ferrovias – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Fri, 14 Dec 2018 19:35:40 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Transporte público pode ser transporte privado? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3186&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=transporte-publico-pode-ser-transporte-privado Thu, 28 Jun 2018 20:48:01 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3186 São comuns os entendimentos de que o mercado privado é ineficiente no provimento de bens públicos e que o Estado tem o dever de prover transporte público não somente a fim de maximizar suas as externalidades positivas na economia, mas também garantir a maior inclusão social dos segmentos que não possuem meios próprios de locomoção1. Embora verdadeiras as premissas, elas não conduzem à conclusão de que apenas o Estado deve prover o transporte público, muito pelo contrário.

Inicialmente é preciso reconhecer que transporte público não é necessariamente um bem público. Bem público é aquele que tem de ser fornecido na mesma quantidade para todos os consumidores envolvidos. Uma vez ofertado um bem público, não é possível restringir o consumo, nem o consumir em diferentes quantidades. Exemplos clássicos de bens públicos são o meio ambiente e a defesa nacional. Não é possível a um determinado cidadão obter mais ou menos defesa nacional. Independentemente de sua propensão a pagar mais ou menos tributos para evitar uma invasão estrangeira, todo cidadão recebe a mesma quantidade de defesa nacional. Da mesma forma, o ar puro, o mar limpo são bens que não podem ser consumidos de forma individualizada, independentemente da utilidade que os consumidores precificam esses bens2,3.

Algumas infraestruturas de transportes como calçadas, ruas, estradas e rodovias podem ter comportamento de bens públicos. Entretanto, há exceções. Quando a demanda é muito maior que a oferta ou quando os sistemas são fechados desaparece o comportamento de bens públicos em sistemas de transportes. Estradas congestionadas e sistemas metroferroviários, em geral, não têm comportamento de bens públicos. Essas infraestruturas são aptas a serem providas pelo mercado privado, pois têm efeito carona negligenciável. Aliás, esse é um fenômeno econômico antigo que vem se tornando cada vez mais contemporâneo nos países desenvolvidos.

A Inglaterra foi a nação precursora dos investimentos privados na provisão de infraestrutura de transportes terrestres. Em 1695, o mercado obteve segurança jurídica para investir na construção e manutenção de estradas pavimentadas, por meio de Acts of Parliament, que autorizavam a cobrança privada de tarifas sobre o tráfego ao longo de certa extensão das estradas. No século XVIII, os Turnpike Acts, do Parlamento inglês, revolucionaram a provisão de infraestrutura rodoviária. Naquele século, cresceu a malha e reduziram-se, substancialmente, os tempos de viagem, pois o interesse econômico era predominante na definição dos traçados das novas estradas pavimentadas4.

A partir dos anos 1820, com o desenvolvimento da ferrovia e da locomotiva a vapor, diversas firmas privadas prosperaram na provisão de infraestruturas ferroviárias de transportes, tanto no transporte de cargas – que até hoje vigora nos Estados Unidos da América –, quanto no transporte de passageiros. Em 1933, seis firmas privadas distintas operavam em Londres no que hoje é conhecido como Underground ou Tube.

Naquela época – e ainda hoje – o transporte ferroviário privado se viabilizava em função de dois motivos: a alternativa mais econômica para o usuário e a alternativa mais rentável para o investidor.

O primeiro motivo vem do fato de o usuário em geral pagar o preço mais barato pelo transporte. Em São Paulo, por exemplo, o transporte de café por ferrovias privadas poderia ser seis vezes mais barato que o transporte convencional por estradas carroçáveis no fim do século XIX5. Nos EUA, a ausência de barreiras a entradas e vantajosidade da ferrovia em relação as alternativas fomentaram a construção de uma rede de mais de 400 mil km de trilhos. A rede ferroviária américa reduziu-se ao longo dos últimos cem anos, paulatinamente, à medida que o preço do frete ferroviário foi se tornando mais caro que sua alternativa: o aquaviário a partir de 1914, com a abertura do canal do Panamá; o rodoviário a partir dos anos 1930, com a construção de rodovias pavimentadas pelo poder público; e o aéreo a partir dos anos 1950, com a entrada da aviação civil comercial. Mesmo assim, ainda hoje, as firmas ferroviárias privadas que exploram mais de 200 mil km de trilhos sobrevivem sem subsídios no competitivo mercado de transporte americano porque têm o preço mais barato na longa distância no interior do país.

O segundo motivo tem relação com a primeira lição de Manheim em seu clássico Fundamentals of Transportation Systems Analysis (1979). “O sistema de transporte de uma região interage com o sistema socioeconômico alterando a demanda de origens, destinos, rotas, volumes de bens e de pessoas transportadas no sistema”6. Sempre que a firma de transporte pode se aproveitar dos ganhos econômicos dessa interação acumulando receitas não apenas de tarifas de transportes, mas de atividades socioeconômicas afetadas pelo transporte que provê, então são criados fortes incentivos para que o sistema de transporte se expanda naturalmente. Este foi exatamente o caso das ferrovias americanas e inglesas que promoveram os primeiros metrôs em Nova Iorque e em Londres. As firmas agiram nesses territórios como firmas de desenvolvimento urbanístico, comprando terras a preços mais baixos na periferia, provendo infraestruturas de transportes a partir do centro, e depois revendendo e alugando imóveis a preços competitivos, suficientes para gerar lucros, e, ainda assim, a preços menores que os praticados nos centros da cidade. Um negócio em que todos ganham.

O mesmo expediente ainda hoje é praticado na Ásia. No Japão, somente no entorno de Tóquio cerca de 50 firmas privadas construíram e operam trens de passageiros, além de, também, hotéis, residenciais, escritórios e shopping centers. Na Ásia, as empresas metroferroviárias arrecadam aproximadamente entre 30% e 60% de seu faturamento das receitas advindas das atividades socioeconômicas afetadas pelo transporte que oferecem7.

Aliás, essa prática foi recentemente retomada nos EUA, especificamente na Flórida, onde um grupo privado de exploração imobiliária8 construiu e está operando desde maio deste ano um trem de média velocidade, entre Miami, Fort Lauderdale e West Palm Beach, ao custo de U$ 20 (vinte dólares americanos) por pessoa, por uma viagem de cerca de 112 km em um tempo de 1h e 15min. Novamente, o negócio se viabiliza para o usuário pelo custo de oportunidade, mais conveniente que as alternativas, e, para o investidor, pelos ganhos com receitas assessórias vinculadas ao negócio de transportes, como os imóveis de escritório, lojas e residenciais sobre a estação central em Miami e no entorno nas demais estações em Fort Lauderdale e West Palm Beach.

O caso da Brightline9 é um exemplo concreto e atual de que o transporte público pode ser integralmente idealizado, financiado, construído e operado pelo mercado privado, sem a necessidade de subsídios, burocracia, ou despesas do contribuinte. Ao custo de U$ 3,6 bi esse projeto não foi planejado em Washington-DC, nem licitado pela agência reguladora, nem teve o preço das tarifas fixado pelo poder público. É integralmente privado10.

Se as barreiras jurídicas a entradas e saídas no mercado de transportes são baixas, firmas privadas terão interesse em investir por diferentes abordagens, desde aquelas com baixa criação de infraestruturas, como, por exemplo, o Uber, 99, Cabify, até aquelas com intensiva criação de infraestruturas e custos afundados, como Brightline, Keio11, MTR12.

Todas essas firmas atuam onde a demanda, a rentabilidade e os riscos são compatíveis com seus modelos de negócio. A diferença entre elas está nos efeitos socioeconômicos que provocam nas cidades. Enquanto as primeiras contribuem para a diminuição da demanda pelo transporte coletivo e de forma indireta fomentam o espraiamento do tecido urbano, as últimas contribuem para o aumento da demanda pelo transporte coletivo e de forma direta fomentam a densificação do tecido urbano, pois, são remuneradas não apenas pelo preço da viagem, mas pelas receitas assessórias do maior fluxo de passageiros que transitam a pé pelo entorno das estações, frequentando suas lojas, escritórios e residenciais.

Com a introdução das firmas metroferroviárias privadas no mercado, o Estado ganha de três maneiras: arrecada mais tributos, deixa de gastar com a provisão direta dos serviços, e, além disso, também economiza na provisão otimizada de bens públicos, como vias, escolas, delegacias, prontos-socorros, etc que podem ser localizados em posições mais eficientes do tecido urbano.

Toda essa economia pública poderá ser aplicada em transporte de cunho social, aquele em que o mercado não tem interesse de prover por ser antieconômico, mas que o Estado tem dever de garantir aos mais pobres. Novamente, todos ganham.

A discussão sobre o modelo de ferrovias privadas autorizadas é necessária não apenas no transporte de passageiros, mas também no mercado de cargas, em complementação ao atual modelo brasileiro de concessões. Nos Estados Unidos o modelo de ferrovias autorizadas tem sido bastante exitoso. Lá, por exemplo, existem 546 ferrovias locais (short lines) administrando uma rede de 52.800 km, i.e., com extensão média de 96,7 km por ferrovia.13 Somente essas ferrovias locais têm uma extensão superior a toda malha ferroviária brasileira de 29.075 km de ferrovias em concessão.

Essa discussão é crucial para o futuro do desenvolvimento econômico e social do Brasil, não apenas porque a realidade fiscal do Estado não permitirá a concretização dos investimentos públicos necessários em transportes, mas porque em países desenvolvidos não se discute mais se a iniciativa privada pode ou não pode prover infraestruturas de transportes, o que se discute lá é qual será a tecnologia que a iniciativa privada irá construir e operar, se a tradicional ferrovia ou a disruptiva tecnologia hyperloop.

Hyperloop é uma modalidade conceitual de transporte em que pessoas ou cargas são transportadas em um tubo de baixa pressão impulsionadas por um trilho eletromagnético. Devido à redução do atrito com o ar rarefeito dentro do tubo o veículo poderia, em teoria, alcançar velocidades de cruzeiro superiores a 1.000km/h, tornando-se mais competitivo que o transporte aéreo. Atualmente diversas firmas privadas competem internacionalmente no desenvolvimento dessa nova tecnologia já tendo sido autorizadas a prospectar soluções em Chicago14, Pittsburg15, Dubai16, entre outras.

Firmas privadas sempre realizaram transporte aberto ao público. Entretanto, no Brasil, o transporte mormente o ferroviário é de forma equivocada compreendido pela legislação ordinária como um serviço público, outorgado apenas pelo Estado, após morosos processos de licitação, que às vezes sequer ocorrem, às vezes resultam desertos, como foi o já esquecido trem-bala entre o Rio de Janeiro e Campinas.

As evidências da história, no entanto, ensinam que não existe razão econômica suficiente a recomendar que todos os ovos do transporte sejam colocados exclusivamente na cesta do Estado, muito pelo contrário. Quanto mais aberto o País e as cidades estiverem para o livre interesse do mercado em construir por sua conta e risco infraestruturas de transportes, melhor para a sociedade, para os contribuintes, e, principalmente, para os mais pobres.

____________

1 Justificação PEC nº 74, de 2013 (Emenda Constitucional nº90, de 2015)

2 VARIAN, H. (1947) Microeconomia: conceitos básicos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006 – 6ª reimpressão.

3 FELIX, M. K. R (2018) Exploração de infraestrutura ferroviária: lições de extremos para o Brasil.

4 BLANNING, T. C. (2007) The pursuit of glory: Europe, 1648-1815. Penguin.

5 SILVA, C. P. (1904). Política e Legislação de Estradas de Ferro. Volume I. São Paulo. Typ. Laemmert & Comp.

6 Tradução livre.

7 SUZUKI, H., MURAKAMI, J., HONG, Y. H., & TAMAYOSE, B. (2015) Financing transit–oriented development with land values: Adapting land value capture in developing countries. World Bank Publications

8 Florida East Coast Industries. http://www.feci.com/companies.html

9 https://gobrightline.com/

10 KENTON, M. M., & GIFFORD, J. (2015). Comparing Financing Models for US Intercity Passenger Rail Development. http://malcolmkenton.info/wp–content/uploads/2017/08/Kenton_PUBP–714_TermPaper.pdf

11 https://www.keio.co.jp/english/

12 http://www.mtr.com.hk/en/customer/tourist/index.php

13 Federal Railroad Administration (2014) Summary of Class II and Class III Railroad Capital Needs and Funding Sources.

14 https://www.bloomberg.com/news/articles/2018-06-14/how-musk-s-hyperloop-became-just-a-loop-in-chicago-quicktake

15 https://www.daytondailynews.com/news/hyperloop-ohio-two-firms-study-feasibility/BlZkziMTFoZsZ4cySOxxWJ/

16 https://www.economist.com/special-report/2018/06/23/how-dubai-became-a-model-for-free-trade-openness-and-ambition

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Vale a pena construir o Trem Bala? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=454&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=vale-a-pena-construir-o-trem-bala https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=454#comments Wed, 13 Apr 2011 03:01:29 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=454 Está em andamento um projeto para construir um trem de alta velocidade (TAV), popularmente conhecido como “trem-bala” entre Rio e Campinas, passando por São Paulo. É um trem de passageiros (sem possibilidade de uso para transporte de cargas, a não ser pequenas encomendas), com possíveis estações intermediárias em São José dos Campos, Aparecida do Norte, Resende, Volta Redonda e Barra Mansa. Os aeroportos de Viracopos (Campinas), Guarulhos (São Paulo) e Galeão (Rio de Janeiro) também seriam servidos por estações. A distância total a ser percorrida é de 511 km, sendo que o trecho principal (Rio – São Paulo) teria 412 km. O tempo mínimo de viagem entre Rio e São Paulo seria de 1 hora e 33 minutos, caso venha a ser possível atingir velocidade máxima de 300 km por hora e sem paradas. A viagem do Rio a Campinas, com paradas, levaria 2 horas e 27 minutos.

No atual estágio de desenvolvimento da infraestrutura no Brasil, este não parece ser um investimento que valha a pena. A razão é simples: ele vai consumir um volume elevado de recursos públicos (entre R$ 15 bilhões e R$ 36 bilhões)[1], fora o montante adicional a ser aportado por investidores privados (o custo total da obra está orçado oficialmente em R$ 34,6 bilhões, mas pode chegar facilmente aos R$ 50 bilhões, devido a subestimativas de custos no projeto de viabilidade).

Para que se tenha uma idéia de como o projeto é caro, a tabela abaixo compara o orçamento oficial do TAV com outras obras. Colocar entre R$ 15 bilhões e R$ 36 bilhões de dinheiro do Tesouro em um único projeto, significa gastar mais do que tudo o que foi investido em ferrovias entre 1999 e 2008. Trata-se, portanto, de um gasto de vulto que vai drenar dinheiro que poderia ser aplicado em outros investimentos públicos.

Custo total estimado para construção do TAV Rio de Janeiro – Campinas, para outros projetos de infraestrutura de grande vulto e despesa efetivamente realizada em infraestrutura ferroviária e aeroportuária

R$ bilhões

TAV 1 34,6
Usina Hidrelétrica de Belo Monte 2 19,0
Usina Hidrelétrica de Santo Antônio 3 8,8
Usina Hidrelétrica de Jirau 4 8,7
Ferrovia Norte-Sul 5 6,5
Ferrovia Transnordestina 6 5,4
Transposição do Rio São Francisco 7 4,5
   
Invest. público e privado em ferrovias de 1999 a 2008 8 16,6
Invest. público em aeroportos de 1999 a 2008 9 3,1

Elaborado pelo autor. Fontes: ver http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/NOVOS%20TEXTOS/TD%2082%20-%20Marcos%20Mendes.pdf

Sem dúvida que a idéia de viajar do Rio a São Paulo em um transporte moderno, sem correr o risco de aeroportos fechados ou congestionados, é atrativa. Porém, sempre que se pretende colocar dinheiro público em um empreendimento, a primeira pergunta a ser feita é: existe aplicação melhor para esse dinheiro? E no caso do TAV, parece haver muitos outros investimentos de retorno econômico e social mais elevados, que deveriam ser considerados prioritariamente.

O PROJETO NÃO É PRIORITÁRIO

O principal serviço a ser prestado pelo TAV é o transporte de pessoas de alta renda no eixo Rio – São Paulo – Campinas. Trata-se de um serviço que já é prestado (ainda que com alguns problemas) pela ponte aérea e pelas rodovias, sem necessidade de subsídio público. Em um país com grandes carências na área de infraestrutura, o TAV não passa de um bem de luxo.

Apenas para citar um exemplo, no Brasil apenas 59% dos domicílios particulares permanentes são atendidos por rede coletora de esgoto ou fossa séptica ligada à rede coletora e 84% são atendidos por rede geral de abastecimento de água; enquanto países do leste asiático e da OCDE já universalizaram esse atendimento.

O que será que geraria maior benefício à população brasileira: um transporte rápido entre Rio e São Paulo, ou um investimento maciço na direção da universalização do acesso á água e esgoto? Estudo coordenado pelo economista Marcelo Neri mostra que a disponibilidade de água filtrada e acesso à rede de esgoto diminuem em 24% a probabilidade de uma mulher ter algum filho nascido morto. Mostra também que as crianças pobres, do sexo masculino, entre 1 e 6 anos são as principais vítimas da falta de saneamento[2]. Estudo da Agência Nacional de Águas (ANA) indica que até 2015, 55% dos municípios brasileiros (3.059 cidades) poderão ter problemas com abastecimento de água. Com R$ 9,6 bilhões seria possível solucionar o problema nas 256 maiores cidades, que concentram quase a metade da população do país[3].

Ser desenvolvido é viabilizar transporte em trem-bala para a população de alta renda ou é garantir o abastecimento de água e reduzir a mortalidade infantil decorrente da falta de saneamento? Os países que se dão ao luxo de investir nesse trem ultrarápido há muito já resolveram suas carências básicas em infraestrutura.

Para colocar a comparação no campo da infraestrutura de transportes, podemos perguntar se não seria mais interessante investir no transporte público urbano, para reduzir os congestionamentos e aumentar a qualidade do serviço prestado à população (majoritariamente de baixa renda) que dele necessita nos deslocamentos cotidianos. Enquanto o estudo de viabilidade do TAV prevê a realização de 35 milhões de passageiros por ano, o metrô de São Paulo transporta 3,4 milhões de passageiros por dia, o que equivale a 1,24 bilhão de passageiros por ano. O impacto da ampliação da rede de metrô e sua integração com outros transportes públicos sobre a qualidade de vida e a produtividade dos grandes centros urbanos possivelmente seria muito superior ao impacto do TAV.

Não é preciso ser especialista em infraestrutura para saber que outras áreas também estão muito atrasadas no Brasil: estradas necessitam de recuperação e duplicação; há grande concentração de habitações em áreas de risco que precisam ser removidas; os aeroportos são acanhados e estão congestionados; os portos são ineficientes e insuficientes; há déficit na geração e distribuição de energia elétrica, há inúmeros projetos de ferrovias de carga por desenvolver e as já existentes necessitam de investimentos para aumentar sua produtividade.

O PROJETO CONFLITA COM A POLÍTICA MACROECONÔMICA

Mas o problema do TAV não está apenas no fato de não ser um investimento prioritário. Outro problema é que o projeto conflita com as diretrizes de política econômica do governo. Sabe-se que um dos principais problemas macroeconômicos do País é a valorização do real frente ao dólar, que encarece as exportações brasileiras e reduz a competitividade dos produtos nacionais no exterior. Para enfrentar essa dificuldade, nada melhor que investir na redução dos custos incorridos pelos exportadores (o famoso “Custo Brasil”). Na área de infraestrutura, a melhor maneira de fazê-lo parece ser por meio de investimentos no transporte ferroviário de carga e na modernização dos portos. Investir em transporte ferroviário de passageiros em nada ajuda nesse processo.

Outra forma de enfrentar a desvalorização do dólar é por meio de um ajuste fiscal, que reduza a despesa pública como proporção do PIB. Expandir a despesa pública com a construção do TAV não apenas vai contra essa necessidade, como também torna ainda mais restrita a disponibilidade de recursos para outros investimentos de maior prioridade.

O TESOURO ASSUME RISCO FINANCEIRO EXCESSIVO

Outro problema grave está no mecanismo financeiro criado para financiar o investimento. O risco é suportado inteiramente pelo Tesouro Nacional. Isso ocorre porque o BNDES concederá um investimento de R$ 20 bilhões ao consórcio escolhido para fazer a obra. O Tesouro será o garantidor do empréstimo: se o consórcio não pagar, o Tesouro paga ao BNDES. Para tanto, o Tesouro receberá contragarantias da parte do consórcio. Se tiver que honrar o empréstimo, o Tesouro acionará tais contragarantias para ser ressarcido. O problema é que tais contragarantias são muito frágeis. Ficou estabelecido que elas serão representadas pelas ações do consórcio e pela sua receita operacional. Ora, se o TAV enfrentar dificuldades financeiras, as ações vão valer pouco (ações de empresas com problemas se desvalorizam) e a receita operacional será baixa. Logo, as contragarantias não serão suficientes para ressarcir o Tesouro.

E mesmo que o Tesouro receba as ações do consórcio para se ressarcir, isso significará uma estatização do TAV. E o que o governo vai fazer: passar a operar o trem com uma empresa estatal, engordando a administração pública com uma atividade não-típica de governo, e com incentivos à ineficiência? A outra opção seria leiloar novamente a concessão, mas um novo concessionário fará grandes exigências financeiras para assumir o negócio, tendo em vista que as perspectivas de ganho já se mostraram restritas, a ponto de o primeiro concessionário não ter conseguido pagar a dívida do empreendimento.

Frente à ameaça de ter que estatizar o TAV, o resultado provável é que o governo fique refém do consórcio operador do trem, concedendo-lhe mais e mais subsídios fiscais e creditícios ao longo do tempo.

O ESTUDO DE VIABILIDADE É VAGO QUANTO AOS POSSÍVEIS BENEFÍCIOS

Há que se questionar, também, quais seriam os benefícios trazidos pelo TAV. Nesse ponto, o que chama atenção é a superficialidade dos estudos técnicos[4]. Não há qualquer análise oficial que detalhe ou quantifique os benefícios a serem gerados pelo TAV. São apresentadas apenas referências genéricas a potenciais ganhos. Muitos desses alegados benefícios poderão ser, na prática, reduzidos por efeitos colaterais não levados em conta pelo estudo de viabilidade, que deveria não só considerá-los, mas, também, quantificá-los na medida do possível.

O primeiro argumento é o de que a ligação Rio – São Paulo está saturada, e que é fundamental um novo modal de transportes de passageiros além do rodoviário e do aéreo. Mas o próprio estudo de viabilidade mostra que pelo menos 60% do tráfego estimado de passageiros será no eixo São Paulo – Campinas – São José dos Campos. O trecho Rio – São Paulo ficaria com apenas 18% das viagens. Ora, nesse caso, seria muito mais interessante pensar em um sistema de trens que ligasse, inicialmente, apenas as três cidades paulistas, deixando para uma segunda etapa a extensão até o Rio de Janeiro (que, diga-se de passagem, representa o trecho da obra com maiores desafios de engenharia, devido à necessidade de lidar com o declive da Serra das Araras). Já existe, no âmbito do Governo do Estado de São Paulo, projetos de ferrovias que atenderiam bastante bem, a custo muito menor, a demanda por transporte ferroviário de passageiros entre as cidades paulistas. A ligação Rio – São Paulo poderia ser atendida por meio de ampliação de aeroportos ou construção de novos aeroportos, que serviriam não apenas essa ligação, mas todos os demais destinos nacionais e internacionais.

Alega-se que o TAV irá reduzir o tráfego de automóveis e ônibus nas estradas, minimizando congestionamentos, elevando a segurança dos viajantes e gerando impacto ambiental positivo, pela substituição do consumo de combustíveis fósseis pela energia elétrica renovável a ser usada na propulsão dos trens.

Há que se considerar, porém, que a construção do TAV irá drenar significativos recursos financeiros e impedirá a realização de investimentos no transporte ferroviário de carga em todo o País. A consequência será a expansão do número de caminhões trafegando nas estradas de todo o país (que poderiam ser substituídos por trens de carga), queimando óleo diesel, aumentando o tráfego e os riscos de acidentes.

A respeito desse efeito, é interessante citar a comparação feita por O´Toole (2008, p.12-13) entre o transporte de cargas nos EUA (que não têm TAV) e a Europa (onde há ampla rede de TAV): “a ênfase da Europa no uso de trens para o transporte de passageiros teve profundo efeito na movimentação de cargas. Nos EUA, um pouco mais de um quarto das cargas são transportadas por estradas e mais de um terço por trens. Na Europa quase ¾ seguem pela estrada (…). A baixa capacidade de transporte de carga das ferrovias da Europa e do Japão indicam que um país ou região pode usar seu sistema ferroviário para passageiros ou carga, mas não para os dois.  Gastar US$ 100 bilhões por ano em transporte ferroviário de passageiros pode tirar uma pequena porcentagem de carros das estradas, mas uma possível consequência é um grande aumento no número de caminhões nas estradas” – tradução livre.

O’Toole (2008, p. 6 e 8) também contesta idéia de que o TAV é capaz de promover significativo desafogamento de rodovias. Afirma que, no caso do projeto em estudo na Flórida – EUA, “os planejadores estimaram que a linha de trem removeria apenas 2% dos carros de um segmento não-saturado da rodovia I-4, e parcelas ainda menores de outros segmentos(…)[Na Califórnia] o trem de alta velocidade tiraria, em média, 3,8% dos carros das rodovias paralelas às linhas férreas” – tradução livre.

O benefício ambiental decorrente da substituição da queima de combustíveis fósseis por energia elétrica renovável também pode vir a ser eliminado pelo impacto ambiental causado pela construção do TAV: uma grande quantidade de carbono será liberada durante o longo processo de construção, lembrando que o projeto brasileiro atravessará ampla área de mata atlântica e nascentes. O estudo de viabilidade deveria mostrar esses dados e fazer as devidas comparações. Mas simplesmente silencia a respeito.

Outro argumento apresentado pelos defensores do trem bala consiste no fato de que o investimento no TAV reduziria os investimentos necessários na reforma e ampliação de aeroportos. Tal idéia só se aplica aos aeroportos de Santos Dumont e Congonhas, que atualmente operam a ponte aérea, e aos do Galeão e de Guarulhos, que estão na rota do TAV. O outro aeroporto inserido no trajeto – Viracopos, Campinas – teria seu tráfego ampliado, ao se tornar uma opção atraente de acesso à cidade de São Paulo, exigindo mais investimentos. Além disso, a realização de grandes eventos esportivos nos próximos anos e o atraso histórico na capacidade e eficiência dos aeroportos brasileiros exigirão grandes investimentos em aeroportos, independentemente de se construir ou não o TAV.

Há, também, o argumento de que o TAV utilizaria faixa de terreno mais estreita que as rodovias, o que propiciaria economia em termos de uso do solo. Tal argumento parece ser válido apenas para os trechos não urbanos, pois as rodovias acabam na entrada da cidade e, a partir dali, utilizam-se as pistas já existentes. No caso do trem será preciso desapropriar solo urbano (em geral mais caro que o não urbano) para uso exclusivo da linha férrea, que entra na cidade para chegar até a estação. Há que se considerar, ainda, os custos gerados pelo seccionamento das cidades pela linha férrea. No caso do TAV, que não admite o cruzamento da linha por carros ou pedestres, e que fica isolado por altas grades e muretas, será preciso criar túneis, pontes ou trechos subterrâneos de modo a não bloquear a livre circulação da população no interior das cidades por onde passar.

E o que dizer do argumento de desenvolvimento regional? De fato o TAV tende a gerar prosperidade para as cidades que, incluídas em seu trajeto, são contempladas com estações. Ahlfeldt e Feddersen (2010) mostram evidências estatísticas de progresso econômico em cidades do interior da Alemanha que se tornaram mais acessíveis aos grandes centros de Colônia e Frankfurt. Mas esse benefício tem como contrapartida os custos impostos às cidades onde o trem passa, mas não pára: essas cidades sofrem os efeitos negativos (poluição sonora e visual, seccionamento do seu território, demolição de equipamentos públicos preexistentes, etc.), sem ter o benefício de serem servidas pelo trem. Ademais, o TAV irá circular sobre a região mais desenvolvida do País. Do ponto de vista de impacto regional, e lembrando que haverá gastos do governo federal para viabilizá-lo, o TAV representa, assim, uma transferência de renda das regiões mais pobres do País para o eixo Rio – São Paulo – Campinas.

Há, também, que se comparar os benefícios das cidades contempladas com estações aos custos pagos pelos contribuintes de todo o país, muitos dos quais jamais utilizarão o trem nem tampouco receberão benefícios indiretos gerados por esse equipamento.

A assertiva de que a construção do TAV permitirá a absorção de tecnologia pelo país suscita a seguinte dúvida: tal tecnologia tem aplicação em outras áreas da indústria ou se limita à construção de trens velozes? Se não tiver externalidades para outro segmento será inútil absorvê-la, pois não parece haver outros trechos com possível viabilidade para construção de TAV no país.

Alega-se que os trens de alta velocidade de outros países geram redução do tempo total de viagem em relação ao avião, pois não exigem gasto de tempo com check in, além de terem estações mais próximas aos centros das cidades que os aeroportos, que costumam se situar fora da área urbana. No caso brasileiro esse último argumento não se aplica, pois os aeroportos Santos Dumont e Congonhas, que servem a ponte aérea entre Rio e São Paulo, têm localização mais privilegiada que aquelas planejadas para as estações do TAV, fato que é reconhecido pelo estudo de viabilidade. Além disso, inovações tecnológicas, como o check-in prévio, via web, e o check-in eletrônico disponível no próprio aeroporto reduzem esse diferencial de tempo sem a necessidade de grandes investimentos.

Em suma, se o Governo pretende lançar dinheiro público em um projeto arriscado, que pode custar entre R$ 14 e R$ 36 bilhões ao contribuinte, é preciso muito mais do que simplesmente apresentar uma lista de possíveis benefícios. É essencial que se façam estudos aprofundados e detalhados desses alegados benefícios, para verificar se, de fato, eles se materializarão, com que intensidade, e quais os possíveis efeitos colaterais que reduzirão o ganho líquido estimado. Além disso, esses benefícios precisam ser superiores aos gerados por outros investimentos de infraestrutura.

Referências bibliográficas

Ahlfeldt e Feddersen (2010) From periphery to the core: economic adjustments to high speed rail. Disponível em http://www.ieb.ub.edu/aplicacio/fitxers/WS10Ahlfeldt.pdf

O’Toole, Randal (2008) High-speed rail: the wrong road for America. Policy Analysis, nº 625. CATO Institute. Disponível em http://www.cato.org/pubs/pas/pa-625.pdf

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Para ler mais sobre o tema:

Mendes, Marcos (2010) Trem de alta velocidade: caso típico de problema de gestão de investimentos. Centro de Estudos da Consultoria do Senado. Texto para Discussão nº 77. Disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/NOVOS%20TEXTOS/Texto%2077%20-%20Marcos%20Mendes%20-%20TAV.pdf

Mendes, Marcos (2010) Trem de alta velocidade: novas informações para debater o projeto. Centro de Estudos da Consultoria do Senado. Texto para Discussão nº 82. Disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/NOVOS%20TEXTOS/TD%2082%20-%20Marcos%20Mendes.pdf


[1] Estas estimativas foram feitas em artigo do autor sobre o tema, disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/NOVOS%20TEXTOS/TD%2082%20-%20Marcos%20Mendes.pdf

[2] http://www3.fgv.br/ibrecps/CPS_infra/sumario.pdf

[3] Fonte: Valor Econômico, edição de 22 de março de 2011.

[4] Tais estudos estão disponíveis em www.tavbrasil.gov.br

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