira de margens de preferência apontam para uma intervenção de baixa transparência (Rauen, 2016; Rauen, 2017). De fato, auditorias conduzidas pelo Tribunal de Contas da União (TCU) — Processo 016.783/2013-1 comprovam a falta de transparência e accountability social. Mesmo assim e apesar de existirem determinações do TCU, foram criadas e renovadas margens para, por exemplo, brinquedos. A referida política transformou-se em paradigma da falta de transparência e total descaso com a legislação e com os recursos públicos. Adicionalmente, recentemente as margens de preferência foram contestadas pela OMC.

Dos poucos estudos de avaliação realizados (mesmo que a legislação tenha exigido avaliações anuais), e que não estão disponíveis em nenhum site do Poder Executivo, não se pode concluir nada a respeito dos critérios de escolha dos produtos, serviços e setores beneficiados (muito embora seja evidente que o setor de brinquedos, um dos beneficiados, não deve ser prioritário no desenvolvimento nacional). Finalmente, o único documento disponível que trata dos impactos ex post não apresenta o uso efetivo da intervenção e sim, o infere a partir de suposições.

Além da ausência de transparência, a política das margens de preferência foi estabelecida sem a devida tradução para o sistema federal de compras. Os decretos das margens apresentavam os produtos e serviços em termos da Nomenclatura Comum do MERCOSUL – NCM, mas até hoje não se tem notícia de um conversor – oficial e amplamente divulgado – entre os códigos NCM e o CATMAT e CATSER empregados pelo sistema federal de compras. Consequentemente, não se sabe exatamente quem utilizou as margens ou mesmo, como elas poderiam ter sido utilizadas na ausência de tal conversor oficial.

Dada a insistente baixa transparência (em que pesem os esforços do TCU), associadas à ausência de informações de uso concreto e a ausência de critérios de seleção de setores, produtos e serviços beneficiados, bem como de uma análise de seu custo real, não se justifica a insistência em tal intervenção. De fato, a política brasileira de margens de preferência parece estar muito mais associada ao lobby de setores específicos do que ao estabelecimento criterioso de prioridades.

Note-se que margens de preferência não são a única maneira praticada pelo Brasil de beneficiar fornecedores locais: a legislação atual permite o desempate com base na produção doméstica ou em tecnologia desenvolvida no País. Os próprios benefícios a micro e pequenas empresas (cotas, lotes exclusivos e empate ficto) e preferências ligadas à adesão ao Processo Produtivo Básico (PPB) – notadamente para produtos de tecnologia da informação e comunicações no Plano Nacional de Banda Larga – acabam sendo apropriados por empresas brasileiras.

Finalmente, é importante lembrar que, apesar de existir previsão legal para o uso de margens, atualmente todos os decretos que as estabelecem venceram. Ou seja, atualmente nenhuma margem de preferência está em vigência (e a indústria brasileira continua existindo).

O efeito mais provável dessa nova tentativa é o aumento dos custos para a Administração sem contrapartida para a sociedade. Esse aumento de custos derivará da redução da concorrência e possível cartelização dos mercados onde ela incidir. O veto integral dos Incisos I e III e dos §§ 3º ao 5º (e seus incisos) do art. 26 é, portanto, o melhor que se poderia pensar para esta matéria.

Coordenação em compras

Para não perder o hábito, os legisladores trataram de trazer para a nova lei regulamentações até então infralegais em mais um aspecto das compras públicas:  o chamado sistema de registro de preços. Esse sistema permite, não só que a Administração pública contrate inicialmente apenas a opção da compra e depois tenha um prazo para exercê-la, como também permite agregar as compras de diversas Unidades Administrativas. O mesmo Texto para Discussão de Fiuza et al (2020) já mencionado faz um breve retrospecto histórico do uso de compras desse tipo e suas regulamentações ao longo da história brasileira.

No presente momento, a regulamentação é feita pelo Decreto 7.892/2013. A nova lei, no entanto, em seu artigo 81, traz uma detalhada regulamentação do Sistema de Registro de Preços. Ao mesmo tempo que traz novidades interessantes, como a possibilidade de um mesmo fornecedor cobrar preços diferentes de compradores diferentes, o artigo faz restrições sobre quantitativos, sobre o critério de julgamento e até mesmo veda a cobrança de preços diferentes de fornecedores diferentes a um mesmo comprador. O resultado final é nitidamente danoso ao interesse público, pelo engessamento que causa no SRP.

Em verdade, a rigor, o único texto desse artigo que deveria permanecer seria o § 5º e seus incisos, que dizem que o SRP pode ser usado para a contratação de bens e serviços, inclusive obras e serviços de engenharia, e estipula as condições. Todo o resto poderia ser tratado por decreto, pois é puramente procedimental.

A sua previsão em lei impediria modelar procedimentos que podem usar a dinâmica similar aos acordos-quadro (ou convênios-marco), e, em particular, o Sistema de Aquisições Dinâmicas, em vigor em outros países e que trazem mais agilidade para as contratações. O já referido Texto para Discussão de Fiuza et al (2020) dá vários exemplos da potencialidade dos acordos-quadros. Em particular, o Acordo-Quadro permite que a Administração conte com vários fornecedores aptos, dos quais a Unidade Administrativa pode cotar preços sujeitos a um teto e com condições mínimas de garantia e qualidade previamente homologados numa fase de pré-seleção, o que agiliza compras em situação de emergência. A redação aprovada para o sistema de registro de preços inviabiliza isso:

  1. reduz a licitação ao critério de menor preço ou maior desconto;
  2. obriga os fornecedores a igualar preço do vencedor.

Note que o PL prevê que também é possível fazer registro de preços por meio de contratação direta. Isso significa que, para valores pequenos, também a modalidade ou a dispensa seriam mais ágeis, pois o fornecedor já teria passado por todos os trâmites de habilitação e a contratação seria mais rápida. Mas mesmo compras sujeitas a licitação seriam beneficiadas, pois os compradores não precisariam alinhar-se numa padronização do bem ou serviço a ser adquirido, e poderiam “customizar” uma parte da descrição do objeto, desde que não alterassem a caracterização básica usada na fase de pré-seleção. Em ambos os casos, uma plataforma de e-commerce semelhante a um marketplace seria viabilizada.

Outro artigo que traz a regulamentação infralegal anterior para a lei é o art. 82, que regula detalhadamente a adesão à compra por SRP antes (em resposta à convocatória da intenção de registro de preços) e depois do certame — os ditos “caronas” (expressão que, aliás, o relator do PL 4253 removeu com uma emenda de redação).

Tenho plena consciência do quanto foi objeto de litígios e disputas a maior ou menor restrição a adesões dos chamados caronas a atas de registro de preços. Como relatado em Fiuza et al (2020), o atual Decreto que regula o SRP resultou de pressões do Tribunal de Contas da União (TCU). Agora tenta-se trazer para a Lei “de uma vez por todas” a regulamentação dos caronas, e com isso pacificar a questão. Deve-se reconhecer, inclusive, que é a melhor regulamentação vista até agora.

 Mas, com toda a franqueza, não só essa tentativa de regulamentação não vai resolver o problema dos caronas como vai minar os esforços do resto do próprio PL 4253 em colocar ordem nas compras.

O Art. 181 prevê a criação obrigatória de centrais de compras. O art. 12, inciso VII, prevê que “os órgãos responsáveis pelo planejamento de cada ente federativo poderão, na forma de regulamento, elaborar plano de contratações anual, com o objetivo de racionalizar as contratações dos órgãos e entidades sob sua competência, garantir o alinhamento com o seu planejamento estratégico e subsidiar a elaboração das respectivas leis orçamentárias”. Infelizmente a versão final trouxe o verbo “poderão”, em vez de “deverão”.

Com a obrigatoriedade de planos de compras e o requerimento de Planos Anuais de Contratação – como, aliás, já foi implementado pelo Poder Executivo Federal –, não pode haver espaço para improvisos. Uma compra conjunta deve reforçar o Poder de Compra do Estado e dar-lhe melhores condições de impor preços, padrões tecnológicos, de qualidade e sustentabilidade. Um Estado desorganizado que não é capaz de alinhar todos os seus órgãos em torno de uma ou poucas compras centralizadas nunca vai dominar os mercados públicos, mas sim sempre será dominado pelos seus fornecedores. Isso é inaceitável. Regulamentar a figura do carona é continuar com remendo velho em roupa nova.

Vetar todos esses parágrafos e seus incisos possibilitaria à Administração rever seus conceitos e prever Planos Anuais de Contratações conjuntos ou, no mínimo, mecanismos vinculantes de cooperação entre as Esferas Administrativas: com calendários claros e devidamente aplicados (isto é, um bom enforcement), essas Esferas podem alinhar-se nas compras de tudo em que precisarem juntar esforços. Foros de cooperação e empresas mistas de compras centralizadas como a existente na Dinamarca são exemplos de como se podem alinhar compras públicas e obter maior vantagem para a Administração Pública.

Evitando-se deixar a porta aberta para adesões posteriores, os entes federados e os diversos órgãos da Administração ver-se-ão forçados a aderir desde cedo às Intenções de Registro de Preço.

Além disso, deve ser criada uma trava para impedir que esses agentes façam suas compras isoladas. Mas isso pode ser feito por regulamento no âmbito de cada Esfera Administrativa.

Além do registro de preços, como instrumento para o exercício de opções de compras, foi engendrada na nova Lei uma nova figura, o credenciamento, mostrando que uma boa ideia sempre pode ser perdida quando se entram nos detalhes. As notas técnicas de Fiuza, Pompermayer e Rauen (2019) e Fiuza e Rauen (2019) foram incisivas em condenar a descrição dos atos previstos para o credenciamento, presentes no parágrafo único e seus incisos, do art. 79. Da maneira como seria regulamentado esse “procedimento auxiliar”, a Administração ficaria refém dos credenciados. Na primeira nota técnica, relatei como a assessoria da Comissão Temporária do PL na Câmara oferecia o credenciamento como uma forma de viabilizar os chamados Acordos-Quadros. A redação, à época, era ainda mais infeliz que a aprovada no texto final. Acredito que nossas críticas ajudaram a melhorar o texto, pois o caput e os seus três incisos são bastante defensáveis.

Mas o referido parágrafo único do art. 79 lista como deve funcionar o procedimento. Há várias semelhanças com o Sistema de Aquisição Dinâmico (SAD) europeu (Diretiva 24/2014, art. 34), só que o nosso é uma versão piorada. Há alguns problemas — dois incisos, em particular, nos preocuparam:

  1. O inciso I deste parágrafo único fala em credenciamento permanente. A experiência internacional com credenciamentos permanentes é muito negativa: os fornecedores e os burocratas se acomodam e não há pressão competitiva na sequência. Já o SAD original tem duração máxima prevista. Como o credenciamento não é um contrato, não há um mecanismo claro para reverter esse caráter “permanente” e qualquer tentativa subsequente de regulamentação estará sujeita a batalhas judiciais de credenciados que queiram manter seus privilégios – uma história cujo final é sobejamente conhecido no Brasil.
  2. O inciso II fala em distribuição da demanda entre os credenciados; juntando isso com o cadastramento permanente, ficamos com o pior dos mundos: um pool de fornecedores que sempre vai obter contratos, o que representa uma lamentável cartelização oficial, chancelada pela Administração.

O melhor, neste momento, é varrer toda a regulamentação para um decreto ou Instrução Normativa, e recomeçar o credenciamento como um procedimento que possa efetivamente auxiliar a celebração de Acordos-Quadros. Nos casos em que a Administração queira todos os agentes credenciados, deve haver um mecanismo de regulação dos preços e condições do fornecimento dos bens e serviços, ou uma negociação direta. Se não houver a pretensão de cobrir todo o mercado, o credenciamento deve ser capaz de funcionar como uma primeira fase de Acordo-Quadro, onde haja critérios que funcionem como um funil para que haja disputa por menor preço e ou melhores condições de fornecimento do bem ou serviço. A redação atual não entrega isso, e acaba por limitar o escopo do credenciamento e, pior, servir como instrumento de cartelização.

 Conclusões

 A nova lei de licitações, prestes a ser enviada ao Executivo para sanção, traz boas novidades que devemos saudar, como a reformulação e flexibilização das modalidades de licitação e dos critérios de julgamento, algum esboço de tentativa de profissionalização dos compradores, um maior apreço pelo seguro-garantia, a transposição – em maior ou menor grau – das várias fases dos processos de compras para meios digitais, e a criação do diálogo competitivo. Ao mesmo tempo, o texto peca pelo excessivo detalhamento, entrando em detalhes desnecessários sobre a forma de disputa, sobre o credenciamento, o registro de preços e o credenciamento. As margens de preferência também entraram no novo texto, o que pode dificultar, entre outros fatores, a negociação de acordos internacionais.

Em suma, houve bastante progresso, mas o excessivo nível de detalhe sugere que as primeiras emendas a esta lei não tardarão mais que o início da próxima legislatura – a não ser que haja vetos suficientes para que aspectos procedimentais sejam excluídos do texto sancionado.

 

[1] Agradeço a Bernardo Medeiros pela cuidadosa revisão e comentários feitos. Erros remanescentes são de minha inteira responsabilidade.

[2] O primeiro projeto de reforma abrangente da Lei 8.666/1993 no Congresso foi o PL 146/2003 na Câmara dos Deputados (18/3/2003), ao qual foram apensados outros oito projetos. Mas foi em 24/1/2007 que o Poder Executivo submeteu ao Congresso o PL no 7.709/2007, origem do texto agora prestes a ser sancionado. O tal PL 1292/1995, ao qual foi apensado o texto principal em sua segunda passagem pela Câmara, efetuava uma alteração bastante cirúrgica no texto, não se prestando como uma reforma abrangente.

[3] FORTINI, C. & AMORIM, R.A. (2021). Um novo olhar para a futura lei de licitações e contratos administrativos: a floresta além das árvores. Disponível em: http://www.licitacaoecontrato.com.br/artigos.html#.

[4] Essa modalidade não substitui, naturalmente, a figura das encomendas tecnológicas (lei 13.234/2016) – para um melhor detalhamento sobre o impacto previsto em contratações de inovações, recomendo a recentíssima nota técnica de André Rauen, Compras públicas de inovações segundo o texto final do PL n° 4.253/2020.

[5] Sobre os custos e benefícios da adesão a esse acordo, sugiro a leitura do Texto para Discussão de outro colega (Araújo, 2019).

 

Eduardo Pedral Sampaio Fiuza é doutor em Economia pela EPGE-FGV.

 

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O gasto público ajuda ou atrapalha o crescimento econômico? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=408&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-gasto-publico-ajuda-ou-atrapalha-o-crescimento-economico Fri, 01 Apr 2011 11:15:34 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=408 1. Motivação

Desde o início da recente crise econômica global, muitos governos têm elevado seus gastos para gerar um estímulo de curto prazo à economia. Todavia, o efeito desses estímulos sobre o crescimento econômico ainda não são plenamente conhecidos.

A importância do gasto público, inclusive da composição desse gasto, vem sendo amplamente estudada na literatura, seguindo a contribuição seminal de Barro (1990). Embora muitos estudos sugiram que existe uma relação positiva entre despesa pública e crescimento da economia, há diferentes visões sobre quais categorias de gasto promovem tal crescimento[1].

Há duas questões interessantes a analisar:

1.                      Será que nos países em desenvolvimento que apresentam rápido crescimento a relação entre o nível da despesa pública, composição dessa despesa e o crescimento econômico é distinta da que ocorre em países em desenvolvimento que apresentam taxas mais baixas de crescimento?

2.                       Qual é o papel da composição da despesa pública com respeito ao desempenho da economia dos países em desenvolvimento.

A resposta a essas questões pode ter importantes implicações sobre a gestão pública, no que diz respeito à composição da despesa governamental, uma vez que essa composição pode ter impactos diferenciados, e até opostos, sobre o crescimento de curto e de médio prazo.

2. Metodologia

2.1 Seleção da Amostra

A maioria das análises empíricas que estudam a ligação entre despesa pública, seus componentes, e o crescimento econômico combinam muitos países diferentes em suas amostras. A presente análise classifica os países em dois grupos: uma amostra de países em desenvolvimento com desempenho de crescimento similares e uma amostra de comparação incluindo países em desenvolvimento com desempenhos variados durante o período considerado (1970-2005)[2]. O primeiro grupo é composto pelos seguintes países: Coréia do Sul, Singapura, Malásia, Tailândia, Indonésia, Botswana e Ilhas Maurício; que estão entre os melhores desempenhos do mundo em termos de crescimento do Produto Nacional Bruto real per capita durante o período sob análise. O segundo grupo inclui: Chile, Costa Rica, México, Filipinas, Turquia, Uruguai e Venezuela. Estes países formam um grupo de comparação[3].

2.2 Classificação da despesa pública

Essa análise usa duas classificações alternativas de despesa pública. A despesa pública total é, primeiro, desagregada usando definição baseada em Bleaney, Gemmell, e Kneller (2001) e em Kneller, Bleaney e Gemmell (1999), que classificam a despesa, a priori, como tendo alguns componentes que são produtivos e outros improdutivos. Trata-se de um critério baseado na expectativa de impacto do gasto público na função de produção do setor privado. O conjunto de despesas produtivas é formado por aquelas referentes a: serviços públicos gerais, defesa, educação, saúde, habitação, transportes e comunicações.

Neste texto introduzimos uma classificação alternativa: despesas fundamentais versus não-fundamentais, que podem ser mais apropriadas para os países em desenvolvimento. As despesas fundamentais são: serviços públicos gerais, educação, saúde, habitação, transportes, comunicação, e combustível e energia.

A principal diferença entre as duas definições é que a última inclui a categoria “combustível e energia”, que frequentemente tem ligação estreita com outras categorias de despesa com impacto significativo sobre o crescimento. Além disso, há a exclusão da despesa com “defesa”, uma categoria sobre a qual os economistas nem sempre têm conhecimento suficiente.

3. Análise qualitativa e quantitativa

3.1 Estudo comparativo

Enquanto os países de rápido crescimento tiveram (em média) um crescimento de 5% no Produto Nacional Bruto per capita no período 1970-2005, os países do grupo de comparação cresceram apenas 1,6%. O tamanho da despesa pública como proporção do Produto Nacional Bruto é bastante próximo nos dois grupos (em torno de 21%). O déficit orçamentário é um pouco maior no grupo de comparação (1,9% do PNB contra 1,3% do PNB, em média).

Quando se comparam os componentes do gasto público, a participação das despesas consideradas como produtivas na despesa total é significativamente maior para o grupo de rápido crescimento econômico: 64% contra 50% no grupo de comparação. Outra observação interessante é que esse percentual tende a declinar significativamente para o grupo de comparação, especialmente após 1980.

Possíveis diferenças entre os dois grupos também podem estar associadas com a efetividade do governo e qualidade da governança. Em termos de efetividade[4], todos os países do primeiro grupo (com exceção da Indonésia) estão melhor ranqueados que os do segundo grupo. De modo similar, existe um grande hiato entre os dois grupos em termos de qualidade da burocracia.

3.2 Resultados empíricos

Os resultados gerais sugerem que o gasto público, especialmente os seus componentes produtivos, tem, de fato, impacto positivo e estatisticamente significante na taxa de crescimento real per capita do PNB dos países do primeiro grupo. Para os países do grupo de comparação não se pode estabelecer uma relação similar que seja estatisticamente robusta. Além disso, o efeito líquido conjunto da política fiscal (calculado como a soma dos coeficientes estimados para as despesas, receitas e resultado fiscal) é também positivo e estatisticamente significante apenas para o primeiro grupo.

Os resultados originais se mantêm quando se usa a classificação alternativa dos gastos: despesas fundamentais versus não-fundamentais. Os componentes fundamentais são, mais uma vez, estatisticamente correlacionados com o crescimento econômico apenas no primeiro grupo de países.

É fundamental reconhecer a contribuição do setor privado e da estabilidade macroeconômica para o crescimento. A inflação é negativamente correlacionada com o crescimento, principalmente no primeiro grupo, indicando que reduzir a inflação estimula o crescimento desses países e, portanto, o crescimento responde mais à estabilidade macroeconômica. As duas variáveis de controle utilizadas, de forma alternada, para capturar a influência do setor privado (investimento privado e abertura comercial) também tendem a ser fortemente significantes na explicação do crescimento do primeiro grupo de países. Esses resultados apontam para a existência de uma política econômica que cria um ambiente mais propício ao crescimento, bem como uma forte contribuição do setor privado no primeiro grupo.

Outro resultado interessante é que, quando os dois grupos são combinados em uma única estimação, a significância estatística e econômica, bem como a magnitude do efeito da despesa total sobre o crescimento, cai substancialmente. De modo similar, quando diferentes componentes do gasto público são desagregados, as despesas “produtivas” e as “fundamentais” se tornam estatisticamente não significativas para a explicação do crescimento da amostra total (primeiro e segundo grupo de países juntos).

Esses resultados indicam que quando um grupo mais heterogêneo de países em desenvolvimento (em termos de desempenho de crescimento) é incluído no estudo, cai a significância da despesa pública e de outros componentes do orçamento na explicação do crescimento econômico. Isso pode explicar porque alguns dos estudos empíricos prévios que misturaram países com diferentes padrões de crescimento não encontraram relações estatísticas significativas entre gasto público e crescimento.

3.3 Implicações para a política fiscal

Os resultados mostram que, levando em conta o impacto (negativo) da tributação sobre o crescimento, a despesa pública tem efeito positivo sobre o desempenho da economia através dos seus componentes “produtivos” e “fundamentais”, em um ambiente de política econômica em que o investimento privado, a abertura da economia, e a estabilidade macroeconômica também são indutoras de crescimento.

A análise indica que o volume de despesa pública nos setores produtivos ou fundamentais, que consistem em uma combinação de despesas correntes e despesas de capital em infraestrutura, saúde, educação e outros setores econômicos críticos para o desenvolvimento, podem ter significativo impacto conjunto sobre o crescimento. Para os formuladores de políticas públicas, esse resultado implica que o planejamento e a execução integrados de despesa nesses setores estratégicos, levando em conta as inter-relações existentes entre eles, bem como entre os seus componentes correntes e de capital, tendem a conduzir ao crescimento.

Esses resultados têm importante implicação para o debate acerca do desenho de regras fiscais em um contexto de crescimento. Muitos países em desenvolvimento, usando a “regra de ouro”[5], tentam manter o equilíbrio ou superávit nos seus orçamentos de despesa corrente, enquanto a despesa de capital é crescentemente financiada por empréstimos. Mais precisamente, sob a regra de Blanchard-Giavazzi (2002), os governos devem tomar empréstimos em termos líquidos continuamente apenas para financiar investimentos líquidos (ou seja, investimentos brutos menos a depreciação do da infraestrutura pública). Essa regra permite crescente endividamento bruto para o propósito de refinanciar dívida vincenda, desde que se mantenha a dívida líquida constante.

Em adição à “contabilidade criativa”[6], aos incentivos negativos[7], e à fragmentação e distorção do orçamento que a regra de Blanchard-Giavazzi podem gerar, outro possível problema com tal regra seria o fato de que ela não leva em conta a possível interação entre categorias setoriais da despesa pública independentemente de elas serem despesa corrente ou de capital. Sob a vigência da regra de ouro, é possível que alguns investimentos, como em hospitais e escolas, sejam plenamente financiados ao mesmo tempo em que não exista verba para financiar despesa de contratação de pessoal para funcionamento desses hospitais e escolas, bem como para sua manutenção. Dado que essas despesas correntes são essenciais para garantir o funcionamento adequado dos ativos de capital, a sua escassez resultará em serviços públicos ineficientes e, no final das contas, um peso para o país, com duvidosos efeitos sobre o crescimento econômico.

Todavia, é importante notar que para ser capaz de extrair recomendações em relação à composição da despesa pública para um país específico, com vistas a estimular o crescimento, é necessário adicionar às conclusões aqui obtidas estudos empíricos individuais sobre o país em questão. Tais estudos devem considerar características específicas do país que possivelmente afetem a composição do gasto público, assim como os outros determinantes do crescimento.

A sugestão de classificação dos gastos como “produtivos” ou “fundamentais” feita neste artigo deve ser guiada e adaptada pelas características individuais de cada país[8]. Por exemplo, em um país em que a agricultura represente um alto percentual do PNB, despesas públicas com irrigação, infraestrutura rural e energia rural devem ser consideradas como “fundamentais”, enquanto em outros países muito dependentes da exportação de produtos minerais e energia, fundos públicos alocados para aquele setor devem ser incluídos no grupo de despesas “fundamentais”.

Finalmente, dado que a análise qualitativa mostrou que a qualidade da governança, medida pela efetividade e qualidade da burocracia do governo, é consistentemente maior para o grupo de países de alto crescimento, os efeitos de grupo que são introduzidos na especificação empírica (países de rápido crescimento versus grupo de comparação) capturam parcialmente a qualidade da governança. Por isso, uma importante extensão da presente análise seria um estudo detalhado do papel dos indicadores de qualidade da governança na relação entre gasto público e crescimento econômico.

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Para ler mais sobre o tema:

Moreno-Dodson, B. 2008. “Assessing the Impact of Public Spending on Growth: An Empirical Analysis for Seven Fast-Growing Countries.” World Bank Policy Research Working Paper 4663, Washington, DC.

Referências bibliográficas:

Ang, J. B. 2009. “Do Public Investment and FDI Crowd In or Crowd Out Private Domestic Investment in Malaysia?” Applied Economics 41(7): 913–19.

Baldacci, E., B. Clements, S. Gupta, and Q. Cui. 2008. “Social Spending, Human Capital, and Growth in Developing Countries.” World Development 36(8): 1317–41.

Barro, R. J. 1990. “Government Spending in a Simple Model of Endogenous Growth.” Journal of Political Economy 98 (October): s103–s25.

Bayraktar, N., and B. Moreno-Dodson. 2010. “How Can Public Spending  Help You Grow? An Empirical Analysis for Developing Countries. World Bank Policy Research Working Paper No. 5367 (July), Washington, DC.

Benos, N. 2009. “Fiscal Policy and Economic Growth: Empirical Evidence from EU Countries.” Unpublished work, University of Ioannina.

Blanchard, Olivier J., and Francesco Giavazzi. 2002. “Current Account Deficits in the Euro Area: The End of the Feldstein Horioka Puzzle?” Brookings Papers on Economic Activity 33(2): 147–210.

Bleaney, M., N. Gemmell, and R. Kneller. 2001. “Testing the Endogenous Growth Model: Public Expenditure, Taxation, and Growth over the Long Run.” Canadian Journal of Economics 34(1): 36–57.

Bose, N., M. E. Haque, and D. R. Osborn. 2007. “Public Expenditure and Economic Growth: A Disaggregated Analysis for Developing Countries.” The Manchester School 75(5): 533–56.

Brahmbhatt, Milan. Forthcoming. “Fiscal Policy for Growth and Development in India: A Review.” Working Paper, Washington, DC.

Calvo, Oscar. Forthcoming. Peru Public Expenditure Review (PER). Washington, DC, World Bank.

Colombier, C. 2009. “Growth Effects of Fiscal Policies: An Application of Robust Modified M-Estimator.” Applied Economics 41(7): 899–912.

Ghosh, S., and A. Gregoriou. 2008. “The Composition of Government Spending and Growth: Is Current or Capital Spending Better?” Oxford Economic Papers 60 (June): 484–516.

Kneller, R., M. Bleaney, and N. Gemmell. 1999. “Fiscal Policy and Growth: Evidence from OECD Countries.” Journal of Public Economics 74(2): 171–90.

Segura-Ubiergo, A., A. Simone, S. Gupta, and Q. Cui. 2009. “New Evidence on Fiscal Adjustment and Growth in Transition Economies.” Comparative Economic Studies 52(1).


[1] Veja Moreno-Dodson (2008) e Bayraktar e Moreno-Dodson (2010) para uma detalhada revisão da literatura. Alguns dos recentes estudos nessa área são os seguintes: Bose, Haque e Osborn (2007), em um estudo focando países em desenvolvimento, encontram que a despesa de capital, especialmente na área de educação (construção de escolas, por exemplo), está positivamente correlacionada com crescimento, enquanto a despesa corrente não tem impacto significativo. Benos (2009), usando 14 países da União Européia, mostra que a realocação de componentes do gasto do governo, especialmente em direção à infraestrutura e ao capital humano, pode estimular o crescimento. Ghosh e Gregoriou (2008), analisando um grupo de 15 países em desenvolvimento, mostram que a despesa corrente tem impacto positivo no crescimento, enquanto o gasto de capital tem efeito negativo. Baldacci et al. (2008) indicam que, com o uso explícito de controles para a governança e incorporando não-linearidades, os gastos em educação e saúde dão suporte a um maior crescimento econômico nos países em desenvolvimento. Segura-Ubiergo et al. (2009) apresentam um impacto positivo do ajuste fiscal no crescimento de economias em transição. Colombier (2009), focalizando os países da OCDE, e Ang (2009), estudando o caso da Malásia, apontam a importância das despesas de capital do governo para o crescimento.

[2] O presente estudo é uma extensão de Moreno-Dodson (2008), que inclui apenas países de rápido crescimento. Moreno-Dodson mostra que a ligação entre despesa pública total e crescimento é positiva no geral, com alguns componentes de despesa sendo particularmente importantes para o crescimento. Componentes improdutivos da despesa pública são menos significantes – ou têm até mesmo impacto negativo sobre o crescimento – enquanto os componentes produtivos da despesa pública são estatisticamente significantes.

[3] A principal fonte de dados é o Government Financial Statistics, do FMI.

[4] Usando os indicadores de governança KMM.

[5] Regra que estabelece que o governo deve se endividar apenas para financiar despesa de capital. (NT)

[6] Por exemplo, classificar despesas correntes como sendo despesas de capital para viabilizar seu financiamento via dívida (NT).

[7] Por exemplo, preferência por investimentos, que podem ser financiados via dívida, a despesas correntes, que precisam ser financiados por tributação (NT)

[8] Para uma aplicação dessa metodologia a país individual ver, por exemplo, o Peru public expenditure review (Calvo, a publicar), e o World Bank Working Paper “Fiscal Policy for Growth and Development in India: a review” (Brahmbhatt, a publicar).

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