eleições – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Fri, 20 Aug 2021 13:47:04 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.8.1 Voto impresso já existe de forma agregada por seção eleitoral https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3490&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=voto-impresso-ja-existe-de-forma-agregada-por-secao-eleitoral Fri, 20 Aug 2021 13:45:32 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3490 Voto impresso já existe de forma agregada por seção eleitoral

O Boletim de Urna, impresso, é a base de um sistema de apuração seguro

 Por Roberto Macedo

Sempre fui convicto de que o sistema eleitoral brasileiro, de urnas eletrônicas, reflete com precisão a vontade do eleitor, não cabendo a grande e obsessiva suspeição com que é visto pelo presidente Bolsonaro e parte de seus apoiadores. Mas resolvi rever o assunto, procurando também saber mais sobre o voto impresso tão defendido por esse grupo, ainda que ele não esclareça bem o que entende por isso.

Esse reexame foi útil, pois aprendi mais sobre o sistema eleitoral, em particular o fato de que as urnas já são dotadas internamente de uma impressora que no final da votação nas seções eleitorais produz uma lista dos totais de votos obtidos individualmente pelos candidatos e pelos partidos, o chamado Boletim de Urna (BU). Meu aprendizado veio principalmente de conversas com pessoas que atuaram como mesários nas eleições de 2018: minha filha Cristiana Santos de Macedo, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz, e um amigo advogado, Wilson Victorio Rodrigues, também diretor-geral da Faculdade do Comércio de São Paulo (FAC-SP), ligada à Associação Comercial da capital paulista.

Após os mesários se reunirem para dar início à votação, às 8 horas da manhã, a urna primeiro imprime a chamada “zerésima”, um termo que vem do zero, para comprovar que não há registros de votos na urna utilizada.

A urna não está ligada à internet, só se liga à eletricidade, sendo assim à prova de hackers, e pode ser auditada quanto ao seu bom funcionamento. Ela contém três dispositivos de memória, na forma de dois cartões eletrônicos, para garantir a segurança dos registros, e um pendrive. Concluída a votação, este é retirado e levado pelo presidente da mesa ao cartório eleitoral, onde passa à apuração usando uma rede virtual privativa da Justiça Eleitoral.

Como já disse, ignorava uma informação muito importante, a de que o BU é impresso no fim da votação. Ele segue com o pendrive e uma cópia é postada na porta da seção eleitoral. Soube que o BU é longo, pois o papel de impressão é bem estreito, como o de impressoras de caixas de supermercados. Inclui um código QR para ser copiado por interessados. Nas eleições de 2022, pretendo chegar perto do encerramento da votação, para ver também o BU, e se meu voto estará lá, ainda que somado a outros para os mesmos candidatos em que votarei.

Ora, o BU deveria ser de conhecimento geral, o que exigiria acesso fácil. Não sei como é feito no detalhe o processo da apuração e agregação dos votos, mas imagino que algo parecido com as planilhas do Excel seja utilizado para somar os resultados das seções eleitorais por zona eleitoral, estes também agregados no nível municipal, depois estadual e, finalmente, o nacional, como será o caso das eleições do ano que vem. Soube que todos esses dados e suas agregações estão no site da Justiça Eleitoral, mas isso não facilita o acesso aos cidadãos em geral.

Diário Oficial da União não é mais impresso e talvez fosse o caso de contratar um jornal diário para publicar, com fonte diminuta, todos os BUs e as planilhas que os agregam. Assim, qualquer pessoa poderia verificar se os resultados divulgados pela Justiça Eleitoral contam com seu voto, conferindo também as somas das planilhas. Creio que poucas pessoas se interessariam por essa conferência, mas o processo eleitoral se tornaria mais transparente para os interessados. Para saber mais sobre o BU recomendo esta apresentação do ministro Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), atuando como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) (https://www.youtube.com/watch?v=zlIASijb6Go).

Também conheci a versão do voto impresso defendida na proposta que a Câmara dos Deputados não referendou. Segundo o site www.politize.com.br/pec-135-19, seria adicionado ao texto constitucional (artigo 14), um parágrafo nestes termos: “No processo de votação e apuração das eleições, dos plebiscitos e referendos, independentemente do meio empregado para o registro de votos, é obrigatória a expedição de cédulas físicas conferíveis pelo eleitor, a serem depositadas, de forma automática e sem contato manual, em urnas indevassáveis, para fins de auditoria”.

Ou seja, o eleitor iria apenas conferir seu voto, creio que pela tela da urna, sem tocar no impresso. Auditoria? O próprio eleitor poderia fazer a sua, vendo se seu voto está totalizado na lista de resultados, mas é preciso facilitar o acesso a ela, conforme já argumentado. Ninguém conseguiu provar que individualmente a urna esteja sujeita a fraudes.

Como economista, entendo que a complicação da referida proposta de voto impresso não resiste também à sua análise em termos da relação entre seu o custo e o seu benefício, o qual não vejo, mas vi estimativas de custo variando entre R$ 2 bilhões (do ministro Luís Barroso, já citado), e R$ 2,5 bilhões (do TSE). Ou seja, muitíssimo dinheiro por nada, sem contar o maior tempo tomado do eleitor e dos mesários no processo de votação.

 

Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 19 de agosto de 2021.

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A Presidência e a Previdência: o que pensam os candidatos? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3176&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-presidencia-e-a-previdencia-o-que-pensam-os-candidatos https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3176#comments Thu, 22 Mar 2018 16:13:35 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3176 O debate sobre a Previdência deve se estender às eleições. Mesmo que versão atenuada da PEC 287 seja aprovada, o novo presidente dificilmente escapará de ter de fazer novas mudanças, em relação a militares, rurais e BPC-Loas. O que pensam os principais candidatos sobre o tema?

O debate deste ano é o que não fizemos em 2014. Já 2 meses após o pleito, o governo reeleito apresentou uma reforma da pensão por morte. Na campanha, apenas a oposição tratou do tema, prometendo acabar com o fator previdenciário.

A reforma da Previdência é assunto difícil para eleições. Até agora, porém, nenhum dos principais candidatos negou a sua necessidade. Algumas campanhas até se aventuraram mais no tema, como as de Ciro Gomes e Bolsonaro.

Ciro promete revogar a PEC, afirmando não existir déficit, que existiria somente no futuro. Mais reveladoras são falas anteriores.  Quando ministro apontou a reforma como inevitável: “Precisamos discutir isso fraternalmente. Não há solução indolor”. Falando para alunos em Harvard em 2016, disse: “é verdade que a previdência está desequilibrada no seu financiamento.”

Sugere um regime de capitalização, e explicou como seria sua comunicação: “você prefere deixar para o seu filho uma dívida ou uma poupança?”.  Não detalhou como financiar a transição da repartição atual para a capitalização, que gera perda de arrecadação (contribuições são individualizadas) justamente quando os déficits são crescentes. Apenas fala em estabelecer um corte de idade.

Também não explicou como tratar grupos subsidiados que perdem com a capitalização, como professores e rurais, cujo tratamento da PEC criticou. Só a gestão do modelo capitalizado foi mais explicada em entrevistas: pública, feita por coletivos de trabalhadores.

A capitalização também aparece na campanha de Bolsonaro. Seu assessor Paulo Guedes afirmara que se tivesse que fazer uma única reforma seria a da Previdência, bola de neve capaz de explodir o Brasil. Teria simpatia pelo modelo chileno.

De concreto, o filho Eduardo afirmou que a proposta de Bolsonaro seria a dos professores Abraham e Arthur Weintraub, de capitalização. Chamada de aposentadoria fásica, valeria já a partir de 2020. A proposta é silente sobre os custos de transição. Há perda de receita também porque se pode parar de contribuir aos 50.

Apesar da grande perda de arrecadação, não é uma proposta populista. Ela pressupõe o fim da vinculação do salário mínimo, que nem a PEC fez. A aposentadoria em fases levaria a benefícios de até R$ 241.  O salário mínimo só seria recebido com o dobro de contribuição atual, 30 anos, aos 65.

Por fim, Bolsonaro votou contra as reformas feitas por FH e Lula – comparada a um massacre. Sobre a PEC 287, se disse completamente contra: crime, maldade e falta de humanidade.

Já do Presidente Lula é sabido que é opositor da atual reforma (implosão, desmonte) e que realizou uma relevante reforma do regime dos servidores em 2003. Os sinais são mistos.

De um lado, o ex-ministro da Previdência Gabas tem feito apresentações pelo país – segundo ele a pedido do Presidente. Alega que reforma quer enriquecer a previdência privada e usa dados alternativos para mostrar sua desnecessidade.

De outro, o ex-Ministro Nelson Barbosa defende mudanças, e a ex-Ministra Helena Chagas garante que Lula fará uma reforma, salvo possibilidade muito remota, “ainda que não vá ser a de Temer”.

Se o Presidente Lula propõe referendo revogatório das medidas do governo, em 2016 também afirmou que a Previdência de vez em quando tem que ser reformada.

Ainda entre os principais candidatos, Marina, Dória e Alckmin defendem a atual PEC. Marina teve reservas ao texto original, mas disse que votaria a favor se fosse parlamentar. Aceita a idade mínima e rejeitou o aumento do tempo de contribuição do pobre – que saiu da proposta.

Dória foi um defensor vocal da PEC, até do texto original. Porém, em entrevista fez ressalvas à idade mínima: defendeu 60 anos para que o texto seja aprovado. Propôs retirar a Previdência do teto de gastos.

Como é sabido, Alckmin assumiu no final do ano a presidência de seu partido, que fechou questão a favor da PEC. O déficit da previdência do Estado de São Paulo se aproxima de R$ 20 bilhões, o maior do país. O dado só passou a ser divulgado com mais clareza em 2017: antes se reportava não haver déficit financeiro ou atuarial.

Como governador, teve poucos instrumentos para reduzi-lo, mas não elevou a alíquota de contribuição dos servidores, que permanece em 11%. Dez Estados têm alíquotas maiores.

Benefícios difusos, gerações que não votam: Previdência é um tema difícil para candidatos. Na Espanha, em 93, acusações sobre o assunto em um debate foram decisivas nas eleições.  Como resultado os partidos firmaram pacto se comprometendo com mudanças e evitando a exploração eleitoral da questão.

Recentemente, Hillary Clinton ponderou que diante do populismo, que enfrentou com Trump e Sanders, talvez faça mais sentido campanhas baseadas em discursos inspiradores e grandes ideias. Detalhes técnicos e pragmatismo seriam deixados para o processo legislativo.

É um risco que corremos. Há espaço para mais exploração populista do assunto, uma vez que mesmo os candidatos contrários à PEC reconheceram de 2016 para cá a necessidade de reforma. O pior cenário talvez seja o de repetição de 2014, quando o problema não foi discutido e as propostas de ajuste da chapa vencedora acabaram deslegitimadas.

Publicado originalmente no jornal Valor Econômico de 8 de fevereiro de 2018, sob o título “O que pensam os candidatos sobre a reforma da Previdência”.

 

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Adianta reservar vagas para mulheres no Legislativo? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2807&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=adianta-reservar-vagas-para-mulheres-no-legislativo https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2807#comments Mon, 20 Jun 2016 17:27:12 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2807 O feminismo e todo o debate sobre igualdade de gêneros no Brasil vêm ocupando o centro das discussões na arena pública de tal modo a propiciar a apresentação e tramitação da Proposta de Emenda à Constituição nº 98/2015, a qual reserva um percentual mínimo de cadeiras nas representações legislativas em todos os níveis federativos. Trata-se de questão delicada que merece reflexões cuidadosas.

Nesse contexto, é pertinente resgatar o diferenciado enfoque dado por Jürgen Habermas1 a essa questão, sob o filtro da sua teoria discursiva. Para esse autor, o estabelecimento do rol de direitos fundamentais de uma sociedade deve ser feito por meio de um ambiente dialógico no qual argumentos racionais possam ser apresentados e debatidos por cidadãos livres e iguais, fazendo com que a autonomia privada se compatibilize com a pública por meio da possibilidade de participação no processo democrático e da aceitabilidade dessas decisões por todos os destinatários.

Inicialmente, o movimento feminista clássico reivindicava uma maior inserção da mulher nos sistemas de ação social (por meio da busca da igualdade de oportunidades de educação e trabalho), um maior apoio na superação de desigualdades naturais e sociais (amenização da dupla jornada com o oferecimento de creches para os filhos, direitos penitenciários diferenciados às mães, licença maternidade) e liberdades subjetivas (liberdade de reprodução, de pornografia, de prostituição, de atividade homossexual). Nesse contexto, o Estado liberal procurava apaziguar a situação, eliminando entraves formais ao livre acesso das mulheres nos diferentes âmbitos sociais, enquanto o Estado Social, com a retórica de uma justiça distributiva, positivava e regulamentava direitos formais aptos a conferir maior autodeterminação da vida privada das mulheres2.

Tais estratégias são utilizadas até hoje por governos democráticos para acalmar os ânimos dos movimentos feministas por meio da satisfação das suas demandas. Apesar do sentimento progressista que essas soluções possam proporcionar, elas acabam por manter as destinatárias da regulamentação alheias a esse processo de produção legislativa, já que consiste em um mero favor paternalista da classe política, segundo o teórico. Além disso, essas medidas agravam a discrepância entre igualdade de direito e de fato e estabelecem uma política de “discriminação através de favorecimento”3, dividindo a sociedade entre favorecidos (homens) e desfavorecidos (mulheres). Habermas também alegava que esse tipo de legislação apenas favorecia a categorias restritas de mulheres às custas das outras, em face das generalizações contidas nos discursos feministas e pelo fato dessas vanguardas não deterem o monopólio dos pontos de vista de todas as mulheres.

Com tais argumentos o autor não pretende negar a importância da implementação de vários desses direitos e a essencialidade dos movimentos feministas na luta pela defesa de mulheres que não possuem voz, mas apenas questiona a efetividade de leis supostamente equiparadoras feitas no interior de uma cultura definida e dominada pelos homens, uma vez que essa está impregnada de estereótipos acerca da identidade de sexos, tomados como algo dado4.Nesse caminho, o feminismo atualmente tem focado seus esforços na refutação e reconstrução de tais construções sociais e no incentivo da participação das próprias afetadas no discurso público5.

Isso porque nenhuma regulamentação heterônoma, por mais sensível às questões de gênero que possa ser, é capaz de alcançar o escopo e a legitimidade conquistados por um processo legislativo permeado pela efetiva participação das mulheres de diferentes origens, hábeis a esclarecer os aspectos relevantes para uma posição de igualdade. Assim sendo, mecanismos institucionais e legais que incentivem a participação das mulheres na política são iniciativas louváveis e que propiciam o aprimoramento do Estado democrático de Direito, se implementados adequadamente.

Com esse objetivo, uma série de normas foram promulgadas no decorrer dos últimos anos estabelecendo cotas para acesso de mulheres aos diferentes espectros da participação política. Em 1995, a Lei nº 9.100/95 estabeleceu um percentual mínimo de 20% para ocupação de mulheres nas campanhas municipais (art. 11, §3o), enquanto que, em 2009, a Lei nº 12.034/2009 (art. 10, §3o), alterando a Lei nº 9.504/97, passou a prever a participação mínima de 30% e máxima de 70% para cada gênero para as candidaturas no sistema proporcional em todas as esferas federativas. Já em 2010, com a Lei nº 13.165/2015 determinou-se que fosse destinado 10% do tempo de propaganda, nos programas e inserções, para as mulheres (art. 45, IV, da Lei nº 9.096/95) e 5% do fundo partidário para a criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres (art. 44, V, da Lei nº 9.096/95).

Diante de todas essas medidas, o número de candidaturas de mulheres cresceu expressivamente: somente na Câmara dos Deputados esse número passou de 935 para 1.730 mulheres das eleições de 2010 para 2014 (acréscimo de 85%), segundo dados do TSE. De todo modo essa tendência de crescimento não foi seguida pelo número de mulheres eleitas nas respectivas Casas: 51 deputadas em 2014 e 45 em 2010 (crescimento de apenas 13%)6. Assim, considerando-se que o eleitorado brasileiro é composto por 52,13% de mulheres7, esses números indicam que os resultados dessas medidas legislativas vêm sendo muito aquém do desejado no tocante à representatividade das mulheres na política (9,9% do total de deputados), talvez em face do alto índice de descumprimento dessas determinações e da falta de punições mais severas e efetivas para esses descumprimentos, ou pela própria imperfeição desses mecanismos.

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A explicação mais provável para essa discrepância entre número de candidatas e número de eleitas pode estar na inefetividade do mecanismo proposto. A obrigatoriedade de um número mínimo de candidatas incentiva os partidos a procurar mulheres que apenas irão “alugar” seus nomes para as legendas, sem qualquer intenção de efetivamente participar do pleito8. A probabilidade de essas mulheres se elegerem é, portanto, mínima. Por outro lado, mulheres realmente interessadas em participar do processo político, passaram a ter maior chance de conseguirem as legendas de seus partidos em função das mudanças na legislação. É possível que o aumento de 13% no número de deputadas eleitas possa ser explicado por seu maior acesso às candidaturas, propiciado pelas mudanças na legislação.

Dadas tais constatações, questiona-se se a referida PEC nº 98/2015, ao assegurar a cada gênero o percentual mínimo de cadeiras na Câmara dos Deputados (10% na 1a legislatura, 12% na 2a legislatura e 16% na 3a legislatura), é instrumento hábil a garantir a participação feminina substancial na arena política e se ele está em harmonia com os demais princípios democráticos e constitucionais estruturantes do nosso sistema.

Países como Noruega, Dinamarca, Finlândia, Irlanda, Bélgica, Itália, Alemanha e Suécia adotaram cotas para mulheres em agências governamentais, em direção de comitês, conselhos ou comissões públicas. Na América Latina, a Argentina estabeleceu que 30% dos nomes das listas dos partidos deveriam ser compostas por mulheres. Outros países, como Chile, Colômbia, Paraguai, Uruguai, adotaram algum tipo de legislação com vistas à maior inclusão feminina9.

Os defensores da PEC argumentam que esse tipo de ação afirmativa acentua o debate público a respeito das questões de gênero, incorporando novas perspectivas e diálogos democráticos, além de gerar uma quebra de paradigmas em uma sociedade arraigada de hábitos machistas. Segundo eles, a sociedade por si só não desenvolveria automaticamente mecanismos de maior inclusão e representatividade feminina, sem determinações cogentes por parte do Estado, como por meio do sistema de cotas, uma vez que todas as estruturas político-partidárias e sociais trabalham para consolidar a exclusão feminina dessa arena10.

Por outro lado, os críticos dessas medidas levantam a violação ao princípio democrático e da soberania do voto, uma vez que os candidatos do sexo masculino mais votados pelo sistema eleitoral seriam preteridos em favor de candidatas menos votadas, ou seja, o voto dado a uma mulher teria maior peso do que ao dado a um homem. O Senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), nesse sentido, expôs: “o que se pretende com essa emenda é dizer que a composição das assembleias não depende mais exclusivamente do povo, mas é pré-determinada pelo Congresso no exercício do poder constituinte derivado11. Aduzem de igual modo que o maior entrave à participação política das mulheres remanesce no âmbito dos incentivos do sistema, devendo-se, pois, investir, não na imposição dessa participação, mas na estruturação de mecanismos institucionais mais eficientes e efetivos para que as mulheres verdadeiramente desejem participar da política e que sejam vistas e valorizadas na sociedade enquanto tal12, sob pena de as cadeiras femininas serem preenchidas por representantes que não veiculam adequadamente os pleitos de suas representadas.

Voltando à teoria discursiva de Habermas, não parece este ter previsto a necessidade de políticas afirmativas (coercitivas) como melhor forma para alcançar o escopo da participação feminina na política. Até porque tais imposições obstruem o objetivo de se formar um debate entre cidadãos livres e iguais, fomentando, infelizmente, a clivagem entre cidadãos favorecidos e desfavorecidos e a representação de setores limitados da população feminina, por vezes capturada pelos grupos de maior influência política – tanto é que expressiva parte das Deputadas Federais com reais chances de serem eleitas possuem algum grau de parentesco com figuras que tradicionalmente dominam a arena política nacional.

O grande desafio é inserir mulheres “comuns” de diferentes recortes sociais que tragam consigo as demandas e argumentos autorreferentes para pluralizar o debate público. A alternativa ideal seria pela via do fomento à cidadania,       catalisada pela atuação dos movimentos feministas – e outros grupos sociais organizados – na denúncia da vulnerabilidade dos direitos das mulheres em seus diferentes papéis sociais, na valorização da figura feminina e na demonstração da indispensabilidade da participação política dessas na reversão desses quadros, incentivando que mais mulheres adentrem no espaço público.

Contudo, até que ponto esses movimentos podem lograr êxito a curto, médio e longo prazos, a despeito das estruturas políticas, econômicas e sociais vigentes, é a medida em que se retoma a discussão quanto à necessidade de ações afirmativas transitórias para permitir maior representatividade feminina. Mas note-se, que esse raciocínio seria extensível aos pobres, movimentos LGBTs, negros, entre outros grupos minoritários. O que justifica garantir acesso às cadeiras na Câmara dos Deputados às mulheres e não garantir aos demais? E qual o limite da imposição do mosaico dos grupos sociais que ocuparão essa posição na arena política sem que se invada o núcleo do princípio democrático?

________________

1HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – entrevalidade e facticidade II. Tradução: Flávio BenoSiebeneichjer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

2Idem, p. 162.

3Nesse sentido, Habermas (1997) comenta: “na medida em que a proteção da gestação e da maternidade apenas agravara o risco do desemprego das mulheres, uma vez que normas de proteção do trabalho reforçaram a segregação do mercado de trabalho, situando-as nos grupos de salário mais baixo, pois um direito de divórcio mais liberal sobrecarregou as mulheres com as consequências da separação e, finalmente, na medida em que o esquecimento das interdependências entre as regulações do direito social, da família e do trabalho fez com que as desvantagens específicas ao sexo se acumulassem.”

4HABERMAS, 1997, p 166.

5 OKIN, Susan M. Gênero, o Público e o Privado. Estudos Feministas. V. 16, n. 2, agosto, 2008.

6Dados do TSE. Disponível em: <https://www.google.com/url?hl=pt-BR&q=http://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/estatisticas-eleitorais-2014-eleitorado&source=gmail&ust=1466341096634000&usg=AFQjCNEFYlZWwLQk1xi8nQRrUONwML0Slg>.

7 Dados do TSE das eleições de 2014: <Disponível em: https://www.google.com/url?hl=pt-BR&q=http://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/estatisticas-eleitorais-2014-eleitorado&source=gmail&ust=1466341096634000&usg=AFQjCNEFYlZWwLQk1xi8nQRrUONwML0Slg>.

8 Como se observou após a promulgação da Lei nº 12.034/2009, diversos partidos políticos preencheram parte das vagas mínimas à candidatura feminina com mulheres sem objetivos políticos autênticos, somente para cumprir requisitos formais da legislação e funcionar como instrumento simbólico.

9 MALHEIROS, Sonia. A Política de Cotas por Sexo: Um estudo das primeiras experiências no Legislativo Brasileiro. Brasília: CFEMEA, 2000, p. 21 e 22.

10 MIGUEL, Luís Felipe, BIROLI, Flávia. Gênero e representação política. In: Feminismo e Política. MIGUEL, Luís Felipe, BIROLI, Flávia. São Paulo: Boi Tempo, 2014. MALHEIROS, Sonia. A Política de Cotas por Sexo: Um estudo das primeiras experiências no Legislativo Brasileiro. Brasília: CFEMEA, 2000.

11 Fonte: <-no-legislativo” http://www.ebc.com.br/noticias/politica/2015/08/senado-aprova-em-primeiro-turno-cota-minima-para-mulheres-na-política>.

12A forma de financiamento eleitoral e distribuição de tempo de propaganda entre os candidatos de um mesmo partido são alguns dos grandes entraves para inserção da mulher na representação política.

“Dentre as medidas possíveis já propostas para expandir o acesso de mulheres à política formal, podemos citar: A criação de creches públicas que permitam às mulheres se envolver mais com o ativismo político, já que na divisão do trabalho doméstico coube a elas o cuidado com a prole; Maior esforço dos partidos políticos na fase de recrutamento dos candidatos, no sentido de incluir mais mulheres nas listas partidárias, ter mais mulheres entre os seus dirigentes, e de dar às suas candidatas melhores condições de concorrer (destinando-lhes percentuais do fundo partidário e do tempo de propaganda partidária gratuita); 
 organização de grupos de defesa dos interesses das mulheres, mediante recrutamento e treinamento de mais membros, formação de lideranças e formulação de estratégias políticas e lobbying; realização de cursos de formação política das mulheres nas instâncias partidárias, para promover sua capacidade de oratória, familiarizá-las com a dinâmica das disputas políticas e ‘esclarecê-las acerca das regras institucionais, como a do sistema eleitoral e partidário, bem como acerca do modo com que as elites defendem seus interesses’”. COSTA. Thiago Cortez. Representação política feminina: Modelos Hierárquicos para análise dos Resultados Eleitorais de 2006. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE, 2008.

 

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Em tempos de impeachment e “golpismo”, o que é verdade e o que é mentira? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2645&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=em-tempos-de-impeachment-e-golpismo-o-que-e-verdade-e-o-que-e-mentira https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2645#comments Wed, 21 Oct 2015 13:55:47 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2645 A conjuntura atual é conturbada. A economia vai mal, a política nem se fala. Em tempos de crise fiscal e instabilidade no Congresso, propagam-se falácias e teorias descabidas acerca do futuro do país. Há quem clame por mudança e quem brade “golpismo”.

Mas, afinal, quem assume em caso de queda da presidente da República? Por quais meios ela pode ser destituída? É real a possibilidade de um impeachment? E a cassação pelo TSE? Quais os riscos que o desenrolar de tal processo poderia trazer para o país? Qual o papel do povo brasileiro e como a opinião pública influencia no processo?

A seguir, tentarei responder a cada uma dessas questões.

Hipótese 1: Impeachment

As buscas no Google combinando as expressões “impeachment” e “quem assume” cresceram cerca de 350% neste ano. As pesquisas sobre o vice-presidente, Michel Temer, também dispararam, demonstrando que há grande interesse público acerca do tema. No entanto, o que é verdade e o que é mentira?

Em primeiro lugar, cabe esclarecer que o impeachment consiste em processo instaurado com base em denúncia de crime de responsabilidade contra certas autoridades, como o presidente da República, o vice-presidente, ou os Ministros do Supremo Tribunal Federal.

Especificamente no caso do presidente da República, o art. 85 da Constituição Federal de 1988 define que são crimes de responsabilidade os atos que atentem contra a Constituição e, especialmente, contra: a existência da União; o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; a segurança interna do País; a probidade na administração; a lei orçamentária; e o cumprimento das leis e das decisões judiciais.

Ademais, o parágrafo único do art. 85 afirma que os crimes supracitados serão definidos em lei especial, que também estabelecerá o processo de julgamento. Essa norma já existe, é a Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, que define inúmeras hipóteses, amplas e genéricas, de crimes de responsabilidade, como, por exemplo, “infringir, patentemente, e de qualquer modo, dispositivo da lei orçamentária”, “permitir, de forma expressa ou tácita, a infração de lei federal de ordem pública” ou mesmo “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”.

Ora, resta claro que tanto a Constituição quanto a Lei nº 1.079, de 1950, deixaram significativo espaço para interpretações acerca do que se enquadra no conceito de crime de responsabilidade. Assim, a perda de apoio político e social certamente facilita a deflagração do processo, uma vez que, conforme acima exemplificado, não é difícil, ao contrário do que muitos propagam, encontrar uma justificativa jurídica válida para abertura do processo.

Até porque, quanto a isso, a Constituição e a Lei permitem que qualquer cidadão faça a denúncia contra o presidente da República por crime de responsabilidade perante a Câmara dos Deputados, à qual caberá a admissão da acusação e a consequente abertura do processo de impeachment mediante voto de dois terços de seus membros, ou seja, 342 deputados federais dos 513 existentes (Constituição Federal, art. 51, I). Não há demais exigências. A Lei permite, em seu art. 16, até mesmo que os documentos comprobatórios da denúncia não sejam apresentados inicialmente, exigindo apenas a indicação do local onde estes possam ser encontrados futuramente.

Portanto, caso a Câmara considere que as artimanhas utilizadas pelo Tesouro Nacional – com consentimento da presidência da República, para artificialmente inflar os cofres públicos, mediante atraso no repasse de bilhões aos bancos públicos nos últimos anos – se enquadram em qualquer um dos itens da Lei nº 1.079, de 1950, que definem os crimes de responsabilidade, haverá justificativa jurídica mais que válida para início do processo, desde que seja obtido o quórum de dois terços naquela Casa. Até porque, conforme acima exposto, diante da vastidão conceitual deixada pelo legislador constitucional e infraconstitucional, a decisão de se enquadrar uma prática como crime de responsabilidade é, acima de tudo, política.

Ou seja, as “pedaladas” podem, sim, configurar subsídios mais que suficientes para abertura de um processo de impeachment. Acerca do tema, vale destacar que cabe ao Tribunal de Contas da União (TCU) apenas apreciar anualmente as contas do presidente da República, mediante a emissão de parecer prévio, conforme ocorreu recentemente, quando o órgão, em votação unânime, ofereceu parecer orientando pela rejeição das contas. Pronto, o TCU não tem mais nenhum papel direto no julgamento das contas presidenciais, que deverá ser feito pelo Congresso, conforme inciso IX do art. 49 da Constituição.

No entanto, ao contrário do que se propaga, a rejeição das contas, que sequer exige quórum qualificado, não deflagra a abertura do processo de impeachment. Apenas pode servir de justificativa para a abertura de um processo, que só será instaurado, não custa repetir, com aprovação de dois terços da Câmara. Ademais, não necessariamente o Congresso precisa rejeitar as contas da presidente para que existam subsídios para um impeachment. A abertura de um processo e a eventual cassação do mandato presidencial são atribuições do Poder Legislativo que não estão obrigatoriamente interligadas a tal rejeição. Conforme anteriormente exposto, se os deputados federais considerarem que as pedaladas fiscais ou quaisquer outros atos do governo são contrários, por exemplo, à dignidade, à honra e ao decoro do cargo de presidente da República, pode ser deflagrado o impeachment, conforme item 7 do art. 9º da Lei nº 1.079, de 1950.

A partir daí, é com o Senado. Se a Câmara oficializar a acusação ao chefe do Poder Executivo, este será suspenso das suas funções (e terá metade de sua remuneração cortada) imediatamente após a instauração do processo pelo Senado1. No caso de crime de responsabilidade quem decide é o Senado. O único papel do Supremo Tribunal Federal (STF) é ceder seu presidente, que presidirá o julgamento do acusado. Entretanto, quem condena são os senadores, mediante voto de dois terços de seus membros, ou seja, 54. Em caso de condenação, a presidente da República ficará oito anos impossibilitada de exercer qualquer exercício de função pública2. Não poderá nem mesmo realizar concurso público. E isso sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis. 3

O rito previsto na Lei de Crime de Responsabilidade e na Constituição é esse. Exigências extras, como as definidas pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que estabelecem, por exemplo, a formação de uma comissão especial para analisar previamente o pedido de impeachment, são determinações processuais previstas no art. 218 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, que é uma resolução e, portanto, também é norma primária, hierarquicamente no mesmo nível que qualquer lei ordinária ou complementar. A diferença é apenas que, precipuamente, uma resolução disciplina assuntos políticos e administrativos internos da respectiva Casa Legislativa. Dessa forma, a decisão liminar do STF de suspender tais ritos aparentemente invadem assuntos interna corporis do Legislativo e exaltam um excesso de intervencionismo do Judiciário. A Câmara não está descumprindo o ordenamento jurídico. As exigências legais e constitucionais, como o quórum de dois terços para a abertura do processo, continuarão tendo de ser atendidas. A Casa apenas regulamentou, de forma legal, o rito da matéria antes da votação de mérito, o que acontece também, por exemplo, com as Medidas Provisórias, regulamentadas pela Resolução nº 1, de 2002-Congresso.

Mas, após todo o rito processual ter sido cumprido, se realmente ocorrer a perda do mandato, quem assume? O art. 79 da Constituição afirma que é o vice-presidente da República, a quem caberá completar o tempo de mandato do impeachmado.

Porém, no caso de cassação também do vice, o presidente da Câmara dos Deputados não se torna presidente da República. O que ocorre é que o art. 80 da Carta Magna diz que, em caso de impedimento ou vacância do presidente e do vice, serão sucessivamente chamados ao exercício da presidência o presidente da Câmara dos Deputados, o do Senado e o do Supremo Tribunal Federal. Mas esse exercício é apenas temporário. Se realmente houver vacância dos cargos de presidente e vice-presidente da República, há realização de novas eleições, conforme art. 81 da Constituição.

Nesse caso, se as vacâncias ocorrerem nos dois primeiros anos do mandato, ou seja, até o fim de 2016 se considerarmos o mandato presidencial em curso, haverá novas eleições diretas para presidente e vice, noventa dias após a abertura da última vaga; porém, se as vacâncias se derem nos dois últimos anos (2017-2018), as eleições para ambos os cargos serão indiretas, ou seja, não serão os cidadãos que votarão, mas os parlamentares que compõem o Congresso, e ocorrerão dentro de trinta dias após a última vacância. Por fim, sobre o tema, vale ressaltar que os eleitos, em quaisquer das hipóteses analisadas, não serão empossados para um novo mandato de quatro anos, mas apenas para governar durante o tempo que faltava para que os impeachmados cumprissem seus mandatos. É o chamado “mandato-tampão”.

HIPÓtese 2: Cassação do mandato pelo TSE

Quem nunca recebeu uma corrente de Whatsapp ou Facebook conclamando o povo brasileiro a votar nulo nas eleições, pois, caso mais da metade da população assim o fizesse, não haveria eleitos e teria de ser convocado um novo pleito. Lembram-se disso? Pois é, podem esquecer de uma vez por todas.

A confusão se dá devido ao art. 224 do Código Eleitoral afirmar que, se a nulidade atingir mais da metade dos votos do país nas eleições presidenciais, estaduais ou municipais, julgar-se-ão prejudicadas as demais votações e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) marcará dia para nova eleição. Todavia, essa nulidade a que se refere nossa legislação não é o voto nulo ou em branco, os quais sequer entram no cômputo dos votos totais ou para determinação do quociente eleitoral. Eles são simplesmente ignorados, como se nunca tivessem existido. Portanto, ao contrário do que as citadas correntes dizem, em tese, se o País inteiro votar nulo ou em branco e apenas uma pessoa votar em um candidato, este será eleito, sem necessidade de novas eleições.

Essa nulidade a que diz respeito o art. 224 supracitado tem grande relevância para nosso estudo. Ela se refere à constatação de alguma fraude no processo eleitoral, como, por exemplo, compra de votos ou recebimento de recursos ilegais durante a campanha. Em tais hipóteses, a Lei é clara ao afirmar que deverão ser convocadas novas eleições se a nulidade abarcar mais de 50% dos votos.

Entretanto, o TSE considera que esse dispositivo se aplica para candidatos eleitos em primeiro turno4, uma vez que, em tal caso, a decretação, pela Justiça Eleitoral, da nulidade dos votos do candidato vencedor já significa que houve a nulidade de mais da metade dos votos válidos. Em razão do silêncio normativo acerca de quando a nulidade englobar menos de 50% dos votos válidos no primeiro turno, ou seja, quando o candidato tiver sido eleito no segundo turno, o TSE vinha aplicando o entendimento de que o segundo mais votado deveria assumir, se este tivesse maioria absoluta dos votos em primeiro turno, após se considerar a exclusão dos votos anulados do universo dos votos válidos; ou, caso o segundo mais votado não tivesse obtido maioria absoluta após as anulações, o entendimento de que deveria haver um novo segundo turno entre os dois candidatos mais votados no primeiro, excluído o cassado5.

Alguns Governadores estaduais devem seus mandatos a tal decisão. No ano de 2009, o TSE decidiu cassar os diplomas do governador do Maranhão, Jackson Lago, e de seu vice, Luiz Carlos Porto, acusados de terem comprado votos e abusado do poder econômico durante a campanha eleitoral. Concomitantemente, foi decido que a segunda colocada nas eleições, Roseana Sarney deveria ser empossada, juntamente de seu vice, João Alberto, uma vez que, após exclusão dos votos nulos de Jackson Lago, ela tinha maioria absoluta dos votos válidos no primeiro turno. O mesmo ocorreu na Paraíba, também em 2009, quando o mandato do então governador, Cássio Cunha Lima, foi cassado pela Justiça Eleitoral, que deu posse ao segundo colocado, José Maranhão.

Outro exemplo é o do ex-governador do Tocantins, Marcelo Miranda, e de seu vice, Paulo Sidnei, que haviam sido eleitos em primeiro turno nas eleições de 2006, mas tiveram seus mandatos cassados em 2009, por abuso de poder político. Conforme o entendimento da Justiça Eleitoral supracitado, o segundo colocado geral não assumiu, já que houve nulidade de mais da metade dos votos válidos, uma vez que Marcelo Miranda tinha sido eleito em primeiro turno, ou seja, com mais de 50% dos votos válidos. Assim, foi realizada nova eleição, que foi indireta, realizada pela Assembleia Legislativa do Tocantins, já que faltavam menos de dois anos para o término do mandato do cassado.

Ocorre que o TSE atualmente investiga, em quatro processos distintos, a entrada de doações ilegais à campanha do PT na eleição presidencial de 2014. Nesse caso, havendo declaração de nulidade dos votos dados à presidente Dilma Rousseff e a consequente perda de mandato, diferentemente dos casos de crime de responsabilidade, não há que se falar em autorização de abertura de processo pela Câmara ou em julgamento pelo Senado, tudo se resolve no âmbito do Poder Judiciário. Ademais, uma vez que a presidente não obteve mais de 50% dos votos válidos em primeiro turno e, considerando que o candidato Aécio Neves teria a maioria absoluta votos já em primeiro turno se os votos direcionados à candidata do PT fossem anulados (Dilma obteve 41,59% e Aécio 33,55% dos votos válidos em primeiro turno. Logo, excluindo-se o percentual da presidente, Aécio teria 57,43% dos votos válidos), levando em consideração a supracitada jurisprudência do TSE, este poderia ser empossado sem a realização de novas eleições.

No entanto, cumpre informar que a Lei nº 13.165, de 29 de setembro de 2015, acrescentou § 3º ao art. 224 do Código Eleitoral, para impedir que o entendimento do TSE acima explanado continuasse a se propagar. De acordo com o novo parágrafo, a decisão da Justiça Eleitoral que implique no indeferimento do registro, na cassação do diploma ou na perda do mandato de candidato eleito em pleito majoritário acarreta, após o trânsito em julgado, a realização de novas eleições, independentemente do número de votos anulados, afastando, assim, casos similares aos anteriormente examinados.

Porém, especificamente em relação às últimas eleições presidenciais, tal dispositivo poderia ser inócuo, pois foi aprovado apenas em 2015. À primeira vista, o parágrafo acrescido ao Código não modifica o processo eleitoral propriamente dito, devendo, portanto, ser aplicado de imediato, o que impediria a posse de Aécio em caso de cassação da presidente pela Justiça Eleitoral. Todavia, caso o STF decida que ocorreu, sim, alteração do processo eleitoral, a mudança terá de respeitar o princípio da anterioridade eleitoral, o qual, nos termos do art. 16 da Constituição, define que a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência. Nesse sentido, não custa lembrar que a decisão acerca da aplicação ou não do princípio da anterioridade eleitoral costuma ser controversa e polêmica. Recentemente, o STF decidiu que a Lei da Ficha Limpa alterava, sim, o processo eleitoral e, consequentemente, não poderia ser aplicada às eleições do ano de sua publicação, 2010. O detalhe é que o STF só tomou essa decisão após a nomeação do Ministro Luiz Fux, que desempatou a votação (que foi de seis a cinco), a favor do respeito ao princípio da anterioridade. Logo, fica claro que existem divergências de interpretação entre os Ministros do Supremo acerca do que altera, ou não, o processo eleitoral.

Portanto, existe um problema de complexidade jurídica que permite que o TSE tente aplicar a jurisprudência anterior ou altere seu entendimento, já absorvendo a mudança legislativa realizada, o que seria o mais prudente. Se o TSE tentar manter o seu entendimento em situações de cassação similares, antes da alteração do Código Eleitoral, o caso deverá ser decidido pelo STF.

No caso de cassação do mandato, novamente, não há assunção definitiva ao poder do presidente da Câmara ou de qualquer outro. Se cassados os mandatos tanto da presidente quanto de seu vice, deverá haver a convocação de novas eleições, diretas ou indiretas, dependendo de a cassação se efetivar nos dois primeiros ou nos dois últimos anos do mandato; ou a posse do segundo colocado, Senador Aécio Neves, juntamente de seu candidato a vice, Senador Aloysio Nunes. Qual entendimento irá prevalecer dependerá da decisão do TSE acerca da aplicação, ou não, da jurisprudência até então utilizada pelo Tribunal, e da decisão do STF, sobre a validade do princípio da anterioridade eleitoral para o caso.

Desfecho

Seja qual for o desfecho desse imbróglio, o país sairá indiscutivelmente deteriorado da atual crise política e se encontrará em um horizonte ainda mais incerto. A definição do que se qualifica como crime de responsabilidade, em razão da amplitude do ordenamento jurídico aplicável e do poder decisório do Poder Legislativo na questão, tem um viés político muito significativo. Ademais, caso o TSE venha a optar por manter a jurisprudência até então utilizada e dê posse ao segundo mais votado nas eleições de 2014, estará ignorando uma mudança legislativa recente e legitimando um governo que, de fato, não foi eleito pela maioria dos brasileiros, o que abriria caminho para uma agrura política sem precedentes.

Portanto, uma vez que o Legislativo costuma se guiar pelo “clamor das ruas” e o TSE não tem uma linha de atuação absolutamente definida em caso de cassação do mandato presidencial, a manifestação popular terá papel importantíssimo na definição dos rumos do país, tanto na potencial deflagração de um processo de impeachment quanto nas ilações posteriores, no caso de uma condenação.

Apesar de, à primeira vista, poder parecer sedutora a ideia de simplesmente se derrubar o governo atual e se buscar uma nova ordem neste momento de crise política, econômica e social, os cidadãos pátrios precisam refletir e avaliar as repercussões de um possível impeachment. Precisamos assumir nossa responsabilidade como eleitores. Entender o relevante papel social que existe no voto e que a crítica deve também ser prévia a este e não apenas posterior. Não podemos apenas culpar presidentes e parlamentares e solicitar a queda destes quando não mais estiverem satisfazendo os nossos próprios desejos egoístas. Ao contrário, nos cabe assumir que eles são, sim, reflexo e representantes de seus eleitores, por mais que a nossa tendência seja imediatamente a de negar tal realidade perturbadora. Afinal, foram eleitos com milhares, ou milhões, de votos. Obviamente, não deve preponderar a irresponsabilidade de quem seja culpado pelo cometimento de crimes, mas deve existir uma análise séria e meticulosa do que é culpa de fato e do que é impaciência, egocentrismo e sede de benefícios individuais em detrimento do bem comum.

O Brasil tem apenas 27 anos de democracia. Nesse intervalo, foram quatro presidentes eleitos por voto popular, direta e democraticamente: Fernando Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. O primeiro foi deposto por corrupção em 1992. Os outros dois sofreram ameaças de cassação: FHC sofreu 17 denúncias solicitando o seu impeachment e perdeu grande parte do apoio popular durante o seu segundo mandato quando fez reformas duras, mas necessárias; já Lula recebeu 34 denúncias, especialmente durante o “mensalão”, em 2005. Assim, caso confirmado o impeachment de Dilma, esta seria a deposição do segundo presidente da República – entre quatro, em um curtíssimo intervalo de tempo, principalmente se ponderado perante o parâmetro de tempo da História.

A mensagem que isso transmite é a de uma democracia ainda pouco consolidada. Composta por políticos impossibilitados de governar a médio e longo prazo, seja por erros próprios ou pelas exigências individualistas de uma população extremamente impaciente, incapaz de arcar com as consequências de um governo eleito democraticamente que não mais a agrada e que, por isso, pressiona seus governantes a agirem pensando apenas em aumentar sua popularidade no curto prazo para garantir a vitória nas próximas eleições. Ou seja, há problemas nas expectativas, nos incentivos e nas ações tanto dos representantes quanto dos representados.

Conclusão

Diante de todo o exposto, é possível concluirmos que:

1) O impeachment é uma opção viável, resguardada constitucional e legalmente. Para se deflagrar o processo, basta que dois terços dos deputados federais decidam que algum ato da presidente da República se enquadra em alguma das vastas hipóteses de crime de responsabilidade. Após deflagração do processo, caberá ao Senado julgar a presidente, necessitando de voto de dois terços de seus membros para confirmar a condenação. Se o impeachment se efetivar, o vice deve assumir. Caso este também seja impeachmado, deverão ser convocadas novas eleições diretas, se o processo finalizar nos primeiros dois anos do mandato presidencial (até o final de 2016), ou indiretas, se o processo finalizar nos dois últimos anos (a partir de 2017). O presidente da Câmara dos Deputados não é sucessor definitivo do presidente da República;

2) A cassação do mandato da presidente e do vice-presidente da República pelo TSE também é uma opção juridicamente válida. Caso o Tribunal decida que houve abuso de poder econômico, compra de votos, recebimento de recursos ilícitos ou quaisquer outras ilegalidades durante a campanha, poderá declarar a nulidade dos votos. Se tal hipótese se confirmar, o TSE terá de decidir se convoca novas eleições, adotando o novo dispositivo incluído no Código Eleitoral neste ano de 2015, ou se tenta invocar a anterioridade eleitoral e mantém a jurisprudência até então utilizada e dá posse ao segundo mais votado, Senador Aécio Neves. Se prevalecer o último entendimento por parte do TSE, a decisão final acerca do tema, após recurso, caberá ao STF;

3) Uma vez que a previsão de impeachment é constitucional, legal e só ocorrerá se houver apoio da maior parte da população, em razão desta conduzir as ações dos parlamentares, não há que se falar em “golpismo”. O tratamento legal e constitucional pouco objetivo acerca do crime de responsabilidade e do processo de impeachment deixa a cargo do Legislativo definir quando deve ocorrer a cassação de um mandato presidencial, se tornando um equivalente manco, porém semelhante, ao voto de desconfiança, ou censura, previsto em regimes parlamentaristas, o que deixa o regime presidencialista nacional mais flexível e ágil para responder à opinião pública. Ocorre que os congressistas são guiados pela vontade do povo, que, muitas vezes, como nos mostra a História, é inconsequente e autocentrada. Logo, o país terá sua democracia e suas instituições políticas cada vez mais fortalecidas à medida que sua população passar a ser mais crítica, tanto em relação aos atos de seus governantes quanto aos seus próprios.

_______________

1 Lei nº 1.079, de 1950, art. 23, § 5º.

2 A Lei, em seu art. 2º, fala em cinco anos. No entanto, esse trecho foi revogado pela Constituição Federal de 1988, que, no parágrafo único de seu art. 52, afirmou que o impedimento é de oito anos.

3 Constituição, art. 52, parágrafo único, e Lei nº 1.079, de 1950, art. 80, parágrafo único.

4 Acórdão 21.320, relator Min. Luiz Carlos Madeira, 09. 11.2004.

5 Consulta 1.657/PI, relator Mln. Eliana Calmon, 19.12.2008.

 

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Em junho de 2013, as ruas brasileiras foram tomadas pelos maiores protestos populares em duas décadas. O que começara como atos contra aumentos nas passagens dos ônibus, transformou-se em canal para uma insatisfação generalizada com os gastos com a Copa do Mundo de Futebol, com a qualidade dos serviços de transportes urbanos, de saúde e de educação, com várias denúncias de corrupção e com supostos exemplos de impunidade. Tinha-se, portanto, uma pauta de reivindicações diversa e desconexa. Além do mais, diferentemente do que ocorrera nas “Diretas Já”, em 1984, e nas manifestações contra o Presidente Fernando Collor, em 1992, os protestos primaram por passar ao largo de lideranças políticas tradicionais, rejeitando-se a presença de parlamentares e de símbolos partidários. Dessa forma, cristalizou-se entre vários observadores a percepção de que nosso sistema político enfrenta uma crise de representatividade. Em 19 de junho de 2013, p. ex., o site UOL noticiou o que segue:

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Mais do que uma insatisfação com altos custos de vida ou com episódios de corrupção e impunidade, o que de fato tem turbinado as manifestações populares pelo Brasil afora é um nível crescente de indignação da classe média com a representação política tradicional. Essa é, em síntese, a avaliação de especialistas ouvidos pelo UOL sobre o fenômeno de ocupação das ruas por multidões de estudantes e de trabalhadores – a maioria de estratos sociais chamados de emergentes.1

Impõe-se notar, entretanto, que esses juízos não constituem, em sentido estrito, uma novidade. Com efeito, esse tema guarda relação estreita com discussões recorrentes no âmbito da Ciência Política sobre o exato significado da representação política nas sociedades modernas, passando pelo grau de autonomia dos representantes vis-à-vis o grau de controle exercido pelos representados e pela assimetria informacional entre estes e aqueles.

Interessa-nos, em especial, os juízos, bastantes difundidos, sobre desvirtuamento da proporcionalidade parlamentar e do desligamento do parlamentar com seu partido político. Trata-se de questão basilar relacionada com a qualidade do nosso sistema representativo, que, por ser passível de análise matemática, pode ser confirmada ou refutada de maneira incontrovertida. Com isso, a nossa pergunta-chave é: qual é a taxa de aproveitamento dos votos de todos os brasileiros? Uma taxa reduzida simplesmente mostraria que é inócua a costumeira provocação sobre se lembramos ou não em quem votamos no passado. No intuito de responder a essa questão, analisaremos as últimas eleições para a Câmara dos Deputados, em 2010. Os dados usados foram extraídos do site do TSE.2

Este artigo baseia-se em versão mais ampla publicada recentemente (Rocha, 2015) e divide-se em quatro seções. Primeiramente, exporemos as principais características das eleições de 2010 para a Câmara dos Deputados. Depois, apontaremos aspectos do nosso sistema eleitoral que podem engendrar resultados pouco representativos da vontade geral dos eleitores. Em seguida, analisaremos os resultados efetivamente alcançados. Nessa análise, consideraremos apenas os candidatos eleitos, descartando-se todos os suplentes. Por fim, teremos a conclusão.

 

I. As Eleições para a Câmara dos Deputados de 2010

As eleições de 2010 para deputado federal contaram com 4.887 candidatos, pertencentes a 27 partidos. Havia 135.523.581 brasileiros aptos a votar e 111.038.684 compareceram – abstenção de 18,07%, portanto. Os votos nominais, em legendas, brancos e nulos foram, respectivamente, 89.367.502, 9.022.359, 7.506.834 e 5.141.988. Dessa forma, os votos válidos somaram 98.389.861. Em disputa, 513 vagas na Câmara Baixa.

Ao todo, 657 seções estaduais dos vários partidos apresentaram candidatos: 105 concorreram isoladamente, enquanto as demais organizaram-se em 104 coligações. A maior coligação reuniu 14 seções. Em média, as coligações contaram com 5,3 seções.

A quantidade de candidatos deve ser considerada alta ou baixa vis-à-vis as vagas em disputa? À primeira vista, a relação média de 9,53 candidatos por vaga pode parecer alta. No entanto, considerando-se o disposto no art. 10 da Lei 9.504/1997, que estabelece as normas para as eleições, a conclusão tende a ser diversa. Com efeito, o citado dispositivo estabelece que cada partido pode registrar candidatos até 150% do número de lugares a preencher. Já as coligações podem registrar até 200%. Além do mais, esses percentuais sobem para 200% e 300%, respectivamente, no caso de entes com até vinte lugares a preencher. À luz da quantidade de partidos e coligações que concorreram na eleição de 2010, temos que 16.248 candidaturas poderiam ter sido lançadas naquele pleito. Com isso, as 4.887 candidaturas efetivamente lançadas representaram apenas 30,08% do total legal admitido. Na falta de coligações, se as 657 seções estaduais permanecessem na disputa, o total admitido alcançaria 21.509 candidaturas.

Por esse prisma, temos que as seções partidárias têm sido, em média, moderadas na fixação do tamanho de suas chapas. Isso, porém, evidencia outra questão-chave: nosso marco legal pode estar sendo demasiado permissivo ao tratar desse tema.

 

II. Riscos para a Representatividade das Eleições para Deputado

Qualquer exame dos resultados das eleições proporcionais no Brasil precisa começar pela definição do quociente eleitoral. Para obtê-lo, divide-se a quantidade de votos válidos pela quantidade de cadeiras em disputa, arredondando-se para o inteiro mais próximo. No caso em tela, a votação relevante é aquela obtida pelos candidatos e pelas legendas em cada estado. Dividindo-se as votações obtidas pelos quocientes eleitorais, temos frações desses coeficientes. Somadas, essas frações totalizam as vagas em disputa: 513.

Se todos os votos dados fossem considerados na composição da Câmara Baixa e se os votos nominais e de legenda fossem computados separadamente, as frações dos 4.887 candidatos e das 209 legendas somariam 467,78 e 45,22 cadeiras, respectivamente. Evidentemente, não é o que acontece. Primeiro, os votos de legenda são combinados com os nominais no intuito de determinar a votação total de cada coligação ou partido que esteja concorrendo isoladamente. Depois, compara-se o total obtido com o quociente eleitoral para determinar quais legendas contarão com representantes na legislatura subsequente.

Dessa forma, temos que os citados quocientes representam autênticas cláusulas de barreiras, pois os candidatos de legendas cujas votações sejam menores do que os quocientes correspondentes simplesmente são desconsiderados. Apenas aqueles pertencentes a legendas com votações superiores serão listados, em ordem decrescente das suas votações nominais. O rol final de eleitos e de suplentes será ditado pelo Método d’Hondt, que aloca as vagas em disputa entre as legendas habilitadas.

Note-se que, em um cenário no qual os eleitos tivessem de alcançar, sem exceção, o quociente eleitoral, esses candidatos precisariam receber 100% dos votos, bem como ser, em cada estado, igualmente votados. Semelhante disputa não teria, naturalmente, sentido. Na prática, somente 35 candidatos obtiveram votações maiores do que os respectivos quocientes eleitorais.

O sistema eleitoral brasileiro, no caso de pleitos proporcionais, combina circunscrições geográficas amplas (os estados, no caso de eleições para as assembleias legislativas e a Câmara dos Deputados, ou os municípios, no caso das câmaras de vereadores), com cláusulas de barreira e muitos candidatos. Nesse contexto, qual será o piso para a representação popular? No modelo distrital com 2º turno, p. ex., o piso sempre será “50% + 1” dos votos válidos.

Podemos imaginar pelo menos duas situações-limite que resultariam em baixo aproveitamento dos votos dados, resultantes de disputas intra legendas e entre legendas. Na primeira, imaginemos uma legenda com dez candidatos e 100.001 votos que seja contemplada com uma única vaga pelo Método d’Hondt. Se nove obtiverem 10.000 votos cada e um, 10.001 votos, este último será eleito embora tenha sido votado por apenas 10% dos eleitores da legenda em questão. Estendendo-se esse exercício para as demais coligações, temos que o grau de representatividade daqueles eleitos pode ser muito reduzido, especialmente no caso de coligações inconsistentes do ponto de vista ideológico.

Na segunda, imaginemos uma disputa com dez legendas, 100.010 votos válidos e dez vagas. O quociente eleitoral, portanto, é igual a 10.001. Se nove obtiverem 10.000 votos cada e uma, 10.010, todas as vagas serão preenchidas por essa última, supondo que esta conte com pelo menos dez candidatos.

Sempre que a quantidade de legendas for igual ou menor ao de vagas, o cenário anterior pertencerá, in totum, ao campo do possível: todas as legendas, com uma única exceção, obteriam o “quociente eleitoral – 1”, enquanto a restante capturaria os votos remanescentes e ocuparia todas as vagas em disputa. Caso haja mais legendas do que vagas, uma poderia atingir o quociente eleitoral enquanto as demais ficariam abaixo. A tabela a seguir mostra o que aconteceria no caso brasileiro:

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O simples somatório dos quocientes eleitorais é uma boa aproximação da menor representação admitida quando há mais legendas do que vagas. Neste caso, apenas 4,48% dos votos seriam aproveitados. Concretamente, porém, uma vez que isto ocorreu somente no Distrito Federal, a menor representação exigida alcançaria 66,34% dos votos válidos. Trata-se de um resultado especialmente relevante, pois indica que, na prática, uma menor quantidade de coligações aumenta o grau mínimo de representatividade do nosso sistema eleitoral, embora inexistam restrições legais nesse sentido.

 

III. Os Resultados das Eleições para a Câmara dos Deputados de 2010

E o que podemos afirmar acerca da quantidade de candidaturas? Lembremos, primeiro, que os votos dos 4.887 candidatos, expressos na forma de frações dos quocientes eleitorais, somam 467,78 cadeiras. Ordenando-se e acumulando-se essas frações, temos que 710 candidatos responderam por 80% dos votos dados, como ilustrado pelo próximo gráfico. Esse conjunto restrito concentrou 96,49% dos eleitos. Apenas 18 deputados saíram do rol de 4.177 candidatos com votações reduzidas.

Gráfico 1

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A quantidade de candidatos competitivos é um subconjunto diminuto do universo de candidatos, o que reforça a ideia de qu]e nosso marco legal é demasiado permissivo ao tratar do tamanho máximo de cada chapa. E quem são os candidatos? Análise quantitativa recente apontou, para os níveis federal e estadual, forte correlação entre o desempenho do partido e a quantidade de candidatos não migrantes (i.e., aqueles que, no período analisado, disputaram um cargo específico pelo mesmo partido), diferentemente do ocorre com os migrantes, que concorreram por partidos diferentes, e dos novatos, que disputaram pela primeira vez (Barbosa-Filho et al., 2014, p. 5). Assim, a estratégia eleitoral dominante parece ser o simples reconhecimento nominal. Os seus exemplos mais conhecidos e comentados advêm dos mundos artístico e esportivo, mas estão inseridos em um fenômeno muito mais amplo, que favorece os políticos tradicionais. O DIAP,3 p. ex., calculou que quase 80% dos deputados buscaram a reeleição em 2010 e que a proporção entre candidatos à reeleição e reeleitos alcançou 70,76% naquele pleito.

Em uma perspectiva de mais longo prazo, as taxas de renovação parlamentar caíram de cerca de 60% em 1990 para menos de 50% nos pleitos realizados após 1998. Uma possível explicação para esse comportamento são os ajustes feitos na legislação eleitoral nas duas últimas décadas, frequentemente no sentido de disciplinar de maneira mais estrita o período e os espaços dedicados à propaganda eleitoral. A consequência disso pode ser o favorecimento dos incumbentes em detrimento dos novatos. Esses ajustes podem, inclusive, refletir um processo de aprendizado do próprio sistema político, em busca de contextos menos propícios a altas taxas de renovação parlamentar.

Outro exemplo de aprendizagem pode ser encontrado, p. ex., na relação entre votação obtida e representação parlamentar. O que os dados mostram sobre a recorrente preocupação com o desvirtuamento da proporcionalidade parlamentar? Agregando-se as bancadas eleitas pelas seções estaduais, o resultado é o mostrado pelo gráfico a seguir.

Gráfico 2

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Com efeito, as bancadas de cada partido são muito próximas das que seriam obtidas considerando-se as suas participações nos votos válidos apurados nacionalmente. Como isso será possível? Aqui convém retomar a hipótese de aprendizagem. Fixadas as regras da disputa, é razoável que os atores envolvidos busquem otimizar os resultados alcançados. Após sucessivas interações, esses resultados devem se aproximar do equilibro relativo entre os vários contendores. Afinal, trata-se de um exercício de “tentativa e erro”, com cada participante sempre buscando os melhores desenlaces.

Essa última constatação, entretanto, não desqualifica, por si só, o debate acerca da qualidade do nosso sistema representativo. Ainda há o problema do afastamento do parlamentar em relação ao seu partido. Em outras palavras, ainda que os partidos estejam sendo, ao menos aparentemente, eficientes na montagem de suas bancadas, em que medida são eles próprios relevantes para explicar a ação individual dos parlamentares no exercício dos seus mandatos? Aqui, em que pesem os problemas de fluidez e de multiplicidade das fronteiras partidárias, há evidências de que os parlamentares são sim pautados por suas lideranças, em detrimento, p. ex., de afinidades regionais ou estaduais (Oliveira et al., 2014, p. 1). Dessa forma, em um contexto no qual os partidos desempenham um papel relevante na delineação da ação congressual e no qual estes têm a possibilidade de moldar e de se moldar, de modo dinâmico, ao processo eleitoral, quais são os seus resultados em termos de participação nos votos dados?

Vimos que o comedimento na formação de coligações assegura um grau elevado de representatividade para os eleitos e que são poucos os candidatos efetivamente competitivos. São indícios que antecipam a resposta buscada: o sistema eleitoral brasileiro tem demonstrado ser capaz de representar parcela bastante expressiva dos eleitores.

Em termos dos votos válidos, as votações nominais dos eleitos e dos não eleitos de legendas eleitas4 e as votações em legendas eleitas alcançaram, respectivamente, 59,93%, 23,03% e 7,90% do total, somando 90,86%. O somatório é, inegavelmente, muito alto. As votações nominais dos não eleitos de legendas não eleitas e as votações em legendas não eleitas, por sua vez, atingiram minúsculos 7,86% e 1,27% do total. Quase todos os votos válidos estão, portanto, representados, em alguma medida.

Já, em termos de eleitores aptos, as votações nominais dos eleitos e dos não eleitos de legendas eleitas e as votações em legendas eleitas alcançaram, respectivamente, 43,51%, 16,72% e 5,74% do total, somando 65,97%. As votações nominais dos não eleitos de legendas não eleitas e as votações em legendas não eleitas, a seu tempo, atingiram minúsculos 5,71% e 0,92% do total. Os 27,40% restantes são as abstenções e os votos brancos e nulos. Consequentemente, mais de um eleitor a cada dois está formalmente representado na Câmara Baixa.

 

Conclusão

As evidências contidas no presente trabalho contrapõem-se às visões de que estejamos vivenciando uma crise do nosso sistema representativo, capitaneadas pelo desvirtuamento da proporcionalidade parlamentar e pelo desligamento do parlamentar com seu partido político. Essas assertivas não foram corroboradas pelos dados obtidos juntamente ao TSE e por estudos quantitativos recentes. Isso serve como alerta para que se evitem juízos demasiado categóricos sobre cenários dinâmicos, no qual os participantes têm a possibilidade de moldar e de se moldar às regras do jogo. Há, em curso, um processo de aprendizado, no qual os contendores procuram continuamente otimizar os seus resultados.

Claro que o tema da crise, real ou suposta, não se esgota nas duas colocações anteriores. Ele pode guardar relação com o distanciamento entre representantes e representados. A própria legislação eleitoral, ao limitar de modo talvez draconiano o período e os espaços para debates políticos, pode estar contribuindo para esse hipotético mal-estar.

Sob qualquer hipótese, não podemos considerar politicamente saudável que os brasileiros, embora maciçamente representados na Câmara Baixa, mantenham uma relação tão distante com os seus representantes. A resposta para a pergunta sobre se cabe ou não lembrar em quem votamos nas eleições passadas é afirmativa, pois a taxa de aproveitamento dos votos dados é sim bem alta. O que falta é dar consequência prática a isso:

Os caminhos a seguir são vários. O voto distrital, p. ex., teria o condão de limitar as circunscrições eleitorais ao mesmo tempo em que restringiria a quantidade de candidatos, explicitando melhor as opções colocadas para os eleitores. A simples diminuição do número de possíveis pleiteantes já representaria um avanço nesse último sentido. E os dados mostram de maneira cabal que poucos votos teriam de ser redistribuídos, pois poucos são os candidatos efetivamente competitivos.

O fim das coligações, por sua vez, em que pesem os problemas de inconsistência programática, precisa ser analisado com cuidado. No caso em tela, se todos os partidos tivessem de concorrer isoladamente, 99 cadeiras precisariam ser redistribuídas e seis partidos perderiam todos os seus deputados. Em um ambiente propício à fundação de novos partidos,2 todavia, isso aumentaria o risco de que alguns poucos partidos superem o quociente eleitoral, em detrimento do aproveitamento dos votos dados.

Por fim, impõe-se notar que número não é qualidade. O nosso sistema representativo tem sido bem sucedido em capturar a maior parte dos votos válidos, mas não em motivar parte importante do eleitorado apto a participar do processo eleitoral ou em estimular o acompanhamento dos representantes pelos representados. Um sistema que valorizasse a disputa entre os contendores, explicitando clivagens e compromissos, poderia alcançar resultados qualitativamente superiores em termos de engajamento do eleitorado, ainda que ao custo de uma menor taxa de aproveitamento dos votos dados.

 

O autor agradece os comentários de Benjamin Miranda Tabak, Caetano E. Pereira de Araujo, Marcos Antonio Kohler e Pedro Fernando de Almeida Nery Ferreira. Naturalmente, os erros e omissões remanescentes permanecem sendo de sua inteira responsabilidade.

 

Bibliografia

BARBOSA-FILHO, Hugo; FAUSTINO, Josemar; MARTINS, Rafael R.; MENEZES, Ronaldo. Strategies, Political Position, and Electoral Performance of Brazilian Political Parties. 2013 BRICS Congress on Computational Intelligence and 11th Brazilian Congress on Computational Intelligence, set. 2014.

OLIVEIRA, Marcos; BASTOS-FILHO, Carmelo; MENEZES, Ronaldo. Political Social Networks Reveal Strong Party Loyalty in Brazil and Weak Regionalism. Stanford University Conference of the Academy of Science and Engineering, mai. 2014. (disponível em: http://www.ase360.org/bitstream/handle/123456789/69/submission84.pdf?sequence=1&isAllowed=y).

ROCHA, C. Alexandre A. A Pergunta “Em Quem Você Votou?” É Cabível?: Aproveitamento do Voto na Eleição de 2010 para a Câmara dos Deputados. In: Pereira, Gabrielle T.; Silva, Rafael; Meneguin, Fernando (Orgs.). Resgate da Reforma Política: Diversidade e Pluralismo no Legislativo. Brasília : Senado Federal, 2015, pp. 206-27.

 

_______________

1Vide: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/06/19/especialistas-veem-inicio-de-crise-de-representacao-entre-sociedade-e-politica.htm.
[1] Apenas os votos dados aos não eleitos nos estados dos eleitos foram considerados.

2Vide: http://www.tse.jus.br/eleicoes/.

3 Vide: http://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunistas/renovacao-da-camara-tende-a-ser-recorde-em-2014/.

4 Decisão do TSE, p. ex., sujeita os parlamentares ao risco de perda de cargo eletivo em decorrência de desfiliação partidária sem justa causa, sendo que a criação de novo partido é uma delas (vide o art. 1º, § 1º, II, da Resolução TSE 22.610/2007, alterada pela Resolução TSE 22.733/2008).

 

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Financiamento público ou privado para as campanhas eleitorais? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1008&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=financiamento-publico-ou-privado-para-as-campanhas-eleitorais https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1008#comments Mon, 30 Jan 2012 10:44:42 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1008 A interferência do poder econômico nos rumos políticos de um país tem sido uma fonte de constante preocupação da sociedade. Como o custo das campanhas eleitorais pode ser extremamente elevado, para exercer essa influência política seria suficiente financiar a campanha de um candidato capaz de implantar, depois que ocorresse a eleição, uma plataforma de interesse do grupo financiador. Para esse último, o desembolso poderia gerar um ganho muito maior no futuro, ao passo que para o político, um comprometimento velado representaria uma maior chance de ganhar a competição, na medida em que o candidato disporia de mais recursos para investir na campanha.

Assim, é natural que aflorem preocupações com o financiamento privado das campanhas eleitorais. Questiona-se, ciclicamente, se a proibição da participação do setor privado no processo eleitoral seria uma forma eficiente de eliminar o efeito nocivo do lobby pré-eleitoral, considerado como qualquer atividade prévia às eleições por parte de indivíduos ou de grupos de interesse privado que influenciam as ações dos políticos após as eleições. Além disso, também se discutem quais seriam as fontes alternativas de financiamento das campanhas eleitorais caso a contribuição privada fosse vedada.

As mudanças na legislação brasileira relativas ao assunto, principalmente a partir da década de 70, demonstram essa inquietação. Em 1971, uma nova lei orgânica dos partidos políticos foi promulgada (Lei nº 5.682). Entre outros aspectos, regulamentou-se o chamado fundo de assistência financeira dos partidos políticos, composto das multas e penalidades aplicadas a partir da legislação eleitoral, dos recursos financeiros que lhe fossem destinados também por lei, e de doações particulares. Do montante acumulado no fundo, 80% era distribuído com base na proporção dos partidos na Câmara dos Deputados e os outros 20%, repartido igualmente entre eles. Também importante para a abordagem que se apresenta foi a vedação imposta pela lei aos partidos quanto ao recebimento, direto ou indireto, de contribuição, auxílio ou recurso procedente de empresa privada, de finalidade lucrativa, entidade de classe ou sindical.

No entanto, a história mostrou que essa vedação é ineficiente. Durante a vigência daquela lei, criou-se um incentivo ao financiamento de campanhas via a formação de “caixa dois”, ou seja, recursos recebidos à margem da lei, contabilizados em paralelo e  não divulgada pelos partidos.

Nesse contexto, a permissão do financiamento privado passou a ser considerada a melhor alternativa. A Lei nº 8.713, de 1993, flexibilizou a regra, permitindo a doação de pessoas jurídicas para campanhas eleitorais. Em 1995, a lei orgânica dos partidos políticos (Lei nº 9.096) foi alterada de forma que a nova regra mantinha a ideia do fundo de assistência aos partidos, que passou a ser chamado de “Fundo Partidário” e contou com a definição de uma contribuição pública permanente em montante nunca inferior, cada ano, ao número de eleitores inscritos em 31 de dezembro do ano anterior ao da proposta orçamentária, multiplicados por trinta e cinco centavos de real, em valores de agosto de 1995. Outras duas importantes alterações introduzidas pela nova lei foram o critério de distribuição dos recursos do fundo, já que 99% do total seriam distribuídos aos partidos na proporção dos votos obtidos na última eleição geral para a Câmara dos Deputados, além da permissão de os partidos receberem diretamente doações de pessoas físicas e jurídicas para constituição de seus fundos, desde que as declarassem à Justiça Eleitoral.

Na verdade, essa regra nunca chegou a ser aplicada. Havia uma série de normas transitórias, que vigoraram por várias eleições. Próximo de iniciar a vigência do percentual citado, o STF manifestou-se concluindo que o sistema de repartição das receitas do fundo era inconstitucional, por beneficiar os maiores partidos e, com isso, conduzir à cristalização do status quo partidário.

A Lei 11.459, de 2007, promulgada como decorrência da decisão do STF, fixou os percentuais em 5% (distribuídos igualmente entre todos os partidos) e 95% (distribuídos aos partidos na proporção dos votos obtidos na última eleição geral para a Câmara dos Deputados).

Apesar das mudanças empreendidas, novamente a regra estabelecida parece não ter surtido o efeito esperado. Do ponto de vista da contabilidade oficial de campanha, são marcantes as diferenças de gastos nas campanhas eleitorais dos candidatos.

Assim, infere-se que a legislação em vigor sobre o financiamento da disputa eleitoral pode ter tido um efeito distinto daquele que se pretendia. Além de não se ter certeza dos valores declarados pelos candidatos, em vista da possibilidade de desvio dos montantes recebidos ou da necessidade de esconder a identidade do doador para não evidenciar futuros favorecimentos, a competição pode ter se tornado extremamente desigual, gerando um efeito não competitivo. De fato, os partidos com maior financiamento privado teriam melhores chances de conquistar mais lugares no Congresso, tornando-se, por consequência, mais atraentes ao financiador privado, que, por sua vez, novamente os financiaria, garantindo a manutenção do status quo da divisão política.

Em resposta a esses acontecimentos e diversos outros ligados à corrupção nos meios políticos, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal vêm novamente se movimentado no sentido de alterar a legislação atual. Os objetivos principais seriam evitar a ingerência do poder econômico nas decisões políticas exercida por meio do mecanismo de financiamento privado de campanhas e, por consequência, a desigualdade de condições nas competições eleitorais.

Muito se discute quanto às vantagens e desvantagens de se vedar a participação do setor privado nas campanhas eleitorais. Ao se proibir o financiamento privado, poder-se-ia equalizar as condições de disputa entre os diversos partidos, diminuir a intervenção do poder econômico nos rumos das políticas adotadas pelo governo e, até como uma consequência deste último, ampliar os benefícios das políticas públicas à maioria da população.

Por outro lado, há alguns parlamentares que consideram injusta a forma de distribuição dos recursos do fundo partidário, além de entenderem improvável o impedimento por completo da interferência privada, pois acham que seria inevitável, por exemplo, que a mídia promovesse algum partido ou candidato. A partir dessa premissa, portanto, para esses políticos o aumento da dotação orçamentária para o fundo partidário oneraria ainda mais os contribuintes.

Nesse ponto, faz-se pertinente uma análise sobre os efeitos da contribuição pública e privada de campanhas eleitorais. As propostas de alteração da lei orgânica dos partidos políticos sugerem um estudo da contribuição pública no que diz respeito a dois aspectos: a consequência do lobby pré-eleitoral sobre as políticas propostas do ponto de vista da melhoria do bem-estar social; e as condições de competição eleitoral para, por meio de uma análise das probabilidades de eleição de cada partido, verificar o efeito da contribuição pública sobre as respectivas proporções partidárias, ou seja, verificar se o status quo será mantido ou se haverá mudanças significativas nas proporções dos partidos.

Portugal e Bugarin (2003) modelaram as diversas possibilidades de financiamento das campanhas eleitorais ressaltando o impacto do sistema adotado no bem-estar social. Estudaram-se os casos do modelo com contribuição exclusivamente pública, com contribuições pública e privada concomitantemente e, por fim, uma situação com contribuição exclusivamente privada.

Em termos de bem-estar social, o modelo que mais beneficia a sociedade é o financiamento exclusivamente público das campanhas eleitorais. Porém, isso só é verdade se não existir de fato o “caixa-dois” das campanhas, o que indica que qualquer mudança legal, por si só, não seria capaz de promover uma melhoria de bem-estar social, sendo necessário implementar e/ou aprimorar procedimentos de controle dos atos eleitorais, gerando custos administrativos e sem garantia de eficácia desse controle.

Quanto ao efeito sobre a igualdade de competição entre os partidos, em um modelo de financiamento exclusivamente público, a contribuição para as campanhas eleitorais pode levar a uma competição eleitoral mais desigual. Esse resultado, apesar das diversas simplificações consideradas, é bastante intuitivo, uma vez que a proibição de financiamento privado limitaria os partidos a apenas os recursos públicos, cuja distribuição já estaria enviesada no sentido dos partidos ou coligações mais representativos. Nesse ponto, cabe ressaltar os possíveis riscos institucionais associados a uma democracia ainda jovem em que um partido torna-se consistentemente preponderante no Legislativo.

Se a mudança legal for baseada na vedação da contribuição privada, bem como na ampliação do valor da contribuição pública, a alteração pode tornar mais desigual a disputa eleitoral, uma vez que a proporção dos partidos na Câmara dos Deputados (critério mais comentado), poderá determinar um processo eleitoral muito menos igualitário do que aquele que se observa sob a égide da legislação atual, em que se têm as campanhas eleitorais financiadas por contribuições privadas e públicas, sendo bem menor o valor correspondente a essa última.

Em síntese, os modelos indicam que o financiamento exclusivamente público de campanhas possibilita que os partidos se comprometam com a adoção de plataformas menos subordinadas a interesses específicos e mais voltadas ao interesse comum, enquanto no caso de contribuições exclusivamente privadas há um viés no sentido de serem adotadas políticas subótimas por meio da influência dos grupos de lobby. No entanto, isso só realmente acontecerá se não houver “caixa dois”. Além disso, o financiamento público está associado ao risco de tornar a disputa eleitoral mais desigual, visto que um elevado valor dessa contribuição pode fazer com que um partido, inicialmente majoritário, torne-se dominante no médio prazo.

Nos EUA, o financiamento de campanhas e seus efeitos sobre a disputa constituem um dos mais candentes temas do debate político. A posição da Suprema Corte, cuja maioria dos juízes tem orientação conversadora, é de que o estabelecimento de limites às doações privadas constitui uma ofensa à Primeira Emenda, que garante a liberdade de expressão. Os juízes entendem que doar dinheiro seria uma forma indireta de manifestar o pensamento.

A nosso ver, o sistema totalmente público com distribuição de recursos baseado nos resultados anteriores conduz a uma fossilização do quadro partidário. Há vários aspectos que devem ser considerados. Um deles reside no fato de que as doações de empresas são sobretudo para candidatos, ao passo que o fundo público é distribuído para partidos. O cálculo do doador é feito com base na expectativa do momento quanto às chances de vitória do candidato. Embora se note o comportamento da empresa de doar para ambos os lados de uma disputa, as doações quase sempre são em maior volume para o esperado vencedor. Assim, enquanto a distribuição de recursos do fundo público segue critérios retrospectivos, a dos doadores particulares segue critérios prospectivos. Porém, tendo em vista que as chances de vitória do candidato dependem não apenas dos recursos de propaganda, mas também do capital político acumulado, como, por exemplo, o bom desempenho em mandato anterior, o sistema privado de financiamento pode, em certas circunstâncias, contribuir para tornar ainda mais desigual a disputa: quem larga com maiores chances tende a receber mais recursos privados e consolidar sua vitória.

Dado que nem o financiamento público, nem o financiamento privado resolverão automaticamente os problemas do lobby e  da equidade  da disputa, torna-se fundamental criar e aperfeiçoar mecanismos que incentivem os políticos e financiadores de campanha a não adotarem comportamentos que reduzam o nível de bem-estar da sociedade. Entre esses mecanismos poderíamos citar a agilidade na punição da constituição de caixa dois e demais crimes relacionados ao financiamento eleitoral (perda de mandato e punição criminal de financiados e financiadores) e a ampla transparência e divulgação dos doadores e beneficiários.

Pode-se, também, pensar na adoção de sistemas de votação que requeiram menor mobilização de recursos (por exemplo, sistemas de votação distrital tendem a ser mais baratos que os modelos de votação proporcional; sistemas de lista fechada costumam ser mais baratos que os de lista aberta). Porém a escolha do sistema eleitoral é condicionada por muitos outros elementos além do custo das campanhas, tais como a representatividade e competitividade.

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Para ler mais sobre o tema:

PORTUGAL, Adriana C.; BUGARIN, Maurício. Financiamento público e privado de campanhas eleitorais: efeitos sobre bem-estar social e representação partidária no Legislativo. Revista de Economia Aplicada, 2003.

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Como as eleições afetam a economia? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=397&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=como-as-eleicoes-afetam-a-economia https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=397#comments Tue, 29 Mar 2011 19:15:13 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=397 A relação entre flutuações econômicas e decisões eleitorais de uma população constitui um dos tópicos mais estudados tanto em economia como em ciência política.

Diversos estudos confirmam a relação entre a situação econômica e suas oscilações com o resultado nas urnas. Um estudo pioneiro de Kramer (1971) analisa o resultado das eleições norte-americanas para a Presidência e o Congresso dos EUA, de 1896 a 1964. Ficou evidenciada a relação entre o desempenho da economia e a manutenção do partido titular no poder, concluindo que uma redução de 10% na renda per capita gera uma perda de aproximadamente 5% das cadeiras ocupadas pelo partido do presidente no Congresso. Além disso, o estudo sugere que flutuações econômicas explicam aproximadamente 50% da variância do voto no Legislativo daquele país.

Considerando a importância que os eleitores atribuem ao desempenho da economia no momento de votar, fica clara a existência de um incentivo para que um político no poder tente induzir maior crescimento econômico em períodos próximos às eleições, de forma a receber o bônus eleitoral desse crescimento. Um exemplo disso é novamente os EUA, após a quebra da Bolsa de Nova Iorque em 1929. A prosperidade econômica do país foi interrompida e fez a economia mergulhar em grave crise recessiva. Isso fez com que o Partido Republicano, então no poder, perdesse as eleições. O democrata Franklin Delano Roosevelt assumiu a Presidência em 1933 e reelegeu-se por mais três mandatos consecutivos, até sua morte em 1945, realizando uma política de desenvolvimento baseada em pesados investimentos estatais para estimular a recuperação econômica.

O trabalho precursor que tenta explicar esse comportamento do governante é o de Nordhaus (1975), que cunha a expressão Political Business Cycle (ciclos políticos de negócios). Segundo esse estudo, ao perceber o efeito da economia no voto, o governante decide aumentar a oferta da moeda (via novas emissões ou por meio do Banco Central adquirindo títulos do mercado privado), em ano eleitoral de forma a conseguir incremento na produção do país e, assim, diminuir o desemprego. Em consequência, os eleitores reagem positivamente nas urnas, desconhecendo que o ato do governo federal gerará inflação, trazendo novos problemas à sociedade no futuro.

O problema do trabalho de Nordhaus é que ele admite a possibilidade de os eleitores serem constantemente enganados pelo governante, apesar do limitado efeito que a política de expansão monetária traz ao crescimento econômico no médio prazo. Na verdade, esse crescimento artificialmente induzido é perdido no primeiro ano após as eleições, devido à estagnação econômica e à inflação. Eleitores racionais e com razoável memória não se deixariam enganar por mais de uma vez.

Essa teoria teve um refinamento conhecido como Political Budget Cycle (ciclos políticos orçamentários), feito por Rogoff (1990), que focou a estratégia do governante não na política monetária, mas sim na política fiscal, como a carga tributária, as transferências governamentais e as despesas correntes do governo, concluindo que o governante tende a distorcê-la, cortando tributos, aumentando transferências e promovendo gastos que tenham visibilidade imediata. Tal comportamento do governante, provavelmente, geraria ou agravaria uma situação de déficit fiscal. Segundo esse estudo, o político mais votado é aquele que tende a gerar maior desequilíbrio nas contas públicas, contrariamente ao político preocupado com os recursos do Estado.

Vale mencionar que os prejuízos futuros dessa política são tão graves quanto à inflação provocada pela expansão monetária. Só que, no caso da política fiscal, os efeitos nefastos como aumento da taxa de juros, elevação da carga tributária ou redução da produtividade da economia somente são sentidos em prazos mais longos, sendo difícil para o eleitor identificar que a origem do problema aconteceu pelo comportamento irresponsável de governantes passados que deram causa ao desequilíbrio.

Será que os ciclos políticos orçamentários se aplicam ao Brasil? O gráfico abaixo retrata, com dados do Tesouro Nacional, a evolução dos gastos da União em comparação com o PIB.

Além da óbvia tendência de aumento dos gastos públicos durante o período, percebe-se que a série forma ciclos que coincidem com os mandatos presidenciais. Dentro de cada ciclo de quatro anos (1994-1998, 1999-2002, 2003-2006, 2007-2010), o maior percentual de gastos em relação ao PIB acontece nos anos de realização das eleições (indicado pelas setas).

Tendo em vista essa tendência de aumento dos gastos públicos em ano eleitoral, a sociedade deve se mobilizar para colocar limites nos gastos que visam somente angariar votos. Em parte, isso foi feito com a Lei de Responsabilidade Fiscal, que criou algumas restrições para aumento de gastos públicos e endividamento do Estado nos anos eleitorais, no entanto, em muitos casos é difícil provar a distinção entre a despesa que tem motivação eleitoral e aquele gasto que realmente mereceria ser feito para o benefício da população.

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Para ler mais sobre o tema:

Kramer, G. H. (1971). “Short Term Fluctuations in U.S. Voting Behavior, 1896-1964”, American Political Science Review, 65:131-43.

Meneguin, F.B.; Bugarin, M.S.; Carvalho, A.X. (2005). “O que leva um governante à reeleição?” Texto para Discussão IPEA, nº 1135.

Nordhaus, W. (1975). “The Political Business Cycle”. Review of Economic Studies, 42:169-190.

Rogoff, K. (1990). “Equilibrium Political Budget Cycles”. American Economic Review, 80:21-36.

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