emendas parlamentares – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Mon, 24 Jan 2022 05:45:56 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 Emendas parlamentares, aqui e nos EUA https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3557&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=emendas-parlamentares-aqui-e-nos-eua Mon, 24 Jan 2022 05:45:56 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3557 Emendas parlamentares, aqui e nos EUA

 

No Brasil, o dinheiro das emendas é pulverizado em pequenos projetos nas bases eleitorais dos congressistas

 

 Por Roberto Macedo

 

Minha indisposição quanto a essas emendas é antiga. Meu primeiro artigo aqui sobre o assunto foi em 7/7/2011(!), intitulado Porcas emendas parlamentares, inspirado pela forma com que o assunto é encarado nos EUA, onde permanece como problema, ainda que não tão sério como no Brasil. Hoje vou comparar com mais detalhes as emendas nos dois países.

Lá, verbas desse tipo têm via metáfora uma conotação pejorativa, e é comum chamá-las de pork barrel. Consultando dicionário de inglês, vi que se trata da “apropriação legislativa destinada a prestigiar legisladores diante de seus constituintes”. Mas pork é carne de porco, e barrel é barril, lembrando tempos antigos quando a carne cozida era guardada em barricas com banha de porco. Eram mesmo uma porcaria, com seu conteúdo gorduroso, pegajoso e sanitariamente vulnerável.

Nos EUA há a organização CAGW (Citizens Against Government Waste, ou Cidadãos Contra o Desperdício Governamentalwww.cagw.org), que procura identificar emendas desse tipo no orçamento federal, considerando como pork as que satisfazem ao menos um destes critérios: são solicitadas só por uma das Casas do Congresso; não são especificamente autorizadas; não são competitivamente concedidas; não foram solicitadas pelo Executivo; não passaram por audiências no Congresso; servem apenas a interesse local ou especial.

Listando porks, a CAGW faz todo ano um balanço do assunto, que em 2021 completou a sua 29.ª(!) edição, com o título (tradução parcial): Livro de Pork Congressional – Resumo, tendo na capa o desenho de um porco gordo com faixa de autoridade, e o subtítulo O livro que Washington não quer que você leia. Mensalmente, um congressista é apontado como porcalhão do mês, por ter apresentado a emenda mais descabida. O Congresso dos EUA havia colocado uma moratória nas emendas. Contudo, mais recentemente elas cresceram de 163 em 2017 para 285 em 2021, e o valor em bilhões de dólares passou de 6,8 para 16,8 no mesmo período.

Aqui o número de emendas é bem superior a 285, e creio que com participação maior no Orçamento, em termos relativos. O valor orçado em 2021 foi de R$ 35,4 bilhões, sendo que chamadas emendas de relator ficaram em R$ 18,5 bilhões, conforme informação da CNN. Elas não têm seus objetivos explicitados no Orçamento, e parece-me que podem ser definidas no próprio ano de execução. O Supremo já se manifestou contra essa falta de transparência, mas o assunto ainda não teve solução.

Nos EUA há uma restrição importantíssima: os congressistas que apresentam essas emendas devem certificar que eles, seus cônjuges e sua família não têm interesse nos seus projetos, uma regra não seguida no Brasil, onde em geral os congressistas fazem as emendas com o objetivo de favorecer municípios para ter apoio numa campanha de reeleição. Mas, segundo o referido balanço, “…não há restrição a que seja feita uma contribuição para a campanha de reeleição do congressista em troca de uma emenda”. Aqui também não há essa restrição.

Outra diferença é que lá, quando examinei o assunto em 2011, soube que dezenas de congressistas declararam sua oposição às emendas. O último relatório da CAGW mencionou o caso do famoso e já falecido senador do Partido Republicano John McCain, ex-candidato à presidência do país, que assim enfrentou os adeptos delas: “O problema com todos os argumentos deles é: quanto mais poderoso você seja, maior é a probabilidade de emplacar emendas. Assim, é um sistema corrupto”. Isto ocorre também no Brasil.

Em retrospecto, as grandes diferenças do Brasil relativamente aos EUA são que aqui as emendas vêm em maior número e custam relativamente mais; a regra de não beneficiar o próprio congressista e seus parentes não existe; é imensa a falta de transparência das emendas de relator, que lá inexistem. São usadas no troca-troca com o Congresso, de apoio em geral ao governo e em votações específicas. Com o domínio do Parlamento e do presidente pelo Centrão, este passou a controlar a maior parte do orçamento discricionário em seus objetivos, ao contrário das despesas obrigatórias de pessoal e Previdência. Como resultado, o ampliado dinheiro das emendas é pulverizado em pequenos projetos nas bases eleitorais dos congressistas, prejudicando investimentos tipicamente federais de alcance regional e nacional, como na proteção à Amazônia, e também em saúde, educação e inclusão social.

Ou seja, aqui a situação é muito mais grave. Sem o trabalho da imprensa, muito menos saberíamos sobre as emendas, com o destaque recente deste jornal e suas matérias sobre as emendas de relator, que consagraram o uso da expressão “orçamento secreto” para descrevê-las.

Falta disseminar o conhecimento sobre todas, realizar pesquisas junto aos congressistas para saber quem é contra ou a favor, em particular separando as do relator, e que surgissem entidades como a CAGW para acompanhar de perto o assunto e o chiqueiro político em torno dele.

 

Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 20 de janeiro de 2022.

 

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Em que sentido o Congresso é Nacional? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3533&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=em-que-sentido-o-congresso-e-nacional Fri, 03 Dec 2021 06:48:17 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3533 Em que sentido o Congresso é Nacional?

Termo vem mais da presença de parlamentares de todos os rincões do que da preocupação com o progresso da Nação

 

Por Roberto Macedo*

 

Preocupado com o péssimo estado da economia e sem ver o Congresso Nacional nem sequer debater o assunto, fui à Constituição para verificar a responsabilidade dele pelo tema. No preâmbulo da Constituição é dito que ela institui um Estado Democrático destinado, entre outros objetivos, a assegurar o bem-estar e o desenvolvimento, o que é impossível sem uma economia fortalecida.

O artigo 44 estabelece que o Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, e o artigo 48 diz que lhe cabe dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente, entre outras, planos e programas nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento. Ou seja, a economia também deveria receber a atenção dele. E, como o presidente Jair Bolsonaro só tem o plano de se reeleger, o Congresso poderia articular um plano de desenvolvimento.

Por que não faz isso nem discute o assunto? Ora, ele é constituído por deputados e senadores originários de um sistema frágil de representação política, com partidos demais, a maioria sem alinhamento ideológico claramente identificável. Ademais, o sistema proporcional, adotado para a eleição de deputados, em que os candidatos saem pelo território das unidades federativas à cata de votos, aumenta os custos das campanhas e facilita a eleição de representantes de grupos de interesse, como de funcionários públicos e de setores produtivos, gerando bancadas como as desses funcionários, do setor agropecuário, de evangélicos e até aberrações como a “bancada da bala”. Em escala menor, o mesmo ocorre no Senado.

Além disso, os cidadãos em geral não se interessam por uma participação política mais ativa, seja pessoalmente, via partidos ou outras organizações, e assim não há uma efetiva cobrança do desempenho parlamentar. O caso dos deputados é típico. Defendem, sobretudo, seus próprios interesses, em particular o de reeleição, com o que privilegiam medidas como as emendas parlamentares, voltadas para alimentar seus currais eleitorais municipais. Além disso, defendem o interesse de grupos, em particular daqueles a que pertencem e os que os apoiaram ou apoiariam como candidatos, numa eleição passada ou futura.

Neste contexto, de deputados que não são cobrados pelo que fazem e que nem se dispõem voluntariamente a um relatório, há na atmosfera política algo como deputados cometas, que rapidamente passam a cada quatro anos à cata de votos. O mesmo vale para senadores focados em reeleições, cometas que surgem a cada oito anos.

Voltando à economia e seu péssimo estado, ela passa por três fragilidades que estão a exigir tratamento intensivo. Hoje o IBGE deve divulgar o Produto Interno Bruto (PIB) do terceiro trimestre deste ano, prevendo uma taxa muito pequena, próxima de 0,1%, relativamente ao segundo trimestre. Quanto a isso, vi previsões de três instituições que acumularam prestígio ao fazê-las, e duas delas contemplam até um sinal negativo para esse número. Como a taxa do segundo trimestre foi negativa, se isso acontecer, será o início de mais uma recessão, definida pelos economistas como um mínimo de dois trimestres consecutivos de taxas negativas do PIB.

E não há como se iludir com a previsão de um crescimento do PIB entre 2020 e 2021 a uma taxa próxima de 5%, conforme previsões do noticiário, como a divulgada na segunda-feira passada pelo boletim Focus, do Banco Central, que capta estimativas de analistas do mercado financeiro e que ficou em 4,8%. Essa previsão se decompõe em duas partes: uma próxima de 3,6%, que corresponderia ao resultado do PIB em 2021, mesmo que não crescesse nada dentro do ano – resultado que vem da comparação deste PIB com o que caiu 4,1% em 2020, saindo desse buraco com uma recuperação em V. Ou seja, seria uma comparação do ponto em que este V terminou, no último trimestre de 2020, com a média vertical deste V, o que dá o valor de 3,6%. A outra parte, de 1,2%, decorreria do crescimento bem menor que se prevê para o desempenho do PIB dentro de 2021.

Ademais, qualquer que seja o resultado do PIB do terceiro trimestre, a economia permanecerá num buraco mais longo e de impacto mais forte, o de uma depressão, na qual caiu em 2014 e até hoje não voltou ao PIB que então tinha.

E, completando o trágico quadro, a economia está, também, em estagnação, pois desde 1980 vem crescendo abaixo do seu potencial, o que define uma situação desse tipo. Acho que os leitores concordariam que, com uma boa arrumação, a economia poderia crescer muito mais.

Alguém já viu o Congresso Nacional discutindo este quadro? Com as características do sistema político que elege os parlamentares já apontadas acima, ele não cumpre o que a Constituição estabelece quanto a um dos seus deveres, o de buscar o desenvolvimento do País. Assim, o Nacional que adjetiva o Congresso vem mais da presença de parlamentares de todos os rincões nacionais e, salvo raríssimas exceções, sem maior preocupação com o desenvolvimento da Nação.

 

* Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 2 de dezembro de 2021.

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Distorções das emendas parlamentares continuam se agravando https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3477&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=distorcoes-das-emendas-parlamentares-continuam-se-agravando Fri, 09 Jul 2021 15:49:56 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3477 Distorções das emendas parlamentares continuam se agravando

 

E o noticiário sobre esse assunto continua a revelar aberrações

 

Por Roberto Macedo

Volto e voltarei a escrever sobre essas emendas, pois constituem uma das grandes distorções do sistema político brasileiro. Refiro-me às verbas que parlamentares federais colocam no Orçamento, particularmente em benefício de prefeituras de cidades onde cultivam suas bases eleitorais, de olho em assegurar votos em futuras campanhas de reeleição.

O valor total dessas emendas cresceu ao longo do tempo, e elas foram objeto de emenda constitucional. Mas é possível argumentar que mesmo assim seriam inconstitucionais, assunto ao qual voltarei mais à frente.

Há quatro tipos de emendas: a individual, do próprio parlamentar, as apresentadas pelo relator-geral do orçamento, as oriundas de comissões e as de bancadas estaduais. O total das dotações alcançou as expressivas cifras de R$ 36,2 bilhões em 2020 e R$ 33,8 bilhões em 2021. É interessante verificar que são valores comparáveis às dotações do programa Bolsa Família, de R$ 29,5 bilhões em 2020 e R$ 34,9 bilhões em 2021. Mas esse programa tem reconhecidos méritos, chegando a perto de 15 milhões de famílias e a muito mais pessoas se contados os dependentes familiares.

As emendas atendem a interesses dos parlamentares e de seus beneficiários, e destinam-se principalmente a projetos municipais. São penduricalhos do Orçamento federal, já que não se destinam a finalidades típicas desse orçamento como, por exemplo, uma rodovia ou um porto marítimo que servisse a vários estados.

Volto novamente à avaliação dessas emendas por Cecília Machado, professora da Fundação Getúlio Vargas, em artigo na Folha em 13/4/21: “Na prática, a execução descentralizada e atomizada das emendas … pode encontrar … desafios na sua implementação … Primeiro, a discricionariedade individual dos parlamentares na escolha de projetos vem ao custo de uma avaliação mais ampla de alternativas para a aplicação dos recursos, e … é falha na identificação de ações prioritárias. … muitos municípios, especialmente os menores, não têm levantamento prévio de suas necessidades … com critérios técnicos … Inexistem critérios de necessidade ou custo-efetividade dos projetos, que passam a seguir lógica populista ou eleitoral … ainda que os maiores gargalos possam estar em outras regiões ou municípios”.

A autora apontou também outros defeitos das emendas. Uma implicação muito relevante de sua análise é que a pulverização, e a falta de critérios na distribuição das emendas, faz com que não atentem para o bem comum dos brasileiros, o que é indicativo de um comportamento aético dos parlamentares.

E o noticiário sobre o assunto continua a revelar aberrações. Uma tem sido objeto de reportagens deste jornal centradas no chamado orçamento secreto. Segundo a última matéria, que vi no site do jornal em 25/6, dos repórteres Breno Pires e André Shalders, recorrendo às emendas do relator “parlamentares aliados indicaram transferências em valores muito superiores àqueles aos quais têm direito pelas tradicionais emendas ao orçamento – que são as individuais e as de bancada. As indicações, definidas nos bastidores, são oficializadas por meio de ofícios ocultos ao público”. Assim, o destino final dos recursos não consta da lei orçamentária, mas só posteriormente pelo meio mencionado, o que é um absurdo.

Segundo a mesma matéria, o Tribunal de Contas da União considerou o procedimento inconstitucional. Uma das transferências realizadas dessa forma chama a atenção. A prefeitura de Tauá, sob comando de Patrícia Aguiar, mãe do relator-geral do Orçamento de 2019, Domingos Neto (PSD-CE), foi beneficiada com R$ 146 milhões em 2020, o que dá uma média de R$ 2.476,77 por habitante, enquanto a capital cearense, Fortaleza, teve valor per capita de R$ 77,85. E por aí vai o dinheiro do contribuinte…

Volto agora à minha visão da inconstitucionalidade das emendas em geral, apontada em artigo neste espaço em 21/4. A Constituição, no seu artigo 4.º, diz que todos são iguais perante a lei, uma de suas cláusulas pétreas, ou seja, que não podem ser alteradas por reformas constitucionais.

Há tempos tinha a curiosidade de saber se não haveria uma hierarquia de princípios constitucionais. Pesquisando o assunto na internet, encontrei um texto do jurista Douglas Cunha[1]  onde é dito o seguinte: “Embora não exista hierarquia entre normas constitucionais originárias (acrescento: como o artigo 4.º citado) … as emendas constitucionais (normas constitucionais derivadas) poderão, sim, ser objeto de controle de constitucionalidade”.

Está aí, portanto, um caminho para argumentar pela inconstitucionalidade das emendas, pois infringem o referido artigo 4.º, ao criarem duas categorias de candidatos: os incumbentes, que buscam a reeleição e usam as emendas como um instrumento de suas campanhas, e os candidatos sem mandato e sem acesso a elas.

 

Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 1° de julho de 2021.

[1] (https://douglascr.jusbrasil.com.br/artigos/616260325/a-piramide-de-kelsen-hierarquia-das-normas)

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O que é orçamento impositivo? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2224&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-que-e-orcamento-impositivo https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2224#comments Mon, 12 May 2014 13:17:52 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2224 A legislação e a execução prática do orçamento da União, no Brasil, consideram a despesa fixada na lei orçamentária como uma “autorização para gastar”, e não como uma “obrigação de gastar”. Isso abre espaço para que o Poder Executivo não realize algumas despesas previstas no orçamento. Trata-se do chamado “orçamento autorizativo”, no qual parte das despesas pode ser “contingenciada”.

A ideia de “orçamento impositivo” é mudar essa prática, tornando obrigatória a execução de todo o orçamento nos termos em que ele foi aprovado pelo Congresso Nacional.

A Lei nº 4.320, de 1964, já facultava ao Poder Executivo a prerrogativa de limitar a realização do gasto em função das necessidades de controle de caixa, mediante a programação de cotas trimestrais de despesa.

A Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF (Lei Complementar nº 101, de 2000), por sua vez, em seu art. 9º, prevê o contingenciamento1 com regras para adequação da despesa ao efetivo fluxo de receitas. Enquanto na Lei nº 4.320, de 1964, a programação tinha o objetivo de “manter, durante o exercício, na medida do possível o equilíbrio entre a receita arrecadada e a despesa realizada”2, na LRF o objetivo é o de assegurar “o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais”.

Trata-se, portanto, de garantir ao Poder Executivo instrumento para controlar a despesa e gerar resultado primário compatível com a estabilidade macroeconômica.

Está tramitando na Câmara dos Deputados uma Proposta de Emenda à Constituição que foi apelidada de “PEC do orçamento impositivo”. Apesar do apelido, o objetivo daquela proposição não é tornar obrigatória a execução de toda a despesa do orçamento. A proposta ali contida é tornar obrigatória a execução de parte das despesas agregadas ao orçamento pelo Congresso Nacional, sob a forma de emendas individuais de parlamentares.

Segundo o texto, seria obrigatório liberar os recursos para pagar essas emendas até o limite de 1,2% da Receita Corrente Líquida (RCL) da União, realizada no exercício anterior. Metade desses recursos deverá ser aplicada em ações e serviços públicos de saúde.

Outra inovação relevante trazida pela PEC é a fixação da obrigatoriedade de aplicação, pela União, de pelo menos 15% de sua receita corrente líquida em ações e serviços públicos de saúde. Pela regra atual, fixada no art. 77 do ADCT, as despesas no setor de saúde devem crescer no mesmo ritmo de variação nominal do PIB.

Este texto analisa as possíveis consequências da aprovação da PEC, principalmente no que diz respeito à obrigatoriedade de execução das emendas parlamentares, em termos fiscais e políticos.

I – A rigidez do OGU

Não obstante haja a possibilidade de contingenciamento das despesas pelo Poder Executivo, o Orçamento Geral da União (OGU), que contempla o Tesouro Nacional, a Previdência Social e o Banco Central, caracteriza-se por elevada rigidez de despesas. No orçamento para 2013, por exemplo, 84% da despesa primária é de caráter obrigatório, havendo pouco espaço para contingenciamento. Tal obrigatoriedade decorre de dispositivos constitucionais ou legais. Por exemplo: todos os aposentados têm direito a receber seus benefícios, não podendo haver cortes para contenção de despesas; por sua vez, os servidores públicos efetivos são estáveis e seus salários irredutíveis. De forma similar, há obrigações legais de gastos mínimos em saúde e educação. As principais despesas obrigatórias por determinação constitucional ou legal são aquelas referentes a:

  • benefícios da previdência social;
  • pessoal e encargos sociais;
  • despesas correntes associadas à despesa de pessoal (auxílio alimentação, auxílio transporte, salário família, etc.)
  • despesa mínima obrigatória em saúde e educação;
  • sentenças judiciais;
  • seguro desemprego e abono salarial;
  • benefício mensal aos deficientes e idosos de baixa renda (LOAS).

A Tabela 1 mostra a composição da despesa primária do governo central, destacando os itens mais relevantes:

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Há um segundo grupo de despesas que, embora seja passível de contingenciamento, por não constituir obrigação legal, tem alto grau de rigidez, seja por constituir prioridade política absoluta, seja porque é necessária para manter o funcionamento de serviços essenciais. Podem ser citados:

  • subvenções financeiras do Programa Minha Casa, Minha Vida;
  • gastos em educação acima do mínimo obrigatório, em programas como merenda escolar, livro didático, sistema de avaliação de alunos, transporte de estudantes, custeio das escolas, etc;
  • funcionamento mínimo de órgãos e programas essenciais: controle de voo, arrecadação pela Receita Federal, socorro a comunidades atingidas por desastres, etc.

Acrescentando-se esse segundo grupo de despesas ao conjunto dos dispêndios não passíveis de contingenciamento, chega-se a um total de despesa de alta rigidez da ordem de 90% da despesa total.

A emenda constitucional em análise tende a ampliar a rigidez orçamentária à medida que torna obrigatória a execução das emendas parlamentares. A seguir analisa-se esse ponto.

II – As emendas parlamentares e seus limites

As emendas parlamentares individuais estão usualmente incluídas dentro daqueles 10% da despesa orçamentária sujeita a contingenciamento. Tornando-se de execução obrigatória, elas tornarão a despesa orçamentária ainda mais rígida a cortes.

O limite anualmente estabelecido pelo Congresso para a apresentação de emendas individuais de parlamentares ao orçamento, em 2013, foi de R$ 15 milhões por parlamentar3. O uso pleno desse limite por todos os parlamentares, o que geralmente acontece, leva a um acréscimo de despesas da ordem de R$ 8,9 bilhões. Em 2013, 24,4% desse valor foram na área de saúde.

De acordo com a PEC em análise, o limite de execução obrigatória das emendas passaria a ser de 1,2% da RCL. Tomando-se por base uma RCL de R$ 639 bilhões em 20124, a execução obrigatória de emendas, se vigente em 2013, equivaleria a R$ 7,69 bilhões. Isso significa que, se estivesse em vigor em 2012, a execução obrigatória alcançaria 87% do potencial máximo de emendas. Tais despesas, que antes eram discricionárias, passariam a ser obrigatórias.

Nessa nova situação, as despesas obrigatórias passariam de 87,9% para 88,7% do orçamento.

Contudo, a regra proposta na PEC é de que 50% das emendas terão que ser obrigatoriamente utilizadas no setor saúde. As despesas do setor saúde tendem a ser de caráter obrigatório (a menos que estejam extrapolando o limite mínimo obrigatório por lei, o que assumiremos, por simplificação, não ser o caso). Assim, com essa hipótese de que toda despesa em saúde é obrigatória, apenas metade das emendas parlamentares converterá despesas discricionárias em obrigatórias, pois a outra metade será feita em uma categoria de despesa já obrigatória. Em consequência, o impacto efetivo da PEC será o de levar as despesas obrigatórias de 87,9% para 88,5% do total.

Ao se direcionar 50% das emendas para o setor saúde, no qual a despesa já é obrigatória, reduziu-se o potencial da PEC de aumentar a rigidez do orçamento em valor em torno de R$ 4 bilhões.

Do ponto de vista do controle fiscal, a ideia de direcionar parte das emendas para a saúde é perfeita para o Executivo, pois se evita um enrijecimento adicional do orçamento. O problema surge quando se considera a qualidade da despesa. Se as emendas não forem adequadamente peneiradas na fase de apreciação no Congresso, corre-se o risco de substituir despesas em programas planejados e estruturados do Ministério da Saúde por despesas avulsas e pouco articuladas decorrentes das emendas, sem impacto significativo nos indicadores de saúde da população. Isso ressalta, mais uma vez, a necessidade de o Executivo encontrar mecanismos de incentivar os parlamentares a designar verbas para programas previamente estruturados. Dessa forma todos ganham: os parlamentares têm o crédito junto aos eleitores pela alocação da verba, enquanto o Ministério da Saúde não sofre uma pulverização em seu orçamento.

Em suma, dos R$ 7,69 bilhões de emendas parlamentares, a metade (R$ 3,84 bilhões) vai deixar de ser despesa discricionária e passar a ser obrigatória. Para um orçamento já extremamente engessado, o engessamento adicional promovido pela PEC não chega a ser de grande impacto.

Ademais, em caso de haver necessidade de contingenciar a execução de despesas não obrigatórias, a PEC prevê que o percentual de contingenciamento que incidir sobre tais despesas poderá ser aplicado às emendas parlamentares de execução obrigatória. Ou seja, as emendas poderão ser contingenciadas, porém na mesma proporção das demais despesas contingenciadas. Não se poderá, como ocorre atualmente, eleger as emendas parlamentares como alvo principal do contingenciamento, protegendo-se outras despesas do orçamento.

Outra mudança relevante promovida pela PEC é que as emendas parlamentares deixam de ser consideradas como “transferências voluntárias” da União a estados e municípios, passando a ter o status de despesa obrigatória.

Isso tem grande repercussão quando se leva em conta as regras da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) acerca de transferência voluntárias, contidas no art. 25 dessa Lei. Esse artigo determina o bloqueio de transferências voluntárias para os estados e municípios que não cumprirem limites impostos pela lei relativos a: pagamento de tributos, aplicação mínima de recursos em educação e saúde, observância dos limites de endividamento e de despesa de pessoal, entre outros.

Ou seja, ao transformar as emendas em despesas obrigatórias, a PEC livra os estados e municípios de terem os recursos das emendas bloqueadas nos casos em que não cumprirem obrigações impostas pela LRF.

Os estados e municípios também poderão receber os recursos das emendas mesmo que não prestem informações fiscais e financeiras ao Poder Executivo Federal para fins de consolidação das contas públicas (art. 51 da LRF) ou que não instituam e cobrem todos os impostos de sua competência (art. 11 da LRF).

Há, portanto, um enfraquecimento dos mecanismos de imposição de responsabilidade fiscal aos estados e municípios.

III – Implicações de ordem política da obrigatoriedade de execução das emendas parlamentares individuais

O contingenciamento de emendas parlamentares, em especial das emendas individuais, é normalmente referido como um instrumento de barganha política à disposição do Poder Executivo Federal. Sempre que precisa reforçar a sua base de apoio no Congresso, o Executivo descontingencia parte das emendas em retribuição a voto ou posicionamento favorável do parlamentar.

Pelo lado do parlamentar, as emendas são usualmente consideradas importante instrumento eleitoral porque permitem o atendimento de demandas da sua base eleitoral.

Uma primeira interpretação que pode ser dada ao se amarrar as mãos do Executivo, e impedir a barganha do voto parlamentar em troca da liberação de emendas, é de que aumentaria a independência do Legislativo. Isso fortaleceria a democracia, uma vez que um Poder perderia capacidade de se impor sobre outro.

Não obstante, a necessidade de formar maiorias continuará a existir. Também continuará a ser prevalente o “poder financeiro” do Executivo. O mais provável é que o mecanismo de barganha por meio de emendas seja substituído por outro tipo de barganha. O perigo é que os novos mecanismos sejam menos transparentes ou lesivos à eficiência da ação pública. Não havendo como barganhar via liberação de emendas, pode-se barganhar por meio da oferta de cargos públicos, de financiamentos subsidiados em bancos federais, etc.

Ainda que sujeito a várias críticas, o processo de barganha Executivo-Legislativo baseado em emendas parlamentares é transparente. Qualquer jornalista tem acesso às emendas apresentadas por cada um dos parlamentares, pode acompanhar a sua execução, bem como pode ver como votou cada um dos Deputados e Senadores.

Fechar essa janela transparente de barganha cria o incentivo a se abrir outras janelas menos transparentes.

 Por outro lado, é possível que, sabendo a priori que as emendas individuais serão efetivamente executadas, o Poder Executivo passe a se mobilizar para fazer uma seleção mais criteriosa das emendas a serem aprovadas. Para isso, mobilizaria sua base no Congresso para fazer um pente fino nas emendas. Pela sistemática atual, as emendas individuais não são submetidas a qualquer análise de custo-benefício. São tratadas como uma verba que provavelmente não será liberada e, se o for, trata-se mais de um dinheiro que se paga para se ter a fidelidade parlamentar do que para se ter o serviço público que será prestado pela obra ou programa instituído.

É possível que a execução obrigatória leve a um tratamento mais criterioso das emendas, inclusive pela definição, na lei de diretrizes orçamentárias, de critérios rígidos para apresentação de emendas, vinculando-as a programas preexistentes do Executivo, inserido em um planejamento de ações que evitaria a dispersão de recursos.

Pelo exposto acima, temos que a aprovação da PEC elevará a rigidez do orçamento, embora em proporções não alarmantes, seja porque as emendas parlamentares não representam um valor elevado em relação ao gasto primário total, seja porque o Executivo conseguiu que parte das emendas fosse direcionada para despesas já obrigatórias, na área de saúde.

Do ponto de vista político, há o risco de o processo de barganha no parlamento, atualmente feito de forma transparente, por meio da liberação de emendas, passe a se dar com base em procedimentos menos transparentes e, portanto, fora do poder de fiscalização da mídia.

____________________

1No jargão técnico, o procedimento é conhecido como “limitação de empenho e movimentação financeira” (LRF, art. 9º).

2 Art. 48, alínea “b”, da Lei nº 4.320, de 1964.

3 Parecer preliminar ao PL nº 24, de 2012, p. 44. Disponível em: http://www12.senado.gov.br/orcamento/loa?ano=2013&categoria=3.1.3&fase=elaboracao.

4 Fonte: Relatório Resumido de Execução Orçamentária – Secretaria do Tesouro Nacional.

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