federalismo fiscal – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Mon, 01 Sep 2014 14:14:44 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Os conflitos federativos na democracia brasileira https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2278&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=os-conflitos-federativos-na-democracia-brasileira https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2278#comments Mon, 01 Sep 2014 14:14:44 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2278 Introdução

As regras de relação federativa no Brasil são em parte herdadas do período militar e em parte construídas ou adaptadas após a redemocratização. A parcela herdada do passado não–democrático – como o arranjo do CONFAZ para gerir o ICMS – simplesmente perdeu funcionalidade, porque pressupunha centralização de poder nas mãos do Executivo federal (no caso do CONFAZ, poder do Ministro da Fazenda e submissão dos secretários estaduais). A parcela criada ou reformulada no período democrático padece dos problemas vividos por nossa democracia que, como argumentado adiante, estimula forte conflito distributivo entre diferentes grupos de interesse, organizados em bases sociais, profissionais, ideológicas, religiosas, entre outras. Os problemas federativos são mais uma dimensão desse conflito, tendo as regiões, estados e municípios como núcleo de organização dos interesses conflitantes.

A democracia brasileira está sendo construída em uma sociedade bastante desigual. A desigualdade não se restringe às dimensões de renda e patrimônio, mas também de acesso a serviços públicos e à justiça, de nível educacional e também das condições econômicas e possibilidades de desenvolvimento regional.

Ao transitar de um regime fechado, sem espaço para pressões políticas por redistribuição, para um regime aberto, com ampla representação política, a sociedade brasileira viu explodir as demandas de diversos grupos de interesse. O Congresso Nacional tem representantes declarados ou ocultos de inúmeros grupos profissionais, sociais e ideológicos, oriundos de todos os níveis de renda: bancada ruralista, bancada da bola, movimento negro, bancada da saúde, bancada da educação, bancada municipalista, etc. O nosso sistema eleitoral permite esse tipo de representação, ao adotar o voto proporcional com distritos eleitorais amplos.

Embora não caiba aqui uma detalhada análise do sistema político eleitoral, o que inclusive exigiria que se explicitassem os benefícios que esse sistema traz; o que é relevante ressaltar é que cada um dos inúmeros grupos de interesse tem uma agenda que busca não apenas aumentar o gasto público em favor da sua causa ou grupo social, mas também criar regras que lhes concedam novos privilégios ou protejam os antigos. Por exemplo, subsídios ou proteção comercial criados no passado são renovados independentemente de terem sido bem-sucedidos ou não, porque criaram clientes que deles auferem renda e se mobilizam para perenizá-los.

A combinação de grande heterogeneidade social com ampla liberdade de reivindicação e de representação política acaba levando a forte conflito distributivo. Tal conflito, ao resultar na expansão do Estado, tanto pela via do gasto (e da tributação) quanto pela via da regulação econômica ineficiente (que busca proteger renda de grupos); acaba minando a eficiência da gestão pública e a produtividade da economia. O resultado é o baixo crescimento econômico. O bolo de renda a ser dividido fica menor do que poderia ser, o que reforça o conflito original, colocando o país em uma armadilha de baixo crescimento e limitada capacidade de fazer reformas que quebrem privilégios e sejam capazes de aumentar a eficiência e o crescimento.

O restante deste texto apresenta os principais problemas de relação federativa no Brasil, mostrando como eles se situam nesse modelo geral de democracia conflituosa e de herança de instituições do período autoritário.

ICMS e CONFAZ

O ICMS é um imposto sobre o valor agregado pertencente aos estados. Como forma de incentivo para atração de empresas, vários estados passaram a conceder isenção de impostos. Para evitar essa guerra fiscal, instituiu-se o Confaz como instância deliberativa, em que a isenção fiscal oferecida por determinado estado somente seria permitida caso os Secretários de Fazenda de todas as unidades da federação, por unanimidade, aprovassem tal isenção. Ocorre que esse modelo só funcionava em um ambiente político centralizado, no qual o poder central, representado pelo Ministério da Fazenda, impunha as regras, e os representantes estaduais não tinham poder para desafiá-las. A partir do momento em que houve democratização e descentralização do poder, tornou-se inviável a gestão consensual do ICMS.

Tampouco parece haver espaço para uma solução cooperativa, com a redução da alíquota interestadual do ICMS para coibir a guerra fiscal, simplesmente porque o Governo Federal não tem credibilidade para oferecer compensações aos perdedores.

Essa falta de credibilidade decorre, em primeiro lugar, do fato de que a real compensação seria a implantação de infraestrutura de transportes e logística que efetivamente integrasse as áreas mais distantes do país aos centros consumidores e aos pontos de exportação. Ocorre que o Governo Federal não consegue oferecer tal infraestrutura a curto e médio prazo, pois os investimentos no setor se tornaram presa do conflito distributivo em torno das verbas orçamentárias. Para gerar benefícios que representam renda no bolso dos diversos segmentos sociais (remuneração do funcionalismo, aposentadorias e pensões, assistência social, crédito subsidiado em bancos públicos, perdão de dívidas agrícolas, etc.) foi necessário não apenas elevar a tributação, mas também cortar os investimentos em infraestrutura.

Sem as necessárias artérias de transportes, os estados de economia mais atrasada não conseguem se integrar ao polo dinâmico da economia e perdem a oportunidade de utilizar suas vantagens comparativas (mão de obra e custo de terrenos mais baratos, por exemplo) para atrair investimentos e empregos. Resta o caminho conflituoso da guerra fiscal, que não só distribui custos de maneira aleatória (quem paga o custo do incentivo é o estado de destino das mercadorias), como incentiva a alocação ineficiente dos investimentos (que se baseia nos custos tributários e não nos custos de produção). Ademais, o excesso de regulação federal na área de portos, voltada a proteger a renda dos empregados do setor e o mercado dos operadores, impede que os estados litorâneos disponham de plataformas eficientes de comércio internacional.

Também contribui para a baixa credibilidade das ofertas federais de compensação a posteriori a experiência da Lei Kandir, em que alguns estados argumentam que não foram plenamente compensados pela desoneração de exportações, conforme estabelecido naquela lei. O fato é que, com o gasto público sempre crescente, decorrente do conflito distributivo acima referido, há sempre o risco de promessas de futuras compensações financeiras serem frustradas pelo próximo contingenciamento orçamentário.

Somente a ameaça de uma medida drástica, como a declaração de ilegalidade dos benefícios com efeito retroativo, pode forçar as partes a negociar e chegar a um acordo. Isso, contudo, não se fará sem impor perdas a alguns estados e deixar cicatrizes nas relações políticas.

Royalties de Petróleo e CFEM

A disputa aberta travada entre os estados acerca das regras de distribuição dos royalties do petróleo é um exemplo típico do conflito distributivo que impera no país. Não há argumentos tecnicamente convincentes para que os royalties se concentrem nos estados e municípios próximos aos locais de produção. Tampouco existem argumentos para sustentar a transferência desses recursos aos estados e municípios, em vez de concentrá-los nas mãos da União. Há robustas evidências empíricas de que os estados e municípios que “enriqueceram” com as receitas de royalties desperdiçaram parte significativa dos recursos, que somem sob a forma de captura pela burocracia, desperdício ou corrupção1. Apesar de tudo, continua o debate pela descentralização e redistribuição dos recursos. Quem fala mais alto leva!

Note-se que se está discutindo a distribuição das rendas de um petróleo que sequer saiu do fundo do mar e que enfrentará grandes desafios tecnológicos para chegar à superfície e ser transportado até o continente. Somos incapazes de nos concentrar na discussão sobre a forma mais eficiente de produzir e vender o petróleo, ou seja, de como aumentar a arrecadação total decorrente da extração do óleo. A discussão é essencialmente distributiva. E é assim porque o conflito é alto e acirrado. Quem cochilar perde tudo para o vizinho.

Por que não se discute a possibilidade de os recursos dos royalties de petróleo financiarem a tão necessária infraestrutura que integraria o país e daria competitividade aos estados e municípios mais distantes? Mais uma vez surge a falta de confiança entre as partes. Cada prefeito e governador prefere ter o dinheiro na mão, ainda que seja para fazer um investimento com menor impacto para o desenvolvimento local, quando comparado a grandes investimentos de âmbito nacional, com medo de que o governo federal simplesmente não faça investimento algum. Há também o risco de as obras federais, por mais importantes que sejam para o País como um todo, trazerem pouco benefício para determinado estado ou município. Por exemplo, a construção de uma rodovia interligando as áreas produtoras de soja do Mato Grosso ao Porto de Paranaguá pouco contribui diretamente para o bem estar de um morador da Bahia. Além disso, também existe, no âmbito estadual e municipal, o mesmo conflito distributivo, em que grupos demandam emprego público, subvenções e outros benefícios localizados. Portanto, a demanda de primeira ordem para governantes estaduais e municipais é ter dinheiro na mão para atender as pressões políticas locais.

Zona Franca de Manaus e Fundos de Desenvolvimento Regional

A Zona Franca de Manaus (ZFM), recentemente renovada por mais 50 anos, é um exemplo típico de incentivo que sobrevive graças ao seu fracasso. Seus beneficiários não querem perder o privilégio, e lutam para perpetuá-lo. A ideia original era dar incentivos fiscais temporários para que a indústria se instalasse naquela região e, com o tempo, adquirisse escala de produção suficiente para se tornar viável e capaz de competir com indústrias do restante do país e do mundo.

Passados 47 anos desde a implantação da ZFM, ela continua dependente de isenção tributária para sobreviver. O total de gastos tributários federais com a ZFM é da ordem de R$ 22 bilhões por ano. Cada um dos 500 mil empregos diretos e indiretos gerados na região custa ao país, em termos de benefícios fiscais, algo como R$ 44 mil por ano. No limite, seria mais eficiente pagar esse valor a cada pessoa hoje empregada na ZFM, o que corresponde a R$ 3,7 mil por mês, para que ela ficasse em casa, transferindo a produção para outra região do país que tenha competitividade para produzir sem precisar de incentivos fiscais2. Mantido o mesmo nível de gasto tributário, o País teria ganhos em termos de produtividade e redução de custos de logística e transportes, ficando em situação melhor que a atual, na qual, além dos custos fiscais, incorre nos custos de eficiência!

Porém, é politicamente inviável acabar com o incentivo e deixar um vazio demográfico e econômico em Manaus. O custo político é alto, e a pressão dos grupos beneficiados sobre o Congresso muito alta.

Raciocínio similar aplica-se aos fundos constitucionais de financiamento do setor produtivo. Apenas os fundos constitucionais absorvem 3% da receita de Imposto de Renda e IPI. A inadimplência dos tomadores desses recursos é alta, os custos operacionais dos bancos públicos que gerem os recursos são elevados (e consomem boa parte da verba orçamentária destinada aos financiamentos). Não há evidências de que, após décadas de financiamentos dessa natureza, tais instrumentos tenham sido capazes de fechar significativamente o hiato de desenvolvimento entre o Sul-Sudeste e o Norte-Nordeste. No entanto, os mecanismos seguem intocados, e sempre que possível as partes interessadas batalham por mais recursos e novos fundos.

Não há, no âmbito dos debates federativos, qualquer estudo mais detalhado de impacto, que mensure os custos e benefícios desses mecanismos e que abra um debate sobre como melhor usar esses recursos em prol do desenvolvimento regional. Faz-se hoje o que se fazia no passado, ainda que os resultados sejam medíocres. Qualquer possibilidade de reforma é bloqueada pelo medo de se perder recursos. Há um viés a favor do status quo.

O mesmo ocorria com os royalties, que durante anos foram canalizados para alguns poucos estados e municípios sem que os demais reclamassem. A perspectiva de aumento no valor total distribuído a partir da descoberta do pré-sal, contudo, aumentou o custo da inação política. E o debate sobre a redistribuição foi aberto.

No caso da ZFM, talvez os demais estados não se tenham dado conta do elevadíssimo custo. No caso dos fundos constitucionais, por beneficiarem estados de três regiões, é possível que haja, no parlamento, maioria favorável à sua continuidade. Afinal, rediscutir maior eficácia na aplicação desses recursos sempre gera o risco de se perder as verbas para outros grupos de pressão, localizados fora das áreas hoje beneficiadas pelos fundos. Não se pode esquecer, ademais, do grande incentivo que têm os atuais beneficiários de ambos os mecanismos para criar mobilização política em favor da manutenção de seus privilégios.

Criação de Obrigações aos Estados e Municípios sem o Respectivo Suporte Financeiro

Outra manifestação clara das consequências do conflito distributivo sobre as relações federativas são o que em inglês se chama de “unfunded mandates”: o legislador federal cria uma obrigação de ação ou gasto para os estados ou municípios sem, contudo, lhes fornecer os recursos necessários para cumprir a nova lei. Há abundantes exemplos de legislação recentemente aprovada no Congresso com essas características. Por exemplo, o piso nacional para a remuneração do magistério, a absorção dos agentes comunitários de saúde como servidores públicos com plenos direitos, as obrigações decorrentes da nova legislação de coleta e tratamento de lixo. Há mais demanda na fila, como a famosa PEC 300, que cria piso nacional para os policiais militares e bombeiros.

De uma hora para outra o prefeito ou governador descobre que tem mais metas a cumprir, mais gastos a fazer, e tem que encontrar dinheiro no orçamento para custear isso. Por que tais leis são aprovadas? Exatamente porque os grupos de pressão interessados nos benefícios que elas proporcionam (professores, agentes comunitários de saúde, organizações de defesa do meio-ambiente,etc.) conseguem se fazer ouvir e, sobretudo, conseguem fazer aprovar legislação sem um adequado estudo de seus custos e benefícios. Trata-se de clara expressão do conflito distributivo, em uma sociedade com interesses diversos e fragmentados, onde há ampla representação classista e setorial.

É preciso evoluir no sentido de se colocar restrições institucionais que impeçam o legislador federal de criar obrigações para os estados e municípios sem, concomitantemente, fornecer os meios financeiros para viabilizar a implantação de novas políticas. Isso certamente irá gerar legislação mais consequente, e abrirá caminho para soluções negociadas. Por exemplo, ainda que seja ótimo termos uma legislação muito avançada de coleta e processamento de lixo, é preciso analisar os seus custos fiscais. A eventual adoção de métodos mais avançados que os atuais não significa que precisamos ir para a fronteira tecnológica. É preciso balancear benefícios e custos, poupando-se recursos e adequando-se a ação pública às restrições fiscais dos estados e municípios. Ou seja, é bom sonhar em ter um Jaguar ou uma Mercedes, mas a realidade da conta bancária nos leva a comprar um carro mais modesto. No nosso sistema político atual, o legislador federal ordena aos prefeitos e governadores que comprem uma Mercedes, porque é isso que um grupo de pressão pediu ao Congresso. Mas não dá um tostão para ajudar a comprar o carrão.

O FPE e o FPM  e a lógica da Ação Coletiva

O Fundo de Participação dos Estados (FPE) e o Fundo de Participação dos Municípios (FPM) fornecem dois bons exemplos de como o conflito distributivo generalizado impede que se melhore a alocação dos recursos públicos.

Comecemos pelo FPE. Como é sabido, no passado recente alguns estados se sentiram prejudicados pelo fato de as cotas do FPE a que tinham direito estarem congeladas desde a década de 1990, e não mais obedecerem à regra de partilha anterior, em que se levava em conta a população e o inverso da renda per capita. Pois bem, seguindo a regra de cada um lutar pelo seu pedaço de orçamento, os estados prejudicados pela regra vigente ingressaram no Supremo Tribunal Federal com ação questionando a legislação. Pretendiam, com isso, aumentar o seu quinhão no FPE em prejuízo de outros estados, que perderiam participação.

O Supremo, como é sabido, decidiu pela inconstitucionalidade da lei e determinou ao Congresso a substituição da norma por outra cujos critérios contemplassem a variação das condições socioeconômicas dos estados ao longo do tempo. Tal norma deveria ser aprovada até 31 de dezembro de 2012. A obrigatoriedade de se discutir novos critérios, em que não havia como gerar ganhos para todos, e alguns estados certamente perderiam, abriu forte conflito. Jamais se chegou próximo a um acordo para uma solução que distribuísse os recursos de forma eficiente, que transferiria mais verbas para os estados com maior hiato entre a capacidade de arrecadação e os gastos obrigatórios.

Uma característica importante da decisão do Supremo era a de impor o risco de elevada perda a todos os estados, caso não se aprovasse uma nova legislação. Findo o prazo, o FPE deixaria de ser distribuído a todos. O correr do tempo sem se chegar a um consenso redistributivo levou os estados a se unirem em torno de uma solução para evitar a perda para todos, mantendo tudo como estava antes. Simplesmente aprovou-se uma lei que reproduzia a regra já existente, com uma transição para o novo critério que é tão lenta que vai durar mais de um século para que os novos critérios passem a valer.

A lição e o incentivo transmitidos aos estados nesse episódio é a seguinte: é muito perigoso para um ou alguns poucos entes federativos agirem sozinhos, contra o interesse dos demais, por mais justas que sejam as suas reivindicações. Abrir uma disputa entre entes federados torna todos mais vulneráveis. O risco de perder o FPE enquadrou os estados “rebeldes” e os fez aceitar a manutenção do status quo.

Com esse tipo de incentivo, fica muito difícil propor qualquer mudança de critério na partilha dos recursos que vise aumentar a equidade ou a eficiência na alocação das verbas. Esse tipo de debate coloca estado contra estado e enfraquece o grupo frente a suas disputas com o Governo Federal e com os demais grupos de pressão. Até porque, em outras disputas, em que a recompensa é tão alta que vale a pena partir para o conflito (como nos royalties e na guerra fiscal) já há grande tensão entre estados. Por isso, é preciso evitar conflito quando a recompensa não é alta, como no caso do FPE.

Situação similar ocorre com o FPM. Há muito o que melhorar na partilha desse Fundo. Atualmente, os pequenos e micromunicípios são excessivamente beneficiados, em prejuízo das cidades médias nordestinas e dos municípios situados nas periferias das regiões metropolitanas. Esse viés na distribuição dos recursos cria muita ineficiência e má alocação de recursos.

Há, por exemplo, um evidente incentivo à criação de pequenos municípios: três municípios de cinco mil habitantes recebem mais dinheiro que um município de quinze mil habitantes. Isso acaba gerando multiplicação das estruturas administrativas e perda de escala na oferta de serviços públicos.

Quando se olha a atuação das instituições representativas dos municípios no plano federal, o que se percebe é uma forte resistência a se discutir a ineficiência dos critérios de partilha do FPM. E isso é compreensível. Esse tipo de discussão vai colocar município contra município, e enfraquecer a capacidade de todos os municípios, de forma unida, participarem da luta por mais recursos junto ao governo federal. Há o justificado temor de o grupo perder força e perder espaço em uma encarniçada luta em que inúmeros grupos de pressão disputam recursos federais.

E há motivos para isso. Nos anos recentes, parte substancial do FPM (e do FPE) foi corroída pela concessão de incentivos fiscais no âmbito do IPI. O lobby dos contribuintes do IPI ganhou do lobby dos prefeitos e governadores. Gastar energia discutindo a redistribuição interna do FPM e do FPE significa ter menos tempo, energia e união para enfrentar, de forma unida, as ameaças que outros grupos de pressão colocam sobre as verbas estaduais e municipais.

Assim, o que se vê como demanda em relação ao FPM, no âmbito do Congresso Nacional, é a elevação do tamanho do bolo, aumentando-se a parcela do Imposto de Renda e do IPI destinados ao Fundo, em detrimento da parcela desses tributos destinada à União. Evita-se discutir as grandes distorções nos critérios de partilha, e o país como um todo segue perdendo com a alocação ineficiente dos recursos, sobretudo com a grande carência de verbas das cidades médias nordestinas e das periferias metropolitanas, onde se acumulam problemas sociais e faltam serviços públicos. Ao mesmo tempo, micromunicípios interioranos transformam a sua folha de pagamento na principal fonte de renda das cidades, criando legiões de pensionistas, com baixa produtividade e pouca prestação de serviço público.

Quem Ganha com a Renegociação das Dívidas junto à União?

É bem sabido que os grandes ganhadores com a renegociação proposta para a dívida refinanciada junto à União são cinco estados e um município: São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Alagoas e Município de São Paulo. No entanto, há quase unanimidade entre os estados na pressão pela aprovação da renegociação. Por que estados que não estão entre os maiores ganhadores também se interessam e pressionam pela renegociação? Não seria mais razoável colocar as fichas políticas em outros temas que lhes dessem maior retorno?

A resposta pode estar em um dos argumentos já apresentados acima. Em primeiro lugar, como os custos da renegociação vão ser pagos por toda a sociedade, cada administração estadual daquelas não tão beneficiadas pela renegociação irá pagar uma parcela pequena do custo. Portanto, não há preocupação com o custo fiscal ou macroeconômico da renegociação.

Em segundo lugar, há a lógica da ação coletiva e da reciprocidade. O estado A apoia o estado B na questão da dívida, e recebe o apoio de B quando tiver uma pendência de seu interesse junto à União. Por exemplo, a autorização para a contratação de uma operação de crédito.

Em terceiro lugar, ainda que não levem a maior parte dos benefícios, os outros estados levam “algum” benefício. E pouco é melhor do que nada. Esse argumento se torna mais relevante porque o benefício de uma não renegociação seria muito indireto. O impacto imediato da renegociação é transferir recursos da União para os estados. Sem renegociação, portanto, a União passa a dispor de mais recursos. Tais recursos podem ser utilizados em obras, mas nada garante que essas obras iriam beneficiar diretamente aquele estado que está pouco endividado. Alternativamente, esses recursos podem ser poupados, melhorando o ambiente macroeconômico. Para o governador de um estado, contudo, os benefícios de uma melhora do ambiente macroeconômico são mais difíceis de serem quantificados e, pelo menos do ponto de vista de propaganda eleitoral, devem trazer menos votos (para o governador) do que a realização de determinada obra, como  uma estrada ou escola.

Esta é, mais uma (com perdão pela insistência no argumento) manifestação de uma sociedade em estado de forte conflito distributivo. Cada um tira para si o que pode, prevalece o interesse individual (de cada estado ou município) e fenece o interesse coletivo.

A falta de disciplina fiscal gera alívio de curto prazo, mas piora o cenário de longo prazo

Nos últimos anos houve evidente redução da disciplina fiscal dos estados e municípios. O Governo Federal afrouxou os controles sobre a contratação de novos empréstimos, inclusive liberando aval da União para estados e municípios com classificação de crédito muito baixa, segundo os critérios de avaliação da própria Secretaria do Tesouro Nacional. Entre 2011 e 2014, foram nada menos que R$ 23 bilhões em dívidas autorizadas para estados e municípios com classificação de crédito “C”e “D”. Autorizações que foram ratificadas pelo Senado.

Com mais acesso a crédito, os governos subnacionais precisaram fazer menor esforço fiscal para gerar os excedentes necessários ao pagamento de juros e amortização de suas dívidas vincendas. Ou seja, passaram a ter caixa não só para pagar as dívidas anteriores, como para expandir despesas. O resultado foi a queda do superávit primário de estados e municípios, de 1,15% do PIB em 2007, para 0,34% em 2013.

Isso certamente melhora a situação de curto prazo para o gestor que está no poder. Mas em nada contribui para melhorar a qualidade da gestão pública ou gerar incentivos à boa gestão fiscal.

O enfraquecimento da restrição orçamentária e a expansão do endividamento subnacional, muitas vezes estimulado pelo Governo Federal, não é bom para a gestão pública. O histórico dos anos 70 e 80 mostra que isso acaba em sobre-endividamento, governos despreocupados com qualidade de gestão e crise fiscal. Governos locais que têm uma porta aberta para conseguir mais um espaço fiscal por concessão administrativa do Governo Federal acabam relaxando na busca de eficiência e qualidade de gestão. É sempre mais fácil manter um programa ineficiente e financiar isso via dívida, do que fazer cortes em funções comissionadas, extinguir secretarias, contrariar interesses estabelecidos, cancelar programas que apresentam baixos resultados e altos custos.

A qualidade de gestão só se tornou assunto importante em governo estadual e municipal no Brasil a partir da forte restrição orçamentária imposta pelas condicionalidades da renegociação da dívida de 1997-98 e pela aprovação da lei de responsabilidade fiscal em 2000. Quando deixou de existir a facilidade de acumular dívidas impagáveis e se exigiu efetivo desembolso para pagar os débitos existentes, é que os gestores tiveram incentivos para buscar eficiência, contrariar interesses e ajustar a máquina pública.

Nesse sentido, o afrouxamento das regras de endividamento, no passado recente, prejudica a qualidade da gestão fiscal e sinalizam para mais problemas futuros e mais conflitos para alocar, no futuro, os custos do endividamento excessivo.

O que fazer?

A agenda de negociações federativas teve, ao longo de 2012 e 2013, grande oportunidade de buscar uma negociação envolvendo os principais pontos de conflito: redistribuição do FPE, renegociação da dívida com a União, redução das alíquotas interestaduais do ICMS com regulamentação dos incentivos concedidos à revelia do CONFAZ e redistribuição dos royalties. Não foi viável, porém, costurar esse acordo. No parlamento, deu-se prioridade a negociar os assuntos em separado. No espírito do aguçado conflito distributivo, cada grupo vetava ou colocava em banho-maria a reforma que lhe prejudicava, ao mesmo tempo em que tentava fazer andar a que lhe beneficiava. Ao final chegou-se a uma não-reforma do FPE, a uma proposta de renegociação da dívida com alto custo fiscal para a União e com prejuízos à segurança jurídica, que o Executivo teme em bancar. Nada se avançou na questão do ICMS e os royalties viraram questão judicial.

Não parece haver, portanto, condições políticas para um amplo pacto federativo. Até porque, como já afirmado acima, há grande insegurança acerca da credibilidade de qualquer proposta da União no sentido de compensar os perdedores. Há, também, muita insegurança em torno dos números: quem serão os perdedores? Quanto efetivamente eles perderão?

É preciso, pois, buscar uma agenda que seja responsável em termos fiscais e que una interesses dos três níveis de governo, para que se comece a gerar resultados concretos. Um bom começo seria uma emenda à constituição que proíba a criação, no plano federal, de obrigações financeiras a estados e municípios (unfunded mandates). Isso não só daria previsibilidade e segurança financeira para os gestores estaduais e municipais, como também seria um escudo contra o poder de fortes lobbies  em busca de subsídios, rendas ou privilégios salariais e previdenciários.

Outro tema que poderia unir o interesse dos três níveis de governo seria a regulamentação do direito de greve dos servidores públicos. Afinal, os estados e municípios, por serem responsáveis pelas áreas de educação, segurança e saúde, empregam largos contingentes de servidores altamente sindicalizados. As longas greves de professores, médicos, policiais e outras categorias relevantes impõem perdas administrativas e de credibilidade aos prefeitos e governadores, ao mesmo tempo em que exigem esforço financeiro dos três níveis de governo.

Como é sabido,  há um vácuo legal na regulamentação do direito de greve no setor público, em que os servidores têm o direito constitucional de paralisarem atividades, mas não estão submetidos a regras explícitas de desconto dos dias parados, restrições a greves em áreas estratégicas ou demissão. O resultado é que greves no setor público ocorrem com mais frequência e duram mais que as do setor privado. De acordo com dados do DIEESE, em 2012 74% das horas paradas por greve corresponde a movimentos paredistas de servidores públicos (embora eles representem apenas 25% da força de trabalho total). Em média, uma greve do setor público dura o equivalente a 172 horas de trabalho, contra apenas 46 horas no setor privado.3

Os gestores públicos ficam refém desse poder desproporcional, o que tem dado aos servidores grande vantagem no conflito distributivo, garantindo remuneração elevada, além de barrar outras experiências de gestão como a terceirização da gestão de unidades de saúde, ou diferenciação de pagamento de professores em função do mérito e desempenho, por exemplo.

Da parte do Governo Federal é preciso rever a política do enfraquecimento das normas da Lei de Responsabilidade Fiscal no que diz respeito à autorização de novas operações de crédito. É preciso que haja forte restrição orçamentária para induzir estados e municípios a buscar a economia de gastos e melhora nos processos de gestão.

Em contrapartida, pode ser feito um ajuste nos contratos de dívida com a União, porém em termos menos benevolentes que os propostos no PLC 99/2013, que estipula a revisão dos contratos das dívidas de forma retroativa. Além de ser um grande prejuízo para a segurança jurídica do país, essa revisão retroativa de indexadores soa a casuísmo, visto que concentra benefícios em um único ente federado.

A substituição de indexadores, de IGP-DI por IPCA é bastante defensável, visto que as receitas estaduais e municipais têm maior correlação com o segundo que com o primeiro. A redução dos juros fixos também é admissível, visto que a faixa de 6% a 9% ao ano supera a taxa de juros de equilíbrio do passado recente. Porém nada inferior a 5% ou 4,5% deve ser buscado, visto que o país ainda tem perspectiva de um longo período de elevados juros reais pela frente. O uso da Selic como balizador dos juros, substituindo-os quando for menor que a taxa fixa contratual também é um bom seguro para os estados e municípios, porém prejudicial para a União.

Outro ponto relevante a se renegociar é a forma de pagamento do resíduo da dívida. Quando a dívida dos estados foi renegociada nos anos 1990, fixou-se um limite de até 15% da Receita Corrente Líquida dos estados para o pagamento de juros e amortizações. O que excedesse esse limite seria pago posteriormente. Por esse motivo, havia a possibilidade de, findo o prazo de 30 anos para o pagamento da dívida, parte dela ainda não teria sido quitada. Os contratos previam então que, nesse caso, haveria 10 anos adicionais para se pagar o resíduo. Em vez de um prazo fixo de 10 anos para quitação do passivo, poder-se-ia migrar para uma regra em que o ente subnacional comprometeria um percentual fixo de sua receita com o pagamento do resíduo e o pagamento se estenderia pelo prazo necessário à quitação do passivo. Com isso evitar-se-ia a situação que parece estar se configurando para alguns estados e para o Município de São Paulo de, ao final dos trinta anos da renegociação, ter um resíduo muito elevado, que consumiria mais de 20% de sua receita corrente para pagamento em dez anos. A mudança dessa regra tornaria todas as dívidas sustentáveis e reduziria o alto grau de incerteza que hoje paira sobre a saúde fiscal de longo prazo dos entes mais endividados.

A pressão gerada pela aprovação da nova regulamentação para criação de municípios, cujos projetos aprovados no Congresso foram duas vezes vetados pelo Executivo, forçará a discussão sobre os critérios de partilha do FPM. Se não houver um requisito de população mínima acima de, pelo menos, 15 mil habitantes para criação de nova jurisdição, haverá nova onda de criação de micromunicípios financeiramente inviáveis. O projeto recentemente vetado propunha limites populacionais baixos: 6 mil habitantes para o Norte e o Centro-Oeste e 12 mil habitantes para o Nordeste. Somente no Sul e Sudeste, onde são requeridos pelo menos 20 mil habitantes, é que os estímulos à fragmentação administrativa serão menos intensos.

Ainda que ao custo de divisão interna entre seus representados, as associações representativas de municípios terão que discutir os problemas das regras atuais de partilha do FPM. Há no Congresso, em estado avançado de tramitação, um projeto que corrige o problema mais básico, que é a divisão dos municípios em faixas populacionais, e que faz com que as receitas de FPM subam ou caiam muito quando um município muda de faixa. Uma mudança simples como essa, que gera evidente ganho de eficiência e equidade, tem sofrido resistência daqueles municípios que se veem como potenciais perdedores. Parece ser hora de aceitar a racionalização do FPM, sobretudo de reduzir o viés a favor dos micromunicípios, para que o municipalismo não seja enfraquecido junto à opinião pública, que não mais aceita a criação de cidades dedicadas a receber transferências.

Se as grandes reformas (do ICMS, dos royalties, etc.) estão travadas, então deve-se buscar avanço nas microrreformas, como a dos critérios do FPM e de ajustes pontuais da dívida. Com relação às grandes reformas, parece que um critério importante é garantir aos estados alguma prerrogativa de ter política fiscal própria. A viabilidade do modelo centralizado, consensual e unânime morreu com o fim do regime militar. O novo ICMS terá que dar espaço à concorrência entre estados, ainda que isso gere algum grau de ineficiência alocativa. O importante é evitar que, como ocorre hoje, um estado jogue o custo da sua política de incentivos sobre outro estado.

Ademais, o Governo Federal precisa avançar na agenda da infraestrutura, para garantir que cada estado e município possa explorar plenamente as suas vantagens comparativas. É preciso aproximar os estados mais distantes dos centros consumidores e de exportação. Para ter recursos para investimento, o Governo Federal precisa conter os gastos correntes, feitos em favor de inúmeros grupos de pressão. Um agenda comum com os estados e municípios, como a acima proposta, de limitação do poder das corporações e de grupos de pressão que pleiteiam a criação de unfunded mandates seria um bom começo.

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1 Vide: Mendes, M.J. (2002) Descentralização fiscal baseada em transferências e captura de recursos públicos nos municípios brasileiros. Universidade de São Paulo. Faculdade de Administração, Contabilidade e Economia. Departamento de Economia. Tese de Doutorado; e Caselli, F., Michaels, G. (2009) Do oil windfalls improve living standards? Evidence from Brazil. NBER Working Paper Series w15550.

2 Vide Miranda, R.N. (2013) Zona Franca de Manaus: desafios e vulnerabilidades. Núcleo de Estudos e Pesquisas do Senado Federal – Texto para Discussão nº 126.

3 DIEESE (2013) Balanço das greves em 2012. – Estudos e Pesquisas nº 66, maio.

 

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A partilha interestadual do FPM é constitucional? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1810&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-partilha-interestadual-do-fpm-e-constitucional https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1810#comments Mon, 29 Apr 2013 18:41:59 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1810 1. Históricos e Objetivos

O Fundo de Participação dos Municípios (FPM) está previsto no art. 159, I, b e d, da Constituição Federal. Esses dispositivos estipulam que 23,5% da arrecadação do IR e IPI seja destinada ao fundo em questão. No nível infraconstitucional, a Lei 5.172/1966 (Código Tributário Nacional – CTN), o Decreto-Lei 1.881/1981 e a Lei Complementar 91/1997 determinam que os recursos do FPM sejam assim repartidos:

a) FPM – Capital: 10% para os municípios das capitais dos estados, distribuídos conforme o coeficiente de participação obtido a partir do produto dos fatores representativos da população e do inverso da renda per capita de cada estado;

b) FPM – Interior: 86,4% para os demais municípios, distribuídos conforme o coeficiente de participação ditado pela quantidade de habitantes de cada município;

c) Reserva do FPM: 3,6% para os municípios interioranos mais populosos, distribuídos conforme os critérios do FPM – Capital.

Em 2008, com base em dados de 2007, os universos contemplados por cada fundo foram os seguintes:

a) FPM – Capital: 27 capitais e 44,2 milhões de habitantes (24% do total);

b) FPM – Interior: 5.536 municípios e 139,8 milhões de habitantes (76% do total);

c) Reserva do FPM: 147 municípios e 45,2 milhões de habitantes (24,5% do total).

A exemplo de outros fundos voltados para o desenvolvimento regional, o FPM tem como objetivo promover o equilíbrio socioeconômico entre os entes subnacionais.1 Essa declaração pode ser decomposta em dois níveis, articulados por duas palavras-chave:

a)promover (objetivo intermediário): ser dinâmico (ou seja, variar ao longo do tempo conforme as mudanças na realidade local);

b)equilíbrio (objetivo final): beneficiar os entes menos desenvolvidos.

No caso do objetivo final, o FPM – Capital e a Reserva do FPM claramente beneficiam os municípios com mais população e menos renda, em que pesem as distorções geradas pelos pisos e tetos usados na fixação dos coeficientes individuais de participação. O FPM – Interior, entretanto, como ressaltado pelo Tribunal de Contas União (TCU) privilegia os municípios menores, devido ao pressuposto de que município pequeno é município pobre. Mas este pressuposto é equivocado, pois existem tanto municípios pequenos pobres quanto municípios pequenos ricos … (Relatório do Acórdão de Plenário 1.120/2009). Consequentemente, este é um primeiro foco de tensão na análise da constitucionalidade do FPM. Basta notar que os coeficientes per capita do FPM – Interior declinam à medida que aumenta o tamanho da população, havendo picos a cada mudança de faixa populacional.

Em termos per capita, as diferenças observadas são dramáticas. A razão entre os coeficientes por habitante de Borá e Guarulhos, por exemplo, é igual a 230,63. Como ambos integram o Estado de São Paulo, é imediata a conclusão de que o FPM – Interior destina, por habitante, 230,63 vezes mais recursos para o primeiro do que para o segundo. Essa diferença é apenas parcialmente compensada pela Reserva do FPM. Se os beneficiários da aludida reserva fossem excluídos da presente análise (ou seja, se os municípios com mais de 142.633 habitantes não fossem considerados), a maior diferença entre coeficientes per capita ainda seria de cerca de trinta vezes.2

Ademais, os picos observados na distribuição do FPM – Interior têm sido uma permanente fonte de reclamações, pois a perda de um único habitante nas revisões anuais do tamanho da população pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística pode gerar quedas expressivas nos montantes recebidos. E, como se isso não bastasse, podem estar estimulando o uso, pelos governos municipais, de estratégias de manipulação dos levantamentos populacionais. Monastério (2013), por exemplo, ao analisar os dados do censo demográfico de 2010 para 3.565 prefeituras, estima que 192 municípios parecem ter sido classificados erroneamente, provocando distorções de cerca de R$ 200 milhões anuais no rateio do FPM – Interior (o que equivale a uma distorção de 0,46% em relação ao montante rateado naquele ano)3.

A discussão anterior também vale para o objetivo intermediário. No caso do FPM – Capital e da Reserva do FPM, tem-se que os coeficientes individuais de participação mudam conforme o tamanho da população e o PIB per capita. Portanto, os coeficientes se ajustam às mudanças observadas na realidade socioeconômica. Em relação ao FPM – Interior, todavia, a análise precisa ser desdobrada em dois níveis: o intraestadual e o interestadual. No âmbito do primeiro, os coeficientes efetivamente mudam conforme o tamanho da população, em que pesem as distorções geradas pelos pisos e tetos usados. É no âmbito do segundo que aparece o aspecto mais problemático do rateio em questão, analisado a seguir.

2. Partilha Interestadual

Como assinalado, os coeficientes atribuídos aos municípios interioranos estão estruturados em degraus e não crescem na mesma proporção do tamanho da população. Dessa forma, é vantajoso para um município com, p. ex., 10.188 habitantes, ao qual cabe um coeficiente 0,6, dividir-se em duas prefeituras, às quais caberiam o mesmo coeficiente. Tudo o mais constante, um simples rearranjo administrativo permitiria dobrar o aporte de recursos do FPM para uma dada população.4 Os dois quadros que seguem ilustram o fenômeno estudado. O primeiro contém o cenário base: dois estados (A e B) com dois municípios (A1, A2, B1 e B2) com 30.564 habitantes, aos quais cabem o coeficiente 1,4. Dessa forma, cada ente recebe 25% do montante.

Quadro 1: Cenário Base

O segundo mostra o que ocorre quando o estado B transforma os seus dois municípios em seis (B1.1 a B1.3 e B2.1 a B2.3), todos com 10.188 habitantes. Os seus coeficientes diminuem para 0,6, mas o seu somatório passa de 2,8 para 3,6. De modo agregado, os aportes para esses últimos aumentam 12,5%, em prejuízo de A1 e A2, cujo estado não perseguiu estratégia semelhante.

Quadro 2: Efeito emancipação

Essa situação representaria um evidente estímulo para a fragmentação dos municípios brasileiros. E foi o que aconteceu com a promulgação da Constituição de 1988, que delegou inteiramente às assembleias estaduais a competência para criar novas prefeituras. A combinação do novo comando constitucional com os degraus do rateio do FPM resultou, no primeiro instante, em uma expressiva transferência de recursos para os estados mais agressivos na criação de novos municípios. Somente em 1989 houve 222 emancipações5 – um acréscimo de 5% em relação às 4.424 prefeituras preexistentes. Os que mais recorreram à essa estratégia foram RS, GO, CE, PA, MT e ES. Ao mesmo tempo, AC, AL, MA, PB, PE, RR, SE e SP, que não promoveram emancipações, e outros entes menos agressivos no uso da estratégia em comento tiveram, proporcionalmente, reduções nos aportes para os seus municípios.

Foi nesse contexto que o Congresso Nacional aprovou a Lei Complementar 62/1989, que estabelece normas sobre o cálculo, a entrega e o controle das liberações dos recursos dos Fundos de Participação e dá outras providências. Provisoriamente,

novas perdas foram evitadas congelando-se, até que lei específica fosse editada, os coeficientes individuais de participação (vide art. 3º). Adicionalmente, de maneira permanente, introduziu-se, no parágrafo único do art. 5º, previsão para que, no caso de criação de novo município, o TCU revise os coeficientes individuais de participação dos demais municípios do mesmo estado, com redução proporcional das suas parcelas. Em outras palavras, atrelou-se o somatório, por estado, dos coeficientes do FPM – Interior aos coeficientes fixados no exercício de 1989 no intuito de evitar que a criação de novos municípios por uma assembleia legislativa afetasse as cotas-parte de entes de outros estados. Isso está consubstanciado na Resolução do TCU 242/1990, cujo Anexo II fixa o percentual a ser destinado aos municípios interioranos de cada estado.

Como continuaram ocorrendo emancipações,6 municípios em tudo similares passaram a receber do FPM – Interior montantes diferentes por não pertencerem ao mesmo estado, incorrendo em desvantagem os entes pertencentes aos estados mais agressivos. Com isso, o FPM – Interior deixou de refletir as variações populacionais em nível estadual. Retomando a simulação anterior, suponha-se que a população de A permaneça constante, enquanto a de B passe de 60.128 para 61.134 habitantes, igualmente divididos entre B1 e B2. Assim, os coeficientes dos dois últimos passariam de 1,4 para 1,6:

Quadro 3: Efeito População

Neste caso, os aportes para A1 e A2 cairiam 6,7%, enquanto aqueles para B1 e B2 subiriam na mesma medida – variações decorrentes de diferenças nos padrões demográficos dos dois conjuntos de municípios em vez de uma estratégia deliberada de obtenção de recursos públicos adicionais por qualquer governo estadual. É razoável que este efeito fosse

efetivamente captado pelo rateio do FPM – Interior. Como alertado, entretanto, não é o que acontece, pois o dispositivo legal pertinente não permite diferenciar o efeito emancipação do efeito população.

O resultado é uma enorme distorção entre os somatórios observados e aqueles requeridos legalmente. Enquanto o somatório pernambucano em 2008 precisou, por exemplo, aumentar 11% para alcançar o patamar observado em 1990, o roraimense precisou diminuir 53%, com impacto equivalente sobre os coeficientes individuais de participação nas duas situações. O próximo quadro mostra os coeficientes efetivos de três municípios com populações semelhantes. Embora a todos caiba, teoricamente, o coeficiente 1,4, os municípios de Pernambuco recebem, na prática, 2,4 vezes mais que o de Roraima:

Quadro 4: Diferenças nos coeficientes interestaduais

É uma situação incompatível com o nosso ordenamento constitucional, uma vez que a Carta Magna estabelece que os fundos regionais de desenvolvimento devem ser pautados por critérios dinâmicos, como atestado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em relação ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal. Como salientado pelo Ministro Gilmar Mendes, deve haver a possibilidade de revisões periódicas dos coeficientes envolvidos, de modo a se avaliar criticamente se os até então adotados ainda estão em consonância com a realidade econômica dos entes federativos e se a política empregada na distribuição dos recursos produziu o efeito desejado.

Conclusão

Um questionamento da constitucionalidade do FPM restrito ao teor do parágrafo único do art. 5º da Lei Complementar 62/1989 (ou seja, que tratasse apenas do objetivo intermediário desse fundo) poderia suscitar uma intervenção pontual da parte do STF, diferentemente do que aconteceu com o FPE. Declarada a nulidade do dispositivo em questão, o rateio do fundo poderia prosseguir normalmente, pois as suas regras gerais não seriam afetadas. Apenas a partilha interestadual precisaria ser redimensionada, com ganhos e perdas variando de +110,8%, no caso de Roraima, a
–10,3%, no caso de Pernambuco.

O redimensionamento requerido implicaria incorporar ao rateio do FPM – Interior tanto as mudanças demográficas como as emancipações municipais ocorridas após 1989. Com isso, as prefeituras de dezesseis estados ganhariam, enquanto as de catorze perderiam. No entanto, ainda que esse ônus inicial fosse julgado aceitável, haveria a questão das futuras emancipações. Como a norma federal requerida pela EMC 15/1996 permanece pendente, as assembleias legislativas acham-se impedidas de criar novos municípios. Isso, porém, pode mudar, reabrindo a possibilidade de uma competição viciosa entre os governos estaduais por recursos públicos escassos.

O questionamento da constitucionalidade do FPM poderia, contudo, ganhar contornos dramáticos caso tivesse como alvo o objetivo final desse fundo. Como ressaltado pelo TCU, o tratamento preferencial dado pelo FPM – Interior aos municípios pouco populosos pode não estar sintonizado com a busca do equilíbrio entre os entes subnacionais, como requerido pela Carta Magna. Se esse argumento fosse acolhido pelo STF, toda a partilha precisaria ser redefinida.7

_____________

1Conforme o art. 161, II, da Constituição Federal.

2 O Município de Parnaíba é o mais populoso entre aqueles que não participam do rateio da Reserva do FPM.

3Não foram considerados os aportes em favor do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação.

4Se cada município tivesse exatamente a metade da população original, os recursos públicos disponíveis para cada habitante, isoladamente, dobraria.

5Não computados os 79 municípios do novo Estado do Tocantins, que integravam o Estado de Goiás.

6Até a edição das Emendas Constitucionais (EMCs) 15/1996 e 57/2008.

7Vide Rocha (2013, p. 26) para uma análise preliminar dos problemas envolvidos.

Bibliografia

MONASTERIO, Leonardo (2013). O FPM e a Estranha Distribuição da População dos Pequenos Municípios Brasileiros. Brasília : Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Texto para Discussão 1.818 (disponível em: http://tinyurl.com/c22gldd).

ROCHA, C. Alexandre A. (2013). O FPM é Constitucional? Brasília : Consultoria Legislativa do Senado Federal, Texto para Discussão 124 (disponível em: http://tinyurl.com/bmwzomm).

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Como dividir o Fundo de Participação entre os estados? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=657&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=como-dividir-o-fundo-de-participacao-entre-os-estados https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=657#comments Thu, 21 Jul 2011 19:25:00 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=657 O Fundo de Participação dos estados e do Distrito Federal (FPE) é uma transferência de dinheiro do Governo Federal para esses entes da federação, cujo objetivo é equalizar a capacidade financeira dos que têm menor capacidade de arrecadar impostos com a dos que têm atividade econômica mais intensa e, portanto, maior possibilidade de obter receitas.

O FPE, por determinação constitucional, transfere aos estados 21,5% da arrecadação do Imposto de Renda-IR e do Imposto sobre Produtos Industrializados-IPI. Em 2010, transferiu o equivalente a 1,1% do PIB (R$ 39 bilhões). Em estados de base tributária mais estreita, como Amapá, Roraima, Acre e Tocantins, o FPE é a principal fonte de recursos, representando quase metade da receita desses estados; enquanto nos mais desenvolvidos, como São Paulo, não representa mais que 1% da receita.

Desde 1989, o FPE é distribuído com base em cotas fixas, isto é, cada estado recebe um percentual fixo dos recursos do Fundo. Anteriormente vigia um sistema em que as cotas eram recalculadas anualmente, com base em variações da renda per capita e da população de cada estado. Assim, estados que se desenvolvessem mais devagar ou tivessem maior crescimento populacional passariam a receber uma parcela maior dos recursos do Fundo.

Provocado por diversas Ações Diretas de Inconstitucionalidade, que afirmavam que as cotas fixas contrariam o caráter equalizador do Fundo (pois prejudicam os estados que tiveram crescimento acelerado da população e queda da renda per capita), o STF declarou inconstitucional o atual método de partilha e fixou prazo, até 31 de dezembro de 2012, para que o Congresso aprovasse nova regra.

Surge, então, a questão: qual a maneira mais eficiente de distribuir o FPE entre os estados? Note que qualquer ganho que se dê a um estado representa perda na participação relativa dos demais. Isso gera um difícil processo de barganha entre os estados. E essa barganha tem que ser resolvida até o final de 2012, sob pena de a lei atual perder validade e os estados não receberem mais o FPE.

A situação complica-se ainda mais quando se leva em conta que outras questões de grande impacto sobre a receita estadual estão em negociação: a legislação do Impostos sobre Circulação de Mercadorias (ICMS) e a distribuição dos royalties cobrados sobre o petróleo a ser extraído da camada pré-sal.

Proponho, aqui, alguns princípios para a divisão do FPE que tenham viabilidade de aprovação política e, ao mesmo tempo, produzam uma adequada partilha de recursos.

RECOMENDAÇÃO I – É preciso reconhecer que a decisão sobre a partilha do FPE, a ser tomada até dezembro de 2012, ocorrerá antes da complexa decisão sobre partilha dos royalties e sobre a divisão da receita de ICMS. Isso significa que, depois de definida a regra do FPE, as decisões sobre as outras partilhas podem mudar drasticamente a capacidade fiscal dos estados e, consequentemente, tornar os critérios do FPE ultrapassados ou inadequados. Um estado como o Rio Grande do Norte, por exemplo, que é importante produtor de petróleo, pode ter suas finanças impulsionadas por uma regra que concentre os royalties nas unidades federadas produtoras, ou pode ficar em situação pior se os royalties forem divididos igualmente entre todos os estados e municípios. Sem saber qual será a receita de royalties do RN, como definir se ele deve receber mais ou menos do FPE?

De modo similar, se a cobrança do ICMS for alterada, aumentando-se a tributação no estado de destino das mercadorias, aumentará a arrecadação dos estados do N e NE, reduzindo seu hiato fiscal em relação ao resto do País, o que indicaria a menor necessidade de FPE para os estados beneficiados pela mudança no ICMS.

Nesse contexto, o ideal é que se estabeleçam critérios para o FPE que sejam capazes de captar, rapidamente, mudanças abruptas na posição relativa dos estados em termos de capacidade fiscal.

Deve-se usar a forma mais direta possível de se medir diferenças na capacidade fiscal: a distância entre a receita de um estado e a média nacional. Assim, por exemplo, se tivéssemos apenas 3 estados, com Receitas Correntes Líquidas (excluída a receita de FPE) per capita de R$ 90 (estado A), R$ 60 (estado B) e R$ 30 (estado C), utilizar-se-ia uma fórmula de partilha em que o estado “C” receberia uma parcela maior do FPE e o estado “A” receberia uma parcela menor. Esse é, aproximadamente, o modelo utilizado há muitos anos no Canadá e na Austrália[1]. E é a forma mais direta de complementar a receita fiscal das unidades federadas com menor capacidade de arrecadação.

Obviamente haveria o risco de os estados afrouxarem a arrecadação de impostos para terem direito a uma cota maior do FPE. Isso pode ser evitado por diversos modos. Primeiro, utilizando-se no cálculo a receita estadual do ano anterior (ou de mais de um ano anterior), o que imporia um espaço de tempo entre a queda da receita própria e o aumento do FPE. Segundo, provendo-se apenas uma compensação parcial, de modo que uma perda de R$ 1,00 de receita própria garantiria muito menos que R$ 1,00 adicional no FPE. Terceiro, utilizando-se a Receita Corrente Líquida (RCL), definida pela Lei de Responsabilidade Fiscal[2], como o conceito a ser utilizado no cálculo. Este conceito é utilizado na definição dos limites máximos para a despesa de pessoal e de endividamento público. Por isso, os estados têm interesse que essa receita seja a mais alta possível, para elevar seus limites de endividamento e para evitar punições decorrentes do estouro da despesa de pessoal. Assim, o incentivo para subestimar (com vistas a receber mais FPE) seria contraposto pelo interesse em ter uma RCL elevada.

RECOMENDAÇÃO II – É preciso considerar que qualquer mudança de fórmula de partilha embute o risco de que alguns estados sofram perdas imediatas expressivas. Isso reduz a viabilidade de aprovação da nova regra e gera risco de crises fiscais em estados muito dependentes do FPE. Por isso, é bastante provável que seja necessário que a nova regra preveja um período de transição entre a partilha atual e os novos critérios, visando uma partilha mais justa sem causar perdas imediatas e abruptas a alguns estados.

RECOMENDAÇÃO III – Deve-se evitar a tentação de usar o FPE para atingir diversos outros objetivos que não sejam a redução das disparidades na capacidade fiscal dos estados. Por exemplo, a introdução de um adicional para estados que tenham grandes áreas ocupadas por reservas ambientais. Ou então, para estados que tenham sob sua responsabilidade acervos do patrimônio histórico. Um ensinamento básico em economia é de que um mesmo instrumento não pode ser usado para atingir mais de um objetivo. Há o risco de que um critério atue em sentido contrário a outro critério, com os efeitos se anulando. As políticas ambiental, de preservação do patrimônio histórico, ou qualquer outra política setorial devem ter seus instrumentos próprios de estímulo e financiamento. O FPE deve ser, única e exclusivamente, um mecanismo de redução das disparidades de capacidade fiscal dos estados.

RECOMENDAÇÃO IV – Deve-se evitar prefixar a participação de algumas regiões. Pela regra atual, 85% do FPE devem ser transferidos aos estados do N, NE e CO. Essa regra pressupõe que tais regiões concentram estados de menor capacidade fiscal, enquanto S e SE só possuam estados de alta capacidade fiscal. Isso não é uma verdade absoluta. No Centro-Oeste, o Distrito Federal tem um perfil fiscal totalmente diferenciado dos demais estados da Região, não só com maior capacidade fiscal, como também por contar com transferência específica a seu favor (Fundo Constitucional do Distrito Federal). Na Região Norte, o estado do Amazonas se diferencia em função do polo industrial da Zona Franca de Manaus. No Nordeste, os estados têm apresentado, ao longo dos anos, desempenhos econômicos e performances fiscais distintos entre si.

Como já afirmado anteriormente, a restrição imposta por esse critério se tornará ainda mais problemática se a reforma tributária avançar, pois ela provavelmente resultará em aumento da capacidade fiscal dos estados do Norte e Nordeste.

É evidente que haverá resistência da maioria parlamentar formada pelos representantes do N, NE e CO, mas isso poderia ser resolvido por meio de uma regra de transição que fizesse um ajuste lento da antiga para a nova regra.

RECOMENDAÇÃO V – Criação de um fundo de reserva. O FPE recebe mais recursos quando a economia está crescendo (devido ao aumento das receitas de IPI e de Imposto de Renda) e menos recursos durante as recessões. Esse perfil pró-cíclico estimula um comportamento fiscal pouco responsável, principalmente nos estados em que o FPE representa elevado percentual da receita total. Em momentos de bonança, há estímulo para se gastar mais. Porém o gasto público, uma vez criado, é difícil de ser cortado. A contratação de pessoal, por exemplo, está associada a direitos constitucionais de estabilidade que dificultam o uso da demissão de servidores como instrumento de redução da despesa. Por isso, quando vem a crise econômica e a consequente redução do FPE, as despesas estão altas e rígidas (não podem ser cortadas de imediato), o que gera crise fiscal.

No modelo político brasileiro, a consequência é um movimento de pressão de governadores e prefeitos sobre o Governo Federal, requerendo ajudas fiscais emergenciais. Em 2010, por exemplo, o Governo Federal distribuiu a estados e municípios R$ 1,2 bilhão a título de compensação de “perdas” do FPE e FPM decorrentes da queda da arrecadação federal durante a crise econômica de 2009.

Por isso, a bem da disciplina fiscal, seria interessante que o montante do FPE não oscilasse ao sabor do ciclo econômico. Há dois caminhos para atingir esse objetivo. Por isso recomenda-se a criação de um fundo de reserva que funcionaria como colchão de amortecimento. Nos períodos de elevação da receita, parte dos recursos seria acumulada nessa reserva, em vez de serem integralmente repassada aos estados. Nos períodos de queda, a reserva seria utilizada para complementar os repasses.

RECOMENDAÇÃO VI – Deve-se evitar o erro atualmente cometido na partilha do Fundo de Participação dos Municípios, em que pequenas mudanças na população da unidade federada geram grandes mudanças na sua participação no Fundo. Isso ocorre quando as unidades beneficiárias do Fundo são agrupadas em faixas de renda per capita e de população. Isso significa que estados que estão próximos ao limite superior ou inferior de cada faixa podem ter um grande aumento ou redução de suas receitas de FPE se, em decorrência de pequena variação de suas populações, mudarem de uma faixa para outra[3].

Isso gera uma série de problemas. Em primeiro lugar, uma pequena variação na população não altera substancialmente o volume de recursos requeridos para prestar serviços públicos. Mas ela pode ser suficiente para reduzir ou aumentar drasticamente a receita de um estado. O mesmo se pode dizer de variações marginais na renda per capita: uma pequena queda dessa renda não diminui a base tributária nem a capacidade fiscal do estado, mas pode lhe proporcionar grandes ganhos de receita no FPE.

Em segundo lugar, deve-se levar em conta que tanto a população quanto a renda per capita são calculadas por meio de estimativas do IBGE. A efetiva contagem da população ocorre apenas a cada cinco anos (por meio de censos ou contagens populacionais). Isso significa que um estado cuja população é estimada em valor muito próximo ao limite superior de uma faixa tem incentivos para requerer (administrativamente ou judicialmente) a revisão da estimativa.

Isso gera conflitos e custos administrativos desnecessários, sobrecarregando o IBGE com revisão de estimativas para as quais não há métodos adequados alternativos à (dispendiosa) recontagem populacional. Gera, também, incerteza aos estados sobre qual será a sua efetiva receita, visto que os recursos levam tempo para serem apreciados, não necessariamente são aceitos, e afetam não só a receita dos estados demandantes, mas também a de todos os demais estados.

RECOMENDAÇÃO VII  – Evitar o uso de parâmetros que não são frequentemente atualizados. Se o objetivo da mudança no FPE é permitir que as cotas dos estados se ajustem a mudanças na capacidade fiscal, é preciso que os parâmetros de definição das cotas sejam estimados com frequência.  Muitas variáveis socioeconômicas usadas como critério para divisão de recursos (relativas a renda pessoal, condições de habitação, nível de escolaridade, estrutura etária da população, etc.) são apuradas apenas de dez em dez anos, por meio dos censos demográficos. Obviamente, um FPE cujas cotas fossem ajustadas de dez em dez anos estaria muito próximo de um sistema de cotas fixas, que é justamente o que se pretende evitar.

RECOMENDAÇÃO VIII – Evitar o uso da renda per capita como critério de partilha. Esse é um indicador problemático, porque em estados altamente dependentes do FPE (como Amapá, Roraima, Acre ou Tocantins), o Fundo tem alta influência sobre a renda per capita. Um aumento do FPE permite, por exemplo, a elevação do emprego e do salário no setor público estadual, que tem peso relevante no cálculo da renda per capita local.

Se a renda per capita for usada como critério de cálculo da partilha do FPE, teremos uma situação em que o Fundo influencia a renda e a renda influencia o Fundo. Um aumento no FPE levará a um aumento na renda per capita. Isso fará com que, no momento seguinte, diminua a participação do estado no FPE, levando à queda na renda per capita. Daí decorrerá novo aumento do FPE.

Ou seja, haverá uma desnecessária oscilação do FPE dos estados mais dependentes do Fundo. Mais do que isso, a renda per capita desses estados não é uma boa proxy para a capacidade fiscal própria do estado, pois reflete uma situação que já leva em conta as transferências.

Seria preciso, então, criar uma estatística de “renda per capita desconsiderando as transferências fiscais” o que seria complicado e retiraria objetividade e transparência do indicador.

CONCLUSÃO – A proposta feita no início do texto, de se dividir o FPE de acordo com a diferença da receita estadual em relação receita  média de todos os estados atende ou é compatível com todas as recomendações feitas acima.

Como já afirmado acima, esse modelo permite o rápido ajustamento das cotas de cada estado no FPE em função de mudança na sua posição em relação à média dos estados. Atende, portanto, à exigência do STF de se estipular critérios móveis, associados a desníveis socioeconômicos, que evitem o congelamento das cotas, motivo principal da declaração de inconstitucionalidade da atual legislação.

Em segundo lugar, esse novo FPE se adaptará rapidamente a outras mudanças no sistema tributário e de transferências, como as mudanças no regime do ICMS e de partilha de royalties.

Em terceiro lugar, o modelo não é incompatível com uma regra de transição que evite perdas para os estados.

Em quarto lugar, evita-se o uso de qualquer critério estranho à diferença de capacidade fiscal, tais como os de área ocupada por reservas ambientais ou de acervo de patrimônio histórico. Também é evitado o uso da renda per capita como critério de partilha.

Em quinto lugar, acaba a clivagem artificial entre estados do N, NE e CO, de um lado, e os do S e SE de outro.

Em quinto lugar, o sistema é plenamente compatível com a criação de um fundo de reserva do FPE, com vistas a reduzir a variância dos recursos em função dos ciclos econômicos.

Em sexto lugar, acaba o problema de fortes oscilações nas cotas estaduais em função de “mudanças de faixa” populacional ou de renda per capita. Como o ajuste será feito com base em variação da receita estadual em relação à média de todos os estados, os ajustes tendem a ser suaves. Além disso, como a RCL é claramente aferida (e deverá ser atestada pelo Ministério da Fazenda, tribunais de contas, etc.), não restará espaço para contestação judicial das cotas atribuídas a cada estado, como ocorre atualmente em função de incertezas acerca da estimação da renda e da população.

Infelizmente, todos os projetos de lei[4] até agora apresentados para regular a matéria contrariam quase todas as recomendações aqui formuladas.

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Para ler mais sobre o tema:

Mendes, M. (2011) Fundo de Participação dos Estados: sugestão de critérios que atendam determinações do STF. Consultoria Legislativa do Senado. Texto para Discussão nº 94. Disponível em: http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao.htm

Rocha, C.A.A. (2010) Rateio do FPE: análise e simulações. Consultoria Legislativa do Senado. Texto para Discussão nº 71. Disponível em: http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao.htm


[1] Para uma descrição desses modelos ver Ter-Minassian, T. (Ed.) (1997) Fiscal federalism in theory and practice. Fundo Monetário Internacional. Washington – DC, 701 p.

[2] Lei Complementar nº 101, art. 2º, inciso IV.

[3] Simulações a esse respeito podem ser encontradas em Rocha (2010).

[4] Vide PLS nº 29, de 2005; PLS nº 192, de 2011 e PLS nº 289, de 2011.

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