finanças públicas – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Fri, 07 Oct 2022 20:48:02 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 Poupança cai e também estimula o PIB https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3680&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=poupanca-cai-e-tambem-estimula-o-pib Fri, 07 Oct 2022 20:48:02 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3680 Poupança cai e também estimula o PIB

Maiores saques das cadernetas tiveram efeito expansivo sobre o Produto Interno Bruto, principalmente em 2022.

 

Por Roberto Macedo*

 

No ano mais crítico da pandemia de Covid-19, 2020, a captação líquida (depósitos menos retiradas) das cadernetas de poupança, conforme dados do Banco Central, foi recorde, atingindo R$ 166 bilhões no ano, e pela primeira vez o saldo final das contas superou R$ 1 trilhão. Isso resultou de três fatores principais. A pandemia levou muitos consumidores à reclusão doméstica, indo menos às compras de bens e serviços e recorrendo também ao comércio eletrônico, mesmo que em menor escala. Atuou, ainda, o efeito precaução, que expande a poupança em face de incertezas quanto ao que virá à frente. E veio o auxílio que o governo passou a pagar, parte do qual foi poupado nas cadernetas.

Nesse contexto, em 2020 o Produto Interno Bruto (PIB) caiu 3,9%. Em 2021, passou à recuperação, crescendo 4,6%, os consumidores começaram a voltar às compras e a captação líquida da poupança foi negativa em R$ 35,5 bilhões. Em 2022 esse movimento se acentuou, e até agosto a captação líquida negativa foi de R$ 85,2 bilhões, em razão do que no mesmo mês o saldo final caiu abaixo de R$ 1 trilhão – e só não caiu mais em razão do crédito de rendimentos, que o Banco Central não inclui na avaliação da captação líquida. Em agosto, esse crédito alcançou um total de R$ 6,6 bilhões.

Com isso, o crescimento do PIB se ampliou e as previsões de sua taxa de crescimento anual, segundo o boletim Focus, do Banco Central, divulgado semanalmente com estimativas de analistas do mercado financeiro, passaram de 0,28%, na primeira edição de janeiro, para 2,75%, na última de setembro.

O governo Bolsonaro vem apregoando que esse resultado decorre de suas políticas econômica e social, mas parece-me que o maior efeito veio do retorno da população às compras de bens e serviços.

A mais recente ampliação dos benefícios sociais veio em setembro, mas os citados dados da poupança correspondem ao período até agosto, quando a recuperação já se evidenciava. Lembro, também, que o citado movimento de queda da poupança começou em 2021, quando a captação líquida negativa alcançou o citado valor de R$ 35,5 bilhões, e acrescento que isso ocorreu principalmente no segundo semestre, já trazendo um estímulo ao PIB que se consolidou em 2022, com o referido valor de R$ 85,2 bilhões.

Para fins de comparação, segundo o site economania.com.br, em 13 de julho passado, a partir de fontes governamentais, o valor total dos novos benefícios – aumento de R$ 200 no Auxílio Brasil, aumento do vale-gás, do auxílio-caminhoneiro, transporte gratuito para idosos com mais de 65 anos, subsídio para a produção do etanol e auxílio para taxistas – foi estimado em R$ 40,8 bilhões, sendo que o primeiro benefício citado é o maior deles (R$ 26 bilhões).

Contudo, a questão sob análise não pode parar aqui, porque a dúvida que emerge é se a despoupança que vem acontecendo nas cadernetas tem sido toda dirigida ao consumo, uma vez que pode ser também destinada a outras aplicações em renda fixa e em renda variável. Quanto a isso, meu amigo e ex-professor o economista Carlos Antonio Rocca vem realizando uma análise ímpar do chamado fluxo de fundos da economia, ou seja, de onde o dinheiro vem e para onde ele vai.

Rocca lidera o Centro de Estudos de Mercado de Capitais (Cemec), ligado à Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (www.cemecfipe.org.br). A nota Cemec 05/2022, publicada em maio, trata da poupança financeira da economia no primeiro trimestre deste ano. Mostra que houve queda dos depósitos de poupança, conforme já assinalado, dos fundos de investimento, das ações e dos depósitos à vista, que se destinaram à compra de títulos da dívida pública, de títulos corporativos, mais depósitos a prazo e maior captação bancária, como via Letras de Crédito Imobiliário (LCIs) e Letras de Crédito do Agronegócio (LCAs).

O resultado final foi negativo, totalizando R$ 32,4 bilhões, com destaque para os depósitos de poupança, que, como já dito, devem ter contribuído para a expansão do PIB.

O relatório do segundo trimestre ainda não foi publicado, mas Rocca teve a gentileza de adiantar dados de meu interesse, abrangendo o primeiro semestre como um todo. Desta vez, nos fluxos citados, do lado das saídas o maior destaque foi para os fundos de investimentos, com queda de R$ 109 bilhões, seguida pela da poupança, no valor de R$ 62 bilhões; e, do lado das entradas, o maior aumento foi na captação bancária, que cresceu R$ 91 bilhões. Soube que a alta de juros foi determinante do lado da captação, acrescida do fato de que papéis como LCIs e LCAs são isentos do Imposto de Renda.

Com os dados semestrais, o efeito da queda da poupança parece menor, porque foi de R$ 10,2 bilhões no segundo trimestre, o que contrasta com outros valores apresentados. Em retrospecto, creio ser claro o efeito do total das quedas ampliando o consumo, mas tenho mais a aprender com o professor Rocca, em particular como entra o aumento da renda em cálculos como os apresentados.

 

* Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 6 de outubro de 2022.

 

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A queda da poupança em 2022 https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3648&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-queda-da-poupanca-em-2022 Tue, 12 Jul 2022 23:22:46 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3648 A queda da poupança em 2022

 

Por Roberto Macedo* 

 

O Banco Central acabou de publicar seu relatório mensal sobre a caderneta de poupança, com dados mensais até junho de 2022. Na publicação, esses dados aparecem junto com os dados mensais de 2019, 2020 e 2021, cobrindo assim os três últimos anos e o primeiro semestre de 2022.

Este último semestre mostrou um comportamento atípico, pois se comparado com os primeiros semestres do período 2019-2021, foi o que mostrou mais meses (cinco) de capitalização líquida (depósitos menos retiradas) negativa, mesmo com o aumento dos rendimentos creditados que subiram. Estes voltaram a ser 0,5% ao mês mais o valor da taxa referencial, que voltou a ser positivo, depois de muito tempo com o valor zero. Especificamente, a última remuneração mensal total, divulgada pelo Banco Central em 7 de julho, foi de 0,7008.

O comportamento da poupança no primeiro semestre de 2022 contrastou mais fortemente com o que aconteceu com ela em 2020, que teve apenas dois meses de captação líquida durante todo o ano, e o saldo final de todas as contas passou de R$ 845 bilhões em dezembro de 2019 para R$ 1,035 trilhão no mesmo mês de 2020, resultado do auxílio emergencial de R$ 600 que o governo federal pagou em 2020, que muitos depositantes preferiram poupar.

Olhando à frente, a perspectiva é de um auxílio adicional de R$ 200, mas em cima dos R$ 400 do Auxílio Brasil. Talvez muita gente optará por poupá-lo no todo ou em parte, mas sem o maior impacto do auxílio emergencial de 2020.

Outro dado interessante é que o saldo final de todas as contas no mês de junho de 2022 foi de R$ 1,013 trilhão, abaixo do valor de R$ 1,030 trilhão em 2021. Ou seja, uma queda de R$ 17 bilhões. Isso apesar de as contas de poupança terem recebido rendimentos de R$ 30,5 bilhões durante do ano 2021 e R$ 33,5 bilhões no primeiro trimestre de 2022. Ou seja, sem esses R$ 64 bilhões o saldo final de todas as contas teria caído muito mais.

Noutra visão, no seu todo e de um modo geral, os depositantes da caderneta de poupança passaram a usá-la para suprir suas carências de renda em 2021 e 2022, na sua média mantendo os seus saldos finais, mas consumindo o que veio de rendimentos mensais. Mas essa é uma das finalidades da poupança, enfrentar tempos de dificuldades. E esses movimentos da poupança sinalizam que elas existem e estão sendo enfrentadas.

 

* Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no site da Fundação Espaço Democrático, em 12 de julho de 2022.

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Dívidas judiciais: pagamento, parcelamento e exceções ao teto de gastos https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3619&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=dividas-judiciais-pagamento-parcelamento-e-excecoes-ao-teto-de-gastos Wed, 08 Jun 2022 19:20:21 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3619 Dívidas judiciais: pagamento, parcelamento e exceções ao teto de gastos

As emendas constitucionais 113 e 114, ambas de 2021, criaram um conjunto complexo de regras para pagamento de dívidas judiciais da União, definindo limites para pagamento ou postergação, e inclusão ou não no teto de gastos. Além da complexidade, vários analistas e técnicos do Congresso apontaram como problema básico dessas regras a tendência ao acúmulo acelerado de precatórios não pagos. Como a regra vale até 2026, tenderia a haver um grande estoque de dívidas judiciais a ser pago em 2027. Isso aponta para provável alteração da regra antes de 2027, que introduza novo parcelamento e postergação.

A presente nota tem dois objetivos. O primeiro é apresentar um esquema que busque simplificar o entendimento das regras em vigor, com o intuito de ser um guia rápido para consultas.

O segundo é utilizar os poucos dados já apresentados pela Secretaria do Tesouro Nacional e pela Secretaria de Orçamentos Federais (SOF) quanto ao pagamento e adiamento de precatórios para checar se a tendência de acúmulo acelerado está, de fato, ocorrendo na prática.

I – Descrição esquemática das regras relativas a precatórios: inclusão ou não no teto de gastos e inclusão ou não no limite de pagamento

A nova redação constitucional trazida pelas ECs 113 e 114 criou nada menos que sete situações distintas para o pagamento de débitos oriundos de sentenças transitadas em julgado (precatórios e requisições de pequeno valor – RPV) quanto a: 

  1. Parcelamento ou pagamento integral no exercício em que a justiça determina que sejam pagos;
  2. Serem ou não computados no teto de gastos.

A figura abaixo apresenta essas sete situações:

 

  1. Vejamos cada uma dessas situações. Notas de rodapé são inseridas para indicar o dispositivo constitucional que estipula cada regra.As RPVs já tinham prioridade de pagamento sobre as demais dívidas judiciais antes das ECs 113 e 114. A edição destas duas emendas estabeleceu um limite máximo para pagamento de dívidas judiciais em cada exercício (a ser comentado adiante), mas colocou as RPVs em primeiro lugar na fila. Logo, se o montante de RPV for grande, menor será o espaço para pagamento de precatórios. Por isso, o pagamento das RPVs:1) Requisições de pequeno valor (RPV) devidas no exercício
    1. DIMINUEM o espaço disponível para o pagamento das demais despesas judiciais incluídas no limite de pagamento;
    2. SÃO computadas no teto de gastos.

 

 

2) Precatórios devidos no exercício ATÉ o limite imposto para o pagamento de despesas judiciais

A EC 114 criou um limite máximo para pagamento de dívidas judiciais em cada exercício financeiro. Os precatórios pagos dentro desse limite:

  1. Por definição, SÃO afetadas pelo limite de pagamento de despesas judiciais;
  2. SÃO computados no teto de gastos.

 

 

3) Precatórios devidos no exercício e não pagos por estarem ACIMA do limite imposto ao pagamento de despesas judiciais. 

 

Esses precatórios se dividem em dois subgrupos:

3.1) Podem ser pagos à vista se o credor aceitar desconto de 40%. Nesse caso:

  1. a) Estão FORA do limite imposto ao pagamento de despesas judiciais;
  2. b) NÃO são computados no teto de gastos.

3.2) Não havendo o pagamento com desconto, o valor devido fica postergado para os exercícios seguintes. Nesse caso: 

  1. a) Serão afetados pelo limite imposto ao pagamento de despesas judiciais nos exercícios futuros em que vierem a ser pagos;
  2. b) São computados no teto de gastos nos exercícios futuros em que vierem a ser pagos.

 

4) Parcelamentos de precatórios de alto valor:

Antes da edição das ECs 113 e 114 já havia a possibilidade de parcelamento de pagamento de precatórios de alto valor, que continua válida. Os pagamentos desses valores parcelados: 

a) Estão FORA do limite imposto ao pagamento de despesas judiciais;

B) NÃO são computados no teto de gastos.

 

 

5) Correção monetária de precatórios inscritos no exercício:

É usual que a Justiça determine o pagamento de complementação de precatórios, por conta de correção monetária dos valores devidos. Esses pagamentos:

a) Estão FORA do limite imposto ao pagamento de despesas judiciais;

b) São computados no teto de gastos.

 

 

6) Precatórios devidos aos estados e municípios relacionados ao Fundef, que serão pagos em 3 parcelas anuais:

Há precatórios de alto valor devidos aos estados e municípios, por pagamentos a menor da União ao Fundef. Esses valores foram parcelados em 3 anos e:

  1. Estão FORA do limite imposto ao pagamento de despesas judiciais;
  2. NÃO são computados no teto de gastos.

 

7) Precatórios a serem quitados mediante acerto de contas (quitação de dívidas e obrigações diversas com a União):

Para outros precatórios da União devidos a estados e municípios, que não os relacionados ao Fundef, ou precatórios detidos por pessoas físicas ou jurídicas no setor privado, foi prevista a possibilidade de encontro de contas, cancelando-se valores devidos à União ou utilizando-se para transações futuras com a União. Os registros das despesas referentes a essas transações:

c) Estão FORA do limite imposto ao pagamento de despesas judiciais;

d) NÃO são computados no teto de gastos.

 

 

II – A tendência ao acúmulo acelerado de precatórios não pagos

As sete possibilidades acima apontam o risco de haver, a cada ano, o aumento do estoque de precatórios não pagos. Esse estoque será tão maior quanto:

a) maior for o crescimento de RPV, que têm precedência sobre os precatórios no uso do limite de pagamentos (seção 1, acima)

b) maior o descasamento entre a taxa de correção do limite de pagamentos de dívidas judiciais (que é dada pelo IPCA do ano anterior) e a taxa de crescimento dos pagamentos de precatórios determinados pela justiça;

c) menor for o uso da opção de pagamento à vista com desconto (seção 3.1, acima) ou da opção de fazer transações com a União usando precatórios (seção 7, acima).

A presente seção faz uma avaliação quantitativa do crescimento do estoque de precatórios não pagos, a partir dos poucos números que a STN e a SOF já divulgaram a respeito. Para tanto, não se faz aqui qualquer consideração sobre o teto de gastos. O único objetivo é avaliar a tendência de acúmulo de precatórios não pagos. 

A Tabela 1 apresenta esse exercício e mostra que, mesmo com hipóteses bastante otimistas em relação aos fatores (a), (b) e (c) que influenciam a trajetória de acúmulo dos precatórios, haveria um crescimento de 54% no estoque devido e não pago em apenas um ano. Isso claramente prenuncia um acúmulo insustentável de obrigações.

Tabela 1 – Grandes números dos limites e pagamentos de precatórios em 2022 e simulações para 2023 (R$ bilhões)

Fonte: 2º Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias e simulações do autor.

 

Começando a descrição pelos dados referentes a 2022 temos, na linha (A), que o limite total para pagamento de dívidas judiciais no exercício é de R$ 40,5 bilhões. A linha (B) mostra que há R$ 19,9 bilhões em RPV a pagar, que têm precedência na fila de pagamento (seção 1, acima). Logo, restaria como limite para pagar os demais precatórios apenas R$ 20,6 bilhões (linha C).

O estoque de precatórios sujeitos ao limite é de R$ 42,8 bilhões (linha D). Esse montante já exclui todos aqueles que, conforme descritos na seção I, não se submetem ao limite (seções 4,5 e 6, acima).

A linha (E) contém os precatórios que, em decorrência do limite de pagamento constitucional, não foram pagos em anos anteriores (seção 3.2, acima). Como 2022 é o primeiro ano de vigência do limite, o valor é zero.

A linha (F) registra os precatórios devidos que foram usados pelos credores para acertos de dívidas ou pagamentos à União (seções 3.1 e 7, acima). Como 2022 é o primeiro ano, supõe-se que não tenha havido tempo para essas negociações e, portanto, nada se abateu com esses instrumentos.

A linha (G) registra o saldo líquido de precatórios a pagar e que estão sujeitos ao limite. Seu valor é dado pela soma dos precatórios inscritos, menos os que foram abatidos por transações com a União, mais os que não foram pagos em anos anteriores. 

A linha (H) mostra a diferença entre o limite de pagamentos e o valor de precatórios a pagar, registrando, assim, o saldo que fica para ser pago em exercícios anteriores. A estimativa do Tesouro e da SOF para 2022 está em torno de R$ 22 bilhões.

Passemos, agora, a fazer projeções para o que ocorreria em 2023. Em primeiro lugar é preciso estimar qual será o limite para pagamento de precatórios em 2023. Foi feita aqui uma hipótese de que o IPCA de 2022 será de 9,5% e, portanto, essa será a correção do limite. Com isso, a linha (A) registra um limite de pagamento para 2023 de R$ 44,3 bilhões.

De forma otimista, supõe-se que tanto as RPVs (linha B) quanto os precatórios inscritos no ano (linha D) cresçam apenas 6%: abaixo, portanto, do limite, o que abre espaço para mais pagamentos e trabalha contra a tese de acúmulo excessivo de precatórios não pagos.

Supõe-se que 15% do total de precatórios devidos em 2023 seja objeto de acordo para pagamento com desconto ou usado em transações com a União (linha F). Esse valor, de R$ 10,1 bilhões passa a ser pago fora do limite. Tal hipótese também é otimista, pois as simulações de Tesouro e SOF costumam usar o percentual de 10%. 

Porém, mesmo com esse abatimento, ainda restarão R$ 57,5 bilhões a pagar (linha G), valor que extrapola o limite de pagamentos em R$ 34,3 bilhões.

Ou seja, ao final do segundo ano de vigência dos limites de pagamento de precatórios, o saldo de débitos a pagar terá crescido 54% em relação ao saldo deixado em 2022 (linha I). Isso ocorre a despeito das hipóteses otimistas aqui assumidas. Além disso, a EC 103 estabeleceu como fator de correção das dívidas judiciais a taxa Selic. Tendo em vista o forte aumento dessa taxa ao longo de 2022, e a perspectiva de sua permanência em nível elevado em 2023, temos outro fator de crescimento acelerado do estoque de precatórios não pagos.

Logo, parece caracterizada uma trajetória de crescimento acelerado do saldo de precatórios não pagos. Em 2027, quando acabar a regra atual, possivelmente haverá nova prorrogação, pois não será possível quitar todo o estoque de uma só vez. Isso será similar ao que ocorre com estados e municípios, cujos precatórios são seguidas vezes parcelados ou prorrogados.

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Contas públicas: um trabalho a recuperar e aplicar https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3599&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=contas-publicas-um-trabalho-a-recuperar-e-aplicar Thu, 07 Apr 2022 22:11:53 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3599 Contas públicas: um trabalho a recuperar e aplicar

 

Estudo feito pelo Banco Mundial em 2017, a pedido do governo Temer, seria um bom começo para presidente que assumir em 2023.

 

Por Roberto Macedo

 

É sabido que a situação das contas públicas brasileiras é lastimável. Cronicamente desequilibradas nos seus aspectos econômico-financeiros, levam a endividamento exagerado, que paga juros altos, prejudica o crescimento econômico e alimenta incertezas quanto à solvência da dívida pública, o que inibe investimentos privados e repercute negativamente sobre mercados como o de câmbio. Os impostos carecem de reformas – projetos nessa linha existem, mas a coisa não anda ou anda mal. E, do lado das despesas, elas só tendem a aumentar, e sem os cuidados necessários quanto à sua eficácia e eficiência.

Essa questão fiscal é o grande nó que emperra a gestão governamental e prejudica o avanço econômico-social do Brasil, que tem ficado para trás na corrida internacional deste avanço. Carece de estudos aprofundados, que levassem a propostas concretas de solução dos muitos e complexos problemas existentes. Da atual administração não se pode esperar nada, pois é pautada pelo desgoverno. O presidente que assumir ou reassumir em 2023 terá de se debruçar sobre o problema logo após o resultado da eleição, empenhar-se em buscar um profundo e efetivo diagnóstico do assunto e avançar na execução das mudanças propostas.

Um bom começo seria um documento do Banco Mundial intitulado Um ajuste justo – análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil, que pode ser encontrado buscando esse título no Google. Concluído em 2017, teve a colaboração de dezenas de especialistas, e sugiro que seja consultado por estudiosos do assunto, cidadãos em geral e, particularmente, pelos candidatos a presidente da República e seus assessores.

Creio que esse estudo tenha se perdido por desconhecimento, desinteresse ou falta de empenho do governo que se seguiu, que efetivamente não se pauta por um plano de reestruturação fiscal e tem até contribuído para agravar ainda mais os problemas das contas públicas. O texto tem 160 páginas, lista os membros da equipe do Banco Mundial que o elaboraram, a pedido do governo Temer, num trabalho que também contou com especialistas brasileiros e internacionais, e recebeu comentários de vários integrantes da equipe econômica de então, de outros funcionários do governo federal, de colaboradores do Banco Mundial e de Teresa Ter-Minassian, ex-diretora do Departamento de Assuntos Fiscais do Fundo Monetário Internacional (FMI), em cuja condição participou de várias missões ao Brasil desde a década de 1990 e tratava de questões ligadas ao País.

Para quem não quiser encarar as 160 páginas do texto, uma boa visão vem das 16 páginas iniciais, que abrangem um prefácio, um sumário na forma de índice e um resumo executivo, este com dez páginas.

Alguns trechos destacam a importância do conteúdo: “O principal achado de nossa análise é que alguns programas governamentais beneficiam os ricos mais que os pobres, além de não atingir de forma eficaz os seus objetivos. (…) A análise é baseada nas melhores práticas internacionais e na revisão da eficiência dos gastos entre as diferentes entidades e programas governamentais. Com ela, queremos estimular que os debates considerem não apenas a alocação dos recursos públicos, mas também as premissas que devem nortear os gastos de forma a promover a eficácia nos serviços prestados e igualdade social. (…) é um grande desafio. Abrangerá mais de um mandato presidencial e exigirá um diálogo extenso, incluindo governos subnacionais, movimentos sociais, sindicatos, associações empresariais e muitos outros grupos. Acreditamos que, quanto antes o País iniciar esse debate e enfrentar seus problemas, mais cedo será possível transformar sua realidade e retomar o caminho da prosperidade compartilhada com todos”.

O resumo executivo termina com tabela de uma página que sintetiza as opções de políticas públicas para os setores analisados e seu impacto na eficiência, na equidade e no potencial de economia fiscal – este num período que, na data do relatório, se estenderia até 2026. Esse potencial alcançaria 8,36% do PIB, um valor expressivo, que dá substância ao termo ajuste que marca o título do documento. Seria um ajuste mesmo.

Para administrar projeto como este, entendo necessária a recriação do Ministério do Planejamento, cujas atividades passaram ao Ministério da Economia, onde ficam em posição secundária, pois este é muito voltado para o dia a dia das finanças do governo, sem que seu ministro dê a devida atenção a um projeto voltado para um horizonte mais longo, como este que o documento elaborado pelo Banco Mundial propõe.

É indispensável que o novo ou reeleito presidente assuma a liderança do projeto de levar adiante um ajuste como este, num contexto de articulação política em que também cobraria medidas para serem implementadas já no seu mandato. O objetivo, em última análise, seria o de retirar o Brasil da armadilha da renda média em que caiu a partir dos anos 1980 – da qual até agora não saiu –, em larga medida armada por governos incompetentes que o País teve na maior parte desse período.

 

 

Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 7 de abril  de 2022.

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Planejamento de Médio Prazo do Processo Orçamentário https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3596&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=planejamento-de-medio-prazo-do-processo-orcamentario Fri, 18 Mar 2022 19:56:10 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3596 Planejamento de Médio Prazo do Processo Orçamentário

 

Por Helio Tollini e Paulo Bijos[1]

 

Uma parte significativa das decisões relativas a receitas e despesas tem implicações que se prolongam bem além do habitual ciclo de uma lei orçamentária anual (LOA). O horizonte temporal curto da LOA, portanto, não estimula que o planejamento fiscal e o planejamento estratégico das despesas sejam consistentes, pois tende a desconsiderar o impacto plurianual das decisões tomadas no momento presente.

Quando o foco do processo orçamentário é apenas o exercício de referência, o interesse em propor modificações nas legislações que provocam rigidez orçamentária é menor, visto que os ganhos de flexibilidade tendem a ocorrer nos exercícios seguintes. Se o foco orçamentário for o médio prazo, haverá estímulos para que boa parte dos ganhos de flexibilidade seja incorporada ao novo processo alocativo.

Um instrumento adotado por diversos países, chamado Quadro da Despesa de Médio-Prazo – QDMP (em inglês, Medium-Term Expenditure Framework – MTEF)[2], permite ao governo ampliar o horizonte da alocação dos recursos públicos para além do calendário orçamentário anual. O QDMP compatibiliza as prioridades estratégicas de cada setor com limites alocativos plurianuais definidos conforme a capacidade fiscal do Estado. Para tal, estabelece com antecedência, para o médio prazo, tetos gerais anuais em consonância com os objetivos de longo prazo da política fiscal, e subtetos de gastos específicos por área temática conforme as prioridades definidas setorialmente.

O QDMP costuma ser construído com amparo em um Cenário Fiscal de Médio Prazo (CFMP), que dilata o horizonte da política fiscal ao apresentar a estimativa de evolução plurianual dos grandes agregados de receitas e despesas. Nesse modelo de planejamento de médio prazo, a limitação “de cima para baixo” (top-down) oriunda do CFMP interage com a programação setorial de gastos “de baixo para cima” (bottom-up), decorrente do cenário-base (baseline) e das novas iniciativas. Os objetivos da adoção conjunta de um CFMP/QDMP seriam impor, com antecedência, metas fiscais estabelecidas para o médio prazo, em consonância com os objetivos de longo prazo da política fiscal, e alocar recursos públicos em linha com essa restrição fiscal e com prioridades estratégicas definidas de antemão.

  • Há diferenças acentuadas entre modelos de QDMP adotados atualmente nos diversos países. Caso venha a ser utilizado no Brasil, tanto no governo federal quanto eventualmente em entes subnacionais, escolhas precisarão ser feitas no que diz respeito:
  • À abrangência (inclui ou não a seguridade social; considera ou não somente as despesas primárias; contempla ou não apenas as despesas correntes);
  • Ao horizonte temporal (dois, três, quatro ou até cinco exercícios financeiros);
  • Ao caráter dos limites impostos aos exercícios futuros (apenas indicativos ou impositivos; irreversíveis ou não);
  • À forma de se desdobrar limites (por função, por programa, por ministério, por setor ou por área);
  • Ao grau de detalhamento da programação objeto do teto (agregadas por grupo de despesa, desdobradas por programas ou por ações);
  • À atualização dos limites (se ajustados pela inflação ou outro critério);
  • Às reservas de programação (para atender mudanças na conjuntura econômica; para atender novas políticas públicas);
  • À previsão de “gatilhos” (para disciplinar o excepcional descumprimento de limites e suas respectivas consequências); e
  • Ao papel do Parlamento (exigência de aprovação; apenas requerimento de ser informado; ou nenhum papel).

Se adaptado com base na exitosa experiência sueca, o teto global de gastos seria de caráter impositivo e irretratável[3], fixado anualmente na LDO para o médio prazo (até o exercício “t+2”), em base móvel, por proposta do Poder Executivo. Os subtetos seriam definidos por área temática, e impositivos apenas entre a LDO recém-aprovada e o projeto de LOA a ser submetido ao Congresso dois meses depois (e de caráter indicativo para os exercícios futuros). As atribuições do Congresso Nacional na aplicação dos recursos públicos seriam reforçadas, pois passaria a definir antecipadamente o montante máximo de gastos e como se daria a divisão desse montante entre as áreas temáticas.

Dentre outras, destacam-se as seguintes vantagens de se elaborar um QDMP em relação à orçamentação anual tradicional:

  • Impor maior disciplina fiscal ao limitar a elaboração e a execução dos orçamentos nos anos seguintes a níveis consistentes com os objetivos fiscais e setoriais de médio e longo prazos;
  • Melhorar a priorização estratégica dos gastos ao discutir antecipadamente a programação setorial dos exercícios futuros, expondo de forma clara a evolução das despesas associadas às diversas políticas públicas vis-à-vis as limitações do espaço fiscal disponível;
  • Permitir a identificação antecipada de medidas corretivas a serem adotadas para contornar rigidezes, obstáculos e eventual degradação das contas públicas no médio prazo, de forma a viabilizar os subtetos indicativos pretendidos para os exercícios seguintes;
  • Fomentar maior eficiência no planejamento intertemporal dos gastos, ao proporcionar maior previsibilidade e transparência aos gestores setoriais quanto aos recursos de que disporão nos orçamentos futuros; e
  • Reforçar aspectos antes relegados a segundo plano num ambiente cujo foco é o curto prazo, fomentando melhorias para o planejamento setorial, a avaliação de desempenho, a responsabilização e a transparência do processo alocativo.

Ademais, o arcabouço CFMP/QDMP seria uma alternativa mais interessante do que o atual Novo Regime Fiscal (NRF) para nortear a política fiscal, pois manteria a rigidez fiscal no médio prazo, com a vantagem de ser flexível no longo prazo. Por ter horizonte temporal mais curto e base móvel, admitiria a correção de curso da política fiscal no médio prazo, em sintonia com a alteração dos indicadores econômicos.

Adicionalmente, informaria melhor o Congresso Nacional a respeito da evolução das contas públicas nos anos subsequentes, dotando-o de melhores condições para calibrar o impacto financeiro de suas decisões de acordo com a trajetória desejada de evolução da dívida pública. A participação de uma Instituição Fiscal Independente robusteceria esse modelo com apoio técnico na elaboração e no monitoramento de cenários fiscais.

A mudança fundamental é o deslocamento do foco do processo de elaboração orçamentária do curto para o médio prazo, com afetação direta da forma como os recursos públicos são alocados.

Quanto ao Plano Plurianual (PPA), dentro desse novo arcabouço ele se torna dispensável enquanto instrumento legal de planejamento orçamentário no médio prazo. O PPA possui limitações estruturais que o tornaram ineficaz. Apesar dos diversos formatos tentados desde o início da década de 1990, nunca conseguiu determinar a alocação plurianual dos recursos públicos. No novo modelo de planejamento orçamentário, a tríade de “leis orçamentárias” (PPA, LDO e LOA) cederia lugar a apenas duas – LDO e LOA. A LDO incorporaria as funções de CFMP/QDMP e a LOA continuaria aprovando despesas anuais à luz de uma estrutura fiscal de médio prazo. O planejamento plurianual, em suma, não mais assumiria a forma de “lei de PPA”, mas a atividade de planejamento, evidentemente, não deixaria de existir, sobretudo em nível setorial. O planejamento central, por sua vez, poderia materializar-se por meio do ainda pouco explorado “plano de governo” a que se refere o art. 84, inciso XI, da Constituição. Para esse instrumento já existente poderia ser canalizado todo aprendizado obtido a partir da experiência histórica com o PPA.

Adicionalmente, o modelo trazido à baila deveria ser idealmente complementado por um processo de Revisão do Gasto Público (em inglês, Spending Review), a fim de evitar o comportamento inercial da “base orçamentária” existente. É preciso institucionalizar um processo de reavaliação periódica de programas, ações, vinculações orçamentárias, gastos tributários e subsídios (financeiros e creditícios). A Revisão do Gasto Público teria o objetivo de aprimorar a alocação de recursos escassos em favor de programações que propiciem maiores benefícios à sociedade. Isso permite que a redução de gastos ineficientes abra espaço fiscal para incorporação de outros mais eficientes (evitando-se também os malfadados “cortes lineares”, que muitas vezes atingem despesas correntes essenciais e investimentos). Para tal, propõem-se revisões específicas (de um ou alguns poucos setores escolhidos) no âmbito de cada projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), e uma revisão mais abrangente apresentada juntamente com o projeto de LDO do último ano do mandato presidencial (para que suas conclusões eventualmente sirvam de base para discussões políticas dos candidatos à Presidência nas eleições do mesmo ano).

Por fim, a LOA precisa dialogar melhor com a abordagem da orçamentação por desempenho (em inglês, performance budgeting). Em sua estruturação moderna, por programas, a LOA deve ser encarada como leis de fins. Isso significa que as ações orçamentárias não são “peças soltas” no ambiente de planejamento governamental. As ações finalísticas do orçamento têm compromisso com entregas na forma de bens e serviços, que por sua vez visam contribuir para a melhoria das condições socioeconômicas do País. Por isso as ações finalísticas da LOA são expressamente dotadas de produtos e respectivas “metas físicas”, que quantificam as entregas associadas a cada dotação orçamentária. Essa informação deve ser levada mais a sério. A fixação e a execução das metas físicas precisam ser consistentes e transparentes, de forma a permitir o acompanhamento da eficácia das ações orçamentárias. A LOA já divulga metas físicas, desde 1987, mas não há qualquer justificativa para os valores fixados para as metas das despesas discricionárias, nem controle social sobre a execução delas. O ideal é que haja divulgação de justificativa específica para o valor de cada meta física fixada, assim como a publicização de sua execução ao longo do ano, de forma a permitir o controle social da eficácia da ação governamental. O argumento de que tal informação eventualmente “burocratizaria” o processo orçamentário não procede. No mundo contemporâneo, altamente digitalizado, não deveria haver óbices para a disponibilização dessas informações à sociedade.

 

Referências

ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE). Budgeting and public expenditures in OECD countries. Paris: OECD – Publishing, 2019.

Obs.: aos leitores interessados nos temas tratados neste artigo, sugerimos adiante algumas referências pertinentes, em caráter não exaustivo:

AFONSO, José Roberto; RIBEIRO, Leonardo. Revisão dos gastos públicos no Brasil. Revista Conjuntura Econômica, set. 2020.

ALMEIDA, Dayson P.B.; BIJOS, Paulo R.S. Planejamento e orçamento no Brasil: propostas de inovação. In: SALTO, Felipe S.; PELLEGRINI, Josué A. (org.). Contas públicas no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2020.

BIJOS, Paulo R.S. Spending Review e MTEF – caminhos para maior estabilidade? [Publicação preliminar]. In: Governança Orçamentária no Brasil. COUTO, Leandro F.; RODRIGUES, Júlia M. (org.). Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 2021.

COURI, Daniel V.; BIJOS, Paulo R.S. Subsídios para uma reforma orçamentária no Brasil. In: Reconstrução: o Brasil nos anos 20. SALTO, Felipe; VILLAVERDE, João; KARPUSKA, Laura (org.). Brasília: Série IDP/Saraiva, 2022.

FORTIS, Martin; GASPARINI, Carlos E. Plurianualidade: marcos de gasto de médio prazo. In: GIMENE, Márcio. (org.). Planejamento, orçamento e sustentabilidade fiscal. Brasília, DF: Assecor, 2020.

MACIEL, Pedro J.; ARAÚJO, Rafael C. Regras fiscais no Brasil: proposta de harmonização do arcabouço fiscal de médio prazo. In: GIAMBIAGI, Fábio. (org.). O futuro do Brasil. São Paulo: Atlas, 2021.

SALTO, Felipe S. O tripé orçamentário Couri-Bijos. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 15 mar. 2022.

TOLLINI, Hélio. Deslocando o foco orçamentário do curto para o médio prazo. In: GIAMBIAGI, F.; FERREIRA, S.G.; AMBRÓZIO, A.M.H. (org). Reforma do Estado brasileiro: transformando a atuação do governo. São Paulo: Atlas, 2020.

 

[1] Consultores de Orçamento da Câmara dos Deputados.

[2] Estudo da OCDE realizado em 2019 examinou 34 países membros e concluiu que 31 deles adotam o QDMP. Desses, 25 praticam um modelo de base móvel, em que anualmente o exercício financeiro transcorrido é retirado e outro futuro acrescido. Os demais seis países utilizam periodicidade fixa, normalmente coincidente com o ciclo político (OCDE, 2019).

[3] O que não se confunde com ausência de válvulas de escape no modelo.

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O papel das Instituições Fiscais Independentes (IFIs) e o caso da IFI do Brasil https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3589&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-papel-das-instituicoes-fiscais-independentes-ifis-e-o-caso-da-ifi-do-brasil Mon, 07 Mar 2022 20:33:15 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3589 O papel das Instituições Fiscais Independentes (IFIs) e o caso da IFI do Brasil*

 

Por Felipe Scudeler Salto[1] e Rafael da Rocha Mendonça Bacciotti[2]

 

  1. O que esperar de uma IFI?

As Instituições Fiscais Independentes (IFIs), ou Conselhos Fiscais, são organismos públicos com mandato para realizar análises técnicas e apartidárias sobre política fiscal e orçamentária. O objetivo é melhorar a disciplina fiscal, promover maior transparência das contas públicas e elevar a qualidade do debate público nas temáticas de finanças públicas e economia em geral.

A ampliação do número de conselhos fiscais ao redor do mundo representa uma inovação institucional importante no campo da política fiscal (Mulas-Granados, 2018). Em resposta aos efeitos negativos da crise econômica e financeira de 2008, diversos países, particularmente, os que compõem a Organização para a Cooperação do Desenvolvimento Econômico (OCDE), criaram instituições fiscais independentes para fortalecer a credibilidade da política fiscal (Kopits, 2016).

Essa tendência de aumento é observada, principalmente, entre os países membros da União Europeia, tendo ganhado mais força com a aprovação, no Parlamento, do Regulamento nº 4733[3], de 2013. Como parte da resposta da região à crise da dívida pública, o Regulamento atribuiu mandato a um “órgão independente”, em nível nacional, para monitorar o cumprimento das regras da política fiscal e fornecer ou endossar previsões macroeconômicas e fiscais realistas para a elaboração do orçamento (FMI, 2013 e Ribeiro, 2020).

A dinâmica desfavorável do nível de endividamento foi amplificada pelas políticas de estímulo e pelas perdas acumuladas de receitas. Somou-se a isso o fato de o conjunto de regras numéricas utilizadas para controlar a discricionariedade da política fiscal, no processo orçamentário, não garantir, isoladamente, a condução prudente das contas públicas. Esses fatores favoreceram o surgimento de fiscal watchdogs (vigilantes ou cães de guarda), no pós-crise, com apoio crescente obtido junto aos organismos multilaterais.

A OCDE, por exemplo, divulgou, em 2014, os princípios orientadores para o design e operacionalização das IFIs. Trata-se de codificação de valores mínimos de governança que resultou de discussões e sistematização de boas práticas –, reconhecendo o potencial papel positivo dessas instituições[4].

O Fundo Monetário Internacional, por sua vez, mapeia a existência de 39 IFIs operando em 2016 (último levantamento disponível)[5], 25 das quais apareceram depois da crise econômica e financeira de 2008, como se observa no Gráfico 1.  As IFIs veteranas, existentes antes da crise, como o “Congressional Budget Office” (CBO) dos Estados Unidos e o caso pioneiro na Holanda – “Central Planning Bureau” (CPB) –, diferem da nova geração de IFIs, por terem aparecido em resposta a eventos históricos locais e  singulares (Bjios, 2014).

 

 

  1. Revisão de literatura: viés deficitário da política fiscal

Do ponto de vista teórico, as IFIs aparecem, na literatura, ao lado das regras fiscais (mecanismos que introduzem, por certo período, restrições ou limites quantitativos para alguma das variáveis fiscais como: dívida, resultado, resultado estrutural, despesa ou receita). São tidas como soluções institucionais mais comuns para atenuar o viés deficitário (tendência crescente do déficit e do nível de endividamento público ao longo do tempo) e a pró-ciclicidade do gasto público (tendência a gastar receitas extraordinárias sobretudo nos momentos de alta do ciclo econômico ao invés de poupá-las para que possam ser utilizadas para estimular o retorno da atividade econômico para o equilíbrio nos momentos de baixa), que acentua a volatilidade do ciclo econômico.

A literatura documenta diversas fontes que estariam por trás da geração de déficits persistentes e da tendência à pró-ciclicidade, que impactam a discricionariedade da política fiscal em muitas economias emergentes e avançadas, afetam a dinâmica da dívida pública (favorecendo a recorrência de crises fiscais) e reduzem o bem-estar social.  As implicações negativas sobre a estabilidade macroeconômica fundamentam a ênfase colocada na restauração e manutenção de posições fiscais sólidas. (Hemming e Joyce, 2013)

Calmfors e Wren-Lewis (2011) lista diversas classes teóricas de explicações:

(i) assimetrias de informação entre o público e o governo: os eleitores podem não conhecer a posição fiscal do seu país ou as projeções macrofiscais podem ser pouco realistas, por exemplo;

(ii) a impaciência, principalmente dos governos, em razão de objetivos eleitorais, pode levá-los a desejar aumentar o produto interno acima de seu nível natural, por meio de ações fiscais expansionistas;

(iii) conflito intergeracional: geração de eleitores pode não levar em conta que a carga futura aumentará, por exemplo, no caso em que a política fiscal atribua peso pequeno à pressão de gastos associada com o envelhecimento da população (Carlin e Soskice, 2015);

(iv) a competição entre os partidos políticos pode fazer com que os governos não internalizem totalmente o custo da dívida;

(v) o problema dos recursos comuns leva atores do processo orçamentário a pressionar por mais gastos ou incentivos tributários; e

(vi) a inconsistência temporal de compromissos de interesse nacional firmados ex ante, que podem deixar de ser desejáveis por questões eleitorais, por exemplo.

Na sequência, os autores exploram as potencias contribuições que os conselhos fiscais poderiam dar no sentido de reduzir o viés deficitário e fortalecer a disciplina fiscal:

(i) avaliação ex-post para averiguar o comportamento passado da política fiscal, se houve cumprimento das metas ou não;

(ii) avaliação ex-ante sobre a probabilidade de cumprimento das metas fiscais;

(iii) análise de sustentabilidade ou equilíbrio de longo prazo das finanças públicas;

(iv) análise de transparência das contas públicas;

(v) mensuração do custo e do impacto fiscal de proposições de políticas públicas;

(vi) projeções macroeconômicas; e

(vii) formulação de recomendações normativas sobre a política fiscal.

A Tabela 1, extraída de FMI (2013), sintetiza diversas explicações potenciais do viés deficitário, posicionando-as ao lado das funções que as IFIs poderiam exercer no decorrer de seus mandatos para atenuar as imperfeições e distorções existentes na condução da política fiscal, de modo a reduzir a assimetria de informação entre os formuladores de política e os eleitores.

 


  1. Critérios para avaliação de efetividade das IFIs no desempenho fiscal

Apesar da experiência relativamente recente com conselhos fiscais na maior parte dos países, a literatura, a partir de análises econométricas complementadas por nuances narrativas de estudos de casos, tem avançado no sentido de avaliar se eles têm obtido sucesso (se têm sido efetivos) na tarefa de influenciar os formuladores de políticas na direção de políticas fiscais sólidas. (Lledó, 2018)

Além do fato de serem, em sua maioria, instituições novas e heterogêneas entre si, existem muitos desafios metodológicos associados à avaliação empírica do impacto dos conselhos no desempenho fiscal, que derivam, entre outros fatores: i) da existência de causalidade reversa, uma vez que governos mais comprometidos com a disciplina fiscal tendem a ser mais sensíveis à promoção de reformas institucionais e ii) do fato de não serem os únicos elementos no arcabouço institucional encarregadas de encorajar políticas fiscais sustentáveis (Lledó, 2018).

Hagemann (2011) indica que a existência de conselhos fiscais bem desenhados é uma condição necessária para melhorar a performance fiscal, embora a falta de comprometimento político com um objetivo de médio prazo e, em alguns casos, com o próprio mandato dos conselhos, limitaria melhorias duradouras.

Debrun e Kinda (2014), utilizando dados em painel de uma amostra de 58 economias avançadas e emergentes, de 1990 a 2011, e cientes dos desafios de endogeneidade associados à estimação econométrica, relacionam a presença de IFIs com o desempenho fiscal (medido pelo nível do resultado primário), controlados por outros efeitos que influenciam o desempenho fiscal, como o hiato do produto e o nível de endividamento. A conclusão do estudo sugere que a existência de conselhos em si não é suficiente para promover disciplina fiscal (a correlação é positiva, mas não significante em termos estatísticos), o que ocorre apenas quando o conselho apresenta certas características e atribuições:

  1. i) grau de independência com relação às disputas políticas;
  2. ii) papel no monitoramento de regras fiscais;
  3. ii) produção ou avaliação de projeções macrofiscais;
  4. iv) impacto na mídia: como os conselhos fiscais não exercem influência direta sobre a condução da política fiscal, esse canal é importante para ampliar a presença no debate público.

Beetsma et al (2018), utilizando a base de dados sobre conselhos do FMI atualizada até 2016, também traz evidencias empíricas no sentido de que a presença de conselhos fiscais bem desenhados parece reduzir o viés otimista nas projeções orçamentárias e favorecer o cumprimento das regras fiscais.

Lledó (2018) constata, a partir da revisão de diversos estudos empíricos e casos narrativos, que conselhos bem desenhados, dotados de certas características (independência com relação a disputas políticas e impacto na mídia) e funções (produzir ou avaliar projeções macroeconômicas e monitorar o cumprimento de regras fiscais), parecem ter maior capacidade em promover políticas fiscais sólidas.

 

  1. A situação da IFI brasileira em relação às demais

Como se observou na seção 3 deste capítulo, parece haver um consenso na literatura de que o desenho de um conselho efetivo, capaz de melhorar o desempenho da política fiscal, passa, principalmente, pela presença constante no debate público, pelo grau de independência e pelo papel na produção ou avaliação de projeções macroeconômicas e no monitoramento do cumprimento de regras fiscais.

A base de dados da OCDE sobre as IFIs (OCDE, 2019)[6] possibilita mapear algumas dessas características chave e situar o Brasil – que é o único país, além dos membros da organização, monitorado nessa base – em relação aos países membros da Organização.

A base é bastante ampla e permite acessar informações sobre o contexto para estabelecimento, base legal, modelo institucional, relacionamento com o legislativo, independência, liderança, recursos, mandato e funções, publicações, acesso à informação, transparência, apoio consultivo e acordos de avaliação.

Segundo o monitoramento, 28 dos 36 países membros têm IFIs em operação. O Brasil, único país não pertencente à OCDE, também é acompanhado pelo órgão multilateral em sua base de dados que mapeia as principais características dessas instituições.

Na prática, como se observa na Tabela 2, 73% desses organismos se envolvem com projeções macrofiscais (sendo que, algumas delas, como o CBO, dos Estados Unidos, produzem projeções alternativas que servem de base de comparação para as projeções do governo; outras preparam as projeções utilizadas pelo governo, como o OBR do Reino Unido e o CPB da Holanda; enquanto outras endossam ou opinam sobre as previsões oficiais); 70,3% são incumbidas de monitorar o cumprimento das regras fiscais, ao passo que 64,9% têm um papel na análise de sustentabilidade fiscal de longo prazo. Por outro lado, 40,5%, 29,7% e 10,8% apuravam o custo fiscal de iniciativas do governo, realizavam suporte a parlamentares com análises sobre o orçamento e avaliação do custo de plataformas eleitorais, respectivamente.

 

Tabela 2. Funções de uma IFI de acordo com a OCDE

  IFI / Brasil IFIs que compõem a base de dados
  Sim
Projeções macroeconômicas e fiscais  

x

73,0%
Monitoramento de regras fiscais  

x

70,3%
Análise de sustentabilidade fiscal de longo prazo  

x

64,9%
Apuração do custo de iniciativas do governo  

x[7]

40,5%
Suporte direto a parlamentares com análises sobre orçamento  

29,7%
Avaliação do custo de plataformas eleitorais  

10,8%
Fonte: OECD Independent Fiscal Institutions Database (2019). Elaboração dos autores.

 

Mesmo que as IFIs ao redor do mundo tenham papéis e estruturas distintas (“there is no one size fits all model”), refletindo diferentes arcabouços fiscais e circunstâncias que estão por trás da origem de seu estabelecimento, elas apresentam funções convergentes, sendo que a maioria delas exerce as funções principais mapeadas por Debrun e Kinda (2014) para a mensuração de sua efetividade.

Segundo Von Trapp e Nicol (2018) e OCDE (2019), o grau de independência de um conselho fiscal pode ser avaliado por meio de quatro pilares, delineados nos princípios de boas práticas contidos em OCDE (2014).

  1. i) independência técnica: avaliada de acordo com o processo de seleção de pessoas para as IFIs, isto é, se ocorre com base no mérito e na competência técnica, se a duração do mandato é estabelecida de forma independente do ciclo eleitoral e se os critérios para a demissão das lideranças são especificados em legislação;
  2. ii) independência legal/financeira: refere-se ao marco jurídico da instituição e à proteção dos recursos financeiros contra contingenciamentos e interferências políticas. As variáveis desse pilar buscam analisar se a instituição foi estabelecida por legislação primária, se possui uma dotação orçamentária própria para assegurar os recursos para o desempenho de suas atividades e se há um compromisso plurianual de financiamento;

iii) independência operacional: trata-se da autonomia das IFIs em relação às suas operações, considerando-se, ainda, se fazem ou não recomendações normativas de políticas (o que pode colocar em risco a reputação por meio do viés partidário). As variáveis para mensurar a independência operacional incluem os seguintes tipos de critérios: se a instituição tem liberdade para definir o programa de trabalho e para produzir análises por iniciativa própria, se faz recomendação de política e se possui equipe qualificada própria para a execução do mandato.

  1. iv) acesso à informação e transparência: refere-se aos mecanismos de garantia legal para eventuais pedidos de informações requeridas ou viabilizadas por memorandos de entendimento, ao plano de trabalho e demais documentos operacionais publicados e se relatórios e metodologias subjacentes às análises também ficam disponíveis ao público interessado.

A Tabela 3, construída a partir das informações obtidas na base de IFIs da OCDE, coloca em perspectiva a IFI brasileira em relação às instituições dos países membros no quesito da independência. Do ponto de vista formal, observa-se a presença de muitas das medidas delineadas nos quatro pilares, indicando que a IFI brasileira segue as recomendações internacionais. Na seção 5, passaremos a tratar especificamente do caso brasileiro.

Há, de toda forma, certa distância em relação às demais nos itens “dotação orçamentária própria” (presente em 47% das IFIs que compõe a base de dados) e no número de funcionários (apesar de possuir equipe qualificada própria, a quantidade de colaboradores permanentes encontra-se bem abaixo da média dos pares: 9 x 27). O orçamento da IFI brasileira é vinculado ao do Senado Federal, ainda que exista garantia de espaço orçamentário para contratação de pessoal, em ato específico da Comissão Diretora do Senado Federal, como discutiremos à frente. Essas são questões importantes para os próximos passos no processo de “institutional building” da IFI brasileira.

 

Tabela 3. Aspectos relativos à independência

Pilares de independência IFI/ Brasil IFIs que compõem a base de dados
Sim
Independência técnica

Seleção de pessoas baseada no mérito e na competência técnica?

x

 

100%

Termo do mandato estabelecido de forma independente ao ciclo eleitoral?

 

x

 

97%

Critérios para a demissão das lideranças especificados em legislação?

 

x

 

72%

 

Independência legal/financeira

 

 

Instituição estabelecida por legislação primária?

 

x

 

83%

Dotação orçamentária própria?

 

 

47%

Compromisso plurianual de financiamento?

 

 

14%
 

Independência operacional

Liberdade para definir o programa de trabalho?

 

x

 

94%

Liberdade para produzir análises por iniciativa própria?

 

x

 

94%

Faz recomendação de política?

 

 

14%

Número de funcionários que compõem a equipe?

 

9[8]

27[9]

 

Acesso à informação e transparência

Acesso à informação requerida é assegurado pela legislação?

 

x

 

25%

Acesso à informação apenas por memorando de entendimento?

 

 

11%

Acesso à informação por ambos?

 

 

42%

Plano de trabalho e demais documentos operacionais são publicados?

 

x

 

89%

Relatórios e metodologias subjacentes também ficam disponíveis ao público?

 

[10]

 

69%

Fonte: OECD Independent Fiscal Institutions Database (2019). Elaboração dos autores.

Pontes (2018), a partir dos dispositivos da resolução que criou a IFI brasileira, mostra que a instituição apresenta elevado grau de aderência da base normativa e procedimental nas dimensões relativas à independência no desempenho de atribuições e no que se refere à abrangência de atribuições previstas para uma IFI frequentemente apontadas pela literatura e identificadas na experiência internacional – reforçando a impressão inicial que fica da simples análise comparativa a partir dos dados extraídos da base da OCDE.

Uma avaliação mais robusta da aderência em relação às boas práticas internacionais viria da própria OCDE, que produz com frequência relatórios técnicos sobre as IFIs que compõem sua rede[11] com avaliações detalhadas (realizadas pelos pares, membros da própria OCDE e acadêmicos) sobre o desempenho de uma instituição em relação aos princípios de boas práticas, identificando aspectos que podem ser aprimorados como forma de preservar a viabilidade no longo prazo. As análises abrangem tipicamente os elementos de inputs (recursos humanos e financeiros, acesso à informação e independência), outputs (qualidade das publicações e metodologias empregadas) e de impacto do trabalho da IFI em termos da influência no debate público e da ampliação da transparência.

Importante mencionar, de toda forma, que já há um reconhecimento internacional da IFI brasileira com relação à credibilidade de seus trabalhos. No documento “OECD Economics Surveys – Brazil”[12], publicado em 2018, a organização expressou que o Brasil progrediu em sua estrutura fiscal com o estabelecimento de um conselho fiscal que publica relatórios mensais de alta qualidade.

Finalmente, vale destacar que o Fundo Monetário Internacional (FMI) também tem acompanhado o trabalho da IFI do Senado Federal, por meio de reuniões e visitas da chamada Missão do Artigo IV. Em 2017, o FMI reconheceu em texto público a importância da criação da IFI no Brasil[13].

 

  1. Histórico da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal

A Instituição Fiscal Independente (IFI) foi criada pela Resolução do Senado Federal nº 42, de 2016[14], com o objetivo de melhorar a transparência e a disciplina das contas públicas. A IFI é um órgão do Senado, mas com independência para realizar suas funções legais, seguindo as boas práticas internacionais, conforme discutidas nas seções anteriores. Ela é dirigida por um Conselho Diretor e conta com um Conselho de Assessoramento Técnico (CAT), de caráter consultivo, indicado pelo Diretor-Executivo do Conselho Diretor. A independência é garantida pelo mandato fixo dos Diretores e do Diretor-Executivo.

Antes de discutir a experiência da IFI brasileira, destaca-se que as funções da IFI não invadem atribuições do Tribunal de Contas da União (TCU) ou mesmo das Consultorias do Senado e da Câmara. O TCU é um órgão de controle, uma corte de contas com poder judicante. As Consultorias prestam assessoria direta aos parlamentares. A IFI, por sua vez, produz informações – este é o seu poder – na área de contas públicas, por meio de publicações que auxiliem na tarefa de ampliar a transparência e a disciplina fiscal, sem poder judicante e não tendo a missão de prestar consultoria direta[15].

A instalação da IFI se deu no dia 30 de novembro de 2016[16], com a posse do primeiro Diretor-Executivo, o economista Felipe Salto[17], para exercer um mandato de seis anos, sem recondução. Os próximos Diretores-Executivos terão sempre mandatos de quatro anos.

Cabe esclarecer que a indicação do Diretor-Executivo se dá pela Presidência do Senado Federal, conforme o inciso I do parágrafo 2º do artigo 1º da Resolução nº 42. O indicado deve passar por duas etapas para assumir o mandato fixo: arguição pública e aprovação pelo Senado Federal, conforme o parágrafo 3º da mesma Resolução. Segundo o dispositivo, os indicados devem ter notório saber nos temas de competência da IFI e reputação ilibada. Esses requisitos são checados pelo parlamentar relator do processo de indicação e, também, na sabatina realizada pela Comissão Diretora do Senado Federal. A aprovação do indicado deve se dar tanto pela Comissão Diretora quanto pelo Plenário do Senado.

O primeiro Diretor-Executivo indicado foi aprovado pela Comissão Diretora do Senado Federal, em 29 de novembro de 2016[18], após arguição pública realizada pelo colegiado. No mesmo dia, foi aprovado por 50 votos favoráveis no plenário[19]. Houve um voto contrário e duas abstenções. No dia 30 de novembro, como mencionado, ocorreu a cerimônia de posse e o início dos trabalhos da IFI.

Os objetivos da IFI estão bem definidos na Resolução nº 42 e envolvem o trabalho técnico de projeção e análise econômica e fiscal. Isso se dá por meio do cumprimento dos quatro dispositivos legais, fixados no artigo 1º da Resolução:

“I – divulgar suas estimativas de parâmetros e variáveis relevantes para a construção de cenários fiscais e orçamentários;

II – analisar a aderência do desempenho de indicadores fiscais e orçamentários às metas definidas na legislação pertinente;

III – mensurar o impacto de eventos fiscais relevantes, especialmente os decorrentes de decisões dos Poderes da República, incluindo os custos das políticas monetária, creditícia e cambial; e

IV – projetar a evolução de variáveis fiscais determinantes para o equilíbrio de longo prazo do setor público.”

O objetivo fixado no inciso I consiste em elaborar projeções macroeconômicas, a exemplo da trajetória do PIB, da inflação, dos juros reais e nominais, da taxa de câmbio, dentre outras variáveis relevantes para os cenários fiscais. O inciso II determina que a IFI acompanhe as metas fiscais vigentes, comparando-as aos indicadores fiscais, a exemplo do teto de gastos (fixado pela Emenda Constitucional nº 95, de 2016) e da meta de resultado primário (prevista na Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei Complementar nº 101, de 2000).

No inciso III, a instituição recebe a incumbência de definir eventos que tenham impacto relevante nas contas públicas e elaborar suas avaliações sobre tais assuntos, a exemplo das reformas previdenciária, tributária e administrativa. Por fim, o quarto inciso manda que a IFI projete a evolução das variáveis fiscais relevantes ao equilíbrio de longo prazo, a exemplo da dívida pública, do déficit primário e nominal, das receitas e despesas do governo federal.

Após a instalação da IFI, o Diretor-Executivo Felipe Salto montou uma equipe, a partir da regulamentação da Resolução nº 42, de 2016, feita pelo Ato nº 10 da Comissão Diretora do Senado Federal, de 2016[20]. O referido ato forneceu os subsídios para recrutar servidores e realocou cargos para contratação de pessoal de fora do Senado. Ainda sem o Conselho Diretor completo, portanto, a IFI passou a funcionar, no âmbito do Senado, mas com total independência para realizar seus estudos e análises.

Isso está em linha com a revisão de literatura apresentada na seção 4. Ainda que a IFI não possua um orçamento autônomo, o espaço fiscal fixo para contratação de pessoal está garantido por lei. Como mencionado, esta é uma área em que a IFI poderá avançar, ganhando mais estrutura e recursos para poder realizar suas atribuições legais. Entende-se que este é um processo de “institutional building”, que está diretamente associado aos resultados produzidos pela instituição.

Vale dizer, no período de quatro anos de funcionamento completados em novembro de 2020, a IFI já havia conquistado um amplo reconhecimento da imprensa, critério importante destacado por Debrun e Kinda, supracitados. Mais à frente, mencionaremos alguns números a fundamentar essa análise. Este reconhecimento foi fundamental para solidificar a posição da instituição diante do parlamento e mesmo para obter melhorias e avanços operacionais e de estrutura, como a própria conquista de um espaço físico adequado para a realização das atividades da IFI.

Logo no início do funcionamento do novo órgão, após recrutar dois servidores do Ministério do Planejamento – um da Secretaria de Orçamento Federal (SOF) e um do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) – e dois servidores efetivos do Senado Federal – um da Consultoria de Orçamentos (Conorf) e outro da Consultoria Legislativa (Conleg) –, a IFI elaborou um modelo de relatório mensal e publicou sua primeira versão em fevereiro de 2017[21]. Logo em seguida, recrutou um economista com experiência em contas públicas para reforçar a equipe, além da secretária, que também exerce funções de auxiliar administrativa.

Ainda sobre a questão da equipe, é importante destacar que, conforme o artigo 2º da Resolução 42, a equipe deve ter sempre 60%, no mínimo, de mestres ou doutores nas áreas de atuação da IFI, requisito sempre cumprido, incluindo todos os servidores efetivos e comissionados que compõem ou compuseram a equipe e a Diretoria.

Esse primeiro trabalho mencionado foi denominado “Relatório de Acompanhamento Fiscal” (RAF), que viria a ser o principal produto da IFI, com periodicidade mensal[22]. Ele já está na 48ª edição, publicada em janeiro de 2021[23]. Sua aceitação por parlamentares, imprensa, especialistas do mercado e academia tem sido muito positiva. Para divulgar o primeiro trabalho da IFI, em fevereiro de 2017, realizou-se coletiva à imprensa[24], da qual participaram jornalistas especializados dos principais veículos de comunicação e economistas e servidores públicos do Executivo e do Legislativo. Apenas no mês de fevereiro de 2017, houve onze menções à IFI na imprensa nacional. Também o Poder Executivo comentou projeções e cálculos publicados no primeiro RAF, cumprindo-se, assim, desde o início, uma função precípua de toda IFI, que é a de estabelecer um contraponto saudável com a área econômica do governo, a partir do acompanhamento macrofiscal.

Em janeiro de 2017, foi publicado um artigo do Diretor-Executivo da IFI, na página A2 do jornal O Estado de S. Paulo, que é útil para entender o contexto, a lógica e os objetivos do novo órgão do Senado: “O papel da Instituição Fiscal Independente”[25]. Nele, o economista explicou as razões da criação do novo órgão em um quadro de crise econômica e fiscal. É importante mencionar que a IFI foi uma resposta do Senado àquela situação conjuntural bastante grave das contas públicas e da atividade econômica. Vale dizer, a economia passava por um biênio, de 2015 a 2016, que viria a ser o pior da série histórico do PIB. As contas públicas também já seguiam por alguns anos apresentando déficit e crescimento da dívida/PIB. Nesse sentido, há um claro paralelo com as experiências de criação e consolidação de instituições ou conselhos fiscais, conforme relatadas pelos autores citados nas seções anteriores deste capítulo.

Para completar a primeira formação do Conselho Diretor, conforme determinado pela Resolução nº 42, a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) e a Comissão de Transparência (CTFC)[26] do Senado Federal precisavam fazer suas indicações, proceder à sabatina e aprovação, para em seguida haver a deliberação em plenário. Foram indicados os economistas Gabriel Barros[27], para a vaga da CAE, e Rodrigo Orair[28], para a vaga da CTFC, completando, ainda em meados de 2017, a primeira formação do Conselho Diretor da IFI, ao lado de Felipe Salto.

Cabe ainda explicar a lógica dos mandatos não coincidentes prevista na Resolução 42. O mandato do primeiro Diretor indicado pela CAE, conforme a resolução, seria de quatro anos. Já o mandato do Diretor indicado pela CTFC, de dois anos. Assim, o primeiro Diretor-Executivo teria seis anos, o primeiro Diretor indicado pela CAE, quatro anos, e o primeiro Diretor indicado pela CTFC, dois anos. Os segundos indicados para todas as três vagas teriam sempre mandatos fixos de quatro anos, preservando-se a descontinuidade inicial. A recondução é proibida. Em caso de vacância, substitui-se o Diretor por meio do mesmo processo descrito acima, para que se complete o período remanescente do mandato original, seja para o Diretor-Executivo seja para os demais Diretores.

Essa descontinuidade inicial serve para que as trocas de Diretoria nunca ocorram de maneira concomitante. Esta é uma forma de preservar a blindagem político-partidária da IFI, isto é, a sua independência técnica em relação a essas questões. O mecanismo está em linha com as boas práticas e um dos critérios utilizados pela OCDE, por exemplo, para avaliação da independência das IFIs.

Transcorridos quase quatro anos desde a instalação da IFI, já houve duas trocas na Diretoria. O primeiro Diretor indicado pela CAE renunciou após dois anos de mandato, o que ensejou a indicação de um novo nome para completar o período faltante para os quatro anos. Já o Diretor indicado pela CTFC cumpriu o seu mandato completo e, ao término dos dois anos, a referida comissão indicou um novo nome para exercer, então, conforme a regra da Resolução nº 42, um mandato de quatro anos.

A substituição do Diretor indicado pela CAE transcorreu sem maiores percalços. Foi indicado o economista Josué Pellegrini, que já participava da equipe da IFI, como analista, além de ser Consultor Legislativo do Senado Federal. Pellegrini é Doutor em Economia pela USP, tem livros publicados na área de economia e contas públicas e foi diversas vezes premiado pelo Tesouro Nacional com artigos relevantes. Além disso, tem vasta experiência em docência, tendo sido um dos professores que ajudou a montar a Faculdade de Economia da USP de Ribeirão Preto. O Presidente da CAE fez a indicação, seguida do mesmo processo: sabatina, aprovação na comissão e no plenário. Pellegrini completará o mandato de quatro anos, portanto, conforme prevê a Resolução 42, contando os dois anos iniciais cumpridos pelo primeiro Diretor indicado pela CAE.

Quanto à substituição do Diretor indicado pela CTFC, com o término do mandato, seguiram-se os trâmites já explicados. O indicado foi o economista Daniel Couri, que fazia parte da equipe da IFI desde a sua instalação, sendo Consultor de Orçamento do Senado. Seu mandato será de quatro anos. Couri tem Mestrado em Economia pela UnB e experiência como servidor do Tribunal de Contas da União (TCU) e da Secretaria de Orçamento Federal (SOF) do Ministério do Planejamento.

Portanto, a atual formação do Conselho Diretor conta com os economistas: Felipe Salto, Josué Pellegrini e Daniel Couri. Todas as decisões sobre a definição dos assuntos a serem tratados pela IFI, dentro do plano de trabalho definido na própria Resolução nº 42, são colegiadas. Ouvem-se os membros da equipe, discutem-se os temas relevantes e fixam-se prazos para as publicações. O Relatório de Acompanhamento Fiscal (RAF) é a publicação fixa da IFI e mais importante, no sentido de que cumpre pelo menos três dos quatro objetivos fixados na Resolução nº 42. Além dos doze trabalhos anuais, a IFI ainda publica Estudos Especiais, Notas Técnicas e Comentários da IFI, de acordo com temas discutidos nas reuniões de Equipe e Conselho Diretor, levadas também em consideração as sugestões colhidas nas reuniões do CAT. Sempre no mês de dezembro, realiza-se reunião de planejamento para definir algumas diretrizes a esse respeito.

A equipe técnica da IFI também foi sofrendo alterações em relação ao seu quadro inicial. Como explicado, dois servidores do Senado tornaram-se Diretores, ao longo dos últimos quatro anos. Além disso, os dois servidores cedidos pelo Ministério do Planejamento saíram da equipe, tendo sido substituídos por outros economistas contratados com o espaço orçamentário contido no Ato nº 10 de 2016. Hoje, a IFI conta com um economista com doutorado, dois economistas com mestrado e dois economistas com nível de graduação, além de uma secretária e assistente administrativa. Além disso, há dois estagiários[29] a auxiliar a equipe e os Diretores. Os três diretores funcionam também como analistas, isto é, participam ativamente da elaboração dos produtos da IFI, além de exercerem suas funções administrativas no Conselho Diretor. É importante notar, para que se tenha a dimensão do orçamento de pessoal destinado à IFI, que a formação acima descrita já preenche praticamente 100% do orçamento disponível[30].

Destaca-se que, dentro do processo de “institutional building”, a IFI conseguiu que o Conselho de Assessoramento Técnico (CAT) fosse instalado, em 2019, pelo Presidente do Senado Davi Alcolumbre, conforme prevê o parágrafo 9º do artigo 1º da Resolução 42. Os cinco nomes apontados pelo Diretor-Executivo Felipe Salto foram: Yoshiaki Nakano, Diretor da Escola de Economia de São Paulo da FGV e ex-Secretário da Fazenda de São Paulo; José Roberto Afonso, pesquisador e professor do IDP e Doutor em Economia pela Unicamp; Monica de Bolle, professora da Johns Hopkins University; Gustavo Loyola, ex-Presidente do Banco Central; e Bernard Appy, Diretor do Centro de Cidadania Fiscal.

O CAT foi regulamentado pelo Ato nº 8 do Presidente do Senado, de 25 de março de 2019[31]. Nele, o instala-se o Conselho com os membros indicados pelo Diretor-Executivo da IFI. Os membros não são remunerados e exercem a função de ampla assessoria consultiva, em reuniões organizadas semestralmente. A primeira reunião do Conselho de Assessoramento Técnico foi pública e transmitida pela TV Senado. O evento contou com a presença de autoridades do Executivo e do Legislativo, economistas do mercado e jornalistas[32].

A instalação formal do CAT, ainda que a IFI já contasse com o apoio informal de economistas que vieram a compor o Conselho, foi um passo que completou, por assim dizer, as etapas principais de construção da instituição previstas na Resolução nº 42.

 

  1. Balanço de quatro anos

A IFI é inspirada em experiências internacionais importantes, a exemplo do “Congressional Budget Office” (CBO), nos Estados Unidos, e do “Office for Budget Responsibility” (OBR), no Reino Unido, já mencionados anteriormente. A OCDE congrega essas experiências e acompanha suas atividades por meio de uma rede, da qual a IFI brasileira passou a fazer parte, na categoria de “key partner country”, em base de dados publicada pelo organismo multilateral citada na seção 4.

O Conselho de Finanças Públicas (CFP) de Portugal é uma terceira referência fundamental, não apenas pela proximidade cultura e linguística, mas pela forma de atuação e modelo de governança. A IFI já participou de dois encontros anuais da rede de IFIs da OCDE, na Coreia do Sul e em Portugal. No encontro de Seul, em 2018, o Diretor-Executivo da IFI firmou um memorando de entendimentos para troca de experiências no campo técnico entre a IFI sul-coreana – “National Assembly Budget Office” (NABO) – e a IFI do Senado Federal do Brasil[33]. Na ocasião, o Diretor-Executivo da IFI também fez uma apresentação sobre a IFI brasileira[34].

A rede da OCDE é muito rica, do ponto de vista da troca de experiências, sobretudo para a instituições mais recentemente criadas, como é o caso da IFI brasileira. Como resultado dos diálogos e contatos, a IFI tem conseguido estabelecer trocas constantes de informações, mesmo à distância, coletar informações de outras instituições ao redor do mundo, além de reportar à OCDE os avanços obtidos. Em 2020, o Estudo Especial sobre o modelo macroeconômico da IFI foi enviado à equipe da OCDE, traduzido para o inglês, e a receptividade foi positiva. O avanço no uso de instrumentos e modelagem adequada, nas tarefas das IFIs, é algo fundamental para se buscar um resultado satisfatório em termos de análises e projeções econômicas e fiscais, incluindo simulações de impacto, a exemplo dos estudos publicados pela IFI em 2019, ao longo da tramitação da reforma da previdência no Congresso Nacional.

Por ocasião do aniversário de quatro anos da IFI, no fim de novembro, o jornal O Estado de S. Paulo publicou duas reportagens relatando as atividades e resultados obtidos pela instituição, inclusive trazendo a opinião de economistas da OCDE a respeito da IFI brasileira[35]. A atuação junto à imprensa é fundamental para o desempenho da IFI, como mostramos na revisão de literatura deste capítulo. A esse respeito, a IFI consolida, diariamente, em seu site[36], as citações de seus trabalhos pela imprensa. A partir disso, é possível observar que, em quatro anos de funcionamento, a IFI teve 2.692 aparições na imprensa nacional, o que corresponde a uma média de 1,8 ao dia. A evolução, entre o fim de 2016 e 2020, pode ser vista na Tabela 4 a seguir[37].

 Tabela 4. Aparições da IFI do Senado Federal na imprensa

Do ponto de vista do número de publicações, a IFI já produziu 48 Relatórios de Acompanhamento Fiscal (RAFs), 14 Estudos Especiais (EEs), 45 Notas Técnicas (NTs) e 9 Comentários da IFI (CIs), totalizando 2.911 páginas publicadas. O RAF contém, na sua versão atual, três seções básicas: Contexto Macroeconômico, Conjuntura Fiscal e Orçamento[38]. O objetivo do produto é analisar os principais indicadores econômicos e fiscais, acompanhar as publicações do governo cotejando suas projeções e análises às realizadas pela IFI, acompanhar o cumprimento das metas fiscais e apresentar os cenários projetados pela instituição.

Duas vezes ao ano, em maio e em novembro, são revisados os três cenários de estimativas da IFI: base, otimista e pessimista, e reapresentados no RAF, que então assume formato um pouco distinto. Em anos atípicos, com foi 2020, em razão da crise pandêmica da Covid-19, a IFI acaba apresentando maior número de revisões. Em 2020, foram quatro RAFs contendo revisões dos cenários prospectivos para dívida e déficit público, receitas e despesas do governo central, PIB, inflação, taxa de juros, taxa de juros real, taxa de câmbio, mercado de trabalho, dentre outras variáveis. Além dos textos, também veiculamos arquivo em planilha eletrônica com todos os dados, tabelas e gráficos contidos na publicação[39].

Os EEs servem ao propósito de analisar um tema com maior profundidade e pode ser metodológico ou temático. Têm como característica trazer revisão de literatura, comparação internacional e uso de instrumentos metodológicos para avançar sobre determinado assunto. A IFI já realizou EEs sobre: estimativa do hiato do produto; projeções de dívida bruta; situação fiscal dos estados; previdência; metodologia de projeção do PIB; reservas internacionais; operações compromissadas; despesas de pessoal; previdência estadual; balanço patrimonial da União; Regra de Ouro; dentre outros[40].

As NTs são estudos de menor alcance, mas também seguem rigor técnico e analítico, servindo, normalmente, para explorar assuntos que subsidiarão as projeções, cálculos de impacto e elaboração de cenários pela IFI. Dentre os temas tratados em NTs, estão: gastos em Defesa Nacional; cálculos de efeito fiscal do Benefício Emergencial do Emprego (BEm); análises das finanças dos estados; cálculo de impacto do Auxílio Emergencial a Vulneráveis (AE); impacto do Programa de Contrato Verde e Amarelo; custo de carregamento das reservas internacionais; impacto dos juros na dívida pública; análise das propostas de reforma tributária; diversos trabalhos sobre a reforma da previdência; Orçamento Impositivo; Desvinculação das Receitas da União (DRU); FAT e BNDES; Abono Salarial; Benefício de Prestação Continuada (BPC); relação Tesouro-Banco Central; riscos fiscais da União; FGTS; impacto de decisão do STJ sobre aposentadorias; teto de gastos; elasticidade receita-PIB; deflator do PIB; gastos tributários; capacidade de pagamento dos estados (capag); cálculos sobre o resultado primário mensal; atividade econômica e PIB; análise da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO); dentre outros.

Por fim, os Comentários da IFI (CIs), criados mais recentemente, em 2019, servem para manifestações que precisem ser mais rápidas a respeito de algum evento da conjuntura ou, ainda, posicionamentos institucionais do Conselho Diretor. Um exemplo recente foi a análise do teto de gastos assinada pelos três membros do Conselho Diretor da IFI[41].

Vale registrar que eventos da conjuntura política, fiscal e econômica influenciam a escolha dos temas. Em 2019, por exemplo, a IFI publicou diversos trabalhos sobre a reforma da previdência, acompanhando sua tramitação e elaborando cálculos de impacto de cada medida e alteração proposta no parlamento. Os cálculos foram utilizados para cotejamento com os números do governo federal, cumprindo-se, assim, a função de qualificar o debate público e colaborar para a transparência e a disciplina fiscal. Já em 2020, a crise da covid-19 requereu revisões mais frequentes dos cenários e cálculos de impacto fiscal das diversas medidas anunciadas, incluindo análises com microdados sobre o Auxílio Emergencial a Vulneráveis, as transferências a estados e municípios, o apoio às empresas e os gastos em saúde.

A respeito deste último tópico, em 2020, a IFI desenvolveu um painel de dados para acompanhamento da execução do chamado Orçamento de Guerra, instituído por Emenda Constitucional, para facilitar o acesso da sociedade a informações sobre os gastos relacionados à covid-19[42]. Além desta base especial, a IFI mantém, em seu site, um repositório de dados com séries calculadas pela instituição ou dados por ela trabalhados[43].

Além dos produtos publicados, a IFI realiza outras atividades: organização de seminários técnicos (ou webinários, como em 2020[44]); participação em Comissões do Senado Federal e da Câmara dos Deputados; participação específica na CAE para apresentar revisões de cenários e acompanhamento fiscal (prevista na Resolução nº 42); reuniões com organismos multilaterais, membros dos órgãos da área econômica do Executivo, órgãos de assessoramento do Legislativo, Tribunal de Contas da União, economistas do mercado, parlamentares e jornalistas; realização de palestras ou conversas com instituições privadas e públicas para apresentação dos trabalhos da IFI; participação em seminários acadêmicos; publicação de artigos e concessão de entrevistas à imprensa; e reuniões com acadêmicos da área de economia e contas públicas.

Por fim, ainda sobre as atividades da IFI, nestes quatro primeiros anos, vale destacar o recebimento de dois Prêmios do Tesouro Nacional. Um deles, na 1ª colocação, foi concedido ao trabalho sobre reservas internacionais (custo, nível ótimo e relação com a dívida pública) publicado pelo Diretor Josué Pellegrini, na forma de Estudo Especial[45], e submetido à referida premiação, ocorrida em 2017. O segundo prêmio, uma menção honrosa, também no âmbito do Prêmio de Monografias em Finanças Públicas do Tesouro Nacional, foi concedido em razão do Estudo Especial desenvolvido pelo analista da IFI Alessandro Casalecchi, pelo então Diretor Rodrigo Orair, com apoio do estagiário Pedro Henrique Oliveira. O trabalho versa sobre as despesas dos regimes próprios dos servidores civis da União[46].

Além disso, o reconhecimento dos parlamentares tem sido crescente. A IFI recebe demandas que são, sempre que possível, adequadas aos trabalhos desenvolvidos pela instituição, preservando, assim, sua independência. Realiza, com frequência, reuniões com parlamentares para discutir questões fiscais, cenários e conjuntura econômica. O uso dos relatórios da IFI pelos gabinetes parlamentares é também um indicativo relevante.

Os desafios, para os próximos anos, concentram-se no maior fortalecimento institucional, incluindo questões de estrutura e orçamento, na manutenção do ritmo de publicações e da repercussão na imprensa especializada e geral, na ampliação da equipe e no desenvolvimento de mais trabalhos envolvendo o cálculo de medidas que tenham efeito fiscal relevante. Na parte de elaboração de projeções e no acompanhamento das metas fiscais, entende-se que a IFI já avançou de maneira significativa, mas pode dar novos passos para consolidar metodologias de projeção, por meio de publicações técnicas, tempestivamente. Uma questão adicional, que deve ser debatida, é a eventual vinculação constitucional da IFI, a partir da experiência acumulada até aqui e do modelo vigente, fundamentado na Resolução do Senado, que tem força de lei.

 

  1. Conclusões

Neste capítulo, discutimos o contexto geral de criação e consolidação das Instituições Fiscais Independentes (IFIs) ou Conselhos Fiscais, à luz da literatura relevante e da experiência internacional. Em seguida, discute-se o caso da IFI do Senado Federal, o conselho fiscal brasileiro, criado em novembro de 2016 como resposta à crise econômica e fiscal vivenciada pelo Brasil. Uma preocupação central dos países europeus, principalmente, que criaram boa parte de suas instituições no pós-crise de 2008, é o chamado “viés deficitário” da política fiscal e a necessidade de se ter maior acompanhamento e transparência nas contas públicas. As regras fiscais, isoladamente, não se mostraram suficientes para levar a condutas fiscais mais responsáveis, o que está na gênese das IFIs.

Os estudos disponíveis sobre a efetividade da atuação das IFIs indicam que elas exercem seu papel em contextos em que está garantida a independência de seu corpo diretivo, sobretudo na definição dos estudos, análises e trabalhos que escolhe desenvolver. Também a imprensa é fundamental para a atuação dos “watchdogs”, pelo fato de que essas instituições têm o único poder de produzir informações. Assim, para que sua atuação seja efetiva para ajudar a qualificar o debate e melhorar a disciplina fiscal, o uso dos dados produzidos pela imprensa torna-se uma dimensão central.

No caso da IFI brasileira, os quatro anos de atuação revelam que são bastante positivos os resultados colhidos, com ampla presença na mídia e crescente consolidação interna, no Senado Federal, ao qual a IFI está vinculada. O desafio, daqui em diante, é avançar na estrutura de pessoal, orçamentária, mantendo e ampliando o escopo dos produtos entregues pela instituição.

 

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Referências bibliográficas

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[1] Felipe Scudeler Salto é diretor-executivo da IFI e membro do Instituto Fernand Braudel.

[2] Rafael da Rocha Mendonça Bacciotti é analista da IFI.

[3] Pode ser consultado em: https://eur-lex.europa.eu/legalcontent/EN/TXT/PDF/?uri=CELEX:32013R0473&from=EN

[4] Disponível em: http://www.oecd.org/gov/budgeting/recommendation-on-principles-for-independent-fiscal-institutions.htm

[5] Disponível em: https://www.imf.org/external/np/fad/council/

[6] OECD Independent Fiscal Institutions Database (2019), http://www.oecd.org/gov/budgeting/OECD-Independent-Fiscal-Institutions-Database.xlsx  

[7] A IFI brasileira estima o custo de eventos fiscalmente relevantes, por exemplo, a reforma previdenciária que teve aprovação definitiva em 2019 e as medidas de combate à crise do coronavírus ao longo de 2020.

[8] No Brasil, a equipe é composta por 8 analistas (já incluídos os 3 diretores) e 1 secretária e assistente administrativa. Note-se que os 3 diretores também produzem estudos técnicos, junto com os analistas.

[9] Média simples do número de funcionários (tempo integral) das 36 IFIs em operação.

[10] No Brasil, a IFI explica e mostra suas hipóteses e tem como objetivo publicar todas as metodologias e questões técnicas no futuro. Em setembro de 2020, por exemplo, foi publicado o Estudo Especial n. 13 sobre a metodologia de previsões das variáveis macroeconômicas, que pode ser acessado aqui – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-1/estudos-especiais/2020/setembro/estudo-especial-no-13-metodologia-de-previsao-das-variaveis-macroeconomicas-set-2020-1

[11] Disponíveis na página da OCDE sobre o “Network of Parliamentary Budget Officials and Independent Fiscal Institutions”: http://www.oecd.org/gov/budgeting/parliamentary-budget-officials/

[12] Disponível em: http://www.oecd.org/economy/surveys/Brazil-2018-OECD-economic-survey-overview.pdf

[13] Veja aqui a matéria da Agência Senado sobre o assunto, com o link para acesso ao relatório do FMI – https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/08/07/fmi-destaca-criacao-da-instituicao-fiscal-independente

[14] A Resolução 42 foi um projeto inserido na chamada “Agenda Brasil”, do Senado Federal, tendo sido desenvolvida pelo então Presidente Renan Calheiros e pelo Senador José Serra, com apoio do corpo técnico do Senado, destacando-se o papel do servidor do Senado Federal Leonardo Ribeiro neste processo. Acesse aqui a íntegra da Resolução – https://legis.senado.leg.br/norma/582564/publicacao/17707278

[15] Ainda que, como resultado do trabalho, os parlamentares se beneficiem do trabalho, acessando os relatórios, dialogando com a equipe e o corpo diretivo da IFI sobre conjuntura, cenários etc.

[16] Matéria jornalística sobre a posse do 1º Diretor-Executivo e início das atividades da IFI – https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/11/30/diretor-executivo-da-instituicao-fiscal-independente-toma-posse

[17] Salto tem experiência em análise das contas públicas, tendo trabalhado em consultoria, academia e no Legislativo. Possui Mestrado em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e experiência em docência na mesma instituição. Foi também Assessor Legislativo no Senado e, à época, havia publicado o livro “Finanças públicas: da contabilidade criativa ao resgate da credibilidade” (Editora Record, 2016. Prêmio Jabuti – 2017), junto com o economista Mansueto Almeida, ex-Secretário do Tesouro Nacional. Foi um dos primeiros economistas do mercado a falar sobre a chamada “contabilidade criativa”, ainda em novembro de 2009, em parceria com o ex-Ministro da Fazenda Mailson da Nóbrega. https://www.estadao.com.br/noticias/geral,contabilidade-criativa-turva-meta-fiscal,474130

[18] Matéria jornalística sobre a criação da IFI – https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/11/29/felipe-salto-e-aprovado-para-direcao-executiva-da-instituicao-fiscal-independente

[19] Vídeo da aprovação em plenário da primeira indicação à Diretoria-Executiva da IFI – https://www12.senado.leg.br/noticias/videos/2016/11/senado-aprova-indicacao-de-felipe-salto-para-diretor-da-instituicao-fiscal-independente

[20] Acesse aqui o Ato nº 10 e modificações feitas no mesmo ano, pelo Ato nº 18 – https://www12.senado.leg.br/ifi/sobre-1/copy_of_sobre

[21] O Relatório de Acompanhamento Fiscal (RAF) nº 1 pode ser acessado aqui – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-1/relatorio/2017/fevereiro-de-2017/raf-relatorio-de-acompanhamento-fiscal-fev-2017

[22] Reportagem da Agência Senado sobre o primeiro relatório da IFI – https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/02/02/instituicao-fiscal-aponta-que-emenda-do-teto-de-gastos-nao-conseguira-tirar-pais-do-vermelho

[23] Acesse aqui o RAF nº 48 – https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/583296/RAF48_JAN2021.pdf

[24] Vídeo sobre a 1ª coletiva à imprensa realizada pela IFI –  https://www12.senado.leg.br/noticias/videos/2017/02/instituicao-fiscal-independente-retomada-economica-depende-de-novas-medidas

[25] Leia aqui a íntegra do artigo – https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,o-papel-da-instituicao-fiscal-independente,10000097557

[26] Esta Comissão foi alterada, desde a publicação da Resolução 42, mas a sua designação atual é esta: CTFC. A alteração implicou mudança no texto da Resolução 42, que pode ser vista no link indicado anteriormente, no texto compilado da norma.

[27] Gabriel Barros já era membro da equipe de analistas da IFI, com experiência em análise das contas públicas, no setor privado, em banco e no Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da FGV

[28] Rodrigo Orair é pesquisador do Ipea, com experiência na análise das contas públicas e da economia nacional, sobretudo no assunto sistema tributário nacional.

[29] Para fins da comparação apresentada na seção 4, não consideramos os estagiários, pois ainda em processo de formação.

[30] Veja os currículos dos Diretores e Equipe da IFI aqui – https://www12.senado.leg.br/ifi/sobre-1/copy_of_equipe

[31] Acesse aqui o Ato do Presidente do Senado Federal que criou o CAT – https://legis.senado.leg.br/diarios/ver/100325?sequencia=145#diario

[32] Os anais do evento inaugural podem ser encontrados aqui – https://www12.senado.leg.br/ifi/conselho/sobre-1

[33] Veja aqui o Memorando de Entendimentos – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-1/apresentacoes-e-outros-documentos/2018/julho/memorando-de-entendimento-entre-o-national-assembly-budget-office-da-republica-da-coreia-e-a-instituicao-fiscal-independente-do-senado-federal-do-brasil

[34] Acesse aqui o documento apresentado em Seul – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-1/apresentacoes-e-outros-documentos/2018/julho/the-creationand-operationof-theindependentfiscal-institutionof-thebrazilianfederal-senate-oecd

[35] Matérias sobre os quatro anos de atividades da IFI – 1. https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,ifi-faz-parte-de-rede-global-de-monitoramento,70003533490 e 2. https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,como-funciona-o-cao-de-guarda-das-contas-publicas,70003533476

[36] Veja o “IFI na Mídia”, em nosso site –  https://www12.senado.leg.br/ifi/

[37] Além disso, os membros da IFI publicaram, no período, 39 artigos de opinião em diferentes veículos.

[38] Durante algum tempo, a IFI publicava algumas análises tópicas dentro do próprio RAF, mas passou a criar produtos específicos para atender a esse objetivo.

[39] Os arquivos completos dos Relatórios de Acompanhamento Fiscal (RAF) podem ser acessados aqui – https://www12.senado.leg.br/ifi/relatorio-de-acompanhamento-fiscal

[40] Todos os Estudos Especiais (EEs) da IFI podem ser acessados aqui – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-estudos-especiais.

[41] Comentários da IFI (CI) nº 9 – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-1/comentarios-da-ifi/ci-comentario-da-ifi-no-9-consideracoes-sobre-o-teto-de-gastos-da-uniao

[42] O painel covid pode ser acessado aqui – https://www12.senado.leg.br/ifi/covid-19/painel-de-creditos-covid-19

[43] Acesse aqui para consultar o repositório da IFI – https://www12.senado.leg.br/ifi/dados/dados

[44] No canal da IFI, no YouTube, podem ser encontrados os vídeos das gravações dos webinários realizados em 2020 e outros vídeos elaborados pela instituição ou decorrentes de entrevistas – www.youtube.com.br/instituicaofiscalindependente.

[45] Veja aqui a íntegra do Estudo Especial nº 1 – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-1/estudos-especiais/2017/marco-de-2017/estudo-especial-no-01-o-custo-fiscal-das-reservas-mar-2017

[46] Veja aqui a íntegra do Estudo Especial nº 10 – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-1/estudos-especiais/2019-1/julho/estudo-especial-no-09-despesas-do-rpps-dos-servidores-civis-uniao-jul-2019

 

* Capítulo do livro Governança Orçamentária no Brasil, organizado por Leandro Freitas Couto e Júlia Marinho Rodrigues (Brasília: IPEA, 2021), disponibilizado em early view no site do IPEA.

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PIB pode surpreender em 2022 https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3577&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=pib-pode-surpreender-em-2022 Thu, 17 Feb 2022 14:22:14 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3577 PIB pode surpreender em 2022

 

Para economista, por enquanto as previsões sobre o crescimento da economia são muito baixas, mas há fatores pesando a favor de uma taxa maior, a exemplo dos gastos normais em ano eleitoral

 

Por Roberto Macedo

 

A previsão da taxa anual de variação do PIB mais acompanhada pelo noticiário dos meios de comunicação é a do Relatório Focus, do Banco Central, que semanalmente recorre a opiniões de analistas do mercado financeiro para calculá-la. Essa previsão, e de outros indicadores econômico-financeiros, é levantada toda sexta-feira e divulgada na segunda-feira seguinte. A última veio no relatório publicado no dia em que este texto era escrito (14/2), e apontava uma baixíssima taxa, de apenas 0,3%, insuficiente até para cobrir o crescimento da população, hoje estimado em 0,7% ao ano, e assim levaria a uma queda do PIB per capita.

Mas trata-se de uma previsão, e há fatores que, ao estimular a demanda agregada da economia, apontam para um impacto favorável. 2022 é um ano eleitoral e marca a eleição mais ampla de todas, pois abrange a do presidente da República, de governadores estaduais, de senadores e de deputados federais e estaduais. Eleição envolve muitos gastos pelos candidatos, e desta vez foi disponibilizado um fundo recorde de R$5,7 bilhões, que será entregue aos partidos políticos para distribuir entre seus candidatos.

Sabe-se também que vários Estados estão em boa situação financeira, pois entre outras razões, como o crescimento econômico local e a inflação, sua arrecadação cresceu bastante. E governos estaduais devem gastar mais em obras e outros dispêndios, pois estarão em campanha para governadores em busca de reeleição ou de outros voos, como em direção ao Senado ou até a presidência da República. Ou também simplesmente para apoiar outros candidatos.

O caso de São Paulo serve como exemplo, pois seu PIB cresceu mais que o do país, gerando mais arrecadação, e seu governador, candidato à Presidência, está empenhado em obras e em distribuir benesses que levam dinheiro a consumidores. Recentemente, enviou à Assembleia Legislativa proposta de um reajuste salarial de 20% para policiais militares e trabalhadores do setor de saúde e de 10% para os demais funcionários. A partir de março, se a proposta for aprovada, o que é bem provável, todos os servidores poderão aumentar seus gastos, a partir de um aumento de suas remunerações que totalizará R$5,6 bilhões em 2022.

Decisões desse tipo, ainda que não de mesma magnitude e prazo de vigência, já estão ocorrendo em outros Estados. Segundo matéria publicada na Folha de S. Paulo também do dia 14 de fevereiro, neste ano eleitoral os reajustes a servidores já ocorreram em 13 Estados. O INSS também reajustou suas aposentadorias e pensões em 10,16%. Não consegui dados sobre o impacto financeiro dessa medida, mas sei que alcança dezenas de milhões de beneficiários, aliviando efeitos da inflação ampliada, sobre o consumo.

De sua parte, entre outras medidas pró aumento de gastos dos consumidores, o governo federal criou um programa ampliado que substituiu o Bolsa Família, o Congresso deve gastar mais com suas emendas parlamentares, e por aí vai.

Mas, vale lembrar, nem toda a ampliação de rendimentos irá para o consumo. Em 2020, por exemplo, parte significativa do Auxílio Emergencial de R$600 por mês foi parar nas contas de poupança, numa atitude de precaução diante das incertezas que cercam o futuro da economia e do desempenho também muito fraco do mercado de trabalho.

Ainda quanto a fatores atuando em sentido contrário do lado da demanda, há grande incerteza quando ao futuro da economia, que também está sujeita a instabilidades ligadas à fragilidade fiscal do governo federal, ao lado da inflação que levou ao aumento da taxa básica de juros e das taxas de juros em geral, o que também desestimula consumidores e investidores a tomar crédito para ampliar seus dispêndios.

Ou seja, há fatores pesando a favor de uma taxa maior do PIB em 2022 do que a previsão citada, e outros que poderiam levar a uma taxa ainda menor do que ela. Deve-se lembrar que previsões do tipo citado envolvem uma distribuição de frequências de opiniões, colhidas a partir de uma amostra, que no caso citado foi de 100 analistas atuantes no mercado financeiro, com o BC utilizando a mediana de suas previsões.

Ao longo do ano continuaremos acompanhando a evolução das previsões sobre a variação do PIB e dos fatos que irão afetá-las, e voltaremos ao assunto neste espaço.

 

Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no site da Fundação Espaço Democrático, em 16 de fevereiro de 2022.

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O Fundo de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais – Fiagro https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3562&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-fundo-de-investimento-nas-cadeias-produtivas-agroindustriais-fiagro Tue, 25 Jan 2022 16:07:46 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3562 O Fundo de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais – Fiagro

 

Por Rogério Boueri[1], Rodrigo Pereira[2], Iran Veiga[3], Sergio Ferrão[4] e Francisco Erismá[5]

 

  1. Introdução

A agropecuária brasileira é uma das que mais cresce no mundo. A abundância de terras relativamente baratas e de irradiação solar durante a maior parte do ano permite o plantio de três safras anuais. Esse crescimento e o aumento da eficiência do setor deverão contribuir com segurança alimentar em escala mundial. Conforme projeções da USDA, órgão de inteligência agropecuária dos Estados Unidas, o Brasil terá que elevar sua produção agropecuária em 41% até a safra 2026/2027 para que os preços dos alimentos se mantenham em patamares compatíveis com a segurança alimentar no mundo.

O crédito rural configura-se como ferramenta indispensável à consecução desse objetivo. O Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR) teve papel fundamental na evolução da agropecuária brasileira, ajudando a levar o País da condição de importador líquido de cereais à de potência exportadora mundial. No entanto, as restrições fiscais enfrentadas pelo Governo Federal e a evolução da agropecuária brasileira requerem modificações nesse sistema.

A evolução necessária do SNCR é fruto de seu próprio sucesso, pois o que é necessário agora é um sistema apto a lidar não com a possibilidade de escassez interna de alimentos, mas sim com uma agropecuária altamente produtiva e integrada nos circuitos comerciais nacionais e internacionais. Junte-se a isso a necessidade de ajuste fiscal, que se fará mais premente e necessário na retomada da economia pós-pandemia de Covid-19. Essa evolução passa então pela redução da subvenção, em especial aquela voltada aos grandes produtores, que já acessam o crédito bancário com facilidade, principalmente em vista da tendência de queda nas taxas de juros no longo prazo.

No entanto, para que se possa realizar essa redução dos subsídios governamentais ao crédito rural, o sistema de financiamento privado voltado ao agronegócio deve evoluir. Novos mecanismos e ferramentas devem ser regulamentados e criadas novas formas de garantias que atendam à evolução do mercado financeiro privado. É nesse contexto que surge o Fundo de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais – Fiagro.

Os Fiagro representam novos potenciais gestores com recursos e expertise na área através da gestão profissional dos fundos e que podem criar valor pelo investimento na melhoria da terra e sua posterior revenda/arrendamento.

Eles também dão acesso a um conjunto de investidores pulverizados que antes não tinham possibilidade de investir nos ativos. A entrada desses novos players no mercado pode aumentar a liquidez e a transparência do mercado de terras rurais.

Já a possibilidade de integralização de quotas com diferimento do imposto sobre o ganho de capital, mas com a promessa de dividendos regulares, estimula o lado da oferta. Potenciais vendedores terão mais possibilidades de venda, e estímulo à regularização do registro dos muitos imóveis irregulares.

Essa nota informativa busca descrever o Fiagro e como o trabalho conjunto da Secretaria de Política Econômica e do Congresso Nacional permitiu que essa modalidade de fundo de investimento se tornasse uma realidade com a promulgação da Lei nº 14.130/2021, e subsequente regulação pela CVM via resolução CVM nº 39 de 2021.

  1. Má alocação de terras e baixo investimento estrangeiro

Com a migração da população do campo para a cidade que ocorreu nas últimas décadas[6] muitas propriedades rurais ficaram subutilizadas ou utilizadas de forma pouco eficiente, e existe uma proporção expressiva das lavouras de soja, milho, arroz e cana-de-açúcar que são exploradas sob forma de arrendamento ou parceria[7].

Esses arrendamentos e parcerias são, em boa parte das vezes, realizados de forma tácita ou informal e não proporcionam arrecadação ao fisco, bem como não permitem investimentos mais estruturantes por parte do arrendador nem do arrendatário. Em suma, cria-se uma situação de insegurança jurídica e tributária.

Existe também grande número de propriedades não regularizadas, oriundas de heranças e inventários. Isso decorre principalmente do descasamento dos custos de regularização (custos advocatícios, custos cartoriais, tributos etc.), da desorganização e pouca transparência das informações fundiárias rurais, e da falta de liquidez para venda das propriedades que proporcionaria os recursos financeiros capazes de fazer face a essas despesas.

Em decorrência dessa situação, muitas propriedades permanecem alocadas de maneira ineficiente, pois, na ausência da regularização patrimonial, torna-se muito difícil o seu emprego em atividades produtivas modernas e de maior rentabilidade. Nesse contexto de informações fundiárias rurais fragmentadas e desorganizadas, torna-se também difícil estabelecer as bases de uma tributação justa.

Além desses problemas, e em boa parte fruto deles, há grande dificuldade para investidores estrangeiros ingressarem no mercado imobiliário rural brasileiro. Tal empecilho decorre não somente de restrições legais, mas também da própria desorganização da situação patrimonial e tributária de boa parte dos imóveis rurais brasileiros.

Muitas vezes é difícil, inclusive, estabelecer claramente se determinado imóvel está plenamente regularizado. Neste cenário de incerteza não é de se estranhar que, apesar da pujança atual e potencial do setor agropecuário brasileiro, os investimentos estrangeiros ainda sejam escassos.

  1. Crédito e crescimento econômico

A disponibilidade de crédito é um elemento crucial para o crescimento econômico. Cada real gasto por alguém que recebe um crédito equivale a um real extra de renda de outro indivíduo. Um indivíduo que tenha mais crédito vai gastar mais, elevando a renda de diversos outros indivíduos. Com rendas mais altas, esses outros indivíduos terão seu acesso ao crédito ampliado, portanto elevando as rendas de outros tantos indivíduos, e assim sucessivamente. Esse padrão de expansão do crédito e subsequentes expansões de renda levam ao crescimento econômico. Durante o boom de commodities dos anos 2000 houve um forte crescimento do crédito no Brasil. Não coincidentemente, esse foi também um período de maior crescimento econômico.

A correlação entre a disponibilidade de crédito e a prosperidade material é inegável. O crédito doméstico ao setor privado como proporção do PIB é de 149% em países de alta renda, 124,3% em países de renda média-alta, 109,2% em países de renda média, 44,4% em países de renda média baixa, e 13,7% em países de renda baixa, segundo dados de 2019 do Banco Mundial[8]. No Brasil, o crédito doméstico disponível ao setor privado é ainda baixo: 63,7% do PIB.

Uma questão importante é se isso é apenas uma correlação, ou se há uma relação de causalidade entre crédito e crescimento econômico. Um número de estudos se propôs a investigar os efeitos do desenvolvimento financeiro (medido em grande parte pela disponibilidade de crédito como proporção do produto) sobre o crescimento econômico. De um modo geral, essa literatura mostra que o desenvolvimento financeiro tem fortes efeitos positivos sobre o crescimento econômico (King e Levine 1993a, King e Levine 1993b, e Rioja e Valev 2004).

Numa economia sem crédito algum, um indivíduo somente pode aumentar seus gastos quando aumenta sua renda, e isso só pode ocorrer quando há um aumento de sua produtividade. Nesse caso, há crescimento econômico toda vez que alguém se torna mais produtivo. Um indivíduo só consegue gastar mais se produzir mais. Por outro lado, numa economia com crédito pode-se ter o gasto maior do que a renda tomando-se empréstimos. Como o gasto de um indivíduo é a renda de outros, é possível então fazer as rendas numa economia crescerem mais rapidamente do que a produtividade no curto prazo.

Esse crescimento “artificial” de curto prazo no poder de compra dos indivíduos proporcionado pelo crédito pode ter dois destinos distintos. Por um lado, pode virar consumo. Um indivíduo compra bens que não teria condições de comprar sem o crédito, gastando além do que sua renda permite, para no futuro pagar o empréstimo, e passar então a consumir aquém do que sua renda permite. Portanto, o mecanismo de transmissão de mais gastos virando mais rendas de outros indivíduos se reverte no futuro, quando as dívidas contraídas no presente para financiar consumo são quitadas. A inexorável redução dos gastos futuros devido ao endividamento se transforma em rendas mais baixas de outros indivíduos. Essa destinação do crédito apenas amplifica os ciclos, sem gerar efeito de longo prazo no crescimento econômico. Porque mais rendas no presente são criadas ao custo de menos rendas no futuro.

Boa parte da expansão do crédito na economia brasileira dos anos 2000 foi direcionada para o consumo. Nesse caso a economia cresce rapidamente no curto prazo, mas o efeito no crescimento de longo prazo é limitado, e o crédito tende a amplificar o ciclo econômico. O crescimento tem o famoso padrão de “voo de galinha”. O efeito do consumo dos anos de crescimento econômico cobra seu preço nos anos seguintes na forma de um grande endividamento das famílias e uma contração excessiva do consumo privado. Em recente entrevista, um candidato à presidência sumarizou a expansão do crédito no Brasil nos anos 2000: “… o crédito saiu de 15 para 55% do PIB, no dia seguinte 63,7 milhões de brasileiros estão com o nome no SPC, 6 milhões de empresas estão com o nome no Serasa, quebradas, humilhadas …”[9].

Quando a expansão de crédito financia aumento da capacidade de criação de renda e riqueza na economia há um efeito maior sobre o crescimento de longo prazo porque ele permite a ampliação permanente da renda. No momento de pagamento da dívida contraída o indivíduo terá uma renda maior, o que arrefece a redução em seu consumo, e também a volatilidade do ciclo econômico. O voo deixa de ser “de galinha”. É aqui que se insere boa parte do crédito rural no Brasil, e em particular, as oportunidades de crédito criadas com o Fiagro, que financiam o aumento da capacidade produtiva do agronegócio. Os Fiagro são uma inovação que contribui para o desenvolvimento financeiro do Brasil, com um potencial de melhorar o mercado de terras rurais, e de aumentar a disponibilidade de crédito ao agronegócio.

  1. O surgimento do Fiagro

A criação de um fundo de investimento rural nos moldes dos fundos de investimento imobiliário (FII) já vinha sendo objeto de discussões no Congresso Nacional e também no Ministério da Economia há algum tempo. Em 2020, elementos desses dois esforços paralelos foram agregados no Projeto de Lei nº 5.191/2020 de autoria do deputado Arnaldo Jardim (Cidadania/SP). A proposta permitia, por um lado, a captação de recursos para financiamento de empreendimentos do setor, atendendo à contínua e crescente necessidade de recursos, e por outro, facilitava o acesso do pequeno investidor aos empreendimentos do agronegócio.

O debate que se seguiu ao Projeto de Lei envolveu os setores produtivos, representantes dos mercados de capitais e dos poderes legislativo e executivo. O resultado foi a Lei nº 14.130, de 29 de março de 2021, que criou o Fiagro, alterando a Lei nº 8.663/1993 (que criou os FII e definiu seu regime tributário) e a Lei nº 11.033/2004 (que versa sobre a tributação do mercado financeiro e de capitais).

A Lei nº 14.130/2021 define que os Fiagro podem ser constituídos por 6 tipos de ativos: (i) imóveis rurais; (ii) participação em sociedades que explorem atividades integrantes da cadeia produtiva agroindustrial; (iii) ativos financeiros, títulos de créditos ou valores mobiliários emitidos por pessoas físicas e jurídicas que integrem a cadeia produtiva agroindustrial, na forma de regulamento; (iv) direitos creditórios do agronegócio e títulos de securitização emitidos com lastro em direitos creditórios do agronegócio, inclusive certificados de recebíveis do agronegócio e cotas de fundos de investimento em direitos creditórios e de fundos de investimento em direitos creditórios não padronizados que apliquem mais de 50% de seu patrimônio nos referidos direitos creditórios; (v) direitos creditórios imobiliários relativos a imóveis rurais e títulos de securitização emitidos com lastro nesses direitos creditórios, inclusive certificados de recebíveis do agronegócio e cotas de fundos de investimento em direitos creditórios e de fundos de investimento em direitos creditórios não padronizados que apliquem mais de 50% de seu patrimônio nos referidos direitos creditórios; (vi) cotas de fundos de investimento que apliquem mais de 50% de seu patrimônio nos ativos listados de (i) a (v). Os ativos financeiros referidos em (iii) são basicamente os seguintes: CPR (Cédula de Produto Rural), CDA (Certificado de Depósito Agropecuário), WA (Warrant Agropecuário), CDCA (Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio), LCA (Letra de Crédito do Agronegócio), CRA (Certificado de Recebíveis do Agronegócio) e CIR (Cédula Imobiliária Rural).

Em julho de 2021 a CVM disciplinou a lei do Fiagro por meio da Resolução CVM nº 39. Essa resolução dividiu o Fiagro em três modalidades em função dos ativos que o compõe, quais sejam:

  • Fiagro – FIDC (Fundo de Investimento em Direitos Creditórios): títulos de crédito ou valores mobiliários emitidos por integrantes da cadeia agroindustrial; direitos creditórios imobiliários de imóveis rurais ou do agronegócio e títulos de securitização com lastro nesses direitos;
  • Fiagro – FII (Fundo de Investimento Imobiliário): imóveis rurais, CRA e LCA.
  • Fiagro – FIP (Fundo de Investimento em Participações): participações em sociedades que explorem atividades integrantes da cadeia agroindustrial.

Os Fiagro-FII, lastreados em imóveis rurais, CRAs e LCAs, têm prevalecido até agora. Dos 31 fundos registrados na CVM até a data de 26 de novembro de 2021, 24 deles são Fiagro-FII, 7 são FiagroFIDC, lastreados em recebíveis do agronegócio, e nenhum é da modalidade Fiagro-FIP. Os valores de emissão comunicados totalizam aproximadamente 7,5 bilhões de reais, dos quais aproximadamente 6 bilhões referem-se a Fiagro-FII.

Tabela 1: Fiagro registrados na CVM até 26/nov/2021

 

5. Características do Fiagro

Os Fiagros são semelhantes aos FII em diversos aspectos. Em ambos os casos um grupo de investidores se juntam em sociedade para adquirir ativos e repartir os ganhos econômicos gerados por eles. Em ambos os casos os imóveis podem ser ativos que lastreiam os fundos, imóveis urbanos no caso dos FII, e rurais no caso dos Fiagro. Em ambos os casos, os rendimentos resultantes de vendas ou locações dos imóveis são distribuídos aos cotistas. A diferença é que enquanto nos FII o gestor tem que distribuir 95% dos rendimentos no semestre, nos Fiagro essa restrição não existe. O gestor tem liberdade para definir no regulamento do fundo o esquema de distribuição dos rendimentos.

Há semelhança também na tributação dos Fiagro e dos FII. Em ambos os casos pessoas jurídicas pagam 20% de imposto de renda, e pessoas físicas são isentas desde que o fundo tenha ao menos 50 cotistas, e cotista pessoa física não detenha mais de 10% das cotas do fundo. Essa isenção está condicionada a que as cotas do Fiagro sejam negociadas em bolsa de valores ou no mercado de balcão organizado. Embora existam outros ativos do agronegócio que usufruam de isenção da tributação de renda além do Fiagro (por exemplo, LCA, CRA etc.), o Fiagro é o único sob a forma de fundo de investimento. Portanto o Fiagro agrega qualidades importantes como a isenção tributária para pessoas físicas sob certas condições, a diversificação de portfólio (inexistente no caso de um pequeno investidor que compre um imóvel rural), a possibilidade de o pequeno investidor ter seu capital administrado por profissionais, e a facilidade de entrada do pequeno investidor.

Além disso, não há incidência de imposto de renda sobre os rendimentos líquidos auferidos pelas carteiras do Fiagro caso esses ganhos sejam provenientes de aplicações em Certificados de Depósito Agropecuário – CDA, Warrants Agropecuário – WA, Certificados de Direitos Creditórios do Agronegócio – CDCA, Letras de Crédito do Agronegócio – LCA e Certificados de Recebíveis do Agronegócio – CRA, e Cédulas de Produto Rural – CPR, com liquidação financeira.

Os ganhos de capital são taxados a uma alíquota de 20%, tanto para pessoas físicas quanto para jurídicas. Uma diferença crucial entre o Fiagro e o FII é a possibilidade de diferimento do pagamento da tributação sobre ganhos de capital no caso de integralização de uma propriedade em troca de cotas do Fiagro. O pagamento do imposto é feito somente quando as cotas são vendidas no mercado, ou em que o fundo é liquidado. Essa possibilidade não existe nos FII.

O diferimento do pagamento da tributação sobre ganhos de capital foi estabelecido para evitar o descasamento entre o recebimento de recursos financeiros pelo vendedor/investidor e a necessidade de pagamento desses tributos, pois se a transferência da propriedade for paga com quotas e não em dinheiro, o vendedor/investidor não receberá numerário, mas teria que arcar com as despesas tributárias. Isso poderia desincentivar a integralização de propriedades rurais ao fundo. Para agravar a situação, muitas propriedades que potencialmente poderiam ser incorporadas a algum Fiagro mediante pagamento em quotas têm seus valores contábeis defasados, o que acarretaria pagamentos substanciais de tributos quando da permuta para integralização das quotas.

O pequeno investidor tem uma participação ainda reduzida no financiamento do agronegócio. Os recursos que financiam o setor vêm em geral do crédito rural canalizado por instituições financeiras (bancos e cooperativas de crédito), de títulos de dívida emitidos por produtores rurais (em parte negociados através do mercado de capitais) e de recursos próprios dos produtores. O Fiagro abre uma oportunidade para que pequenos investidores aportem seus investimentos e possam usufruir de um dos setores de maior crescimento da economia brasileira. Espera-se que a criação desse instrumento financeiro traga um maior dinamismo e transparência ao mercado de terras rurais, um mercado mais competitivo na formação de preços de terras, e maior liquidez ao estoque de terras como ativo do produtor rural.

Se bem sucedido, o Fiagro tem potencial para atenuar os problemas levantados na seção 2. A segurança jurídica proporcionada pelos Fiagro pode aumentar a participação de estrangeiros no financiamento do agronegócio no Brasil. A necessidade de regularização patrimonial dos imóveis rurais para que possam ser integralizados nos fundos pode incentivar proprietários rurais a buscar essa regularização, o que permitiria uma maior eficiência no uso das terras.

 

Referências

KING, ROBERT G. e ROSS LEVINE, (1993a) “Finance and Growth: Schumpeter Might Be Right,” Quarterly Journal Economics, Aug, 108(3), 717-37.

KING, ROBERT G. e ROSS LEVINE, (1993b) “Finance, Entrepreneurship, and Growth: Theory and Evidence,” Journal of Monetary Economics, Dec., 32(3), 513-42.

RIOJA, FELIX e VALEV, NEVEN, (2004) “Does one size fit all?: a reexamination of the finance and growth relationship”, Journal of Development Economics, Volume 74, Issue 2, Aug., Pages 429-447.

[1] Rogerio Boueri é subsecretário de Política Agrícola e Negócios Agroambientais do Ministério da Economia.

[2] Rodrigo Pereira é assessor especial na Secretaria de Política Econômica no Ministério da Economia.

[3] Iran Veiga é analista de planejamento e orçamento e trabalha na Secretaria de Política Econômica do Ministério da Economia.

[4] Sergio Ferrão é assessor da Secretaria de Política Econômica do/Ministério da Economia.

[5] Francisco Erismá é coordenador geral de Crédito e Seguro Agrícola da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Economia.

[6] Conforme o IBGE, entre 1960 e 2010 a taxa de urbanização da população brasileira cresceu de 44,67% para 84,36%.

[7] Conforme o Censo Agropecuário 2017, na média dessas culturas a proporção de arrendamentos e parcerias é de 26%.

[8] World Bank Open Data.

[9] Entrevista no Programa Cara a Tapa, em 16/set/2021.

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Uma questão absorvente https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3534&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=uma-questao-absorvente Mon, 06 Dec 2021 19:25:43 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3534 Uma questão absorvente[1]

 

 Por Marcos Mendes*, Henrique Moreira Rizzolli, Herly Xiao, Laura Guarnier, Leonardo Baran, Lucas Dalto Pizarro, Octávio Ferro Indio da Costa, Roberto Felize e Thiago Souza de Oliveira[2]

 

 Introdução

O presente texto utiliza a proposta de distribuição gratuita de absorventes íntimos a mulheres de baixa renda como estudo de caso de política pública. O intuito é mostrar a importância de se ter um diagnóstico adequado, definindo-se exatamente qual é o problema que se deseja resolver, as diferentes restrições, os impactos colaterais e as diferentes possíveis soluções.

Houve intenso debate na sociedade brasileira sobre a aprovação e veto parcial do Projeto de Lei 4.968/19, transformado na Lei 14.214/21. Seu objetivo principal era instituir o Programa de Proteção e Promoção de Saúde Menstrual (PPSM), que consistiria na entrega gratuita de absorventes ao seguinte público:

a) estudantes de baixa renda matriculadas em escolas da rede pública de ensino;

b) mulheres em situação de rua ou em situação de vulnerabilidade social extrema;

c) mulheres apreendidas e presidiárias, recolhidas em unidades do sistema penal; e

d) mulheres internadas em unidades para cumprimento de medida socioeducativa.

Também propunha a inclusão de absorventes como itens da cesta básica entregues no âmbito do já existente Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.

O Programa seria implementado de forma integrada pela União, estados e municípios, mediante atuação, em especial, das áreas de saúde, de assistência social, de educação e de segurança pública.

Os recursos viriam do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN) e do Sistema Único de Saúde (SUS). No primeiro caso, seriam recursos inteiramente do Governo Federal, que é o responsável pelo financiamento do FUNPEN. No segundo caso, o financiamento seria realizado pelos três níveis de governo, que custeiam solidariamente o SUS.

De forma adicional, propunha-se que os absorventes higiênicos femininos feitos com materiais sustentáveis teriam preferência de aquisição, em igualdade de condições, como critério de desempate, pelos órgãos e pelas entidades responsáveis pelo certame licitatório.

Os vetos por parte da Presidência da República atingiram os artigos 1º (que assegurava a distribuição gratuita), 3 º (que definia o público alvo), 5º (tratamento preferencial aos absorventes produzidos com material sustentável), 6º (financiamento pelo SUS) e 7º (inclusão dos preservativos na cesta básica). Somente os artigos 2º (que institui o PPSM) e 4º (implementação pelos 3 níveis de governo) foram mantidos, os quais declaram apenas intenções.

Após os vetos instaurou-se choque de opiniões na imprensa e nas redes sociais que reproduz a polarização política vigente no país. Quem é contra o Governo Bolsonaro passou a criticar os vetos e propor sua derrubada. Os defensores do Presidente passaram a desqualificar o mérito da proposta.

Políticas públicas decididas por embates ideológicos ou eleitorais correm sérios riscos de levarem a maus resultados. Elas devem ser desenhadas a partir de uma identificação clara do problema a ser resolvido, da análise da experiência nacional e internacional em lidar com o problema, explorando-se diferentes possibilidades que possam ser adotadas conjuntamente. Custos e benefícios precisam ser adequadamente mensurados.

Por que intervir?

O ponto de partida para a discussão de uma política pública deve ser sempre a pergunta: por que o governo tem que intervir? O setor privado e os mecanismos de mercado não são capazes de resolver o problema sozinhos? No jargão econômico a pergunta é: qual a falha de mercado que se quer solucionar?

Isso porque toda intervenção estatal tem custos para a sociedade, pelo aumento de tributos e pelos custos administrativos e regulatórios que a ação estatal gera.

A principal falha de mercado, no caso, parece ser a existência de pessoas sem renda suficiente para adquirir um bem de primeira necessidade. Não há igualdade de oportunidade às mulheres pobres no acesso à saúde, educação e mercado de trabalho. Em sendo uma questão de política redistributiva há, a princípio, espaço para a entrada do governo visando facilitar o acesso da população em situação desfavorecida ao bem essencial.

Seria essa falha de mercado relevante? A julgar pela mobilização das agências internacionais voltadas a questões de equidade, o tema parece ser, de fato, relevante. A UNICEF desenvolve em uma das vertentes de sua campanha mundial “Water, Sanitation and Hygiene” (WASH), a conscientização e a distribuição de itens de higiene menstrual para regiões de baixa e média renda, além de localidades em estado de emergência. O tema também é abordado nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, com o recorte de reivindicação para o acesso de serviços de saúde.

Há diversas políticas públicas voltadas ao acesso a absorventes ao redor do mundo. O exemplo mais significativo é o da Escócia, a qual após um período praticando parcerias locais para o fornecimento de absorventes em instituições de ensino, começou em novembro de 2020 distribuir esse item gratuitamente para “quem precisar deles”, além de 500 mil libras (valores de 2020) destinados à instituição de caridade FareShare para a distribuição de produtos de higiene menstrual para famílias de baixa renda. Essa é uma experiência relevante porque se baseou em cuidadosa avaliação ex-ante das diferentes opções para a provisão do serviço público, de custos e de benefícios.[3]

Outra falha de mercado pode estar na estrutura de produção e oferta de absorventes. Havendo concentração da oferta em poucas empresas, não haveria concorrência perfeita e, com isso, surgiria a possibilidade de lucros extraordinários e oferta do bem inferior ao ótimo social. De fato, mais de 50% do mercado é atendido por três grandes empresas: Johnson & Johnson, Kimberly-Clark e Procter & Gamble[4]. Trata-se, portanto, de um mercado oligopolizado.

Nesse caso, haveria espaço para medidas diferentes e não cobertas pelo projeto de lei em análise: ações regulatórias tais como a redução de imposto de importação ou a verificação de eventuais práticas anticompetitivas das empresas do setor, visando melhorar a eficiência de mercado para que houvesse maior oferta e menor preço.

Os absorventes estão classificados na Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM) no código “96.19.00.00 – Absorventes e tampões higiênicos, cueiros e fraldas para bebês e artigos higiênicos semelhantes, de qualquer matéria”.

A alíquota da Tarifa Externa Comum do Mercosul é de 16%, mas a classificação está na lista de exceções com alíquota de 12%. Em decorrência de todo o debate sobre a questão dos custos dos absorventes, a Câmara de Comércio Exterior decidiu, em 19/11/21, reduzir a alíquota de importação de 12% para 10%. Também foi reduzida de 8% para 7% a alíquota incidente sobre produtos químicos essenciais à produção de absorventes[5]. Pode-se dizer que, embora tenha vetado o projeto de lei, o Governo Federal está se movendo em outra frente, visando o objetivo de tornar os absorventes mais acessíveis.

Uma consulta à base de dados da Organização Mundial do Comércio permite verificar as tarifas de importação impostas pelo Brasil em comparação com o restante do mundo. A figura abaixo mostra que o movimento recente colocou nossa tarifa de importação abaixo da média mundial e da América Latina. Mas ainda é alta em relação à dos países desenvolvidos e dos emergentes asiáticos.

Haveria, portanto, mais espaço para avançar nessa liberalização. O Brasil, contudo, tem limitações decorrentes do acordo do Mercosul. Em geral, nossa política externa está atada a princípios protecionistas que impedem que as importações elevem a concorrência e permitam que bens de consumo cheguem à população mais pobre a preços mais acessíveis. Pode-se dizer que, em parte, a necessidade de subsidiar produtos aos mais pobres vem de outra política pública, voltada a preservar a margem de lucro das empresas que atuam no País.

Absorventes e similares: tarifa preferencial média para grupos de países: 2020 ou 2021 (%)

 

Fonte: OMC (http://tariffdata.wto.org/ReportersAndProducts.aspx)

Nota: classificação de produtos = “Sanitary towels (pads) and tampons, napkins
 and napkin liners for babies, and similar articles, of any material”)

Fenômeno similar se dá no caso da chamada “margem de preferência” em compras públicas. Reproduzindo regra existente na antiga Lei de Licitações (Lei 8.666/93), a nova Lei de Licitações (Lei 14.133/21), em seu art. 26, prevê que bens manufaturados nacionais possam ser adquiridos por preços mais altos que seus concorrentes estrangeiros. Ou seja, o intuito de proteger a produção no país – como no caso das alíquotas de importação – pode levar ao aumento de custos na aquisição dos absorventes, caso venha a ser ativada, na licitação pública, a cláusula de “margem de preferência”.

Quais as possíveis falhas de governo?

Toda política pública está sujeita a “falhas de governo”. A compra e distribuição de absorventes em grande escala, pelo Governo Federal, teria grandes desafios de logística de armazenamento e distribuição, o que poderia elevar os custos totais. Licitações públicas também são frequentemente assoladas por atrasos e casos de corrupção.

Uma forma de evitar esses custos é buscar canais alternativos de provisão e distribuição. O Brasil já dispõe do Programa Farmácia Popular, que utiliza a rede privada de farmácias para ofertar medicamentos e produtos de higiene a preços subsidiados. Nesse sentido, parece mais eficiente e lógico atender parte do público alvo por meio de programa já existente, em vez de criar uma nova estrutura de distribuição pela aprovação de uma nova lei. Note-se que o Farmácia Popular já oferta bens similares a absorventes, como fraldas geriátricas.

O Programa já foi objeto de avaliações[6] e, já tendo um histórico de execução, pode ser objeto de melhorias marginais, o que parece mais eficiente que a instituição de um programa totalmente novo. Uma possibilidade seria o novo programa se restringir a públicos específicos que não têm acesso às farmácias, como as presidiárias, ou ter distribuição suplementar nas escolas públicas (como, por exemplo, absorventes disponíveis para casos de emergência, em vez de distribuição ampla para todas as alunas).

A questão federativa

O art. 4º do Projeto de Lei, que não foi vetado, estabelece que o programa “será implementado de forma integrada entre todos os entes federados”. Trata-se, portanto, de uma legislação federal criando obrigação para todos os estados e municípios.

Do ponto de vista da organização federativa do País, não parece uma medida adequada. Uma das grandes vantagens de se ter uma federação é que cada governo local pode dar atenção às prioridades locais. Uma vez que o legislador federal toma uma decisão unificada para todo o país, perde-se essa flexibilidade.

É certo que em todos os lugares do país há mulheres de baixa renda necessitando de absorventes. Mas não necessariamente essa é a primeira ou uma das primeiras prioridades locais. Por exemplo, em um estado estudantes que recebam absorventes podem continuar faltando aulas por não terem transporte adequado ou porque não há professores na escola. Em um estado o foco da política pode estar mais na população carcerária, em outro, na população escolar e, em outro, nas mulheres que têm dificuldade de buscar emprego ou comparecer ao trabalho por falta de absorventes. Ao gestor local, que conhece melhor a realidade da sua comunidade, deve ser dada flexibilidade de escolha e ação.

Nesse sentido, em vez de uma lei unificadora nacional, medidas infralegais de inclusão de fornecimento de absorventes e outros produtos de higiene via SUS, poderiam ser oferecidos de forma voluntária aos estados e municípios. Uma forma de fazê-lo seria, por exemplo, mediante o compartilhamento de custos, por meio de transferência vinculada com contrapartida: a cada R$ 1 destinado pelo estado ou município para a provisão de absorventes, dentro de programa desenhado no âmbito do SUS, a União custearia, digamos, R$ 0,50. Isso equivaleria a um subsídio ou redução do custo da política para o governo local, induzindo, porém não obrigando, a participação no programa.

Um aspecto interessante da autonomia local é que os diferentes programas e diferentes abordagens poderiam ser submetidos a avaliações, de modo a se verificar qual das políticas locais se mostrou mais efetiva, constituindo caso de sucesso a ser copiado e adaptado por outros estados e municípios. Isso ampliaria a eficácia da política pública ao longo dos anos.

As formas alternativas ou adicionais de atingir o mesmo objetivo

O projeto de lei em análise escolheu o caminho da distribuição direta de absorventes. Quais seriam os caminhos alternativos para se atingir o objetivo final de tornar o produto acessível a mulheres de baixa renda? Obviamente as diferentes opções não são mutuamente excludentes. Juntas podem levar a efeito mais intenso que a simples distribuição. Mas, ao mesmo tempo, é preciso avaliar benefícios e custos.

Já se mencionou, acima, os mecanismos regulatórios de averiguação e prevenção de eventuais práticas anticompetitivas de mercado e de redução do custo de importação do produto acabado e de seus insumos. Também já foi apresentada a opção de venda na rede privada de farmácias, a custos subsidiados, no âmbito do Programa Farmácia Popular. A seguir, avaliam-se outras opções. 

Transferência de dinheiro

Outra possibilidade é simplesmente dar o dinheiro à família. De fato, um questionamento muito frequente à distribuição de absorventes foi o de que já existe o Programa Bolsa Família (PBF). E que esse Programa é elogiado justamente por deixar a opção de consumo nas mãos das famílias, não impondo um padrão único de consumo a partir de uma decisão do legislador ou da burocracia.

Um contra-argumento seria o de que as adolescentes não controlam o orçamento da família. São os pais e responsáveis que decidem por elas. E estes podem ter outro conjunto de preferências e prioridades. Esse argumento, usualmente utilizado para justificar a obrigação de matricular crianças na escola, também pode ser usado para justificar a distribuição direta dos absorventes.

Mas há os que apontam que o Bolsa Família tem entre as suas condicionalidades a presença na escola. Se uma adolescente está faltando por não dispor de absorvente, a família pode ser punida com a perda do benefício, o que faria os pais privilegiarem o atendimento da necessidade da adolescente. Somente o reconhecimento da ineficácia dos condicionantes do Bolsa Família ou a percepção de que as faltas em período menstrual não seriam suficientes para decretar a perda do benefício poderiam desmontar esse argumento.

Nesse caso, o esforço poderia ser o de prover as escolas com estoques de absorventes para atender a demanda eventual pelas adolescentes (em vez de provisão obrigatória a todas) e de melhorar o monitoramento das condicionalidades do PBF. 

Redução de impostos

Outra possibilidade seria a redução da tributação sobre o consumo de absorventes (não confundir com o imposto de importação, acima tratado). A experiência internacional mostra que vários países optaram por esse caminho.  Há registro de tratamento tributário preferencial na Alemanha, Austrália, Canadá, Colômbia, Jamaica, Líbano, Índia, Malásia, Nigéria, Uganda e Quênia[7].

Em 2004, o primeiro país a eliminar a tributação sobre produtos de higiene menstrual foi o Quênia. Em 2018, a Índia também eliminou a sua taxa de 12%. Em 2016 os países membros da União Europeia entraram em um acordo acerca da flexibilização sobre a taxação de produtos sanitários, mas não incluem uma regulamentação formal para a tributação como realiza com diversos outros produtos, estipulando alíquotas mínimas e máximas. Com isso, por exemplo, em 2019, a Alemanha conseguiu retirar a taxação de 19%, dado que os absorventes eram considerados um item de luxo pelo parlamento[8].

No Brasil, os absorventes (e tampões) são isentos do Imposto de Produto Industrializado, porém continuam com a incidência de outros impostos, como o Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e possuem uma alíquota de tributação média de 34,48%.

O problema de se utilizar a redução de impostos é a falta de focalização nos mais pobres. A redução da arrecadação, que fará falta para financiar outras políticas públicas, subsidiará os absorventes comprados pelos pobres e pelos ricos. Esse é o problema típico de se tentar fazer política de atenção aos mais pobres através de benefícios tributários[9]. Um estudo sobre os benefícios fiscais do ICMS no Rio Grande do Sul mostrou que os 30% mais pobres receberam menos de 14% do benefício, enquanto os 30% mais ricos se apropriaram de 50%32.

De modo similar, o Ministério da Fazenda, em 2017, estimou que destinar R$ 1 bilhão ao Bolsa Família produz um impacto 12 vezes maior para a queda da desigualdade do que desonerar em R$ 1 bilhão a cesta básica[10] . Isso porque, por um lado, acabam entrando no conceito de “cesta básica” produtos não consumidos pelos mais pobres, como carne de primeira. Por outro lado, os produtos têm variações de qualidade que não podem ser discriminadas na tributação: no caso dos absorventes, por exemplo, acabariam sendo desonerados tanto os mais baratos quanto os mais sofisticados. E a variação de preços e qualidade nesse mercado é ampla. Pesquisar o valor de uma unidade de absorventes nos seguintes sites: Amazon, Droga Raia, Drogaria São Paulo e Pague Menos. Notou-se que a variação de preço pode chegar a 10 vezes: a marca Tena-Maxi Night era vendida a R$ 2,42 a unidade, enquanto a marca Cottonbaby saia a R$ 0,26.

Deve-se notar a diferença entre reduzir impostos de importação e reduzir impostos sobre consumo. O imposto sobre importação não tem por finalidade principal arrecadar recursos para financiar políticas públicas. Sua função é regular o fluxo de entrada de produtos no país e o grau de proteção às empresas que atuam dentro do país. Embora a redução de ambos os impostos leve à diminuição do preço ao consumidor, os canais são diferentes. A redução do imposto sobre consumo resulta em perda de receita relevante para o governo, limitando sua capacidade de financiar outras políticas públicas. Já a redução do imposto de importação, não causa perda relevante de receita e atua sobre os preços ao aumentar a concorrência e diminuir margens de lucro e custos de produção.

Outra observação relevante é que o Programa Farmácia Popular, acima apontado como uma alternativa interessante de veiculação da política, também carece de focalização na população mais pobre. A princípio, qualquer indivíduo pode se beneficiar da aquisição de medicamentos subsidiados pelo Programa. No entanto, a forma segmentada de oferta e as exigências burocráticas para a aquisição subsidiada tendem a afunilar a busca pelo programa pelas pessoas que obtêm maior benefício marginal dos descontos. Não é, contudo, objeto desse texto uma avaliação pormenorizada da focalização efetiva do Programa Farmácia Popular.

Por fim, é importante chamar atenção para a importância de se fazer uma reforma tributária. A elevada tributação dos absorventes pelo ICMS decorre de distorções no nosso sistema tributário, que tributa muito os bens e pouco os serviços. Sendo os serviços mais consumidos por pessoas de alta renda, o sistema se torna regressivo. A introdução de um imposto sobre valor agregado (IVA), com alíquota única para todos os bens e serviços, corrigiria esse viés e reduziria o custo dos absorventes.

Adicionalmente, a reforma tributária reduziria a guerra fiscal e, com isso, o subsídio que os estados dão às empresas. Esses subsídios acabam sendo compensados por altas alíquotas nos bens tributados. Se extintos, viabilizariam alívio para todos os bens que hoje têm alíquotas elevadas.  Por fim, um IVA permite que se identifique claramente o montante total de impostos embutidos em um bem ou serviço comprado pelo consumidor final. Pessoas de baixa renda poderiam receber restituição total ou parcial de seu consumo via identificação pelo CPF, o que reduziria a necessidade de alíquotas diferenciadas para produtos específicos.

Produção comunitária de absorventes

Chamou atenção internacional uma bem-sucedida iniciativa do empreendedor indiano Arunachalam Muruganantham, que conseguiu criar um método simples de manufatura de absorventes[11]. Frente ao alto custo dos absorventes, em um mercado dominado por grandes empresas oligopolistas, ele identificou a necessidade de ofertar absorventes a baixo custo para a população indiana de baixa renda. Seu método padronizado, com maquinário simples e de baixo custo, permitiu criar nas comunidades rurais pequenas fábricas, que ocupam a mão de obra local, em especial feminina, produzindo itens que acabam sendo comercializados e consumidos localmente.

Esse tipo de experiência pode ser válido para o Brasil, seja para comunidades rurais, seja para favelas em áreas urbanas, e pode ser implantada de forma descentralizada e baseada em doações privadas, com pouca ou nenhuma participação do setor público. Não se está afirmando que funcionaria automaticamente. Como qualquer outra iniciativa de política pública, o sucesso desta estaria sujeito aos detalhes de desenho e implementação. Mas a experiência indiana é internacionalmente reconhecida como bem-sucedida. Logo, uma avaliação de possível adaptação ao Brasil mereceria ser avaliada.

Esse é mais um argumento que aponta para a relevância de soluções descentralizadas, tornando pouco eficiente a aprovação de uma lei uniformizadora e de aplicação obrigatória em todo o território nacional.

Os vetos presidenciais fazem sentido?

No ambiente de polarização em que estão sendo debatidas todas as políticas públicas, o Presidente da República foi fortemente criticado por vetar o projeto em análise. Os defensores da iniciativa legislativa tendem a afirmar que as justificativas dos vetos seriam “desculpa” para não implementar o projeto. Cabe analisar cada um dos argumentos usados nos vetos e verificar a sua consistência.

O primeiro argumento é de que o projeto de lei seria incompatível com a “autonomia das redes e estabelecimentos de ensino”. De fato, trata-se de ponto já assinalado acima: ao obrigar todos os governos e suas redes de ensino a implementarem um programa uniforme, definido pelo legislador federal, teríamos não só a anulação da autonomia das redes de ensino como dos próprios governos subnacionais. Não basta que se tenha uma causa nobre para desconsiderar essa autonomia, pois tal desconsideração também pode ser usada para finalidades menos elogiáveis. É preciso preservar as regras do jogo democrático e de funcionamento das instituições, e não se justifica quebra-las em função de um objetivo meritório.

Outro argumento é o de que se trata da criação de uma despesa obrigatória de caráter continuado. A Lei de Responsabilidade Fiscal exige, nesses casos, que se aponte uma nova e perene fonte de recursos ou o corte permanente de despesas para garantir o financiamento do programa. O projeto não foi claro a esse respeito, apenas atribuindo o custeio ao SUS e ao Fundo Penitenciário Nacional.

Mais uma vez, há que se preservar as regras fiscais, não cabendo flexibilizá-las em função do mérito da proposta em análise. Afinal, o mérito é sempre relativo a depender das preferências e interesse de quem o avalia. E a estabilidade fiscal é, em si, um bem público importante para proteger os mais pobres de fenômenos como a inflação, que corrói sua renda.

Há um veto específico à inclusão de absorventes na cesta básica que também é consistente. Argumenta o Poder Executivo que “o Projeto de Lei introduziria uma questão de saúde pública em uma lei que dispõe sobre segurança alimentar e nutricional”.

Por outro lado, há argumentos menos defensáveis ou que poderiam ser contornados. Alegou-se que não se pode fazer no âmbito do SUS um programa que seja voltado para clientelas específicas, pois o SUS tem caráter universal. Haveria espaço para, no âmbito do SUS, desenhar programas de subsídios ou fornecimentos nos postos de saúde e outras dependências públicas que não frustrassem o caráter universal. Mas isso teria que ser feito por instrumento infralegal. A proposição do programa na forma de lei, de fato, cria rigidez e maior dificuldade para uma adoção de caráter universal.

Outro argumento é o de que “absorventes higiênicos não se enquadram nos insumos padronizados pelo Sistema Único de Saúde – SUS, portanto não se encontram na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais – RENAME”. Esse parece um argumento formalista e passível de ser superado, uma vez que se pode considerar a importância de medidas preventivas para a saúde, e o risco de uso de instrumentos inadequados e nocivos à saúde em substituição aos absorventes.

Conclusões

Esse texto procurou apontar diversas alternativas existentes para lidar com o problema do baixo acesso a absorventes por mulheres de baixa renda. Seu intuito foi mostrar que não há uma única maneira de solucionar a questão. Portanto, o ambiente de confronto entre os que são favoráveis e contrários ao PL 14.214/21 empobrece o debate público, pois não permite explorar as melhores soluções possíveis.

O projeto tem como ponto negativo o fato de não estar ancorado em estudos de avaliação ex-ante que tenham buscado identificar as melhores formas de atingir seus objetivos (formas de provisão, financiamento, parcerias, amplitude do programa, instrumentos de mercado para redução de custos dos produtos, etc.) como ocorreu, por exemplo, no caso escocês, citado no texto. Ademais, o PL propôs um modelo único, obrigatório, possivelmente de alto custo. Ao fazê-lo, feriu pontos importantes de instituições relevantes, como a autonomia dos entes subnacionais e das instituições de ensino ou as regras de responsabilidade fiscal.

Esse padrão único nacional desestimularia o surgimento de diferentes alternativas, subsidiadas ou não pelo Governo Federal, de governos subnacionais ou do terceiro setor, gerando diferentes soluções, passíveis de serem replicadas e adaptadas em diferentes partes do país. Avaliações ex-post indicariam os modelos mais efetivos e permitiriam a melhoria dos diferentes programas.

Por outro lado, o PL teve o mérito de abrir a discussão de um problema relevante e que tem sido objeto de políticas públicas em vários países. Ao fazê-lo, já induziu o Governo Federal a se mexer para, por exemplo, reduzir tarifas de importação de absorventes e de insumos necessários à sua produção.

O episódio também foi importante para mostrar como políticas protecionistas prejudicam os mais pobres. Altas tarifas de importação diminuem o grau de competição e elevam custos de produção, encarecendo os bens de consumo final, que se tornam menos acessíveis aos mais pobres. Já a margem de preferência para empresas nacionais nas licitações públicas encarece as políticas públicas de distribuição de bens aos mais pobres, como no caso dos absorventes.

Outro ponto relevante é a importância de uma reforma tributária para a redução do custo da cesta de bens consumida pelos mais pobres, com a possibilidade de mecanismos de devolução dos impostos pagos de forma focalizada na população carente.

Como em qualquer política pública, existem diferentes formas de atingir um mesmo objetivo. Explorar todas as possibilidades, avaliando-as cuidadosamente, além de agir de forma cooperativa (entre governos e com o setor privado) parece ser uma opção superior a simplesmente aprovar um projeto top-down, sem prévia avaliação de custos, benefícios e detalhes de implementação.

 

[1] Esse texto reflete esforço coletivo de análise da disciplina “Política Fiscal” dos cursos de graduação em Economia, Administração e de Engenharia do Insper. Marcos Mendes é o professor da disciplina e os demais autores são alunos.

[2] Os autores agradecem a Sandra Rios e Lucas Ferraz por informações que auxiliaram na elaboração do texto, sem implicá-los em eventuais erros ou associá-los às opiniões aqui emitidas.

[3] Ver: Access to free sanitary products: BRIA – gov.scot (www.gov.scot).

[4] Fonte: http://novo.febrafar.com.br/fabricantes-disputam-o-setor-de-higiene-pessoal/

[5] O Estado de S. Paulo 20/11/21: “Após veto de Bolsonaro, tributo para importação de absorvente é reduzido”.

[6] Ver, por exemplo, Luiza, V.L et al. (2018) Applying a health system perspective to the evolving Farmácia Popular medicines access programme in Brazil. BMJ Global Health. Disponível em: Applying a health system perspective to the evolving Farmácia Popular medicines access programme in Brazil (bmj.com)

[7] Fonte: BBC Brasil 26/11/2020  Escócia se torna primeiro país do mundo a oferecer absorventes e tampões de graça – BBC News Brasil

[8] Fonte: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2019/11/13/alemanha-acaba-com-taxa-do-absorvente-e-item-deixa-de-ter-19-de-imposto.htm

[9] Ver, por exemplo, Lisboa, M. et al (2020) Uma agenda econômica pós-pandemia:

parte I – qualidade do gasto público e tributação. Insper. Disponível em: https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2020/07/Uma-agenda-econ%C3%B4mica-p%C3%B3s-pandemia-parte-I-1.pdf

[10] Kanczuk, Fábio. https://www.gov.br/fazenda/pt-br/centrais-de-conteudos/apresentacoes/arquivos/2017/apresentacao_equilibrio-geral-e-avaliacao-de-subsidios_fabio-kanczuk.pdf/view. Acesso em 26/9/2020.

[11] Ver sua apresentação em TED Talks em https://www.ted.com/talks/arunachalam_muruganantham_how_i_started_a_sanitary_napkin_revolution?language=pt-BR#t-56788. A Netflix oferece uma versão romanceada do episódio no filme “Pad Man”.

 

* Marcos Mendes é pesquisador associado e professor do Insper, além de ser membro do Instituto Fernand Braudel; os outros autores são alunos de graduação do Insper.

 

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Da Prefeitura de São Paulo, uma notícia boa e outra má https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3508&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=da-prefeitura-de-sao-paulo-uma-noticia-boa-e-outra-ma Fri, 08 Oct 2021 16:01:54 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3508 Da Prefeitura de São Paulo, uma notícia boa e outra má

O R$ 1,1 bilhão de aumentos salariais deveria ir para a população mais carente

 

Por Roberto Macedo

 

A má veio neste jornal no último dia 29. O título e o subtítulo da matéria já dizem bastante sobre o conteúdo: Prefeito de SP quer dobrar salários de indicados políticos. Reforma enviada à Câmara também prevê aumento para cargos de chefia, como subprefeitos: impacto será de R$1,1 bilhão em 2022. A proposta também alcança servidores de níveis básico e médio, entre outras extensões.

Para justificá-la, os argumentos apresentados estão longe de convincentes. Um alegado benefício diz que ela eliminará mais de 38 mil cargos hoje vagos. Ou seja, nada custam, não havendo, assim, uma redução de custo na proposta. O benefício estaria em que a Prefeitura, se quiser admitir mais servidores, teria de comprovar a fonte de recursos e ter autorização da Câmara Municipal.

Em cargos comissionados a Prefeitura tem hoje cerca de 5 mil funcionários, sendo a metade deles servidores efetivos que recebem adicionais em função do cargo ocupado. Concluí que pelo menos 2.500 são indicações políticas. Para os comissionados o aumento seria de 96%. No nível básico, a alta prevista é de 23% e no nível médio, de 30%. Ou seja, quem ganha mais receberá aumento maior. A razão, segundo um secretário municipal, seria corrigir “… defasagens e equilibrar valores pagos a comissionados”. Nesses termos, o argumento não convence. Precisaria ser detalhado e comprovado com mais e esclarecedoras informações.

O mesmo vale para aumentos propostos para o vale-alimentação e as bonificações, bem como para a gratificação atribuída aos profissionais de saúde e de educação que atuam nos 35 distritos da cidade com os menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDHs).

Parece que foi o então prefeito Bruno Covas que inspirou os aumentos agora propostos. No final do ano passado ele sancionou lei que aumentou o seu próprio salário de R$ 24,1 mil para R$ 35,4 mil, ou 47% a mais. O salário do governador João Doria é de R$ 23 mil. Este é baixo e o do prefeito, muito alto.

Falando à reportagem sobre o assunto, o prefeito Ricardo Nunes disse que parte dos salários está muito defasada e se os funcionários não forem valorizados há o risco de “… perdê-los para a iniciativa privada”.

Essa perda para outros empregadores é uma questão importante que os gestores de recursos humanos avaliam ao examinar a estrutura salarial de sua organização. Mas não se pode ficar só na conversa. O que foi dito precisaria ser sustentado por pesquisas sobre os salários na Prefeitura e no mercado de trabalho, realizada por instituição especializada e de prestígio.

A proposta deveria ser examinada com rigor pela Câmara Municipal, numa discussão transparente para a sociedade em geral. Temo, entretanto, que essas ponderações venham a ser desprezadas por motivos de cunho político, pois muitos vereadores indicam ocupantes de cargos comissionados.

Destaco duas outras restrições adicionais. O custo é alto, R$ $1,1 bilhão em 2022, e presumo que seja assim anualmente daí em diante. E o momento é inoportuno.

Há perto de 14 milhões de desempregados no País, muitos até desistiram de procurar emprego e não são contados como desempregados. A população carente aumentou muito, e com dificuldades que levam mesmo à falta de alimentos, recorrendo até a ossos e outros resíduos de carne. Na situação atual, esse dinheiro deveria ser destinado aos cidadãos mais necessitados e suas famílias.

A outra notícia, no dia 1.º deste mês, também no Estadão, começa boa pelo título: SP vai priorizar áreas mais pobres em divisão de verba. O programa, de natureza plurianual, prevê uma aplicação de R$ 5 bilhões no período 2022-2025, o que implicaria uma média de R$ 1,25 bilhão por ano. A escolha das áreas teve por critério condições de vulnerabilidade social, infraestrutura urbana e demografia, com pesos de 60%, 30% e 10%, respectivamente. Como resultado, as regiões de Capela do Socorro, M’Boi Mirim e Campo Limpo, todas elas carentes, terão 20% dos recursos. Na outra ponta, Santo Amaro, Vila Mariana e Pinheiros ficarão com apenas 2,45% do total. Mas não é esclarecido se são gastos adicionais ou só redistribuição dos hoje realizados.

Um aspecto muito importante é que essas regras foram definidas em cooperação técnica com a Fundação Tide Setubal e a Rede Nossa São Paulo, o que, a meu ver, minimizou o impacto de influências políticas, fazendo que o programa possa atuar para reduzir desigualdades sociais. Conheço mais a Fundação Tide Setubal, uma organização não governamental de origem familiar. As periferias urbanas são o foco do seu trabalho.

Ao projeto de aumento de salários faltou essa cooperação técnica, conforme sugerida acima, que lhe desse melhor fundamentação para justificá-lo, mas sempre com a questão econômico-social do momento postergando sua adoção até que essa questão seja aliviada, pois, neste momento, o dinheiro poupado deveria, vale repetir, ter como destino o socorro aos segmentos mais necessitados da população.

 

* Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 7 de outubro de 2021.

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Distorções das emendas parlamentares continuam se agravando https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3477&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=distorcoes-das-emendas-parlamentares-continuam-se-agravando Fri, 09 Jul 2021 15:49:56 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3477 Distorções das emendas parlamentares continuam se agravando

 

E o noticiário sobre esse assunto continua a revelar aberrações

 

Por Roberto Macedo

Volto e voltarei a escrever sobre essas emendas, pois constituem uma das grandes distorções do sistema político brasileiro. Refiro-me às verbas que parlamentares federais colocam no Orçamento, particularmente em benefício de prefeituras de cidades onde cultivam suas bases eleitorais, de olho em assegurar votos em futuras campanhas de reeleição.

O valor total dessas emendas cresceu ao longo do tempo, e elas foram objeto de emenda constitucional. Mas é possível argumentar que mesmo assim seriam inconstitucionais, assunto ao qual voltarei mais à frente.

Há quatro tipos de emendas: a individual, do próprio parlamentar, as apresentadas pelo relator-geral do orçamento, as oriundas de comissões e as de bancadas estaduais. O total das dotações alcançou as expressivas cifras de R$ 36,2 bilhões em 2020 e R$ 33,8 bilhões em 2021. É interessante verificar que são valores comparáveis às dotações do programa Bolsa Família, de R$ 29,5 bilhões em 2020 e R$ 34,9 bilhões em 2021. Mas esse programa tem reconhecidos méritos, chegando a perto de 15 milhões de famílias e a muito mais pessoas se contados os dependentes familiares.

As emendas atendem a interesses dos parlamentares e de seus beneficiários, e destinam-se principalmente a projetos municipais. São penduricalhos do Orçamento federal, já que não se destinam a finalidades típicas desse orçamento como, por exemplo, uma rodovia ou um porto marítimo que servisse a vários estados.

Volto novamente à avaliação dessas emendas por Cecília Machado, professora da Fundação Getúlio Vargas, em artigo na Folha em 13/4/21: “Na prática, a execução descentralizada e atomizada das emendas … pode encontrar … desafios na sua implementação … Primeiro, a discricionariedade individual dos parlamentares na escolha de projetos vem ao custo de uma avaliação mais ampla de alternativas para a aplicação dos recursos, e … é falha na identificação de ações prioritárias. … muitos municípios, especialmente os menores, não têm levantamento prévio de suas necessidades … com critérios técnicos … Inexistem critérios de necessidade ou custo-efetividade dos projetos, que passam a seguir lógica populista ou eleitoral … ainda que os maiores gargalos possam estar em outras regiões ou municípios”.

A autora apontou também outros defeitos das emendas. Uma implicação muito relevante de sua análise é que a pulverização, e a falta de critérios na distribuição das emendas, faz com que não atentem para o bem comum dos brasileiros, o que é indicativo de um comportamento aético dos parlamentares.

E o noticiário sobre o assunto continua a revelar aberrações. Uma tem sido objeto de reportagens deste jornal centradas no chamado orçamento secreto. Segundo a última matéria, que vi no site do jornal em 25/6, dos repórteres Breno Pires e André Shalders, recorrendo às emendas do relator “parlamentares aliados indicaram transferências em valores muito superiores àqueles aos quais têm direito pelas tradicionais emendas ao orçamento – que são as individuais e as de bancada. As indicações, definidas nos bastidores, são oficializadas por meio de ofícios ocultos ao público”. Assim, o destino final dos recursos não consta da lei orçamentária, mas só posteriormente pelo meio mencionado, o que é um absurdo.

Segundo a mesma matéria, o Tribunal de Contas da União considerou o procedimento inconstitucional. Uma das transferências realizadas dessa forma chama a atenção. A prefeitura de Tauá, sob comando de Patrícia Aguiar, mãe do relator-geral do Orçamento de 2019, Domingos Neto (PSD-CE), foi beneficiada com R$ 146 milhões em 2020, o que dá uma média de R$ 2.476,77 por habitante, enquanto a capital cearense, Fortaleza, teve valor per capita de R$ 77,85. E por aí vai o dinheiro do contribuinte…

Volto agora à minha visão da inconstitucionalidade das emendas em geral, apontada em artigo neste espaço em 21/4. A Constituição, no seu artigo 4.º, diz que todos são iguais perante a lei, uma de suas cláusulas pétreas, ou seja, que não podem ser alteradas por reformas constitucionais.

Há tempos tinha a curiosidade de saber se não haveria uma hierarquia de princípios constitucionais. Pesquisando o assunto na internet, encontrei um texto do jurista Douglas Cunha[1]  onde é dito o seguinte: “Embora não exista hierarquia entre normas constitucionais originárias (acrescento: como o artigo 4.º citado) … as emendas constitucionais (normas constitucionais derivadas) poderão, sim, ser objeto de controle de constitucionalidade”.

Está aí, portanto, um caminho para argumentar pela inconstitucionalidade das emendas, pois infringem o referido artigo 4.º, ao criarem duas categorias de candidatos: os incumbentes, que buscam a reeleição e usam as emendas como um instrumento de suas campanhas, e os candidatos sem mandato e sem acesso a elas.

 

Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 1° de julho de 2021.

[1] (https://douglascr.jusbrasil.com.br/artigos/616260325/a-piramide-de-kelsen-hierarquia-das-normas)

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Qual o programa assistencial mais caro do Brasil? (Não é o Bolsa Família) https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2331&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=qual-o-programa-assistencial-mais-caro-do-brasil-nao-e-o-bolsa-familia https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2331#comments Tue, 11 Nov 2014 13:13:57 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2331 Introdução

Principal política pública discutida pela opinião pública nas eleições de 2014 e objeto de uma permanente polêmica na sociedade brasileira, pode surpreender alguns que o Bolsa Família não seja o “programa assistencial de transferência de renda” que mais custa aos cofres públicos: este posto é do Benefício de Prestação Continuada (BPC). Regido pela Lei nº 8.742/1993 (Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS), o BPC atinge quatro milhões de pessoas, entre idosos com mais de 65 anos e pessoas com deficiência cuja renda mensal per capita seja inferior a um quarto do salário mínimo. Esses beneficiários têm o direito de receber um salário mínimo por mês (R$ 724 em 2014, R$ 788 a partir de janeiro de 2015). O governo projeta para o próximo ano um gasto de quase R$ 42 bilhões de reais com o BPC e o seu antecessor, a Renda Mensal Vitalícia (RMV)1.

Em relação à pobreza, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) não é considerado o instrumento mais efetivo para reduzi-la. Desde a sua implantação e até recentemente, o BPC, junto com as transferências do INSS, ajudou a retirar da pobreza milhões de idosos e deficientes pobres, mas gastos adicionais com o benefício não trazem mais resultados significativos nessa direção. O programa recebe ressalvas também por desincentivar a adesão à Previdência Social e pelo seu custo crescente, já que, por previsão constitucional, o valor do benefício não pode ser inferior ao salário mínimo – que sofreu grandes aumentos reais nos últimos anos.

No que tange à distribuição de renda, os economistas consideram que o Programa Bolsa Família foi nos últimos anos um programa muito mais efetivo na redução da desigualdade e muito mais barato quando comparado ao BPC. O Bolsa Família é objeto de constante estudo e avaliação2, mas tem ampla aceitação entre economistas com diferentes posições no espectro ideológico, ao contrário do que poderia levar a crer os polarizados debates que se observa na sociedade e na imprensa, acentuados nas últimas eleições.

Desigualdade de renda

De acordo com dados do Ministério da Previdência Social para o ano de 2011, apresentados por Caetano (2014)3, menos de 10% dos brasileiros de 65 anos estão abaixo da linha de pobreza, enquanto, em algumas idades, quase 50% das crianças brasileiras estão abaixo dessa linha. Também nesse sentido, Giambiagi, Tafner e Carvalho (2010) estimam que as crianças do país têm 11 vezes mais chances de ser extremamente pobres do que os idosos4.

Assim, percebe-se que o BPC não possui o melhor grau de focalização entre os mais pobres. É verdade que o BPC foi responsável por reduzir a pobreza e garantir segurança de renda aos idosos e deficientes de baixa renda, porém não há mais espaço para avançar nessa área por meio da expansão do programa.

Em contraste com o BPC, o Bolsa Família – que foca nas famílias extremamente pobres5 e nas famílias pobres6  que tenham filhos de até 17 anos – paga benefícios muito menores, entre R$ 35 e R$ 42 mensais por criança ou adolescente, além do benefício básico de R$ 77 (já contemplando o reajuste anunciado pela Presidenta Dilma Rousseff no último 1º de maio). Ressalta-se que este benefício básico é pago apenas para as famílias extremamente pobres: as famílias que são “apenas” pobres têm direito somente ao benefício por criança ou adolescente. Entre 2001 e 2005, o BPC teria sido responsável por apenas 11% da queda da desigualdade – com a ressalva de que o Bolsa Família só começou no penúltimo ano do período7.

Não apenas considerações sobre a efetividade do BPC no combate à pobreza e na redução da desigualdade merecem ser feitas, como também em relação à sua eficiência e ao seu custo-benefício. Como visto, o BPC custará quase R$42 bilhões no ano de 2015 (50% a mais que o Bolsa Família), atingindo cerca de quatro milhões de beneficiários. Ainda em contraste, o Programa Bolsa Família, mais efetivo, custará R$ 27 bilhões, para um número de beneficiários muito maior, de cerca de 50 milhões de brasileiros (14 milhões de famílias).

Tal qual o Bolsa Família, o BPC é um programa assistencial que não tem contrapartida contributiva (ao contrário dos benefícios do INSS: aposentadorias, pensões e auxílios). Cabe observar que alguns pesquisadores considerariam que o programa assistencial mais caro do país seria o pagamento da aposentadoria rural, já que este benefício, embora pertença à Previdência Social, não exige contribuição direta ao sistema de seguridade, mas apenas a comprovação de 15 anos de trabalho rural8.

Seria possível argumentar que o BPC e o Bolsa Família não poderiam ser comparados, porque as necessidades de consumo de um idoso seriam maiores que as de uma criança, o que justificaria a discrepância no valor dos benefícios (para pagar por remédios, por exemplo). Realmente é razoável que um adulto, mesmo que não seja chefe de família, tenha gastos maiores do que os de uma criança. O que se critica é a desproporcionalidade: o valor do BPC é mais de 22 vezes maior que o valor do benefício por criança ou gestante no Bolsa Família. Como assinalado acima, a vulnerabilidade das crianças no Brasil é muito mais alta que a dos idosos. Cumpre ressaltar também que os gastos com assistência social voltados às crianças têm um poder maior de transformação da realidade futura da pobreza no país.

Portanto, ampliar o BPC não parece a melhor maneira de diminuir a pobreza entre os segmentos mais necessitados da população. Esses recursos poderiam ser utilizados, com o mesmo fim, em outras políticas assistenciais ou em políticas econômicas que promovam o crescimento da renda como um todo.

Ressalta-se também que o valor do BPC está vinculado ao salário mínimo, de maneira que o benefício já recebeu, dessa forma, grandes aumentos reais nos últimos anos (aumento nominal de 203% desde 2004, contra 54% do Bolsa Família). Ainda, essa vinculação faz com que a própria cobertura do BPC seja continuamente ampliada, porque a cada aumento do salário mínimo também se aumenta a linha de elegibilidade para o programa (um quarto do salário mínimo).

Quadro 1 – Comparação entre o Bolsa Família e o BPC

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Adesão à Previdência Social

A adesão à Previdência Social é desestimulada pelas atuais regras de concessão do BPC e dos benefícios do INSS. Atualmente, tem direito à aposentadoria por idade, no caso dos homens, o segurado com 65 anos de idade, exatamente a idade mínima de elegibilidade para o BPC. Da mesma forma, o menor benefício a ser pago pelo INSS é o de um salário mínimo, mesmo valor do BPC. Sendo assim, por que contribuir com parte do salário durante toda vida para receber um salário mínimo como benefício, se esta mesma quantia pode ser obtida, sem contribuição, por meio do BPC? De fato, nas faixas salariais mais baixas, a adesão à contribuição previdenciária é menor.

Em verdade, o trabalhador que contribui para o INSS pode até ser prejudicado. Isso porque, para um idoso ser elegível ao BPC, sua renda familiar per capita tem de ser inferior a ¼ do salário mínimo. Para o cômputo dessa renda, contudo, consideram-se aposentadorias, mas não se consideram BPCs recebidos por outros idosos da mesma família. Dessa forma, cada membro de um casal de idosos que não possui nenhuma renda terá direito ao BPC. Já se um dos membros do casal receber aposentadoria, a renda familiar per capita será maior que ¼ do salário mínimo, de forma que o outro membro desse casal não terá direito ao BPC.

Ainda que o BPC seja guiado por uma noção de solidariedade, é primordial que existam incentivos para que o sistema de seguridade social tenha uma trajetória sustentável – e isso passa por uma maior formalização no mercado de trabalho e a efetiva adesão à Previdência.

Uma menor adesão à Previdência Social tem como consequência o agravamento da informalidade (que em meados desse ano ainda atingia um terço dos trabalhadores, segundo o IPEA9) e da desproteção no mercado de trabalho (um trabalhador informal não tem direito ao auxílio-doença, ao seguro desemprego ou à aposentadoria por invalidez, por exemplo). Ainda há como consequência a diminuição das receitas do INSS, dificultando ainda mais o controle do seu crônico e crescente déficit (estimativa de R$55 bilhões para 2014).

Giambiagi (2014)10 defende que em 2015 se emende a Constituição para que o piso assistencial seja diferente do piso do mercado de trabalho e do previdenciário (salário mínimo), passando os benefícios de prestação continuada a partir dali a serem reajustados pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), conservando seu valor real. Essa medida permitiria deslocar mais recursos para outras políticas mais efetivas e valorizar mais o segurado da Previdência Social, que contribui para o sistema.

Considerações finais: É possível fazer um ajuste fiscal sem comprometer a queda da desigualdade?

No recente debate eleitoral, aqueles que salientavam o desequilíbrio das contas públicas brasileiras e enfatizavam a necessidade de um ajuste fiscal foram acusados de querer cortar gastos sociais e interromper a trajetória de redução da desigualdade. Trata-se, no entanto, de uma falácia.

A comparação feita aqui entre o BPC e o Bolsa Família indicou a importância da análise da efetividade do gasto público. Nesse caso, vimos que uma política é muito mais efetiva do que a outra em reduzir a pobreza: mais gasto com uma delas é recomendado para esse fim, com a outra não.

Nesse sentido, é possível fazer sim um ajuste fiscal, mesmo focado nas despesas correntes, sem comprometer a redução da desigualdade. Outros gastos correntes estão relacionados a políticas públicas que têm sérias distorções, como os gastos com pensões na Previdência (já discutidos neste blog), os excessos no seguro-desemprego (que faz com que os gastos aumentem justamente quando o desemprego cai), o programa de abono-salarial11, e as despesas altas com a burocracia federal, todas essas reconhecidas mesmo por economistas que costumam associar ajuste fiscal com perdas para os mais pobres12. Até despesas que não são correntes merecem ser rediscutidas, como a política de gigantescos aportes do Tesouro para o BNDES (também analisada recentemente aqui).

Não se pode também esquecer que ajuste fiscal é condição necessária (embora não suficiente) para aumento de renda no longo prazo. Deveríamos adotar uma política econômica focada em um ajuste fiscal que não comprometesse a redução da desigualdade no curto prazo, mas que garantisse o incremento dos rendimentos médios no longo prazo.

Assim, percebe-se que é necessário desmistificar certas pré-concepções a respeito da política assistencial no Brasil, notadamente em relação ao Bolsa Família. O Banco Mundial destaca o êxito e vantagens desse tipo de políticas, conhecidas como “transferências condicionadas de renda” (TCR) ou Conditional Cash Transfers (CCT) e ressalta que houve uma “onda” delas em países emergentes nas últimas duas décadas13. Elas foram implementadas em praticamente toda a América Latina – com destaque para o mexicano Oportunidades (Progresa) -, em outras economias emergentes importantes – como Índia, Indonésia e Turquia -, além de outros países asiáticos e africanos. Mesmo países desenvolvidos costumam ter alguma rede de proteção para a população pobre. A pobreza e a desigualdade são grandes problemas para o Brasil, mas o debate sobre as políticas de redistribuição de renda infelizmente está pautado por equívocos, que precisam ser esclarecidos para que um debate de melhor qualidade ganhe espaço.

___________________

1 Segundo o Projeto de Lei Orçamentária de 2015 (PLOA 2015), serão R$ 40 bilhões para o BPC e cerca de R$ 1,6 bi para o RMV.

2 Para uma discussão aprofundada sobre o futuro do programa, ver, entre outros, Soares e Sátyro (2009). SOARES, S.; SÁTYRO, N. Programa Bolsa Família: Desenho Institucional, Impactos e Possibilidades Futuras. Brasília: Ipea, 2009. (Texto para Discussão, n. 1.424). Disponível em: <http://www.ipea.gov.br>

3 CAETANO, M. A. Reforma previdenciária, cedo ou tarde. In: Giambiagi, F.; Porto, C. (Org.). Propostas para o Governo 2015/2018. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014. 393p.

4 GIAMBIAGI, F.; TAFNER, P.; CARVALHO, M. M. Assistencialismo – o cidadão não contribui. E daí? In: Giambiagi, F.; Tafner. P. Demografia – A Ameaça Invisível: o dilema previdenciário que o Brasil se recusa a encarar. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. 198p.

5 Renda renda per capita de até R$ 77,00.

6 Renda per capita entre R$ 77,01 e R$ 154,00.

7 SOUZA, A. P. Políticas de Distribuição de Renda no Brasil e o Bolsa Família. In: Bacha, E. L.; Schwartzman, S. (Org.).  Brasil: a nova agenda social. Rio de Janeiro : LTC, 2011.

8 A partir dos 60 anos de idade para homens e 55 para mulheres. O custo com as aposentadorias rurais em 2014 deve ser de cerca de R$ 65 bilhões, para 9 milhões de benefícios.

9 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Boletim Mercado de Trabalho – Conjuntura e Análise nº 57, Agosto de 2014.

10 GIAMBIAGI, F. Salário-mínimo – razões e bases para uma nova política. In: Giambiagi, F.; Porto, C. (Org.). Propostas para o Governo 2015/2018. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014. 393p.

11 O abono-salarial é previsto na Constituição e concede um salário mínimo por ano aos trabalhadores do setor formal que recebem, em média, até dois salários mínimos mensais. Por atender aos trabalhadores do setor formal, o programa não focaliza os mais pobres entre os pobres. Em 2013, os gastos com o programa atingiram R$ 14,6 bilhões, mais da metade dos gastos com o Bolsa Família.

12 BARBOSA, N. ‘É preciso ir além com o gasto social, diz ex-secretário executivo da Fazenda’ [15 de fevereiro de 2014]. São Paulo: O Estado de S. Paulo. Entrevista concedida a Alexa Salomão e Ricardo Grinbaum.  Disponível em: http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,e-preciso-ir-alem-com-o-gasto-social-diz-ex-secretario-executivo-da-fazenda,1130766. Acesso em: 07/11/2014.

13 FIZBEIN, A.; SCHADY, N.; FERREIRA, F.; GROSH, M.; KELEHER, N.; OLINTO, P.; SKOUFI, E. Conditional Cash Transfers: Reducing Present and Future Poverty. Washington: The International Bank for Reconstruction and Development / The World Bank, 2009.

 

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Quanto custam para o Tesouro os empréstimos concedidos ao BNDES? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2296&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=quanto-custam-para-o-tesouro-os-emprestimos-concedidos-ao-bndes https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2296#comments Tue, 23 Sep 2014 15:10:59 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2296 O Tesouro Nacional tem feito seguidos empréstimos ao BNDES, com intuito de prover recursos para que este Banco amplie a oferta de crédito a empresas privadas e ao setor público. A ideia é estimular o crescimento econômico por meio de empréstimos subsidiados para investimentos dos setores público e privado. O crédito do Tesouro junto ao BNDES, em julho de 2014, segundo as estatísticas do Banco Central, já somava R$ 449 bilhões. Trata-se de valor significativo, equivalente a 9,3% do PIB de 2013.

Essa política implica custo para o Tesouro, pelo fato de que este empresta ao BNDES a uma taxa inferior ao seu custo de financiamento. De forma simplificada, tudo funciona como se uma pessoa (o Tesouro) tomasse dinheiro emprestado em um banco, pagando juros de 11% ao ano, e usasse esse dinheiro para emprestar a um amigo (o BNDES), cobrando dele juros de 5% ao ano. O custo dessa ação será justamente a diferença entre os juros pagos ao banco e os juros recebidos do amigo.

Não tem sido muito simples estimar o custo incorrido pelo Tesouro Nacional nessas operações, pois as características financeiras dos diversos empréstimos feitos ao BNDES não são plenamente divulgadas. Não se sabendo exatamente quais são os prazos, as taxas de juros, a carência para pagar juros e principal e o método de amortização, fica difícil estimar o custo implícito desse tipo de operação. Além disso, o cálculo é complicado pelo fato de que Tesouro e BNDES frequentemente renegociam contratos vigentes, mudando suas características.

Este texto busca apresentar uma estimativa dos custos fiscais desses empréstimos, tomando por base as características financeiras apresentadas em coluna do jornalista Ribamar Oliveira, publicada no jornal Valor Econômico do dia 28 de agosto de 2014.

Tal coluna descreve detalhes financeiros de uma renegociação de parte da dívida, ocorrida em março de 2014, no valor de R$ 194 bilhões, afirmando que sua fonte de informação é um parecer da Secretaria do Tesouro Nacional, obtido pelo jornal por meio da lei de acesso à informação. Como naquele mês o saldo total devido pelo BNDES ao Tesouro era de R$ 414 bilhões, a renegociação abarcou a significativa parcela de 47% da dívida total. Estimando o custo da parcela renegociada é possível ter uma ideia do custo total da política.

Para complementar as informações oferecidas na coluna jornalística, recorri a uma descrição sumária dos empréstimos Tesouro-BNDES, disponíveis no site do BNDES, sob o título “Captações realizadas com recursos do Tesouro Nacional – Posição 30/06/2013”. As informações ali disponibilizadas estão organizadas em uma tabela, com informações incompletas e sem maiores explicações metodológicas. Apesar disso, é possível inferir (por similaridade de valores) que a renegociação aludida pelo jornalista Ribamar Oliveira corresponde aos contratos PGFN 922/2014 e PGFN 923/2014, que somam R$ 194.148 milhões. O contrato renegociado é descrito por Ribamar Oliveira (e parcialmente corroborado pelas informações disponibilizadas pelo BNDES, ainda que menos completas que as dispostas na coluna jornalística) da seguinte forma:

  • Valor renegociado: R$ 194 bilhões (R$ 194.148 milhões segundo documento do BNDES);
  • Juros totais: igual à Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), não podendo ser superior a 6% ao ano (o documento do BNDES não faz referência a esse teto de 6% ao ano para os juros);
  • Prazo de pagamento: 46 anos, vencendo em 2060 (informação confirmada pelo documento do BNDES, que informa que o último vencimento do contrato será em março de 2060);
  • Carência integral para o pagamento de juros nos primeiros seis anos (informação confirmada pelo documento do BNDES, que afirma que haverá carência no pagamento integral dos juros até março de 2020);
  • Pagamento parcial de juros entre o 7º e o 21º ano, equivalente a 1/3 da TJLP, limitado ao máximo de 6% ao ano (o documento do BNDES não faz qualquer referência a pagamento parcial de juros ou a teto de juros);
  • A partir do 22º ano do contrato o pagamento dos juros será intergral (o documento do BNDES não informa esse detalhe);
  • Carência de 26 anos para o pagamento do principal (o documento do BNDES confirma essa informação, estabelecendo março de 2040 como o fim do período de carência para pagamento do principal).

Em suma, em nenhum dos itens acima as informações disponibilizadas pelo BNDES contradizem aquelas apresentadas na coluna jornalística. Assim, considerarei como corretas as informações apresentadas na coluna jornalística, utilizando-as em conjunto com aquelas oferecidas pelo BNDES.

Para obter uma estimativa de custo para o Tesouro decorrente de um contrato com tais características financeiras, basta calcular o valor presente do fluxo futuro de pagamentos e compará-lo com o valor total do empréstimo (R$ 194,1 bilhões). A diferença representará o custo em reais incorrido pelo Tesouro, em valores da data da assinatura do contrato (março de 2014).

O cálculo do valor presente requer que sejam feitas hipóteses sobre o comportamento futuro das variáveis que influenciarão o pagamento da dívida ao longo dos anos. Isso significa fazer hipóteses sobre a trajetória futura da taxa de juros nominal do contrato (TJLP) e da taxa Selic, que representa o custo de financiamento do Tesouro.

No exercício simplificado que realizei, supus que os juros pagos pelo BNDES serão os maiores possíveis dentro do desenho contratual. Como visto na descrição do novo contrato feita na matéria jornalística, há um teto de 6% ao ano para os juros. Caso a TJLP supere esse teto, o BNDES pagará a taxa fixa de 6% ao ano. Logo, ao supor que o BNDES pagará sempre 6% ao ano, trabalho com o limite superior de juros. Obviamente isso SUBESTIMA o custo do Tesouro.

Foram traçados cinco cenários que combinam diferentes hipóteses sobre a trajetória futura da taxa Selic (8%, 9%, 10%, 11% ou 12%). O Quadro 1 mostra a estimativa de custos para o Tesouro para cada uma dessas taxas. Por exemplo, com uma taxa Selic na casa de 11%, o valor presente (em março de 2014) do fluxo de pagamentos que o Tesouro receberá do BNDES até o final do contrato equivaleria a R$ 65,1 bilhões. Dado que o Tesouro emprestou R$ 194,1 bilhões ao BNDES, o seu custo seria equivalente a R$ 129,1 bilhões (ou 47% do valor do empréstimo). O custo é muito alto: de cada R$ 1,00 emprestado pelo Tesouro, ele receberá de volta do BNDES R$ 0,33.

Quadro 1 – Estimativas do valor presente da dívida nos termos contratuais vigentes depois da renegociação (R$ bilhões)

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Mesmo que a economia brasileira caminhe para uma melhor situação macroeconômica, que permita reduzir a Selic nominal para a casa de 8% ao ano, o custo para o Tesouro seria equivalente a R$ 72,1 bilhões. Nesse caso, para cada R$ 1,00 emprestado pelo Tesouro, o BNDES pagaria de volta apenas R$ 0,63.

Resta saber qual dos cenários apresentados no Quadro 4 será mais realista para o futuro do país. Teremos no futuro uma Selic na faixa de 8% ao ano ou uma Selic mais alta, que poderia levar o prejuízo a R$ 140 bilhões (lembrando que o prejuízo será ainda maior se a taxa Selic ficar acima de 12% ao ano)? Tudo vai depender da taxa de inflação. Se supusermos que a taxa de juros real  de equilíbrio da economia brasileira ficará na faixa de 4 a 5% ao ano, então uma inflação de 4% nos levaria a uma Selic entre 8 e 9% ao ano, o que atenuaria o custo do Tesouro. Se, porém, tivermos taxas de inflação mais altas, na casa de 6% ao ano, cairemos no cenário em que a Selic média será de 11% ao ano, ampliando o custo do Tesouro.

Por fim, vale lembrar que esse custo maiúsculo imposto ao Tesouro (mesmo no cenário mais benigno) refere-se a menos da metade dos créditos junto ao BNDES. Se a outra metade tiver condições financeiras similares, o custo total tende a ser próximo ao dobro daquele estimado no Quadro 1.

 

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Quanto gastam a Assembleia Legislativa e o TCE do seu Estado? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2238&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=quanto-gastam-a-assembleia-legislativa-e-o-tce-do-seu-estado Mon, 16 Jun 2014 16:04:07 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2238 Existe uma sensação generalizada de que as assembleias legislativas e os tribunais de contas estaduais consomem elevados recursos financeiros. Este texto avalia se isso de fato ocorre. Ademais, compara as despesas dos diferentes estados, de modo ressaltar os casos mais extremos.

A primeira constatação que se faz ao se buscar dados acerca das despesas anuais das assembleias e tribunais de contas estaduais é que falta transparência na divulgação de tais dados. Supostamente as informações deveriam estar disponíveis no sítio do Tesouro Nacional na internet, em um sistema de informação chamado “SISTN”1. Contudo, quando se solicitam as contas dos legislativos e tribunais de contas estaduais em tal sistema, a resposta quase sempre obtida é de que os dados estão indisponíveis.

A segunda opção de levantamento de dados é uma pesquisa na página de cada assembleia e cada TCE na internet. Os resultados também são pouco satisfatórios. Em vários estados, o máximo que se consegue é o valor orçado, não havendo dados para os gastos efetivamente empenhados ou liquidados.

Frente às dificuldades expostas, os dados apresentados a seguir podem não refletir fielmente a efetiva despesa de cada assembleia ou tribunal de contas. São, contudo, o melhor que se pôde obter.

A Tabela 1 mostra que o gasto total de assembleias e tribunais estaduais tem valores totais bastante relevantes. Em 2013 foram R$ 14,5 bilhões, sendo R$ 9,4 bilhões nas assembleias e R$ 5,1 bilhões nos tribunais.

Tabela 1 – Despesa Total de Assembleias Legislativas Estaduais e Tribunais de Contas Estaduais – 2013 (R$ milhões)

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Fontes: sites das assembleias e tribunais de contas na internet. Elaborado pelo autor. Notas: Foi utilizada a despesa orçada para os seguintes estados: AP, CE, MA, PR, RO, RR, e para o TCE do PA.  Foi utilizada a despesa liquidada para os seguintes estados: BA, ES, MT, PB. Para os demais casos utilizou-se a despesa empenhada.

 

Uma forma de detectar excessos nas despesas das assembleias e TCEs é verificar sua evolução ao longo do tempo. Para isso, é importante ter em conta que ambas as instituições realizam funções bastante padronizadas. As assembleias propõem e aprovam leis, bem como fiscalizam ações do Poder Executivo local. Os TCEs cumprem função fiscalizadora com atribuições definidas nas constituições federal e estaduais. Por isso, suas estruturas operacionais e seus gastos não precisam crescer, ao longo do tempo, acima da inflação. Uma vez montada a estrutura de funcionamento de uma casa legislativa ou de um TCE (construção de sede, aquisição de equipamentos, etc.), os anos seguintes exigirão apenas as despesas de funcionamento (salários, material de escritório, etc.) e de reposição dos ativos depreciados (troca de móveis, de veículos, etc.).

Isso é muito distinto, por exemplo, da ação de uma secretaria de saúde, que amplia o número de postos de atendimentos, constrói novos hospitais, expande a clientela atendida. Difere, também, da ação de uma secretaria de educação, que incorpora novos alunos, contrata novos professores. Também não se compara às despesas de uma secretaria de obras que, a cada ano, gasta um montante maior ou menor de recursos, em função do número e do porte das obras realizadas.

Quando uma assembleia ou um tribunal de contas aumenta, ano após ano, a sua despesa acima da inflação, isso significa que, provavelmente, ela está contratando mais funcionários, ou está concedendo aumentos reais aos funcionários e dirigentes, ou, ainda, está ampliando o seu gasto de consumo. Tais aumentos podem ser aceitáveis em alguns momentos. Por exemplo, uma assembleia que estava desestruturada, constrói uma nova sede ou repõe seu mobiliário. Ou, então, contrata assessores mais capacitados, que ganham salários maiores. Porém, não se deve imaginar como normal uma situação de crescimento real de despesa de assembleias e tribunais de contas ano após ano. No máximo se poderia esperar que a folha de salários cresça, em termos reais, no mesmo ritmo dos salários do setor privado.

Infelizmente a falta de informações disponíveis impede que se avalie a evolução das despesas totais de assembleias e TCEs ao longo do tempo. Há, contudo, um conjunto de informações disponibilizado pela Secretaria do Tesouro Nacional que ajuda nessa avaliação. Trata-se da despesa dos estados com a chamada “função legislativa”, que é distinta da despesa total de assembleias e TCEs.

De acordo com o Manual Técnico de Orçamento do Ministério do Planejamento, a “função legislativa” abarca todas as despesas das assembleias e TCEs em suas respectivas áreas fins. Diferem da despesa total de cada órgão por não considerar seus gastos com aposentadorias e pensões (classificadas na função “assistência e previdência”), bem como outras despesas como, por exemplo, planos de saúde para os servidores (classificadas na função “saúde”).

Deve-se utilizar essa estatística com cautela, afinal não se pode afirmar com segurança que todos os estados usem critérios similares para incluir ou excluir despesas em cada uma das diferentes funções. Feitas essas ressalvas, o Gráfico 1 mostra que o somatório de despesas legislativas no Brasil cresceu em termos reais, entre 2002 e 2012, nada menos que 47%, passando de R$ 7,9 bilhões para R$ 11,6 bilhões (em valores de 2012). Se supusermos que em 2002 o gasto desses órgãos era suficiente para o cumprimento de suas funções, não haveria motivos para, em 2012, eles se situarem em nível 47% mais alto. Destaque-se a título de comparação que, de acordo com o IBGE, o salário real médio entre março de 2002 e abril de 2014 para os trabalhadores assalariados com carteira de trabalho aumentou em torno de 17%.

Gráfico 1 – Despesa de Todos os Estados com a Função Legislativa – 2002-2012 (R$ bilhões)

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Fontes: Secretaria do Tesouro Nacional – Execução Orçamentária dos Estados. Elaborado pelo autor.

 

Note-se que um dos fatores de elevação vegetativa da despesa, que é o aumento de gastos com aposentadorias e pensões, está excluído do conceito de “despesa legislativa”.

O Gráfico 2 mostra a evolução da despesa legislativa por estado, entre 2002 e 2012. Somente o RJ reduziu a despesa em 2012 na comparação com 2002. Porém, como será visto adiante, o nível dos gastos da assembleia e TCE desse estado foram bastante elevados em 2013, de modo que a queda real ao longo do tempo indica que houve apenas corte de parte do excesso.

Gráfico 2 – Despesa com a Função Legislativa por Estado – variação real entre 2002 e 2012 (%)

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Fontes: Secretaria do Tesouro Nacional – Execução Orçamentária dos Estados. Elaborado pelo autor. Nota: deflacionado pelo IPCA.

 

Somente RJ, SP, ES e MG não tiveram crescimento real significativo do gasto. Em nove estados a despesa mais que dobrou. Em RR multiplicou-se por 3,2. Onde cresceu pouco, essa despesa variou 25% entre 2002 e 2012, o que ainda é um aumento considerável.

O Gráfico 3 mostra que as despesas das assembleias e tribunais de contas consomem parcela significativa das receitas dos estados. Em média, elas representam 4,1% da Receita Corrente Líquida (RCL). Em Roraima chegam a consumir 7,7% da RCL.

Gráfico 3 – Despesa Total das Assembleias e TCEs como proporção da Receita Corrente Líquida  – 2013 (%)

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Fontes: sites das assembleias e tribunais de contas na internet e STN. Elaborado pelo autor.

 

Uma forma de verificar se isso representa uma despesa elevada, é comparar com outras categorias de despesa. Tomamos, a título de exemplo, os gastos estaduais com investimentos. Esses gastos são importantes para a população, visto que representam a construção de estradas, infraestrutura urbana, sistemas de saneamento básico, etc. O Gráfico 4 mostra que, em média, os gastos das assembleias e TCEs em 2013 equivalem a quase a metade de tudo o que se gastou com investimentos em 20122. Em Goiás e no Rio Grande do Sul, os gastos com aqueles órgãos superam 80% do que se gasta em investimentos.

Gráfico 4 – Despesa Total das Assembleias e TCEs em 2013 como proporção da Despesa com Investimento em 2012 (%)

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Fontes: sites das assembleias e tribunais de contas na internet e STN. Elaborado pelo autor.

 

Conforme afirmado acima, tanto as assembleias quanto os TCEs fazem um trabalho padronizado, tendo as mesmas atribuições constitucionais e legais nos diferentes estados. Por isso não há motivos para que as despesas das diferentes casas legislativas e TCEs do país sejam muito distintas entre si. Todas elas têm um custo fixo representado pela manutenção de sua sede e um custo variável, decorrente das suas operações cotidianas.

No caso das assembleias, o custo variável tende a crescer com o número de deputados: quanto mais deputados, maior o número de assessores, gabinetes, etc. O que o Gráfico 5 mostra, contudo, é uma grande dispersão do gasto total dividido pelo número de deputados.  Enquanto no Acre esse indicador é de  R$ 4,7 milhões por deputado; no Rio de Janeiro essa cifra chega a R$ 15,9 milhões.

Gráfico 5 – Despesa Total das Assembleias por Deputado – 2013 (R$ milhões)

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Fontes: sites das assembleias na internet. Elaborado pelo autor.

 

É verdade que estados com maior PIB e maior arrecadação tendem a gastar um pouco mais com suas assembleias. Afinal, o processo legislativo torna-se mais complexo, exigindo assessoria e estrutura operacional mais qualificada e, portanto, mais cara.

Esse argumento, contudo, não é suficiente para explicar a alta despesa de RJ e MG. Afinal, São Paulo, mais populoso e com população maior e organização urbana e econômica mais complexas, gasta bem menos por deputado. Também não há justificativa para gastos por deputado tão altos em MT, DF e SC.

No caso dos TCEs não há, sequer, diferença no número de conselheiros entre estados, visto que o art. 75, parágrafo único, da Constituição Federal determina que todos eles devem ter sete conselheiros. Assim, o custo total de todos os TCEs deve ser bastante similar, o que faria com que os estados de menor receita gastassem uma parcela maior desta com o órgão. Ainda que se possa argumentar que estados com orçamentos maiores exigiriam auditorias mais complexas e mais caras, elas não seriam tão mais caras a ponto de, por exemplo, dobrar o custo de operação do TCE.

O Gráfico 6 mostra que o estado de maior receita (SP) tem, de fato, menor relação entre despesa do TCE e sua RCL. Contudo dois outros estados de alta RCL (MG e RJ) têm despesa muito maior como proporção da receita, ao passo que estados de menor receita, como CE e BA, figuram com baixa relação entre despesa do TCE e RCL. Ou seja, a grande dispersão mostrada pelo Gráfico 6 sugere que há estados que gastam com os seus TCEs muito acima do que seria exigido por uma operação eficiente desses órgãos. O MT, por exemplo, apresenta razão entre gastos e RCL equivalente ao dobro da média nacional.

Gráfico 6 – Despesa Total dos TCEs como proporção da Receita Corrente Líquida – 2013 (%)

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Fontes: sites dos TCEs na internet e STN. Elaborado pelo autor.

 

O Gráfico 7 mostra que os estados que têm alta relação entre despesa com TCE e RCL também tendem a ter alta relação entre gasto com a assembleia e a RCL. A correlação entre as duas variáveis é razoavelmente alta, equivalente a 0,45. Ou seja, parece haver uma decisão política, em cada estado, na qual alguns destinam muitos recursos para os dois órgãos, enquanto outros controlam mais fortemente ambas as despesas.

Gráfico 7 – Despesa Total das Assembléias e dos TCEs como proporção da Receita Corrente Líquida – 2013 (%)

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Fontes: sites dos TCEs e Assembleias na internet e STN. Elaborado pelo autor.

 

Há, portanto, evidências estatísticas de que as despesas das assembleias e tribunais de contas estaduais cresceu acima do necessário ao longo dos últimos anos, bem como de que, pelo menos em alguns estados, situa-se muito acima do necessário para financiar o adequado provimento dos serviços essenciais fornecidos por aqueles órgãos.

_________________

1 https://www.contaspublicas.caixa.gov.br/sistncon_internet/index.jsp
2 Não foi possível obter, de forma desagregada para todos os estados, dados para os investimentos em 2013.

 

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Criar novos municípios é prejudicial ao país? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2073&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=criar-novos-municipios-e-prejudicial-ao-pais https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2073#comments Thu, 21 Nov 2013 13:52:25 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2073 No dia 12 de novembro de 2013 a Presidente Dilma vetou integralmente o Projeto de Lei Complementar nº 98, de 2002 (PLC 98/2002) recentemente aprovado no Congresso, que “Dispõe sobre o procedimento para a criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, nos termos do § 4o do art. 18 da Constituição Federal“. No seu veto a Presidente alega que a aprovação da lei estimularia a criação de muitos municípios, resultando em aumento da despesa pública e em pulverização de recursos, o que prejudicaria os municípios já existentes.

Frente a essa situação, cabe perguntar: criar novos municípios é, per si, algo negativo para o desenvolvimento econômico? Em contrapartida ao aumento do gasto administrativo não haveria o surgimento de vantagens, como a maior liberdade administrativa para que alguns distritos que tenham crescido muito no passado recente estabeleçam suas próprias administrações e impulsionem ainda mais o desenvolvimento local?

Ademais, o país precisa ter uma regra clara não só para a criação, mas também para a fusão, o desmembramento e a incorporação de municípios. Afinal, não se pode impedir que, em função de mudanças econômicas e demográficas, novas cidades surjam ou outras sejam fundidas ou anexadas.  Se tudo ficar como está, também poderá haver desperdício de dinheiro se continuar a existir municípios em áreas que perderam importância econômica e que poderiam deixar de ter governo próprio, sendo incorporados ou fundidos a outros municípios.

Cabe, então, perguntar: em que condições vale a pena criar um município?

O princípio básico da organização federativa é o de que, na administração pública, o processo decisório deve ser o mais descentralizado possível. Tudo que puder ser administrado pelo município deve ser atribuído a essa esfera de governo, pois o gestor municipal está mais próximo da população e pode melhor captar suas necessidades, bem como pode adaptar a gestão às condições e restrições locais. Trata-se, pois, de um argumento relativo à eficiência na provisão de serviços públicos.

Uma precondição básica para que essa eficiência realmente seja alcançada é que haja escala suficiente para a prestação de serviços públicos, para que o custo fixo de construção e manutenção das estruturas requeridas não seja elevado em relação ao custo total e aos benefícios gerados. Por exemplo: se a comunidade tiver população muito pequena ela terá alto custo fixo para construção e manutenção de uma escola, que acabará atendendo poucos alunos; o posto de saúde atenderá poucas pessoas; os gastos para construção da prefeitura e para o pagamento do salário de vereadores será o mesmo de um município maior. Logo, é fundamental que os novos municípios tenham populações grandes, pelo menos superiores a 25 mil habitantes.

Outro requisito para eficiência é que o governo municipal efetivamente arrecade impostos dos cidadãos locais em montante significativo. Arcando com parcela elevada dos custos dos serviços prestados pela prefeitura, os eleitores tenderão a ser mais vigilantes e avaliarão os custos e benefícios dos projetos desenvolvidos pelo governo municipal. A autonomia política deve ter como precondição a autonomia financeira.

Assim, a tendência natural é que um distrito ou parte de um município busque a emancipação, formando um novo município, quando sua população tiver crescido o suficiente para justificar uma administração autônoma. Além disso, tal crescimento precisa ter gerado capacidade de arrecadação local de impostos.

O processo de desenvolvimento econômico naturalmente gera casos de distritos que crescem aceleradamente e passam a ser mais dinâmicos e mais populosos que a sede do município. Com isso, o desenvolvimento do distrito mais dinâmico pode ser tolhido pela sua subordinação administrativa. Nesse caso, a emancipação é plenamente justificada. De modo simétrico, municípios que entram em processo de estagnação econômica e perdem população poderão vir a ser absorvidos por jurisdições vizinhas que tiveram melhor desempenho econômico e demográfico.

Naturalmente a divisão administrativa dos estados vai, ao longo do tempo, se adaptando às mudanças da geografia econômica do País. Em suma, a criação de municípios será economicamente saudável, portanto, se duas precondições estiverem presentes:

1) os municípios devem financiar parte substancial de suas despesas com receitas arrecadadas diretamente dos habitantes locais;

2) o tamanho da população municipal deve ser grande o suficiente para garantir uma escala mínima para a oferta de serviços públicos com eficiência.

O problema, no caso brasileiro, é que essas precondições não são cumpridas. Vejamos cada um desses pontos separadamente.

a) A baixa tributação local

A Constituição de 1988 elevou substancialmente as transferências financeiras que a União e os estados devem fazer, obrigatoriamente, aos municípios. Isso fez com que muitos municípios se acomodassem e relaxassem no esforço de arrecadar tributos de seus próprios habitantes. Afinal, cobrar impostos é algo sempre impopular. Para todo prefeito, é melhor sustentar as despesas locais com “dinheiro que vem de fora” do que avançar sobre o bolso do seu eleitor. De acordo com dados do Tesouro Nacional, em 2012, 87% da receita corrente dos municípios brasileiros advinha de transferências, com apenas 13% sendo arrecadados por meio de tributos locais. No caso dos municípios com até 15 mil habitantes, a importância das transferências cresce para 91%. Ou seja, quase nada é arrecadado localmente.

Outro dado relevante para ilustrar o alto grau de insustentabilidade financeira dos municípios brasileiros: nada menos que 30% dos municípios atualmente existentes não arrecadam receita tributária suficiente para cobrir apenas os custos de suas Câmaras de Vereadores1.

Quando os contribuintes locais não têm que pagar diretamente os custos da administração municipal, reduz-se a resistência à criação de novos municípios. Prevalece a idéia de que com uma nova administração municipal, seja ela necessária ou não, mais dinheiro do resto do país fluirá para aquela localidade.

Antes da promulgação da Constituição de 1988 não havia grande interesse em emancipação, pois os municípios recebiam poucas transferências federais e estaduais. O orçamento de um novo município certamente seria minguado, a menos que se aumentasse a tributação local. De fato, foram poucas as criações de novos municípios durante o Regime Militar. Apenas 150 novos municípios entre 1970 e 19852. Após à Constituição a situação se inverteu: entre 1985 e 2000, foram criados 1.405 novos municípios3. Com se verá a seguir, a maioria deles pequenos, com menos de 10 mil habitantes.

b) Municípios pequenos e sem escala para ofertar serviços públicos

Não só foram criados muitos municípios após à promulgação da nova Constituição, como também a maioria deles é bastante pequena, tendo menos de dez mil habitantes. Assim, o Brasil descumpre também a precondição de que as novas unidades administrativas tenham escala suficiente para oferecer serviços de forma eficiente.

A preferência pela criação de municípios pequenos vem do fato de que as transferências federais e estaduais têm regras que favorecem mais os municípios pequenos.

Uma importante transferência recebida pelos municípios é o Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Ele é responsável por nada menos que 44% de toda receita corrente dos municípios com menos de 10 mil habitantes4. Ocorre que o FPM tem regras de partilha que beneficiam sobremaneira as unidades com menos de dez mil habitantes. A título de exemplo, a soma das transferências de FPM recebidas por três municípios de 5 mil habitantes é 50% maior que o montante recebido por um município de quinze mil.

A conclusão óbvia é que há um incentivo à multiplicação de municípios: não só se aumenta o montante de transferências recebidas quando os municípios se dividem, como também são multiplicados os cargos políticos (e empregos públicos) a serem ocupados.

Devido ao descumprimento das condições analisadas nos itens (a) e (b), acima, houve um forte movimento de emancipação de municípios. Estes eram criados não pela necessidade administrativa de dar autonomia a distritos que cresceram e se tornaram econômica e financeiramente autônomos. Qualquer vila em que os moradores conseguissem se organizar e preencher os requisitos exigidos pela legislação estadual poderia requerer a emancipação. Uma vez bem sucedida, essa vila, elevada a município, passava a receber polpudas transferências federais e estaduais.

Os volumes transferidos são tão altos, que dispensam a necessidade de se arrecadar impostos locais. O novo município pode prover diversos cargos e empregos públicos, que aumentam a renda dos cidadãos locais, sem que os mesmos tenham que custear isso por meio de impostos.

A lógica de criação de municípios foi subvertida: em vez de se buscar a autonomia de um distrito que cresceu, em termos econômicos e populacionais, busca-se a autonomia dos pequenos e estagnados pois, proporcionalmente, quanto menos populosos, maior a vantagem financeira.

O processo natural de redesenho administrativo, em função do desenvolvimento econômico, foi substituído por uma disputa por verbas, cargos e empregos públicos, que desestimula o desenvolvimento econômico. Por um lado, para os habitantes de municípios pequenos, tornou-se mais fácil viver de uma renda pública do que investir em um negócio ou buscar um emprego privado. Por outro lado, os municípios grandes perdem verbas (que são realocadas para os novos municípios) e deixam de ser capazes de enfrentar complexos problemas sociais que entravam o desenvolvimento econômico e social, como os congestionamentos de trânsito, a violência urbana, a proliferação de habitações em áreas de risco.

Há uma clara desproporção entre os recursos recebidos e as necessidades das populações locais quando se comparam municípios pequenos com os grandes aglomerados urbanos.

As novas administrações municipais, em vez de se instalarem em lugares prósperos, como suporte ao desenvolvimento econômico já em curso na localidade; vão se instalar em locais estagnados, de baixa produtividade e sem maiores perspectivas econômicas.

O desenvolvimento econômico, em uma economia capitalista, se dá por meio do crescimento do setor privado, e não do governo. Mais dinheiro público em lugares sem condições para o desenvolvimento do setor privado não fará a mágica de despertar o empreendedorismo ou de criar novas atividades econômicas rentáveis. Pelo contrário, aumentará a dependência da população local em relação ao dinheiro e ao emprego público.

Dado que o Fundo de Participação dos Municípios é repartido entre municípios de todo o País, os estados que criassem mais municípios conseguiriam tirar recursos de outros estados que fossem mais lentos no processo de redivisão administrativa. Para estancar essa disputa, a Lei Complementar nº 62, de 1989, tornou fixa a participação total de cada estado no FPM. Assim, a criação de um novo município implicaria perdas fiscais apenas para os municípios do mesmo estado, o que reduzia o incentivo do governo estadual para estimular o recorte administrativo.

Adicionalmente, para estancar o processo desordenado de repartição municipal, que tem efeito deletério sobre as finanças e a qualidade da gestão pública, o Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional nº 15, de 2006 (EC 15/96), que alterou o § 4º do art. 18, para determinar que uma lei complementar deveria estipular os critérios exigidos para a criação, incorporação, fusão ou desmembramento de municípios.

A lógica da EC 15/96 era de que, tendo em vista ser politicamente muito difícil alterar as regras de partilha das transferências federais e estaduais aos municípios, e, portanto, reduzir os incentivos à criação de municípios ineficientes, a solução seria a criação de critérios mínimos mais rígidos que exigissem, por exemplo, um elevado tamanho mínimo de população como pré-requisito à emancipação5.

Contudo, o Congresso passou vários anos sem aprovar a lei federal exigida pela EC 15/96. Tal situação tornou-se confortável para o Poder Executivo federal, que, durante os anos 90, em especial a partir de 1999, lutava para conseguir equilibrar as contas fiscais. Assim, na primeira década do novo século, o Presidente da República vetou dois projetos de lei aprovados pelo Congresso para regulamentar a EC 15/966. Provavelmente a intenção do Executivo Federal era manter congelada a possibilidade de se criar mais municípios pequenos e economicamente inviáveis.

Se, por um lado, essa situação de vácuo legal impedia a expansão predatória de municípios, por outro bloqueava a legitima emancipação de distritos que vinham experimentando desenvolvimento econômico. O país não podia permanecer com seu recorte administrativo congelado indefinidamente. Foi por isso que o Congresso aprovou o PLS 98/2002, que acabou tendo o mesmo destino das tentativas anteriores: o veto presidencial.

A razão básica do veto (e para o argumento de que haveria a criação de um grande número de municípios) parece ser o fato de que o PLS 98/2002 fixa populações mínimas muito baixas para os novos municípios. Isso permitirá a permanência da lógica atual de se criar municípios pequenos, sem escala e em áreas sem grande perspectiva econômica. Segundo o texto aprovado, esses limites são:

  • Regiões Norte e Centro-Oeste: 5.997 habitantes;
  • Região Nordeste: 8.396 habitantes;
  • Regiões Sul e Sudeste: 11.995 habitantes.

Os limites fixados para o Norte, Nordeste e Centro-Oeste são inferiores a dez mil habitantes. Ocorre que municípios menores que 10.188 habitantes são justamente os mais beneficiados pelos atuais critérios de partilha do FPM. Portanto, permanecerá o grande incentivo à criação de municípios com finalidade puramente de absorção de transferências federais e estaduais.

Até mesmo no caso dos municípios do Sul e Sudeste permanece  tal incentivo: a divisão de um município de 24 mil habitantes em dois de 12 mil habitantes (acima, portanto, do limite mínimo de 11.995 habitantes) promoverá um ganho de 14% nas transferências recebidas em conjunto pelos dois novos entes federativos, de acordo com as regras vigentes do FPM.

É verdade que o PLS 98/2002 faz diversas exigências que deveriam, em tese, evitar a criação de municípios de baixa capacidade fiscal. Há, por exemplo, a necessidade de aprovação de um Estudo de Viabilidade Municipal, onde se analisariam diversas dimensões, desde a viabilidade fiscal até questões ambientais. Todavia, dado que o estudo seria encomendado por aqueles que teriam por objetivo a emancipação, não é difícil imaginar que o rigor da análise seria afetado pelo objetivo de conseguir a emancipação.

O ideal seria reformar a legislação do FPM, retirando o seu viés a favor dos pequenos municípios. Isso reduziria bastante o incentivo à criação de novas jurisdições. Mas seria muito difícil encontrar um consenso político que viabilizasse tal solução. Frente a tal situação, o que parece ser mais viável é uma lei complementar de criação de municípios que estabeleça um limite populacional mínimo mais elevado. Se novos municípios só pudessem ser criados com população superior a 25 mil habitantes, ficaria afastado tanto o problema do incentivo ao recebimento de mais transferências, quanto o problema da baixa escala de produção dos serviços públicos.

______________

1 Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional. Banco de Dados FIMBRA referente ao exercício de 2012.

2 De acordo com o IBGE, o total de municípios do país era de 3.952 em 1970, chegando a 4.102 em 1985.

3 O total de municípios em 2000 era de 5.507 contra 4.102 em 1985.

4 Fonte: STN – FIMBRA 2012.

5 Outras medidas de cunho similar foram adotadas para evitar o excessivo gasto administrativo dos municípios financiados pelo “dinheiro fácil” das transferências, como a imposição de limite máximo para a despesa das câmaras municipais, imposto pela Emenda Constitucional nº 25, de 2000.

6 A esse respeito vide “Criação, incorporação, fusão e desmembramento de municípios”, de Maria S. B. Lorenzetti – Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/documentos-e-pesquisa/publicacoes/estnottec/pdf/305317.pdf.

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Vale a pena fazer o recadastramento biométrico eleitoral? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1939&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=vale-a-pena-fazer-o-recadastramento-biometrico-eleitoral https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1939#comments Mon, 05 Aug 2013 13:08:45 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1939 A decisão do TSE de levar à frente o recadastramento biométrico para “modernizar” nosso processo eleitoral demonstra que nós resistimos a tudo, menos à tentação de um gadget reluzente. Essa iniciativa irá custar pelo menos R$ 6 bilhões, quantia suficiente para fazer investimentos relevantes em transporte coletivo em qualquer das megalópoles brasileiras.

A decisão é completamente injustificável frente à inexistência de riscos relevantes de fraude em nossas eleições e à necessidade de priorizar carências urgentes em outras áreas, como saúde e transporte. Mas é apenas mais um exemplo de irracionalidade no País em que o cálculo de custos e benefícios é uma ideia tão exótica quanto a arte plumária indígena e as aves tropicais pareceram aos europeus do Séc. XVI.

A decisão de levar à frente de modo praticamente irreversível o recadastramento biométrico – coletar eletronicamente as impressões digitais e as assinaturas dos eleitores para uso esporádico, a cada dois anos – foi tomada por meio da Resolução do TSE nº 23.335, de 22 de fevereiro de 20111.

A Resolução, sua justificação e votos anexos têm características que repetem o padrão prevalecente nas decisões de gasto público no País: a) linguagem vaga e genérica quanto aos objetivos a alcançar; b) imprecisão das metas quantitativas e dos prazos – observando que não se determinaram precisamente nem os municípios nem os Estados que deveriam ser objeto da fase de recadastramento biométrico que ela previa como etapa imediata; c) ausência de análise de custo e benefício, o que leva, também seguindo um padrão comum na prática brasileira, a realçar os benefícios, a desconsiderar os custos e, principalmente, a omitir os possíveis usos alternativos que se poderia dar aos recursos que serão gastos; d) imprecisão na estimativa de custos, que é incompleta e não exaustiva para cada fase do programa, especialmente pela não consideração dos custos sociais não orçamentários (o custo de deslocamento do eleitor para recolher a impressão digital no cartório eleitoral e as horas de trabalho perdidas nessa operação exemplificam os custos sociais não orçamentários; tais perdas não serão bancadas pelo Orçamento da União, mas serão, respectivamente, uma despesa para o trabalhador e uma perda de receita para os patrões e os autônomos, sendo conjuntamente um custo social); e) ausência de estimativa dos custos globais do projeto caso venha a ser expandido para o resto do país, apenas a apresentação de cálculos frágeis e potencialmente subestimados de cada etapa, que, posteriormente, já como fatos consumados, servirão como argumento a mais para conclusão do programa: “tudo bem que o programa é ineficiente; mas com os gastos já feitos nas etapas anteriores seria irracional não levá-lo a termo. Essa crítica deveria ter sido feita antes”.

Na página 11 da Resolução, na seção em que constam a justificação e os votos, encontra-se a única referência a custos financeiros da medida. Não são apresentadas ali estimativas elaboradas pelo Tribunal para os custos globais da empreitada, mas tão somente o valor da disponibilidade orçamentária do programa para o ano de referência – 2011. Essa dotação, por sinal, não é assumida como um valor reivindicado, disputado ou negociado pelo TSE, mas como uma espécie de determinação discricionária da Secretaria de Orçamento Federal (SOF) e tomada passivamente pelo Tribunal. Considerando uma meta física de 10,8 milhões de eleitores, o TSE estimou que o custo do recadastramento seria de R$ 4,00 por eleitor2.

Entretanto, nem mesmo essa meta de eleitores a recadastrar – pouco detalhada e para a qual não havia qualquer compromisso de cumprimento – foi executada, o que tornaria difícil saber quanto efetivamente tem custado o recadastramento, caso a única fonte de informação fossem as estimativas constantes dos documentos oficiais. Segundo o site do TSE (consulta feita no dia 9 de julho de 2013), apenas 7 milhões de eleitores haviam sido recadastrados (com inserção de dados biométricos) até o fim de 20123. Como já haviam sido cadastrados 1 milhão de eleitores antes da projeção, pode-se concluir que apenas 6 milhões foram cadastrados entre 2011 e 2012, o que representa 60% da meta estabelecida para o exercício de 2011, de 10 milhões.

Ainda que a meta tivesse sido cumprida, as despesas diretamente incorridas pelo TSE e pelos TRE com a dotação orçamentária específica para o recadastramento nem de longe correspondem ao efetivo custo total (fiscal e social) da iniciativa. Esses custos vão muito além desse limite, como irá se demonstrar. No mínimo, os vencimentos dos servidores efetivos destacados para a tarefa deveriam ter sido computados.

O custo não orçamentário mais significativo do recadastramento – não previsto nas justificações oficiais – é a perda de horas de trabalho decorrente do comparecimento do eleitor ao cartório eleitoral. A própria legislação reconhece implicitamente esse custo ao conceder abono de a quem for se recadastrar4. No total da iniciativa, o recadastramento irá atingir, em tese, o universo dos hoje 140 milhões de eleitores brasileiros. Evidentemente, nem todos os eleitores fazem parte da População Ocupada (PO), que é um subconjunto da População Economicamente Ativa (PEA). Tomando-se os dados do IBGE da PO das Regiões Metropolitanas, mês-base abril de 2013, o custo desse absenteísmo seria de R$ 1,9 bilhão5.

Essa perda deve ser somada àquela referente aos trabalhadores de regiões urbanas não metropolitanas e regiões rurais. Segundo dados de 2009, últimos disponíveis de série descontinuada, a relação entre a PO das regiões metropolitanas e a das demais regiões era de aproximadamente 50%, enquanto a renda média do último grupo era 20% inferior à da PO das regiões metropolitanas. Supondo-se que essas relações se mantiveram até hoje, o custo total do absenteísmo em todo o País ao final do programa pode ser estimado em R$ 5,0 bilhões.

Uma crítica justa poderia ser feita a esse cálculo: o de que o tempo total para o recadastramento (agendamento, deslocamento ao cartório e efetivação da operação) não toma toda a jornada de trabalho. Se assim é, a legislação não deveria conceder abono integral para quem se recadastra, mas apenas do tempo efetivamente gasto para realizar a tarefa. De todo modo, em razão das crescentes dificuldades de deslocamento nas grandes cidades, muitos dos que participarem do recadastramento perderão, de fato, um dia de trabalho. Pode-se ainda argumentar que, em média, as tarefas que deixariam de ser feitas no dia abonado acabariam por ser realizadas nas jornadas seguintes. Essa recuperação do tempo perdido ocorreria porque trabalhadores e empresas acabam administrando a porosidade das jornadas de trabalho ao longo de uma semana ou de um mês, de modo a realizar um dado quantum de trabalho, independentemente de intercorrências como feriados, atrasos no transporte, consultas médicas, solução de pendências em horário de trabalho, etc.

Com base nesse tipo de argumento, o cálculo da perda não equivaleria exatamente àquele que efetivamente se verificará na economia. Ainda que essa crítica possa estar em parte correta, a administração da porosidade na jornada de trabalho tem limites e, em certas atividades, o argumento simplesmente não vale. Em muitos ramos de atividade, a produção não realizada em determinado momento não pode ser recuperada. Um atendimento médico de emergência, por exemplo, não pode ser feito depois, exceto, em poucos casos, com considerável prejuízo na qualidade. O mesmo vale para as inúmeras atividades em que há produção em série. Ainda assim, a imposição de um fator a mais de perda a ser ajustado na porosidade da jornada é sempre um problema para a produtividade geral. O fato é que a perda é significativa, embora não seja possível estimar com precisão o seu valor. A melhor estimativa deve ser mesmo o valor correspondente ao abono concedido em lei, até em obediência ao princípio contábil do conservadorismo.

Além disso, a página eletrônica computerworld.com.br6 informa que foram compradas 117 mil urnas eletrônicas com dispositivo de leitura biométrica para uso em 2012, ao custo de R$ 143 milhões, o que implica custo unitário de R$ 1.214,00. A compra de novas urnas só foi necessária em função dos dispositivos de leitura biométrica, pois não há notícia de que o modelo anterior de urna teria sofrido qualquer obsolescência para as funções específicas, repetitivas – e bienais – que desempenha. Quando todas as aproximadamente 450 mil urnas do País forem substituídas pelo modelo com leitura biométrica, o custo total será de R$ 546 milhões.

Somente os R$ 5,5 bilhões relativos à soma do custo do absenteísmo e das novas máquinas seriam suficientes para construir e equipar toda a Linha Amarela do metrô de São Paulo, que terá, quando concluída, extensão de 12,8 Km, 11 estações e demanda de mais de um milhão de passageiros por dia7.

A análise de custos e benefícios não deveria parar por aí. Seria necessário incluir ainda os custos da redundância representada pelo TSE estar capturando um dado – características biométricas – que também é recolhido por outros órgãos estatais – como a Polícia Federal, na emissão de passaportes8; e as secretarias de segurança estaduais, na expedição de carteiras de identidade. Aliás, chama a atenção o fato de que dois órgãos federais não tenham procurado eliminar redundâncias – e consequente prejuízo – desobrigando quem já é portador de passaporte do incômodo de comparecer mais uma vez para a coleta do dado.

Voltando ao tema central, outro custo relevante do recadastramento é o custo da campanha publicitária em rádio e televisão – também não orçamentário, mas fiscal, pois leva à renúncia de receita de tributos. O cronograma de divulgação de comerciais em rádio e TV para o ano de 2013 é bastante generoso9 e, pelo critério de tempo de divulgação, não deve ficar atrás de produtos e empresas campeãs de audiência. Sabe-se que a isenção fiscal recebida pelas rádios e TV equivale exatamente ao valor de mercado do tempo cedido.

Restaria ainda incluir os custos de redundância, os salários e diárias dos próprios servidores do TSE envolvidos na tarefa e o custo de eventuais terceirizações. Tampouco se considerou o custo de deslocamento – ida e volta – ao cartório eleitoral, equivalente a duas passagens de ônibus ou metrô. Esse custo é igual ao produto do número de eleitores – 140 milhões – por um custo médio nacional de deslocamento de ida e volta de, provavelmente, R$ 3, o que faria a conta subir mais R$ 420 milhões.

Atualmente há grande preocupação com o potencial vazamento de informações de caráter privado armazenadas em bancos de dados de uso público, estatais ou não. Mesmo nos países com atuação relevante na espionagem e na contraespionagem, têm sido comuns os casos de quebra de confiança e de hierarquia e consequente perda de confidencialidade de documentos. Quando os próprios órgãos estatais – Justiça Eleitoral, Polícia Federal e secretarias de segurança – se acotovelam para colher e armazenar os mesmos dados de identificação em bancos de dados distintos, aparentemente sem coordenação estratégica10 e sem cronograma comum, o risco de vazamento e mau uso da informação só faz crescer, ameaçando a privacidade dos cidadãos, sem qualquer vantagem perceptível.

A tabela a seguir sintetiza os argumentos e estimativas precedentes.

Nesse ponto, à vista dos elevados custos totais incorridos – alguns intangíveis, como o risco aumentado de perda de privacidade – é de se perguntar: que benefícios o TSE estaria procurando alcançar ao introduzir a identificação biométrica nos sistemas eleitorais?

De todas as críticas – e não são poucas – usualmente feitas ao sistema eleitoral brasileiro, não figura a de que seja vulnerável a fraude sistemática de identificação do eleitor. Ao contrário, o País se orgulha do modelo operacional que o TSE implantou no País, de fato muito eficaz – o que não significa eficiente, pois a eficácia não leva em conta os custos necessários para se cumprir uma tarefa. O próprio TSE se preocupou primeiramente em garantir a fidedignidade dos resultados e a rapidez das apurações, o que fez principalmente com a introdução da urna eletrônica. Essa opção se deu, provavelmente, porque não julgou necessário combater antes uma eventual tendência a significativas fraudes de identificação – que seria muito mais grave e cujo combate deveria ter sido prioritário. Garantir a lisura dos pleitos teria sido muito mais importante do que acelerar a divulgação de seus resultados.

Além disso, não são comuns, para não dizer inexistentes, denúncias por atores ou grupos relevantes – de dentro ou de fora do establishment político – de fraudes de identificação em volumes capazes de adulterar o resultado de eleições, mesmo em pequenos municípios. Ao contrário, e até ironicamente, o que se ouve cochichar por aí é a desconfiança, alimentada por teorias conspiratórias, de pequenos grupos que acreditam que os avanços tecnológicos – em especial as urnas eletrônicas – aumentam, em vez de reduzir, as chances de fraude sistemática nas eleições.

A verdade é que não há, de fato, interesse público relevante no recadastramento biométrico eleitoral. Somente a estrutura de incentivos prevalecente no setor público brasileiro pode explicar tal escolha orçamentária. Mas esse tema, bastante complexo, mereceria outro artigo.

_____________

1 O documento pode ser encontrado na página www.tse.jus.br, seguindo as abas legislação e pesquisa à legislação eleitoral.

2 Nos termos da justificação da Resolução: “A SOF informou existir no Projeto de Lei Orçamentária Anual – PLOA 2011, para o presente exercício, dotação de R$ 51.000.000,00 para as ações envolvendo a biometria, dos quais R$ 43.475.324,00 destinados ao custeio administrativo e R$ 7.524.676,00 a investimento. Acrescentou que “a meta física constante do PLOA 2011 para o referido projeto é cadastrar 8% do eleitorado nacional, representando 10,8 milhões de eleitores, o que possibilitaria um dispêndio médio da ordem de R$ 4,00 por eleitor”.

3 Segundo página do TSE: “A biometria garante ainda mais segurança aos eleitores brasileiros na hora de votar. Nas Eleições 2014, mais de 22 milhões serão identificados pelas digitais. Por isso, de 2012 a 2014,  o programa de identificação biométrica da Justiça Eleitoral recadastrará cerca de 14 milhões de eleitores (até o momento, 11,5 milhões de eleitores já foram convocados), que se juntarão a outros 7 milhões já recadastrados”. (http://www.tse.jus.br/eleitor/recadastramento-biometrico/recadastramento-biometrico).

4 Na verdade, tanto a CLT quanto a Lei nº 8112, de 1990 (que regulamenta as relações de trabalho para os funcionários públicos federais), preveem dois dias de abono para o recadastramento eleitoral. Nesse artigo, entretanto, decidiu-se pela hipótese de que apenas um dia será utilizado. A ideia é de que, mesmo tendo o direito legal de usar dois dias de abono, o trabalhador do setor privado teria imensa dificuldade de justificar na prática o uso de período tão longo de abono, podendo, inclusive, sofrer retaliações informais. Embora os servidores públicos nem estejam sujeitos a qualquer sanção no caso de utilização dos dois dias, o seu peso relativo no universo total justifica desconsiderar a possibilidade de uso dos dois dias de abono. Uma observação lateral interessante: a legislação que prevê dois dias de abono para o alistamento eleitoral prevê apenas um dia para a doação de sangue.

5 Esse valor corresponde ao produto da PO metropolitana por seu rendimento médio mensal, dividido pela relação (8 horas / 180 horas de trabalho mensal) = [23,007 milhões * R$ 1.863 / (8 dias/180 dias)].

6 http://computerworld.uol.com.br/tecnologia/2010/12/23/tse-compra-117-mil-urnas-para-eleicoes-municipais-de-2012/ último acesso em 11/07/2013.

7 Ver http://www.metro.sp.gov.br/noticias/acontecendo/governador-geraldo-alckmin-inicia-2a-fase-da-linha-4amarela.fss. Último acesso em 14/07/2013.

8 A esse respeito é interessante observar lateralmente que a prática internacional nos países desenvolvidos mais populosos que adotam passaporte com informação biométrica eletrônica é renovar passaportes com registro biométrico de dez em dez anos e de cinco em cinco para crianças. No Brasil, cuja renda per capita é bem inferior à dos países citados e em que há reclamações de falta de mão-de-obra para a emissão de passaportes, estabeleceu-se o intervalo de apenas cinco anos para adultos, o que dobra os custos sociais e demanda o dobro de servidores da Polícia Federal para o cumprimento da tarefa. O pior caso é o das crianças brasileiras, cujo prazo de renovação é igual à da idade na data de emissão. Desse modo, uma criança de um ano receberá passaporte com validade de apenas um ano!

9 http://www.tse.jus.br/internet/recadastramento-biometrico/Plano-midia-tv-radio-biometria-2013.pdf

10 A impressão de improviso e falta de articulação estratégica é reforçada pelo fato de que, poucos meses após a aprovação da Resolução nº 23.335, em fevereiro de 2011, foi aprovada em junho do mesmo ano a Resolução nº 23.345, que revogou o art. 12 da primeira Resolução. A providência teve de ser tomada, segundo a justificação, porque o matéria coletado até então não atendia às especificações técnicas do convênio assinado: “(…) em recente análise das imagens fornecidas por este Tribunal para composição dos cartões RIC, observando o acordo citado, o Instituto Nacional de Identificação – INI/DPF/MJ rejeitou 99,67% das assinaturas dos eleitores, digitalizadas por ocasião do Acordo de Cooperação Técnica 1212010, celebrado entre este Tribunal e a Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia em Identificação Digital. Essa rejeição ocorreu em uma amostra de 8.988 imagens, ficando demonstrado que o procedimento de digitalização das assinaturas dos eleitores, contidas nos documentos RAE (Requerimento de Alistamento Eleitoral), é inadequado para a emissão do cartão RIC e, portanto, desaconselhado pela STI”.

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A partilha interestadual do FPM é constitucional? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1810&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-partilha-interestadual-do-fpm-e-constitucional https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1810#comments Mon, 29 Apr 2013 18:41:59 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1810 1. Históricos e Objetivos

O Fundo de Participação dos Municípios (FPM) está previsto no art. 159, I, b e d, da Constituição Federal. Esses dispositivos estipulam que 23,5% da arrecadação do IR e IPI seja destinada ao fundo em questão. No nível infraconstitucional, a Lei 5.172/1966 (Código Tributário Nacional – CTN), o Decreto-Lei 1.881/1981 e a Lei Complementar 91/1997 determinam que os recursos do FPM sejam assim repartidos:

a) FPM – Capital: 10% para os municípios das capitais dos estados, distribuídos conforme o coeficiente de participação obtido a partir do produto dos fatores representativos da população e do inverso da renda per capita de cada estado;

b) FPM – Interior: 86,4% para os demais municípios, distribuídos conforme o coeficiente de participação ditado pela quantidade de habitantes de cada município;

c) Reserva do FPM: 3,6% para os municípios interioranos mais populosos, distribuídos conforme os critérios do FPM – Capital.

Em 2008, com base em dados de 2007, os universos contemplados por cada fundo foram os seguintes:

a) FPM – Capital: 27 capitais e 44,2 milhões de habitantes (24% do total);

b) FPM – Interior: 5.536 municípios e 139,8 milhões de habitantes (76% do total);

c) Reserva do FPM: 147 municípios e 45,2 milhões de habitantes (24,5% do total).

A exemplo de outros fundos voltados para o desenvolvimento regional, o FPM tem como objetivo promover o equilíbrio socioeconômico entre os entes subnacionais.1 Essa declaração pode ser decomposta em dois níveis, articulados por duas palavras-chave:

a)promover (objetivo intermediário): ser dinâmico (ou seja, variar ao longo do tempo conforme as mudanças na realidade local);

b)equilíbrio (objetivo final): beneficiar os entes menos desenvolvidos.

No caso do objetivo final, o FPM – Capital e a Reserva do FPM claramente beneficiam os municípios com mais população e menos renda, em que pesem as distorções geradas pelos pisos e tetos usados na fixação dos coeficientes individuais de participação. O FPM – Interior, entretanto, como ressaltado pelo Tribunal de Contas União (TCU) privilegia os municípios menores, devido ao pressuposto de que município pequeno é município pobre. Mas este pressuposto é equivocado, pois existem tanto municípios pequenos pobres quanto municípios pequenos ricos … (Relatório do Acórdão de Plenário 1.120/2009). Consequentemente, este é um primeiro foco de tensão na análise da constitucionalidade do FPM. Basta notar que os coeficientes per capita do FPM – Interior declinam à medida que aumenta o tamanho da população, havendo picos a cada mudança de faixa populacional.

Em termos per capita, as diferenças observadas são dramáticas. A razão entre os coeficientes por habitante de Borá e Guarulhos, por exemplo, é igual a 230,63. Como ambos integram o Estado de São Paulo, é imediata a conclusão de que o FPM – Interior destina, por habitante, 230,63 vezes mais recursos para o primeiro do que para o segundo. Essa diferença é apenas parcialmente compensada pela Reserva do FPM. Se os beneficiários da aludida reserva fossem excluídos da presente análise (ou seja, se os municípios com mais de 142.633 habitantes não fossem considerados), a maior diferença entre coeficientes per capita ainda seria de cerca de trinta vezes.2

Ademais, os picos observados na distribuição do FPM – Interior têm sido uma permanente fonte de reclamações, pois a perda de um único habitante nas revisões anuais do tamanho da população pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística pode gerar quedas expressivas nos montantes recebidos. E, como se isso não bastasse, podem estar estimulando o uso, pelos governos municipais, de estratégias de manipulação dos levantamentos populacionais. Monastério (2013), por exemplo, ao analisar os dados do censo demográfico de 2010 para 3.565 prefeituras, estima que 192 municípios parecem ter sido classificados erroneamente, provocando distorções de cerca de R$ 200 milhões anuais no rateio do FPM – Interior (o que equivale a uma distorção de 0,46% em relação ao montante rateado naquele ano)3.

A discussão anterior também vale para o objetivo intermediário. No caso do FPM – Capital e da Reserva do FPM, tem-se que os coeficientes individuais de participação mudam conforme o tamanho da população e o PIB per capita. Portanto, os coeficientes se ajustam às mudanças observadas na realidade socioeconômica. Em relação ao FPM – Interior, todavia, a análise precisa ser desdobrada em dois níveis: o intraestadual e o interestadual. No âmbito do primeiro, os coeficientes efetivamente mudam conforme o tamanho da população, em que pesem as distorções geradas pelos pisos e tetos usados. É no âmbito do segundo que aparece o aspecto mais problemático do rateio em questão, analisado a seguir.

2. Partilha Interestadual

Como assinalado, os coeficientes atribuídos aos municípios interioranos estão estruturados em degraus e não crescem na mesma proporção do tamanho da população. Dessa forma, é vantajoso para um município com, p. ex., 10.188 habitantes, ao qual cabe um coeficiente 0,6, dividir-se em duas prefeituras, às quais caberiam o mesmo coeficiente. Tudo o mais constante, um simples rearranjo administrativo permitiria dobrar o aporte de recursos do FPM para uma dada população.4 Os dois quadros que seguem ilustram o fenômeno estudado. O primeiro contém o cenário base: dois estados (A e B) com dois municípios (A1, A2, B1 e B2) com 30.564 habitantes, aos quais cabem o coeficiente 1,4. Dessa forma, cada ente recebe 25% do montante.

Quadro 1: Cenário Base

O segundo mostra o que ocorre quando o estado B transforma os seus dois municípios em seis (B1.1 a B1.3 e B2.1 a B2.3), todos com 10.188 habitantes. Os seus coeficientes diminuem para 0,6, mas o seu somatório passa de 2,8 para 3,6. De modo agregado, os aportes para esses últimos aumentam 12,5%, em prejuízo de A1 e A2, cujo estado não perseguiu estratégia semelhante.

Quadro 2: Efeito emancipação

Essa situação representaria um evidente estímulo para a fragmentação dos municípios brasileiros. E foi o que aconteceu com a promulgação da Constituição de 1988, que delegou inteiramente às assembleias estaduais a competência para criar novas prefeituras. A combinação do novo comando constitucional com os degraus do rateio do FPM resultou, no primeiro instante, em uma expressiva transferência de recursos para os estados mais agressivos na criação de novos municípios. Somente em 1989 houve 222 emancipações5 – um acréscimo de 5% em relação às 4.424 prefeituras preexistentes. Os que mais recorreram à essa estratégia foram RS, GO, CE, PA, MT e ES. Ao mesmo tempo, AC, AL, MA, PB, PE, RR, SE e SP, que não promoveram emancipações, e outros entes menos agressivos no uso da estratégia em comento tiveram, proporcionalmente, reduções nos aportes para os seus municípios.

Foi nesse contexto que o Congresso Nacional aprovou a Lei Complementar 62/1989, que estabelece normas sobre o cálculo, a entrega e o controle das liberações dos recursos dos Fundos de Participação e dá outras providências. Provisoriamente,

novas perdas foram evitadas congelando-se, até que lei específica fosse editada, os coeficientes individuais de participação (vide art. 3º). Adicionalmente, de maneira permanente, introduziu-se, no parágrafo único do art. 5º, previsão para que, no caso de criação de novo município, o TCU revise os coeficientes individuais de participação dos demais municípios do mesmo estado, com redução proporcional das suas parcelas. Em outras palavras, atrelou-se o somatório, por estado, dos coeficientes do FPM – Interior aos coeficientes fixados no exercício de 1989 no intuito de evitar que a criação de novos municípios por uma assembleia legislativa afetasse as cotas-parte de entes de outros estados. Isso está consubstanciado na Resolução do TCU 242/1990, cujo Anexo II fixa o percentual a ser destinado aos municípios interioranos de cada estado.

Como continuaram ocorrendo emancipações,6 municípios em tudo similares passaram a receber do FPM – Interior montantes diferentes por não pertencerem ao mesmo estado, incorrendo em desvantagem os entes pertencentes aos estados mais agressivos. Com isso, o FPM – Interior deixou de refletir as variações populacionais em nível estadual. Retomando a simulação anterior, suponha-se que a população de A permaneça constante, enquanto a de B passe de 60.128 para 61.134 habitantes, igualmente divididos entre B1 e B2. Assim, os coeficientes dos dois últimos passariam de 1,4 para 1,6:

Quadro 3: Efeito População

Neste caso, os aportes para A1 e A2 cairiam 6,7%, enquanto aqueles para B1 e B2 subiriam na mesma medida – variações decorrentes de diferenças nos padrões demográficos dos dois conjuntos de municípios em vez de uma estratégia deliberada de obtenção de recursos públicos adicionais por qualquer governo estadual. É razoável que este efeito fosse

efetivamente captado pelo rateio do FPM – Interior. Como alertado, entretanto, não é o que acontece, pois o dispositivo legal pertinente não permite diferenciar o efeito emancipação do efeito população.

O resultado é uma enorme distorção entre os somatórios observados e aqueles requeridos legalmente. Enquanto o somatório pernambucano em 2008 precisou, por exemplo, aumentar 11% para alcançar o patamar observado em 1990, o roraimense precisou diminuir 53%, com impacto equivalente sobre os coeficientes individuais de participação nas duas situações. O próximo quadro mostra os coeficientes efetivos de três municípios com populações semelhantes. Embora a todos caiba, teoricamente, o coeficiente 1,4, os municípios de Pernambuco recebem, na prática, 2,4 vezes mais que o de Roraima:

Quadro 4: Diferenças nos coeficientes interestaduais

É uma situação incompatível com o nosso ordenamento constitucional, uma vez que a Carta Magna estabelece que os fundos regionais de desenvolvimento devem ser pautados por critérios dinâmicos, como atestado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em relação ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal. Como salientado pelo Ministro Gilmar Mendes, deve haver a possibilidade de revisões periódicas dos coeficientes envolvidos, de modo a se avaliar criticamente se os até então adotados ainda estão em consonância com a realidade econômica dos entes federativos e se a política empregada na distribuição dos recursos produziu o efeito desejado.

Conclusão

Um questionamento da constitucionalidade do FPM restrito ao teor do parágrafo único do art. 5º da Lei Complementar 62/1989 (ou seja, que tratasse apenas do objetivo intermediário desse fundo) poderia suscitar uma intervenção pontual da parte do STF, diferentemente do que aconteceu com o FPE. Declarada a nulidade do dispositivo em questão, o rateio do fundo poderia prosseguir normalmente, pois as suas regras gerais não seriam afetadas. Apenas a partilha interestadual precisaria ser redimensionada, com ganhos e perdas variando de +110,8%, no caso de Roraima, a
–10,3%, no caso de Pernambuco.

O redimensionamento requerido implicaria incorporar ao rateio do FPM – Interior tanto as mudanças demográficas como as emancipações municipais ocorridas após 1989. Com isso, as prefeituras de dezesseis estados ganhariam, enquanto as de catorze perderiam. No entanto, ainda que esse ônus inicial fosse julgado aceitável, haveria a questão das futuras emancipações. Como a norma federal requerida pela EMC 15/1996 permanece pendente, as assembleias legislativas acham-se impedidas de criar novos municípios. Isso, porém, pode mudar, reabrindo a possibilidade de uma competição viciosa entre os governos estaduais por recursos públicos escassos.

O questionamento da constitucionalidade do FPM poderia, contudo, ganhar contornos dramáticos caso tivesse como alvo o objetivo final desse fundo. Como ressaltado pelo TCU, o tratamento preferencial dado pelo FPM – Interior aos municípios pouco populosos pode não estar sintonizado com a busca do equilíbrio entre os entes subnacionais, como requerido pela Carta Magna. Se esse argumento fosse acolhido pelo STF, toda a partilha precisaria ser redefinida.7

_____________

1Conforme o art. 161, II, da Constituição Federal.

2 O Município de Parnaíba é o mais populoso entre aqueles que não participam do rateio da Reserva do FPM.

3Não foram considerados os aportes em favor do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação.

4Se cada município tivesse exatamente a metade da população original, os recursos públicos disponíveis para cada habitante, isoladamente, dobraria.

5Não computados os 79 municípios do novo Estado do Tocantins, que integravam o Estado de Goiás.

6Até a edição das Emendas Constitucionais (EMCs) 15/1996 e 57/2008.

7Vide Rocha (2013, p. 26) para uma análise preliminar dos problemas envolvidos.

Bibliografia

MONASTERIO, Leonardo (2013). O FPM e a Estranha Distribuição da População dos Pequenos Municípios Brasileiros. Brasília : Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Texto para Discussão 1.818 (disponível em: http://tinyurl.com/c22gldd).

ROCHA, C. Alexandre A. (2013). O FPM é Constitucional? Brasília : Consultoria Legislativa do Senado Federal, Texto para Discussão 124 (disponível em: http://tinyurl.com/bmwzomm).

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Como dividir o Fundo de Participação entre os estados? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=657&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=como-dividir-o-fundo-de-participacao-entre-os-estados https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=657#comments Thu, 21 Jul 2011 19:25:00 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=657 O Fundo de Participação dos estados e do Distrito Federal (FPE) é uma transferência de dinheiro do Governo Federal para esses entes da federação, cujo objetivo é equalizar a capacidade financeira dos que têm menor capacidade de arrecadar impostos com a dos que têm atividade econômica mais intensa e, portanto, maior possibilidade de obter receitas.

O FPE, por determinação constitucional, transfere aos estados 21,5% da arrecadação do Imposto de Renda-IR e do Imposto sobre Produtos Industrializados-IPI. Em 2010, transferiu o equivalente a 1,1% do PIB (R$ 39 bilhões). Em estados de base tributária mais estreita, como Amapá, Roraima, Acre e Tocantins, o FPE é a principal fonte de recursos, representando quase metade da receita desses estados; enquanto nos mais desenvolvidos, como São Paulo, não representa mais que 1% da receita.

Desde 1989, o FPE é distribuído com base em cotas fixas, isto é, cada estado recebe um percentual fixo dos recursos do Fundo. Anteriormente vigia um sistema em que as cotas eram recalculadas anualmente, com base em variações da renda per capita e da população de cada estado. Assim, estados que se desenvolvessem mais devagar ou tivessem maior crescimento populacional passariam a receber uma parcela maior dos recursos do Fundo.

Provocado por diversas Ações Diretas de Inconstitucionalidade, que afirmavam que as cotas fixas contrariam o caráter equalizador do Fundo (pois prejudicam os estados que tiveram crescimento acelerado da população e queda da renda per capita), o STF declarou inconstitucional o atual método de partilha e fixou prazo, até 31 de dezembro de 2012, para que o Congresso aprovasse nova regra.

Surge, então, a questão: qual a maneira mais eficiente de distribuir o FPE entre os estados? Note que qualquer ganho que se dê a um estado representa perda na participação relativa dos demais. Isso gera um difícil processo de barganha entre os estados. E essa barganha tem que ser resolvida até o final de 2012, sob pena de a lei atual perder validade e os estados não receberem mais o FPE.

A situação complica-se ainda mais quando se leva em conta que outras questões de grande impacto sobre a receita estadual estão em negociação: a legislação do Impostos sobre Circulação de Mercadorias (ICMS) e a distribuição dos royalties cobrados sobre o petróleo a ser extraído da camada pré-sal.

Proponho, aqui, alguns princípios para a divisão do FPE que tenham viabilidade de aprovação política e, ao mesmo tempo, produzam uma adequada partilha de recursos.

RECOMENDAÇÃO I – É preciso reconhecer que a decisão sobre a partilha do FPE, a ser tomada até dezembro de 2012, ocorrerá antes da complexa decisão sobre partilha dos royalties e sobre a divisão da receita de ICMS. Isso significa que, depois de definida a regra do FPE, as decisões sobre as outras partilhas podem mudar drasticamente a capacidade fiscal dos estados e, consequentemente, tornar os critérios do FPE ultrapassados ou inadequados. Um estado como o Rio Grande do Norte, por exemplo, que é importante produtor de petróleo, pode ter suas finanças impulsionadas por uma regra que concentre os royalties nas unidades federadas produtoras, ou pode ficar em situação pior se os royalties forem divididos igualmente entre todos os estados e municípios. Sem saber qual será a receita de royalties do RN, como definir se ele deve receber mais ou menos do FPE?

De modo similar, se a cobrança do ICMS for alterada, aumentando-se a tributação no estado de destino das mercadorias, aumentará a arrecadação dos estados do N e NE, reduzindo seu hiato fiscal em relação ao resto do País, o que indicaria a menor necessidade de FPE para os estados beneficiados pela mudança no ICMS.

Nesse contexto, o ideal é que se estabeleçam critérios para o FPE que sejam capazes de captar, rapidamente, mudanças abruptas na posição relativa dos estados em termos de capacidade fiscal.

Deve-se usar a forma mais direta possível de se medir diferenças na capacidade fiscal: a distância entre a receita de um estado e a média nacional. Assim, por exemplo, se tivéssemos apenas 3 estados, com Receitas Correntes Líquidas (excluída a receita de FPE) per capita de R$ 90 (estado A), R$ 60 (estado B) e R$ 30 (estado C), utilizar-se-ia uma fórmula de partilha em que o estado “C” receberia uma parcela maior do FPE e o estado “A” receberia uma parcela menor. Esse é, aproximadamente, o modelo utilizado há muitos anos no Canadá e na Austrália[1]. E é a forma mais direta de complementar a receita fiscal das unidades federadas com menor capacidade de arrecadação.

Obviamente haveria o risco de os estados afrouxarem a arrecadação de impostos para terem direito a uma cota maior do FPE. Isso pode ser evitado por diversos modos. Primeiro, utilizando-se no cálculo a receita estadual do ano anterior (ou de mais de um ano anterior), o que imporia um espaço de tempo entre a queda da receita própria e o aumento do FPE. Segundo, provendo-se apenas uma compensação parcial, de modo que uma perda de R$ 1,00 de receita própria garantiria muito menos que R$ 1,00 adicional no FPE. Terceiro, utilizando-se a Receita Corrente Líquida (RCL), definida pela Lei de Responsabilidade Fiscal[2], como o conceito a ser utilizado no cálculo. Este conceito é utilizado na definição dos limites máximos para a despesa de pessoal e de endividamento público. Por isso, os estados têm interesse que essa receita seja a mais alta possível, para elevar seus limites de endividamento e para evitar punições decorrentes do estouro da despesa de pessoal. Assim, o incentivo para subestimar (com vistas a receber mais FPE) seria contraposto pelo interesse em ter uma RCL elevada.

RECOMENDAÇÃO II – É preciso considerar que qualquer mudança de fórmula de partilha embute o risco de que alguns estados sofram perdas imediatas expressivas. Isso reduz a viabilidade de aprovação da nova regra e gera risco de crises fiscais em estados muito dependentes do FPE. Por isso, é bastante provável que seja necessário que a nova regra preveja um período de transição entre a partilha atual e os novos critérios, visando uma partilha mais justa sem causar perdas imediatas e abruptas a alguns estados.

RECOMENDAÇÃO III – Deve-se evitar a tentação de usar o FPE para atingir diversos outros objetivos que não sejam a redução das disparidades na capacidade fiscal dos estados. Por exemplo, a introdução de um adicional para estados que tenham grandes áreas ocupadas por reservas ambientais. Ou então, para estados que tenham sob sua responsabilidade acervos do patrimônio histórico. Um ensinamento básico em economia é de que um mesmo instrumento não pode ser usado para atingir mais de um objetivo. Há o risco de que um critério atue em sentido contrário a outro critério, com os efeitos se anulando. As políticas ambiental, de preservação do patrimônio histórico, ou qualquer outra política setorial devem ter seus instrumentos próprios de estímulo e financiamento. O FPE deve ser, única e exclusivamente, um mecanismo de redução das disparidades de capacidade fiscal dos estados.

RECOMENDAÇÃO IV – Deve-se evitar prefixar a participação de algumas regiões. Pela regra atual, 85% do FPE devem ser transferidos aos estados do N, NE e CO. Essa regra pressupõe que tais regiões concentram estados de menor capacidade fiscal, enquanto S e SE só possuam estados de alta capacidade fiscal. Isso não é uma verdade absoluta. No Centro-Oeste, o Distrito Federal tem um perfil fiscal totalmente diferenciado dos demais estados da Região, não só com maior capacidade fiscal, como também por contar com transferência específica a seu favor (Fundo Constitucional do Distrito Federal). Na Região Norte, o estado do Amazonas se diferencia em função do polo industrial da Zona Franca de Manaus. No Nordeste, os estados têm apresentado, ao longo dos anos, desempenhos econômicos e performances fiscais distintos entre si.

Como já afirmado anteriormente, a restrição imposta por esse critério se tornará ainda mais problemática se a reforma tributária avançar, pois ela provavelmente resultará em aumento da capacidade fiscal dos estados do Norte e Nordeste.

É evidente que haverá resistência da maioria parlamentar formada pelos representantes do N, NE e CO, mas isso poderia ser resolvido por meio de uma regra de transição que fizesse um ajuste lento da antiga para a nova regra.

RECOMENDAÇÃO V – Criação de um fundo de reserva. O FPE recebe mais recursos quando a economia está crescendo (devido ao aumento das receitas de IPI e de Imposto de Renda) e menos recursos durante as recessões. Esse perfil pró-cíclico estimula um comportamento fiscal pouco responsável, principalmente nos estados em que o FPE representa elevado percentual da receita total. Em momentos de bonança, há estímulo para se gastar mais. Porém o gasto público, uma vez criado, é difícil de ser cortado. A contratação de pessoal, por exemplo, está associada a direitos constitucionais de estabilidade que dificultam o uso da demissão de servidores como instrumento de redução da despesa. Por isso, quando vem a crise econômica e a consequente redução do FPE, as despesas estão altas e rígidas (não podem ser cortadas de imediato), o que gera crise fiscal.

No modelo político brasileiro, a consequência é um movimento de pressão de governadores e prefeitos sobre o Governo Federal, requerendo ajudas fiscais emergenciais. Em 2010, por exemplo, o Governo Federal distribuiu a estados e municípios R$ 1,2 bilhão a título de compensação de “perdas” do FPE e FPM decorrentes da queda da arrecadação federal durante a crise econômica de 2009.

Por isso, a bem da disciplina fiscal, seria interessante que o montante do FPE não oscilasse ao sabor do ciclo econômico. Há dois caminhos para atingir esse objetivo. Por isso recomenda-se a criação de um fundo de reserva que funcionaria como colchão de amortecimento. Nos períodos de elevação da receita, parte dos recursos seria acumulada nessa reserva, em vez de serem integralmente repassada aos estados. Nos períodos de queda, a reserva seria utilizada para complementar os repasses.

RECOMENDAÇÃO VI – Deve-se evitar o erro atualmente cometido na partilha do Fundo de Participação dos Municípios, em que pequenas mudanças na população da unidade federada geram grandes mudanças na sua participação no Fundo. Isso ocorre quando as unidades beneficiárias do Fundo são agrupadas em faixas de renda per capita e de população. Isso significa que estados que estão próximos ao limite superior ou inferior de cada faixa podem ter um grande aumento ou redução de suas receitas de FPE se, em decorrência de pequena variação de suas populações, mudarem de uma faixa para outra[3].

Isso gera uma série de problemas. Em primeiro lugar, uma pequena variação na população não altera substancialmente o volume de recursos requeridos para prestar serviços públicos. Mas ela pode ser suficiente para reduzir ou aumentar drasticamente a receita de um estado. O mesmo se pode dizer de variações marginais na renda per capita: uma pequena queda dessa renda não diminui a base tributária nem a capacidade fiscal do estado, mas pode lhe proporcionar grandes ganhos de receita no FPE.

Em segundo lugar, deve-se levar em conta que tanto a população quanto a renda per capita são calculadas por meio de estimativas do IBGE. A efetiva contagem da população ocorre apenas a cada cinco anos (por meio de censos ou contagens populacionais). Isso significa que um estado cuja população é estimada em valor muito próximo ao limite superior de uma faixa tem incentivos para requerer (administrativamente ou judicialmente) a revisão da estimativa.

Isso gera conflitos e custos administrativos desnecessários, sobrecarregando o IBGE com revisão de estimativas para as quais não há métodos adequados alternativos à (dispendiosa) recontagem populacional. Gera, também, incerteza aos estados sobre qual será a sua efetiva receita, visto que os recursos levam tempo para serem apreciados, não necessariamente são aceitos, e afetam não só a receita dos estados demandantes, mas também a de todos os demais estados.

RECOMENDAÇÃO VII  – Evitar o uso de parâmetros que não são frequentemente atualizados. Se o objetivo da mudança no FPE é permitir que as cotas dos estados se ajustem a mudanças na capacidade fiscal, é preciso que os parâmetros de definição das cotas sejam estimados com frequência.  Muitas variáveis socioeconômicas usadas como critério para divisão de recursos (relativas a renda pessoal, condições de habitação, nível de escolaridade, estrutura etária da população, etc.) são apuradas apenas de dez em dez anos, por meio dos censos demográficos. Obviamente, um FPE cujas cotas fossem ajustadas de dez em dez anos estaria muito próximo de um sistema de cotas fixas, que é justamente o que se pretende evitar.

RECOMENDAÇÃO VIII – Evitar o uso da renda per capita como critério de partilha. Esse é um indicador problemático, porque em estados altamente dependentes do FPE (como Amapá, Roraima, Acre ou Tocantins), o Fundo tem alta influência sobre a renda per capita. Um aumento do FPE permite, por exemplo, a elevação do emprego e do salário no setor público estadual, que tem peso relevante no cálculo da renda per capita local.

Se a renda per capita for usada como critério de cálculo da partilha do FPE, teremos uma situação em que o Fundo influencia a renda e a renda influencia o Fundo. Um aumento no FPE levará a um aumento na renda per capita. Isso fará com que, no momento seguinte, diminua a participação do estado no FPE, levando à queda na renda per capita. Daí decorrerá novo aumento do FPE.

Ou seja, haverá uma desnecessária oscilação do FPE dos estados mais dependentes do Fundo. Mais do que isso, a renda per capita desses estados não é uma boa proxy para a capacidade fiscal própria do estado, pois reflete uma situação que já leva em conta as transferências.

Seria preciso, então, criar uma estatística de “renda per capita desconsiderando as transferências fiscais” o que seria complicado e retiraria objetividade e transparência do indicador.

CONCLUSÃO – A proposta feita no início do texto, de se dividir o FPE de acordo com a diferença da receita estadual em relação receita  média de todos os estados atende ou é compatível com todas as recomendações feitas acima.

Como já afirmado acima, esse modelo permite o rápido ajustamento das cotas de cada estado no FPE em função de mudança na sua posição em relação à média dos estados. Atende, portanto, à exigência do STF de se estipular critérios móveis, associados a desníveis socioeconômicos, que evitem o congelamento das cotas, motivo principal da declaração de inconstitucionalidade da atual legislação.

Em segundo lugar, esse novo FPE se adaptará rapidamente a outras mudanças no sistema tributário e de transferências, como as mudanças no regime do ICMS e de partilha de royalties.

Em terceiro lugar, o modelo não é incompatível com uma regra de transição que evite perdas para os estados.

Em quarto lugar, evita-se o uso de qualquer critério estranho à diferença de capacidade fiscal, tais como os de área ocupada por reservas ambientais ou de acervo de patrimônio histórico. Também é evitado o uso da renda per capita como critério de partilha.

Em quinto lugar, acaba a clivagem artificial entre estados do N, NE e CO, de um lado, e os do S e SE de outro.

Em quinto lugar, o sistema é plenamente compatível com a criação de um fundo de reserva do FPE, com vistas a reduzir a variância dos recursos em função dos ciclos econômicos.

Em sexto lugar, acaba o problema de fortes oscilações nas cotas estaduais em função de “mudanças de faixa” populacional ou de renda per capita. Como o ajuste será feito com base em variação da receita estadual em relação à média de todos os estados, os ajustes tendem a ser suaves. Além disso, como a RCL é claramente aferida (e deverá ser atestada pelo Ministério da Fazenda, tribunais de contas, etc.), não restará espaço para contestação judicial das cotas atribuídas a cada estado, como ocorre atualmente em função de incertezas acerca da estimação da renda e da população.

Infelizmente, todos os projetos de lei[4] até agora apresentados para regular a matéria contrariam quase todas as recomendações aqui formuladas.

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Para ler mais sobre o tema:

Mendes, M. (2011) Fundo de Participação dos Estados: sugestão de critérios que atendam determinações do STF. Consultoria Legislativa do Senado. Texto para Discussão nº 94. Disponível em: http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao.htm

Rocha, C.A.A. (2010) Rateio do FPE: análise e simulações. Consultoria Legislativa do Senado. Texto para Discussão nº 71. Disponível em: http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao.htm


[1] Para uma descrição desses modelos ver Ter-Minassian, T. (Ed.) (1997) Fiscal federalism in theory and practice. Fundo Monetário Internacional. Washington – DC, 701 p.

[2] Lei Complementar nº 101, art. 2º, inciso IV.

[3] Simulações a esse respeito podem ser encontradas em Rocha (2010).

[4] Vide PLS nº 29, de 2005; PLS nº 192, de 2011 e PLS nº 289, de 2011.

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Será a divisão do Estado do Pará uma boa idéia? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=598&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=sera-a-divisao-do-estado-do-para-uma-boa-ideia https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=598#comments Mon, 13 Jun 2011 11:56:07 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=598 O Congresso Nacional promulgou em 26 de maio o Decreto Legislativo nº 136, que dispõe sobre a realização de plebiscito para criação do Estado do Carajás. Corre simultaneamente no Legislativo o projeto para criação do estado do Tapajós, que foi aprovado com modificações na Câmara dos Deputados e, por isso, deverá retornar ao Senado para reapreciação.

Apesar da aprovação iminente destes dois Decretos Legislativos, ainda pairam várias dúvidas legais sobre o processo, das quais a mais importante é aquela sobre a abrangência do plebiscito. Não se sabe ainda se todos os paraenses serão consultados, ou se só os habitantes dos futuros estados decidirão sobre a cisão.

Essa questão, assim como muitas outras serão deixadas para decisão judicial, evitando assim um possível desgaste político da proposição. Outra decisão estratégica que parece ter sido tomada pelos apoiadores da divisão é a de se votar conjuntamente as duas divisões, o que aparentemente aumentaria as chances de sucesso de ambas.

É importante ressaltar que estes projetos são os primeiros de uma lista de 14 proposições de criação de novos estados ou territórios e, portanto, possuem um caráter, se não de jurisprudência, pelo menos de formação de precedentes. Em suma, o trâmite e procedimentos eleitorais das outras proposições serão balizados pelas decisões estabelecidas nesses dois casos.

Se levados a cabo, tais projetos reduziriam o Estado do Pará a 22% da sua área atual (Figura 1). No entanto, o território que restaria do Estado do Pará conservaria 71% de sua população atual de cerca de 7,5 milhões de habitantes. Carajás somaria uma população de cerca de 1,5 milhão de pessoas e Tapajós, de pouco mais de 800 mil[1].

Figura 1

Como Ficaria o Atual Estado do Pará

Um ponto notável dessa reordenação territorial seria a discrepância de densidades demográficas dela resultante: o Pará ficaria com 18,1 habitantes por km2, o que representa cerca de quatro vezes a densidade de Carajás e dezesseis vezes aquela que seria observada no Tapajós.

Sob o ponto de vista econômico, os dois estados nascentes seriam bastante díspares. Carajás teria um PIB estadual de cerca de 20 bilhões de reais, enquanto Tapajós contaria com um PIB de pouco mais de 4 bilhões[2]. A divisão setorial dos PIBs também se revela bastante distinta: em Carajás ocorre uma predominância industrial, setor que responderia por 54% do futuro estado, enquanto que o setor de serviços, com 42% da produção, seria o mais importante no caso de Tapajós.

Mas talvez a maior diferença entre os dois estados esteja nos PIBs per capita. Quando esses valores são apreciados, parece que o Pará está sendo dividido em regiões por ordem de pobreza. A região que formaria o Estado do Tapajós apresentou em 2008 um PIB per capita de R$ 5.628, o que corresponde a 70% do PIB per capita paraense naquele ano. Já para Carajás, tal valor chega a R$ 14.000, sendo 76% maior que o PIB do Pará. A diferença entre os PIBs per capita de Carajás e Tapajós seria de 150%, o que grosseiramente quer dizer que cada habitante de Carajás seria 2,5 vezes mais rico em média que os moradores do Tapajós.

Um forte argumento, a meu ver, contra a criação desses estados é a insustentabilidade financeira de ambos. Utilizando uma metodologia desenvolvida para estimar os custos de manutenção das unidades federativas brasileiras[3] é possível ter uma ideia de qual seria o montante de gastos anuais necessários para a condução das máquinas estaduais dos governos a serem criados.

Essa metodologia calcula o custo do governo estadual baseada no PIB estadual, na população do estado, na sua área geográfica e no número de municípios que o estado contém. A lógica aqui é a de que quanto mais população e PIB o estado tiver, maiores deverão ser os gastos estaduais, uma vez que a produção de serviços públicos, tanto sociais quanto de infraestrutura, também terá que ser majorada.

Os valores estimados por este método apontam para um total de gastos estaduais de R$ 1,9 bilhão no Estado de Tapajós e de R$ 3,7 bilhões no caso de Carajás[4].

Quando esses valores são confrontados com a produção local, pode-se ter uma ideia preliminar sobre a viabilidade econômica dos novos estados. Os PIBs dos potenciais estados podem ser calculados pela agregação dos PIBs dos municípios que o formariam.

Por exemplo, o Estado do Tapajós gastaria com o seu governo estadual a proporção de 44% do seu PIB. Naturalmente, isso não quer dizer que essa proporção do PIB do estado seria alocada para financiar as despesas estaduais, mas sim que a máquina estadual consumiria um valor equivalente a 44% da produção local.

No caso do Estado de Carajás a situação, embora melhor, ainda estaria longe de ser confortável. Esse Estado gastaria o equivalente a 19% do seu PIB com o governo estadual, o que é bem menos que a proporção do Tapajós, mas ainda assim é maior que a média nacional (12,5%) e maior que a média do Pará (16%).

Um ponto que merece ser frisado é que esses gastos acima citados dizem respeito apenas ao funcionamento regular dos governos estaduais e não computam os gastos necessários à construção da infraestrutura para seu funcionamento (sedes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; sede do Ministério Público; equipamentos para as secretarias de governo; etc.).

Também é possível se ter uma ideia, ainda que aproximada, do montante de receitas disponíveis a cada um destes novos estados. Para se realizar este exercício, tomam-se como base as receitas totais do estado do Pará em 2009, cujos valores são os últimos disponíveis[5]. Calcula-se então quanto desta receita iria para os novos estados baseado na proporção da arrecadação municipal das novas unidades. Assim se a receita municipal do conjunto dos municípios do novo estado corresponde a 20% da receita do total dos municípios paraenses, supõe-se que a receita total do novo estado será igual a 20% da receita estadual do Pará. Baseado nessas proporções, os valores encontrados para os Estados de Tapajós e Carajás são, respectivamente, 1,057 e 2,666 bilhões de reais.

Tais receitas e despesas dos novos estados implicam um déficit conjunto de R$ 1,873 bilhões, distribuídos entre Tapajós (R$ 864 milhões) e Carajás (R$ 1,009 bilhões). A Tabela 1 consolida essas estimativas:

Tabela 1

Estimativas Fiscais para os Estados de Carajás e Tapajós

Carjás Tapajós Total
Gasto Estimado do Estado em R$ bilhões 3,676 1,922 5,597
PIB* em R$ bilhões 19,232 4,343 23,574
Gasto em %PIB 19,1 44,2 23,74
Receita Orçamentária Estimada em R$ bilhões 2,666 1,057 3,724
Déficit Anual Estimado em R$ bilhões 1,009 0,864 1,874
Gasto por Habitante em R$ 2.681 2.490 2.613

Os números apontam para um déficit conjunto de 1,8 bilhão de reais anuais. Esse valor teria que ser coberto de alguma forma, provavelmente, para não dizer inevitavelmente, pela União.

As informações apresentadas não pretendem menosprezar os anseios das populações locais por melhores serviços públicos e qualidade de vida. Muitos dos habitantes dessas regiões se sentem negligenciados pelo governo estadual, em muitos casos com razão. O fato de o Pará ter amplo território faz com que a distância entre Belém e os rincões mais longínquos muitas vezes seja um obstáculo para a boa governança necessária ao desenvolvimento local. É inegável que governos mais próximos da população seriam mais responsabilizáveis[6] e que as regiões seriam beneficiadas pela criação dos respectivos estados.

No entanto, podem existir razões menos nobres, de maior ou menor legitimidade por trás das proposições de criação destes estados. Dentre elas a criação de inúmeros novos cargos eletivos e de confiança que permitiriam uma diluição da concorrência política por posições públicas.

O domínio político de áreas potencialmente geradoras de tributos também pode ser uma das razões motivadoras dessas proposições. A região que formaria o Estado do Carajás é rica em minerais e já conta com uma grande operação da Vale. A usina de Belo Monte, a ser construída nos próximos anos, será localizada em Vitória do Xingu, município que integraria o estado do Tapajós. Dificilmente o orçamento monumental dessa operação terá passado despercebido.

Contudo, a principal motivação para as proposições parece ser a inevitabilidade de aplicação de recursos federais nas regiões após o surgimento dos novos estados. Seja para construir a infraestrutura física, seja para saldar o déficit que, como foi visto acima, será criado a partir da criação das novas unidades federativas. Parece impossível que não haja aplicação adicional de fundos da União na hipótese de concretização da divisão.

Tal ideia é facilmente vendida para a população local, geralmente carente de serviços públicos. A perspectiva de atração de novos recursos, inclusive federais, traz uma esperança de que setores como saúde e educação possam ter melhorias significativas. O problema é que mais recursos para a região significam ou menos recursos para outras regiões, ou maior tributação em nível nacional, ou crescimento da dívida federal. Em uma sociedade democrática, pode-se escolher gastar mais em uma determinada região, arcando-se com uma dessas conseqüências. O problema aqui é que esta forma de atrair recursos federais é cara e antieconômica. As estimativas sugerem que a criação de um estado novo na federação brasileira adiciona ao gasto público total R$ 995 milhões[7] anualmente, somente para manter as estruturas criadas. Assim, o desmembramento do Pará em três estados acrescentará cerca de 2 bilhões de reais às despesas de governo no Brasil, dos quais, como vimos, cerca de 1,8 bilhão não poderão ser cobertos por receitas próprias dos novos estados.

Existem circulando hoje no Congresso Nacional propostas para a criação de 13 novos estados e territórios. Caso todas se concretizem, teremos uma federação com 37 estados, 3 territórios e cerca de 13 bilhões mais cara. Isso sem contar novas proposições que poderão surgir na esteira do sucesso dos projetos que ora tramitam. Por tudo isso, a divisão do Estado do Pará não parece ser uma boa idéia.

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Para ler mais sobre o tema:

Boueri, R. “Custos de Funcionamento das Unidades Federativas Brasileiras e suas Implicações sobre a Criação de Novos Estados”. Texto para Discussão 1367. IPEA. Brasília. 2008. Disponível em http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/tds/TD_1367.pdf


[1] Fonte IBGE.

[2] Fonte: PIBs Municipais IBGE. Valores de 2008.

[3] Boueri, R. “Custos de Funcionamento das Unidades Federativas Brasileiras e suas Implicações sobre a Criação de Novos Estados”. Texto para Discussão 1367. IPEA. Brasília. 2008.

[4] Estimativas referentes a 2009.

[5] Site da STN: http://www.tesouro.fazenda.gov.br/estatistica/est_estados.asp.

[6] OATES, W. Fiscal federalism. 2ª ed. Gregg Revivals, 1993.

[7] Boueri (2008), Op. Cit.

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Por que não regionalizar o salário mínimo? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=440&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-nao-regionalizar-o-salario-minimo https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=440#comments Mon, 11 Apr 2011 09:00:54 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=440 Apesar dos esforços econômicos e dos avanços significativos obtidos com as políticas que conduziram à estabilidade de preços e à distribuição de renda, via programas sociais, nos últimos 16 anos, a desigualdade ainda persiste no Brasil. Nosso país ainda precisa avançar muito na composição de políticas econômicas e sociais que atendam ao objetivo de melhorar a vida dos brasileiros de forma perene.

Um tipo de desigualdade que continua presente em nossa sociedade está relacionada à determinação do salário mínimo. No Brasil, o valor do salário mínimo é determinado pelo Poder Executivo Federal. Na verdade, o valor é previsto no orçamento e vem sendo fixado por Medida Provisória, que tramita no Congresso Nacional, sendo que os parlamentares podem alterar o valor do piso nacional durante as discussões. Havendo alteração, a matéria vai à sanção do Presidente da República, que pode vetá-la.

O salário mínimo serve de base para qualquer contrato no mercado de trabalho. Nenhum trabalhador, independentemente da região, área rural ou urbana, poderá receber menos do que o mínimo estabelecido pelo governo. Ademais, este salário também serve de indexador para outros contratos de trabalho e para o nível básico das aposentadorias do INSS. Mais, o mínimo afeta a folha de pagamento de todos os estados e municípios brasileiros, de modo que os reajustes promovidos conduzem a custos fiscais elevados, a depender da decisão do governo federal e do Legislativo, evidentemente, uma vez que se pode dizer que é uma decisão conjunta. Discordâncias entre os Poderes Executivo e Legislativo conduzem a matéria a uma negociação política cujo resultado dependerá da resultante das forças em jogo.

Um problema claro na determinação de um salário mínimo nacional é não levar em conta as diferentes realidades regionais, tanto de renda quanto de nível de preços. Por exemplo, uma prefeitura que tem poucos recursos pode ter dificuldades em pagar um salário mínimo muito alto, enquanto prefeituras com mais recursos são pouco afetadas pelo mínimo nacional. Este tipo de política, portanto, ajuda a manter os níveis de renda equiparados entre as prefeituras do país, mas cria problemas fiscais para aquelas de menor receita per capita. Quando o salário mínimo federal aumenta, ele eleva os gastos dos estados e municípios ricos e pobres de forma desproporcional. Muitos estados e municípios ficam engessados, com uma folha inchada.

Um segundo problema está relacionado ao fato de que o salário mínimo nacional não leva em conta as desigualdades no nível de preços. Usando os dados da cesta básica do Dieese, podemos fazer comparações simples. A cesta básica, em São Paulo, custava R$ 265,15 em dezembro de 2010. Este valor era de R$ 175,88 em Aracaju. Uma diferença de 50,75%. Isto somente para alimentação. Ou seja, o poder de compra de um indivíduo que recebe o mesmo salário mínimo e que, por hipótese, consuma a grande maioria dos bens componentes da cesta básica, é muito maior em Aracaju do que em São Paulo.

Finalmente, devemos levar em conta os efeitos microeconômicos sobre a oferta e demanda por trabalho em cada região. Certamente, alguns trabalhadores de Aracaju estariam dispostos a trabalhar formalmente por um valor inferior ao mínimo. Mas, talvez, o salário mínimo não afete muito o equilíbrio entre oferta e demanda em São Paulo. Como resultado, o mercado de trabalho estaria equilibrado em São Paulo, mas haveria um excesso de oferta de trabalho em Aracaju. Evidentemente, seria razoável supor que também um piso faria todo sentido em Aracaju, mas muito provavelmente ele não seria, em um ambiente com regras regionais, e não nacionais, idêntico ao de São Paulo.

Uma política mais eficiente seria levar estas desigualdades regionais em consideração. A nossa proposta, então, seria a de criação de um salário mínimo regional, determinado pelos estados. Cada estado elaboraria sua própria política salarial, levando-se em conta as desigualdades de renda. Isto já acontece, parcialmente. Estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, por exemplo, possuem mínimos regionais acima do piso nacional. Em São Paulo, existem, inclusive, diferentes faixas salariais de acordo com a profissão. O que não acontece é uma mudança no sentido contrário, ou seja, um salário regional abaixo do nacional.

Este tipo de política permitiria uma separação dos problemas gerados pelo salário mínimo nacional: elevados custos para os estados/municípios pobres, desigualdade do poder de compra e efeitos de oferta e demanda no mercado de trabalho. É verdade que, mesmo dentro dos estados, há heterogeneidade quanto à capacidade de remuneração dos municípios. Mas, como a heterogeneidade tende a ser menor no nível estadual, as finanças dos municípios mais pobres serão provavelmente menos afetadas em um contexto de determinação regional do salário mínimo.

Ao primeiro olhar, pode-se pensar que esta política exacerbaria as desigualdades regionais, já que provavelmente o mínimo de São Paulo seria (e de fato é) maior do que o de Aracaju, escolhendo duas cidades como exemplos práticos para que diferenças bastante evidentes possam ser colocadas em destaque nesta breve análise. Mas as pessoas se esquecem das desigualdades de poder de compra. Este é o ponto fundamental. Um aluguel é muito maior em São Paulo do que em Aracaju, e o mesmo vale para a cesta básica, como vimos anteriormente. Sem mencionar que, efetivamente, municípios mais pobres, sob a nova regra regional, passariam a ter maior disponibilidade de receitas para gastar em outros programas. Tais programas poderiam gerar maiores benefícios à população pobre, quando comparado ao pagamento de salários, que muitas vezes beneficiam um seleto grupo de habitantes locais, que recebem rendimentos superiores à realidade da média da população local, sem a devida contraprestação de serviços públicos. Em outras palavras, a população mais pobre poderia ser beneficiada com programas de investimento em educação, transferência direta de renda e outros tantos que poderíamos gastar mais outros milhões de caracteres para descrever!

Essa política regional possibilitaria uma maior organização das finanças públicas de estados e municípios, que poderiam investir mais em serviços públicos e, ao mesmo tempo, permitiria um equilíbrio mais próximo do equilíbrio de mercado em cada um dos mercados de trabalho locais.

No entanto, para elaborar tal política, seria necessário alterar a Constituição Federal, pois o inc. IV do art. 7º da Carta Magna dispõe que o trabalhador tem direito a “salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado”. Essa alteração envolve um custo político extremamente elevado, mas que merece ser enfrentado.

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