eficiência econômica – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Mon, 27 Feb 2012 12:57:48 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Faz sentido impor tributação tão elevada sobre o consumo de energia elétrica? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1095&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=faz-sentido-impor-tributacao-tao-elevada-sobre-o-consumo-de-energia-eletrica https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1095#comments Mon, 27 Feb 2012 12:57:48 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1095 Do valor total de uma conta de luz paga pelos consumidores residenciais e comerciais, aproximadamente 45% são recursos destinados ao governo (tributos e encargos). Ou seja, somente 55% representam a remuneração das empresas de geração, transmissão e distribuição de energia[1]. O Brasil, em perspectiva internacional, impõe elevada carga tributária sobre a energia elétrica, como pode ser visto nos dois gráficos abaixo.

Gráfico 1 – Carga tributária sobre energia elétrica (exceto encargos setoriais) – consumidores industriais (2004)


Fonte: Instituto Acende Brasil – Carga tributária consolidada setor elétrico brasileiro 1999 a 2008. Fonte primária: OCDE.

Gráfico 2 – Carga tributária sobre energia elétrica (exceto encargos setoriais) – consumidores residenciais (2004)


Fonte: Instituto Acende Brasil – Carga tributária consolidada setor elétrico brasileiro 1999 a 2008. Fonte primária: OCDE.

A Tabela 1 mostra que a maior tributação ocorre no nível estadual: o ICMS[2] representa em torno de 20% da receita bruta das distribuidoras de energia, ou 46% de todos os tributos e encargos, como mostrado no Gráfico 3. Em seguida vêm os tributos de competência do Governo Federal, com destaque para o crescimento da importância do PIS/PASEP[3] e COFINS[4] ao longo dos anos (para uma análise do aumento do PIS/PASEP e COFINS, ver neste site o texto Por que é tão elevada a carga tributária sobre os serviços de saneamento básico?). Em terceiro lugar aparece uma miríade de “encargos setoriais” (para uma análise desses encargos ver, neste site, o texto O que é subsídio cruzado e como ele afeta a sua conta de luz?).

Tabela 1 – Carga tributária sobre a receita bruta das empresas distribuidoras de energia elétrica


Fonte: Instituto Acende Brasil – Carga tributária consolidada setor elétrico brasileiro 1999 a 2008. Fonte primária: Instituto Acende Brasil e Price Waterhouse & Coopers.

Gráfico 3 – Carga tributária sobre a receita bruta das empresas distribuidoras de energia elétrica: participação dos principais tributos (2008)


Fonte: Instituto Acende Brasil – Carga tributária consolidada setor elétrico brasileiro 1999 a 2008. Fonte primária: Instituto Acende Brasil e Price Waterhouse & Coopers.

Os motivos da alta tributação

Por que é tão intensa a tributação do consumo de energia elétrica? O primeiro motivo é a pressão exercida pelos crescentes gastos governamentais, tanto no nível federal quanto no nível estadual. Desde a redemocratização, o Estado brasileiro vem elevando o nível de gasto público em função de diversos fatores de ordem política. Criou-se um modelo em que, ano após ano, aumenta-se o gasto público, o que exige que os governos Federal, estaduais e municipais busquem mais e mais receitas para equilibrar suas contas. Tal fenômeno já foi analisado em três textos deste site (Como o gasto público elevado desequilibra a economia brasileira?, Como as eleições afetam a economia? e Por que é importante controlar o gasto público?). Essa pressão exercida pelos gastos crescentes exige que os três níveis de governo (Federal, estadual e municipal) façam grande esforço de arrecadação e encontrem no setor elétrico uma suculenta base tributária.

O fornecimento de energia elétrica é bastante propício à tributação por vários motivos. Em primeiro lugar, é fácil para os fiscos federal e estaduais coletar seus tributos: basta arrecadá-los junto às empresas distribuidoras de energia, que representam apenas sessenta e três empresas em todo o país. Tais empresas dispõem de dados precisos a respeito da quantidade de energia fornecida, dados esses facilmente acessíveis aos fiscos. Compare essa situação, com a tributação de produtos fabricados por inúmeras indústrias, que passam por uma longa cadeia de fornecedores e distribuidores, para os quais é difícil conferir dados e notas fiscais. Obviamente é muito mais simples e produtivo para o fisco ir direto a uma grande empresa, que tem uma grande base tributária, com informações claras e precisas sobre essa base tributária. É por esse mesmo motivo que outros setores são alvo de tributação mais intensa, como o de bebidas (que dispõe de contadores de litros produzidos) e automóveis (poucas e grandes indústrias, alto valor unitário do produto vendido).

Em segundo lugar, a base tributária é ampla: no ano de 2011, as distribuidoras de energia elétrica faturaram R$ 110 bilhões, excluídos os tributos, o que equivale a aproximadamente 2,5% do PIB. Assim, qualquer pequena alíquota de tributo ou encargo que se imponha sobre tal faturamento já rende uma receita elevada sem que o contribuinte perceba o adicional em sua conta.

Em terceiro lugar, a energia elétrica é um bem essencial tanto nas residências quanto na indústria, comércio e serviços (o impacto do “apagão” de 2001 sobre o ritmo da economia é uma demonstração clara da essencialidade deste serviço). Isso significa que os consumidores não reduzirão o consumo de energia na mesma proporção dos aumentos de preço. É o que se chama, em economia, de demanda inelástica a variações de preços. Não havendo redução acentuada de consumo quando há aumento de preços provocado por aumento de tributos, a receita tributária será maior do que se for aplicado o aumento dos tributos a um bem ou serviço de alta elasticidade-preço, pois, nesse caso, parte da receita tributária será perdida em decorrência da queda do consumo.

Por exemplo, suponha que um produto custe R$ 1, e que são vendidas 100 unidades desse produto. Se o governo cria um imposto de 10% sobre o preço de venda e supondo que o imposto seja integralmente repassado para o preço, o valor final desse produto subirá para R$ 1,10. Se a demanda desse bem tem baixa elasticidade a preços, com o novo preço de R$ 1,10 os consumidores reduzirão pouco o seu consumo. Suponhamos que essa redução seja de 5 unidades, passando o consumo total a ser de 95 unidades. A receita do governo com o novo imposto será de R$ 9,50 (95 unidades X R$ 0,10). Mas se a elasticidade preço do bem for mais alta (um bem de menor essencialidade), os consumidores reduzirão mais intensamente o consumo para, digamos, 70 unidades, o que fará a receita tributária do governo ser menor: R$ 7,00 (70 unidades X R$ 0,10). Daí porque, sob o ponto de vista de arrecadação, é mais interessante para o governo tributar bens e serviços cujas demandas sejam inelásticas a preço.

O quarto fator que estimula a tributação da energia elétrica é que essa tributação é pouco visível. Como todo tributo indireto, ela já vem embutida no preço, e o consumidor não consegue distinguir claramente o que é o custo da energia e o que é tributo ou encargo.

Em quinto lugar, no caso específico do ICMS, a tributação sobre energia cresce como um efeito colateral da chamada “guerra fiscal” (ver neste site o texto O que é guerra fiscal?). Os estados disputam entre si a instalação de indústrias, oferecendo reduções e isenções na cobrança do ICMS que, na maioria dos casos, é pago pelas empresas ao Estado onde ocorre a produção (tributação na origem). Porém, ao contrário do que ocorre com a maioria dos bens e serviços, a tributação da energia elétrica ocorre no estado onde ela é consumida. Assim, não há estímulo aos estados para tentar atrair empresas do setor de energia a instalar sedes em seus territórios, pois a arrecadação continuará a fluir para os estados onde a energia é consumida.

Poderia haver um estímulo à redução da tributação da energia elétrica caso isso representasse queda de custo tão grande para as empresas que compensasse outras vantagens tributárias. Nesse caso, um estado que cobrasse baixos tributos permitiria que as empresas ali instaladas tivessem um custo substancialmente mais baixo. Porém, os altos tributos e encargos criados pelo Governo Federal (que não participa da guerra fiscal) e a agressividade dos incentivos dados aos demais setores da economia, parecem tornar pouco atrativa a opção de atrair empresas via desconto de ICMS na conta de luz.

A opção adotada tem sido tributar em excesso a energia para, com isso, gerar uma folga de caixa que permita ao governo estadual oferecer mais subsídios tributários a outros setores. A Tabela abaixo mostra as alíquotas aplicadas a alguns produtos no Estado de São Paulo, destacando-se que o consumo de energia acima de 200 Kwh/mês é tributado com a alíquota mais alta.

Tabela 2 – Alíquotas de ICMS de alguns bens e serviços selecionados no Estado de São Paulo


Fonte: http://www.idealsoftwares.com.br/tabelas/aliquotas_sp.html

Será esta alta tributação eficiente?

Toda tributação reduz a eficiência da economia, porque estimula os consumidores e as empresas a mudarem seus comportamentos (supostamente maximizadores de seus respectivos níveis de bem-estar) para tentar minimizar os impostos pagos, como no exemplo numérico apresentado acima. A diferença entre o que seria arrecadado por um imposto que não provocasse qualquer mudança de comportamento dos consumidores ou das empresas (chamado de imposto lump-sum ) e a efetiva arrecadação do governo é chamado de ‘perda de peso morto” (deadweight loss) (lembre-se do exemplo numérico oferecido acima, em que a redução da demanda pelo bem tributado levou a uma arrecadação de R$ 7,00, ao passo que se não houvesse mudança no comportamento dos consumidores  a arrecadação seria de R$ 10,00).

A teoria da tributação ótima[5] é aquela que busca definir a estrutura tributária que produz a menor reação dos agentes econômicos e, com isso, gera menor perda de eficiência para a economia.  Um resultado dessa teoria indica que, quanto mais inelástica a preços a demanda e a oferta de um bem, menor a perda de peso morto e, consequentemente, menor a perda de eficiência.

O raciocínio é intuitivo: demanda e oferta inelásticas a preço significam que é baixa a reação dos consumidores e produtores a aumentos de preços. Por isso, a criação de um imposto que aumente os preços ao consumidor ou que representem um encargo a mais para o produtor não afetará as decisões de consumo e de produção. Ou seja, o montante consumido e produzido após o imposto é similar ao montante consumido e produzido antes da introdução do imposto. A economia se afasta pouco do seu mix ótimo de produção e consumo.

Já afirmamos acima que, em função da sua essencialidade, a demanda por energia é inelástica a preços. Sob esse ponto de vista, seria melhor tributar a energia elétrica a tributar outros bens de maior elasticidade preço. Da mesma forma, a oferta também tende a ser inelástica a preços. Isso porque a indústria de energia exige um grande investimento em obras e equipamentos, que representam alto custo fixo. Um aumento no custo variável de venda da energia (quanto mais energia vendida mais imposto se paga) não representará um acréscimo significativo no custo total da empresa, pois ela incorrerá no custo fixo independentemente de vender ou não a energia. Outro argumento favorável, em termos de eficiência econômica, à alta tributação da energia é o baixo custo administrativo para se coletar tal tributo, como já foi ressaltado no início do texto: quanto menos o fisco gastar na sua ação de coletar tributos, mais recursos sobram para serem aplicados em políticas públicas, logo, mais eficiente é a economia.Todavia, há outro resultado da teoria da tributação ótima que aponta em direção oposta: um aumento de alíquota de um tributo provoca um aumento da perda de peso morto (queda de eficiência) equivalente ao quadrado do aumento da alíquota. Ou seja, a perda de eficiência da economia é mais que proporcional ao aumento de alíquota. Isso significa que a elevação das alíquotas sobre energia elétrica a nível tão alto e tão superior ao dos demais produtos, como mostrado na Tabela 2, provavelmente gerou grande perda de eficiência.

Outra importante constatação da teoria da tributação ótima é a de que qualquer tributo sobre bens intermediários (bens usados para produzir outros bens) provoca distorções na economia e, consequentemente, perda de bem-estar e de eficiência. A energia elétrica é, obviamente, um importante insumo intermediário. A preferência deveria ser pela tributação sobre o consumidor final de energia elétrica. A tributação dos consumidores industriais e comerciais, com elevadas alíquotas, é certamente um forte gravame que reduz a competitividade desses consumidores.

A perda de eficiência é ainda maior porque a tributação não impacta uniformemente as diferentes indústrias. Aquelas que são mais intensivas no uso de energia terão seus custos aumentados mais que proporcionalmente, distorcendo os preços relativos. Isso pode alterar as vantagens comparativas do País. Por exemplo, indústrias que consomem muita energia, como alumínio e derivados, podem perder competitividade.

É verdade que a tributação sobre o uso comercial e industrial da energia, por meio de tributos sobre valor adicionado (ICMS, PIS/COFINS) pode, em tese, ser compensada pelo desconto de créditos tributários acumulados. Mas, quando consideramos detalhes da tributação, vemos que há restrições à plena desoneração tributária (determinados insumos não podem ter seus tributos descontados). Além disso, a base de cálculo do ICMS inclui outros tributos já pagos, configurando bitributação. A prática de alíquotas diferenciadas por setores, isenções e não restituições de créditos do ICMS elevam a alíquota efetiva final paga sobre o insumo. Deve-se considerar, também, que a cobrança do imposto com alíquotas diferentes, por estados diferentes, acabam induzindo empresas a desviarem sua escolha ótima de localização (em função dos custos de produção e distribuição), por levar em conta, também, o custo da energia.

As indústrias mais intensivas em energia perdem competitividade em relação às menos intensivas, e as indústrias nacionais, em geral, perdem competitividade em relação às indústrias de outros países que impõem menor tributação sobre esse insumo.

Qual o impacto distributivo dessa tributação?

A definição da estrutura ótima de tributação enfrenta um dilema entre eficiência e distribuição de renda. Se não houvesse qualquer preocupação do governo com o impacto distributivo dos impostos, bastaria simplesmente criar um imposto lump-sum[6] (não gerador de distorções) que cobrasse um valor fixo por pessoa. Mas obviamente isso seria bastante injusto, visto que as pessoas têm habilidades e capacidades de geração de renda distintas.

Por isso, toda distorção gerada por impostos que uma sociedade aceita suportar decorre de seu intuito de ter tributos que sejam justos do ponto de vista distributivo. Ocorre que tributos sobre consumo[7] são reconhecidamente concentradores de renda, porque as famílias pobres gastam uma parcela maior de sua renda com consumo. Quando se trata de bem essencial, como a energia elétrica, esse efeito é ainda mais evidente.

Temos, então, um contra-senso. Vivemos em uma sociedade que exibe pronunciada preferência pela redistribuição da renda: elege governos com plataforma redistributiva e confere alto valor a programas públicos de redução da pobreza. Porém, o que se dá com uma mão (via gasto público), tira-se com outra, via tributação concentradora de renda.

Conclusão

Não obstante o fato de a tributação do consumo de energia elétrica ser, a princípio, gerador de baixa perda de eficiência da economia, pela inelasticidade-preço de oferta e demanda; as altas alíquotas praticadas e a sua incidência de forma diferenciada sobre empresas situadas em diferentes partes do país possivelmente geram perdas de eficiência e efeito concentrador de renda. Assim, a fúria arrecadadora dos governos federal e estaduais, decorrente do aumento dos gastos públicos (boa parte deles destinados a custear programas de redução de pobreza e redistribuição de renda) acaba tornando toda a economia mais pobre (em menor nível de bem-estar), com menor capacidade de crescimento e geração de renda; além de anular parte da redistribuição de renda feita por meio de programas sociais.

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Para ler mais sobre o tema:

Instituto Acende Brasil (2010) Tributos e encargos na conta de luz: pela transparência e eficiência. White Paper – Instituto Acende Brasil, edição nº 2.

Lago, J.N. (2006) Tributos e encargos na tarifa de energia elétrica: uma análise sob o ponto de vista do consumidor e da política de tarifa social. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Ciências Econômicas.

Montalvão, E (2009) Impacto de tributos, encargos e subsídios setoriais sobre as contas de luz dos consumidores. Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal. Texto para Discussão nº 62.

Monteiro, E.M. (2007) Teoria de grupos de pressão e uso político do setor elétrico brasileiro. Universidade de São Paulo. Programa Interunidades de Pós-Graduação em Energia. São Paulo.

Stiglitz, J. (2000) Economics of the public sector. Terceira Edição. Ed. Norton. Caps. 17 a 20.

Biderman, C. e Arvate, P. (2004) (Orgs.) Economia do Setor Público no Brasil. Ed. Elsevier. Caps. 9 a 11.


[1] Fonte: Instituto Acende Brasil (2010).

[2] Imposto relativo à circulação de mercadorias e sobre prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação.

[3] Programa de Integração Social (PIS) e Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PASEP).

[4] Contribuição para o financiamento da Seguridade Social.

[5] Ver, por exemplo, Stiglitz (2000), capítulo 19, e Arvate e Biderman (2004), capítulo 10.

[6] Impostos lump-sum são impostos baseados em características do indivíduo que não podem ser alteradas. O caso mais clássico são os impostos por pessoa. Mas, em tese, impostos lump-sum poderiam ser instituídos com base na altura, no gênero ou idade.

[7] Observe-se que aqui estamos falando em tributação uniforme, sobre todos os bens de consumo. É claro que tributar bens supérfluos e de luxo pode ter um efeito positivo sobre a distribuição de renda.

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O que é guerra fiscal? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=665&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-que-e-guerra-fiscal https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=665#comments Thu, 28 Jul 2011 15:50:37 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=665 Alguém já disse que toda unanimidade é burra. Não sei se essa regra se aplica ao consenso brasileiro a favor da reforma tributária. Digo isso porque considero a reforma tributária uma falsa unanimidade. Todos a desejam, é verdade – empresários, trabalhadores, consumidores, estados, municípios e – pasmem! – até a União, que tem sido a grande beneficiária do nosso caos fiscal. Mas cada um a quer por razões diferentes e com objetivos diferentes. Portanto, cada grupo almeja uma reforma tributária diferente, incompatível com a reforma tributária pretendida pelos demais, e unanimidade é o que menos há nesse tema.

Para começar, empresários, trabalhadores e consumidores querem uma reforma tributária para pagar menos tributos; já municípios, estados e a União a querem para combater a sonegação e a guerra fiscal – isto é, para elevar a arrecadação. Fato interessante: a União quer uma reforma para elevar a arrecadação dos Estados, já que a sua tem sido fonte inesgotável de alegrias. Tanto que o Governo Federal acha até melhor não mexer em seus tributos – nem para criar novos (como o imposto sobre grandes fortunas – IGF), nem para ressuscitar os falecidos (como a contribuição sobre movimentação financeira – CPMF).

Uma reforma tributária pode mirar muitos objetivos: justiça fiscal, eficiência econômica, simplificação tributária, repartição de recursos entre os entes da Federação, desoneração de exportações, etc. Mas no Brasil – em que pesem certas tentativas abafadas de tempos em tempos – a reforma tributária virou um samba de uma nota só: seu único objetivo tem sido evitar a chamada “guerra fiscal” entre os estados.

Infrutífero objetivo, aliás; malsucedida reforma que nunca aconteceu.

A abertura da economia, no início da década de 1990, e a estabilização de 1994 criaram um novo ambiente de negócios no país e começaram a atrair capitais, estimular a instalação de novas empresas e a ampliação das existentes. Percebendo a oportunidade, os estados da Federação (inclusive o Distrito Federal) passaram a disputar os novos investimentos. Instituíram benefícios fiscais variados, muitos dos quais com base no ICMS, para atrair as empresas ­– especialmente as industriais, mas também comerciais (atacadistas, por exemplo) e de alguns serviços.

Após a estabilização monetária, o equilíbrio fiscal e a sustentabilidade da dívida pública passaram à frente na agenda política. Por isso, as propostas de reforma tributária convergiram, pouco a pouco, na direção do combate à guerra fiscal, que ameaçava os orçamentos estaduais e poderia tornar-se um calcanhar de aquiles da estabilização. Pelo menos era o que argumentavam os defensores da reforma: era preciso manter a arrecadação dos estados, para garantir que as dívidas estaduais não crescessem.

Desde então, testemunhamos algumas variações sobre o mesmo tema. Os demais objetivos da reforma ficaram, quando muito, para segundo plano. Mesmo o capítulo mais recente dessa novela – a redução das alíquotas interestaduais do imposto (que explicarei em seguida) – não rompe essa tradição.

Para perceber a dimensão do problema, é importante notar que o ICMS é a principal fonte de receita própria para a ampla maioria dos estados, em especial para os mais industrializados e para aqueles que têm maior potencial de industrialização – que são os protagonistas da guerra fiscal.

A reforma tributária não acabaria com a guerra fiscal, mas enfraqueceria substancialmente o seu principal instrumento, que é o incentivo concedido com base no ICMS. Para entender melhor a questão e as soluções propostas, é importante entender, antes, como funciona o ICMS. Como o ICMS é um imposto bastante complexo, vou simplificar a exposição, atendo-me ao que interessa e ignorando algumas tecnicidades do tema.

O ICMS incide sobre a circulação de mercadorias entre diferentes estabelecimentos e na venda a consumidor final, e também sobre a prestação de alguns serviços de comunicação e transportes. É um imposto estadual, mas também incide sobre a circulação de mercadorias e serviços entre pessoas em estados diferentes da Federação. Até 1996, incidia também sobre algumas operações de exportação.

Para avaliar o poder que os estados detêm na guerra fiscal, é preciso saber que o ICMS poderia obedecer a um de três regimes: o regime de origem, o regime de destino e o regime misto.

No regime de origem, uma transação realizada entre um comprador de um estado e um vendedor de outro geraria receita apenas para o estado onde se encontra o vendedor (ou seja, a operação seria tributada apenas pelo estado de origem da mercadoria ou serviço).

No regime de destino, em contraste, essa transação geraria receita apenas para o estado do comprador (ou estado de destino da mercadoria ou serviço).

No regime misto, os estados partilhariam a receita do imposto segundo alguma regra pré-definida.

No Brasil, adotamos o regime misto. Para definir a partilha entre os estados, criamos duas categorias de alíquotas de ICMS: as alíquotas internas e as alíquotas interestaduais. Digo que são duas categorias de alíquotas porque há duas alíquotas interestaduais e inúmeras alíquotas internas. As alíquotas interestaduais são definidas por resolução do Senado Federal, e as internas, pela legislação tributária de cada estado.

A alíquota interna incide sobre todas as operações ocorridas dentro do estado. Em geral, é de 17%, embora haja casos em que passe de 20%.

A alíquota interestadual somente incide sobre as transações ocorridas entre contribuintes de estados diferentes. Nesse caso, o estado de origem recebe o equivalente à incidência da alíquota interestadual sobre o valor da transação, e o estado de destino receberá o equivalente à incidência da diferença entre a alíquota interna prevista na sua legislação de ICMS e a alíquota interestadual. Assim, o imposto é partilhado pelos dois entes, sem que o contribuinte pague mais por isso.

Um exemplo ajudará a visualizar melhor. Suponhamos que uma empresa industrial de Minas Gerais venda uma mercadoria para uma empresa localizada no Paraná, no valor total de R$ 10 mil. Nesse caso, é necessário saber qual é a alíquota interna do Paraná. Digamos que seja de 17%. Então o imposto total devido na operação é de 17% sobre R$ 10 mil, ou R$ 1.700,00.

Como a alíquota interestadual, nesse caso, é de 12%, caberá à Fazenda de Minas Gerais a quantia de 12% sobre R$ 10 mil, ou R$ 1.200,00. O Tesouro do Paraná arrecadará o restante, ou R$ 500,00, equivalente à aplicação da diferença de alíquotas (17% – 12% = 5%) sobre a base de cálculo de R$ 10 mil. Note que, somando as duas parcelas, obtemos os mesmos R$ 1.700,00 que seriam arrecadados pelo Estado do Paraná, se a mercadoria adquirida pela empresa paranaense tivesse sido fabricada naquele estado, em vez de sê-lo em Minas, e não ocorresse partilha do imposto.

No caso das alíquotas interestaduais, há apenas duas. A alíquota geral, de 12%, incide sobre quase todas as operações interestaduais. A alíquota reduzida, de 7%, incide apenas nas operações em que o estado de origem esteja nas Regiões Sul e Sudeste, exceto o estado do Espírito Santo, e o estado de destino esteja nas Regiões Norte, Nordeste ou Centro-Oeste ou no estado do Espírito Santo.

Então, se a empresa de Minas Gerais do exemplo acima vender mercadorias no valor de R$ 10 mil para uma empresa situada na Paraíba, e supondo que a alíquota interna da Paraíba também seja de 17%, o total do imposto pago sobre essa operação será o mesmo, mas a repartição entre os estados será diferente. Minas Gerais ficará com o valor relativo à alíquota interestadual reduzida de 7%, ou R$ 700, enquanto a Paraíba ficará com os 10% restantes, ou R$ 1.000,00.

Essa é uma forma de assegurar aos estados do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste uma participação maior nas receitas de ICMS. Mas também lhes confere uma vantagem importante sobre os demais estados na guerra fiscal, pois quem tem mais, também pode conceder mais incentivos fiscais.

A alíquota interestadual desempenha papel estratégico na guerra fiscal, embora os incentivos tipicamente sejam vinculados ao valor total do ICMS devido. É a alíquota interestadual que permite ao estado atrair empresas, oferecendo-lhes vantagens que superam o seu sacrifício de receita. É uma mágica interessante, e o segredo reside no fato de que, no sistema brasileiro, os estados têm aliviado a carga do imposto que seria cobrado nas operações de venda a outras unidades da Federação.

Assim, se uma empresa da Paraíba vender uma mercadoria para outra de Minas Gerais, aplica-se a alíquota interestadual de 12%. Mantendo o exemplo de que o produto custa R$ 10 mil, então a Paraíba pode conceder incentivos sobre o tributo devido de R$ 1.200,00 a uma empresa que se instale no seu território para produzir e vender para cidades do Sul e do Sudeste. Já o Estado de Minas, que tem direito a uma alíquota de 7% para vender para Paraíba, só poderá dar incentivos fiscais de R$ 700, em uma transação similar, em que se produza em Minas para vender para a Paraíba e outros estados do Nordeste e do Norte.

O objetivo do estado que concede um benefício para reduzir de fato a alíquota interestadual é atrair uma empresa que ainda não opera em seu território. Logo, ele não arrecada nem um centavo a título de alíquota interestadual com as operações dessa empresa e, a rigor, pouco perderia ao oferecer uma isenção a ela. Quem perderia mais é o estado onde essa empresa está localizada, que deixaria de arrecadar o imposto sobre as vendas dela aos demais estados, caso a empresa se mudasse para o estado que oferece o incentivo.

O estado que concede o incentivo ganha mais: ao atrair a empresa, ele provavelmente atrairia também alguns de seus fornecedores, ou fortaleceria os fornecedores que já estão instalados em seu território, e criaria mais empregos. Isso tende a gerar um aumento de receita tributária que pode contrabalançar a perda do ICMS devido nas operações internas. Logo, a conta fecha positivamente para o estado que oferece o incentivo fiscal.

Para evitar essas disputas possivelmente danosas aos orçamentos estaduais, a Constituição proibiu a concessão unilateral de incentivos com o ICMS, forçando a atuação cooperativa dos estados, na forma de lei complementar. Coerentemente, a Lei Complementar (LC) 24/75 proíbe expressamente a concessão de incentivos com o ICMS sem que haja aprovação unânime dos estados.

Ora, a disputa de sede e localização de empresas entre estados concorrentes tem potencial para gerar conflitos intermináveis e muito pouca concórdia. De fato, as leis estaduais que criam incentivos fiscais com o ICMS têm sido aprovadas nas Assembleias Legislativas e aplicadas ao arrepio da LC 24/75, e passando por cima da autoridade do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), que é o fórum para apreciar a aprovar as concessões de incentivos fiscais com o ICMS.

Quero que o leitor perceba que o vigor da guerra fiscal deve-se à existência da alíquota interestadual, que é típica do regime misto. Se o ICMS fosse integralmente ou preponderantemente de destino, a guerra fiscal seria muito enfraquecida, e não feriria (ou feriria muito pouco) as finanças dos estados.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade de diversas leis estaduais que concediam incentivos fiscais com o ICMS, por inobservância da LC 24/75. Essa decisão esclarece as regras para concessões de incentivos fiscais e contribui para que cada estado saiba o que tem a ganhar e a perder em uma eventual reforma tributária. Com mais segurança jurídica, a negociação tende a ficar mais clara. No entanto, há ainda uma ação a ser julgada, que tem o potencial de inverter o quadro atual. A regra de aprovação de incentivos fiscais no Confaz, estabelecida pela LC 24/75, exige unanimidade dos estados presentes. A necessidade desse consenso está sendo questionada, também na Corte Suprema.

No início de 2011, o Poder Executivo Federal anunciou que estuda proposta de reforma tributária baseada na redução das alíquotas interestaduais do ICMS a 2%. Essa proposta, muito mais simples do que a unificação das alíquotas do ICMS, encontrará, decerto, alguns inimigos. Os estados mais industrializados, que derivam forte receita das operações interestaduais, dificilmente terão interesse em aprovar uma iniciativa que os prive dessa fonte de recursos. (Além disso, essa proposta teria outras consequências, relevantes para os estados exportadores.)

Considerando as diversas propostas apresentadas, creio que a mais atraente, sob diversos aspectos, é a criação de um imposto sobre o valor adicionado (IVA), em substituição à legião de tributos incidentes sobre o valor adicionado, a receita ou o faturamento (ICMS, IPI, PIS, Cofins, ISS).

No entanto, muitas das propostas até hoje apresentadas trazem no pacote um aspecto desnecessário e que pode atrapalhar a aprovação da reforma. Falo da unificação das alíquotas internas, que passariam a ser idênticas, para cada produto ou serviço, em todo o território nacional. Embora haja previsão de alguma flexibilidade, essa unificação limitaria substancialmente a possibilidade de praticar alíquotas mais baixas, criando um obstáculo à guerra fiscal.

Por outro lado, essa unificação é arriscada, pois deixaria os estados à mercê de decisões nacionais que não necessariamente atenderiam suas necessidades. Essa heteronomia fiscal seria ainda mais perigosa porque a maior parte dos gastos públicos tem caráter obrigatório, e muitas despesas são inflexíveis. Apesar de abrir espaço para sensíveis reduções de alíquotas (em especial as relativas a energia elétrica, combustíveis e telecomunicações, atualmente muito altas), a criação de uma receita igualmente inflexível poderia desorganizar a administração financeira de alguns estados. Por isso mesmo, geraria pressão política para elevar, mesmo quando dispensável, as alíquotas do ICMS dos demais estados, criando uma tendência ao aumento da carga tributária.

Mas, além do combate à guerra fiscal, para que é necessária uma reforma tributária?

Certamente não para pagar menos tributos. Para isso, bastaria reduzir alíquotas, o que independe de uma reforma tributária. Para simplificar o sistema tributário, entretanto, seria extremamente útil, e talvez seja esse o maior ganho potencial de uma reforma tributária hoje no Brasil, considerando o emaranhado de leis, portarias, regras e exceções e a sobreposição de tributos de natureza semelhante, para desespero do contribuinte. E também para conferir maior neutralidade ao sistema e impedir que induza ineficiências econômicas. A cumulatividade (que por si só vale outro artigo), foi reduzida para as grandes empresas, após a reforma da legislação do PIS e da Cofins, mas se expandiu para as pequenas e microempresas, que não foram abrangidas por essas mudanças e que, ao aderirem ao Simples, ingressaram em um sistema cumulativo por natureza.

Lamentavelmente, a convergência da reforma para uma e apenas uma de suas vertentes empobreceu a discussão e limitou os objetivos a serem alcançados. Como nem o caminho escolhido rendeu frutos, restou um cansaço do tema e uma sensação de impotência, reflexos do malogro sucessivo de inúmeras tentativas.

Já estamos debatendo o tema há mais de 20 anos. Não há necessidade de ideias inovadoras ou mirabolantes. Sabemos onde aperta o sapato tributário e quais soluções simplesmente não vingarão. E mesmo que não o soubéssemos por nós mesmos, bastaria inspecionar a experiência internacional – à qual, país da jabuticaba que somos, temos tanta aversão.

O impasse da reforma tributária é um vergonhoso atraso na agenda política do país. Se não desatarmos o nó das negociações, a reforma, à moda do solilóquio de Hamlet, jamais sairá do to be or not to be. Ou, se sair, será apenas para avançar algumas linhas mais, até o melancólico to die, to sleep, no more.

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