dívida pública – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Tue, 15 Aug 2017 13:01:05 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Faz sentido pensar em auditoria da dívida? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3019&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=faz-sentido-pensar-em-auditoria-da-divida Tue, 15 Aug 2017 13:01:05 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3019 Um argumento frequente em oposição à reforma da previdência (ou a outras medidas de ajuste fiscal) é a necessidade de, antes de tudo, uma “auditoria da dívida”. Tal auditoria parte da ideia que dinheiro público é desviado para o mercado financeiro no processo de financiamento dos déficits públicos. Resolvido esse desvio, sobrariam bilhões de reais em recursos no orçamento, o que tornaria os ajustes desnecessários.

A auditoria da dívida faz sentido? Não, se levarmos em conta, sem lançar mão de teorias conspiratórias, como é constituída e financiada a dívida pública:

  • O principal fator de endividamento é a diferença entre receitas e gastos do governo – o resultado primário. Esses fatores são bem conhecidos e divulgados, e a Lei de Responsabilidade Fiscal pune gastos não autorizados pelo orçamento ou tentativas de inflar a receita (o argumento jurídico no impeachment da presidente Dilma Rousseff). A “auditoria” possível aqui não leva a um grande resultado imediato: depende do controle e fiscalização dos gastos linha por linha do orçamento – algo que, ao menos em teoria, já é feito pelas Controladoria Gerais e outros órgãos de fiscalização;
  • O gasto com juros é determinado pelo tamanho da dívida e as taxas de juros pagas aos detentores de títulos. Sabendo que o Brasil tem taxas de juros entre as maiores do mundo, aqui recai a suspeita da turma da auditoria – os juros altos beneficiariam os detentores de títulos (muitas vezes chamados de “rentistas”), em detrimento da população.

É possível pagar juros mais baixos? Sim, dizem os “auditores”, se for quebrado um suposto esquema de transferência de recursos para o mercado financeiro. Ocorre que nem o governo, nem os detentores da dívida escolhem as taxas de juro que pagam ou recebem. Há um mercado bastante transparente para a dívida pública, como há para ações e outros ativos financeiros. Brasil e muitos outros países realizam leilões para vender seus títulos da dívida, e o chamado mercado secundário troca entre seus participantes bilhões de reais nesses títulos diariamente. A taxa de mercado depende dos juros praticados pelo Banco Central e variáveis que afetam o risco-país – desde balança comercial até percepção de estabilidade (ou instabilidade) política. Como há muitos investidores potenciais nos títulos do Brasil – bancos, fundos de investimento, fundos de pensão, Tesouros de outros países (via fundos soberanos), seguradoras, etc. – é difícil acreditar que há um “cartel dos juros altos”, um grupo organizado que força o Tesouro Nacional a seguir pagando juros altos.

Como baixar, então, os juros? Essa é a pergunta de vários bilhões de reais e para que, infelizmente, não há resposta fácil.

Os juros praticados pelo Banco Central caem na medida em que é possível manter a inflação estável – algo que tem ocorrido, lentamente e com vários retrocessos, desde o Plano Real. Uma queda no risco-Brasil depende de uma mudança de fundamentos, sobretudo relacionados à sustentabilidade da dívida. Os investidores exigirão juros mais altos se há mais dúvidas sobre a capacidade do país pagar, no futuro, sua dívida sem recorrer ao velho truque da hiperinflação. Pagar a dívida é mais fácil se os gastos e receitas do governo são controlados e previsíveis (daí a importância da reforma da previdência e da redução do crédito subsidiado, uma maneira de transferir recursos do governo sem passar pelo orçamento).

Fazer parte de uma comunidade financeira internacional tem custos e benefícios.

É fácil enxergar os custos da dívida financiada a mercado, enquanto os benefícios são difusos e nem sempre claros (estabilidade de preços, acesso amplo e não-seletivo à moeda estrangeira e crédito, investimentos, etc.). Vários exemplos ao nosso redor – Venezuela e Argentina, sobretudo – escancaram os custos da alternativa heterodoxa. É muito mais difícil inovar em política econômica (o que é necessário para melhorar crescimento e distribuição) sem adotar um mínimo de práticas – bastante conhecidas e estabelecidas – que garantam o acesso do país aos mercados internacionais. Há muito o que melhorar no que controlamos, sobretudo se não gastarmos energia com o que não podemos controlar.

 

Este texto foi originalmente publicado pelo Acredito.

 

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Novos Pilares de Responsabilidade Fiscal https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2767&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=novos-pilares-de-responsabilidade-fiscal https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2767#comments Mon, 18 Apr 2016 13:07:46 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2767 A flexibilização da austeridade e a concomitante deterioração das contas públicas demonstram que a manutenção do equilíbrio fiscal ainda depende de novos avanços orientados ao fortalecimento do ambiente institucional público. Trata-se não de medidas conjunturais de contingenciamento de gastos, mas do estabelecimento de marcos complementares aos inicialmente introduzidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

Na nossa história econômica recente, a LRF constitui um dos mais relevantes marcos para o equilíbrio das contas públicas. A partir dos anos 2000, a busca pelo equilíbrio das contas públicas deixou de ser apenas um discurso e passou a estar efetivamente institucionalizada como um próprio código de conduta fiscal de observação cogente pelos gestores públicos em todos níveis federativos, com destaque para os limites de despesas de pessoal e de endividamento que passaram a ser regra rígida.Contudo, pilares institucionais como o conselho de gestão fiscal não foram ainda constituídos. Da mesma forma, a indefinição quanto ao limite do montante da dívida consolidada da União, exigido pelo art. 48, XIV, da Constituição, coloca em relevo a atuação do Legislativo nesse assunto.

 

Conselho de Gestão Fiscal e Instituição Fiscal Independente

A LRF estatuiu que o acompanhamento e a avaliação, permanente, da política e da operacionalidade da gestão fiscal devem ser realizados por um conselho de gestão fiscal (CGF). Esse seria constituído por representantes de todos os Poderes e esferas de Governo, do Ministério Público e de entidades técnicas representativas da sociedade, nos termos de lei ordinária (§ 2º do art. 67 da LRF). Referida lei, contudo, não foi editada e o CGF não foi instituído, passados mais de 15 anos após a edição da LRF.

Isso se explica pela composição do Conselho. Nos termos definidos pelo Projeto de Lei (PL) nº3.744, de 2000, de iniciativa do Poder Executivo1, em tramitação na Câmara dos Deputados desde sua apresentação, os potenciais conflitos de interesse entre partes interessadas na expansão e controle do gasto acabariam afastando uma formatação técnica, como esperado para esse tipo de instituição de controle. Tamanha abrangência e diversidade de participantes poderia ser problemática do ponto de vista da convergência de interesses, tendo em vista, ainda, que a responsabilidade precípua pelo desempenho fiscal é do governo federal. De fato, no lado do governo, a composição deveria estar restrita a quadros do Executivo, que é o responsável por consolidar e apresentar as peças orçamentárias2 – lembrando que essa é a lógica observada na política monetária, desde a edição do Plano Real em 1994, para a composição do Conselho Monetário Nacional, cujos membros são agentes do Executivo Federal.

Recentemente, entretanto, a concepção de conselho de gestão fiscal acabou perdendo força,diante dos debates em torno da Instituição Fiscal Independente (IFI). Essa alternativa passou a ser discutida pelo Senado Federal, em 2015, e foi recentemente aprovada em 2016, nos termos do Projeto de Resolução do Senado nº 61, de 2015. Esta terá caráter técnico e auxiliará o Senado em sua competência de fiscalização do Executivo, reforçando o acompanhamento legislativo das contas públicas, que hoje carece de uma institucionalidade mais efetiva, como demonstra o não funcionamento, ainda que regimentalmente previsto, dos subcomitês permanentes de Fiscalização da Execução Orçamentária e da Avaliação da Receita no âmbito da Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO), vis-à-vis a existência de constrangimento político e de conflito de interesse na relação entre parlamentares e Governo.

No sistema presidencialista, essa autonomia da IFI em relação ao Executivo pode ser considerada mais adequada do que a instituição de um conselho de gestão fiscal composto por quadros do próprio Executivo, composição que conflitaria com o princípio básico de gestão de recursos financeiros, que impõe a execução das funções de execução e controle em pessoas distintas. A IFI pode efetuar controle just in time sobre as contas públicas, em complementação às prerrogativas do Tribunal de Contas da União (TCU), cuja atuação possui ótica essencialmente ex post, ou de julgamento de contas efetivamente realizadas pela União, e à própria CMO.Além disso, a IFI pode ocupar papel central não apenas no controle das contas pelo Legislativo, como também na própria etapa de aprovação das peças orçamentárias anuais, seguindo o exemplo do veterano Congressional Budget Office dos EUA.

De fato, no âmbito global, o estabelecimento de instituições fiscais independentes tem representado uma das principais tendências, tendo sido criadas para controlar a expansão ampla do setor público, como resposta anticíclica que caracterizou o pós-crise 2008 nas economias centrais. Visam robustecer o arcabouço institucional para garantir o equilíbrio duradouro das contas públicas, bem como sinalizar um compromisso tempestivo em prol da sustentabilidade fiscal – finalidades que são aplicáveis e apropriadas também para o setor público brasileiro. No atual momento fiscal doméstico, a constituição de uma instituição técnica como a IFI representa uma possibilidade de elevar a qualidade do debate público sobre a política fiscal, a partir da promoção de maior grau de adequação orçamentária, prestação de contas e accountability.

Isso decorre de sua competência, dentre outras, em estimar parâmetros e variáveis relevantes para a construção de cenários fiscais e orçamentários, com base técnica e não política – por definição, mais crível –, reduzindo a politização em torno das projeções orçamentárias de receitas e despesas. No limite, pode até contrapor a reiterada superestimativa de receitas orçamentárias, que ocorre tanto no âmbito do Executivo quanto no próprio Legislativo, até como meio para dar margem à introdução das emendas impositivas. Com caráter técnico e apartidário, a IFI pode impor maior custo político à eventual indisciplina fiscal,já a partir do processo legislativo orçamentário, estimulando a adoção de políticas fiscais mais sólidas com base em peças orçamentárias mais críveis. Isso pode até evitar casos de revisão de meta fiscal como a que estamos vendo, decorridos apenas poucos meses de execução orçamentária – não que a revisão ao final de um exercício proporcione alguma credibilidade à gestão pública.

Quando falamos em responsabilidade fiscal, o foco sempre esteve voltado à execução financeira da programação orçamentária, mas o ciclo fiscal é mais amplo e começa já a partir das definições e estimativas das peças orçamentárias. Na verdade, a falta de sinceridade na fixação da despesa e na previsão da receita é um grande desafio do orçamento público – por isso o processo legislativo orçamentário deve ser tutelado por um sistema adequado de freios e contrapesos. A integridade e a qualidade das projeções orçamentárias, do planejamento fiscal e, posteriormente, da execução orçamentária devem ser promovidas mediante rigorosa aderência ao conceito de qualidade do gasto público, partindo da reestimativa séria de receitas anuais no Congresso. No presidencialismo de coalizão, a IFI pode mitigar o descompromisso dos parlamentares com o ciclo fiscal, muito mais afetos a ganhos políticos de curto prazo do que com o efetivo controle fiscal-orçamentário.

 

Limite Constitucional para a Dívida Consolidada da União

A responsabilidade fiscal em muito se sustenta em “regras de teto”, que estabelecem limites ou metas quantitativas claras para agregados relevantes como despesas de pessoal, resultados primário ou nominal e dívida pública. São mecanismos de gestão que visam atender à preocupação clássica que diz respeito ao controle de dívida e déficits excessivos.

Ao lado do que já ocorre para os outros entes federados, a regra de “convergência” da dívida da União constitui limitação prudencial e ao mesmo tempo terminativa para o endividamento público federal, nos termos do projeto de Resolução do Senado Federal (PRS) nº 84, de 2007, ainda em tramitação, que propõe a fixação delimite para a dívida federal. A proposição, gestada logo após a introdução da LRF, nada mais constata que há limites para o financiamento do Estado, que precisa estar dentro de uma trajetória crível. Naturalmente, o efeito esperado do indicador proposto é a limitação dos gastos públicos, caminho que o próprio mercado já apontou pelo rebaixamento do grau de risco da dívida soberana brasileira – custo com externalidade negativa para a economia brasileira como um todo, que teria sido evitado diante de um limite já posto legalmente.

Uma preocupação refere-se à factibilidade e ao impacto do nível de endividamento definido – de 4,4 RCL para a dívida bruta –, ainda que seja bem mais amplo do que o estabelecido para os Estados e Municípios (de 2 e 1,2 RCL, respectivamente), para comportar suas atribuições de gestão macroeconômica.Ainda que a definição do indicador envolva incerteza, trata-se de um número crível, que é bem superior ao valor inicialmente apresentado na proposta inicial do Executivo, de 3,5 RCL quando o endividamento estava na ordem de 2 RCL e a preocupação era de ser muito elevado e estimular ainda mais o endividamento da União. O cenário, hoje, é outro, com a deterioração do estoque da dívida para o patamar de 6 vezes a RCL, mostrando a conveniência e a necessidade do novo limite legal.

A sistemática para alcançá-lo mitiga eventual descompasso maior ao setor público, pois, de acordo com a proposta em tramitação, a convergência da dívida com a implementação da regra será gradual em horizonte temporal amplo de 15 anos, com o limite proposto sendo atingido apenas após 2030.Essa sistemática é consistente ao indicar um caminho longo de convergência fiscal, com a proporção de redução de 1/15 por ano,que equivale a menos de 1,5% do PIB – o próprio histórico de esforço fiscal e geração de superávit primário (com valores chegando a 3% do PIB) mostra capacidade de adequação e convergência do setor público.Além disso, traz ressalvas e condições de flexibilização fiscal em situações adversas, uma sistemática que já encontra respaldo na própria LRF.

De fato, há uma tendência global de estabelecimento de regras fiscais múltiplas, controlando mais de um agregado de política fiscal não apenas no curto prazo, como se observa nas economias centrais. O mais comum são regras que controlam o resultado fiscal e a dívida pública simultaneamente, mas, no caso da Europa, mergulhada em grave situação fiscal a partir da crise de 2008, o descontrole orçamentário e da trajetória de endividamento forçou a imposição de um novo conjunto de regras para a convergência e disciplina fiscal, especialmente nos países do Sul, voltadas para a própria estabilização e manutenção do regime monetário da zona do Euro. O Pacto Fiscal Europeu,complementou, em 2012, as regras do Tratado de Maastricht (1992) – que estabeleceu limite de endividamento bruto de 60% do PIB e restringiu o déficit nominal nos países-membros a 3% do PIB. Assim, estipulou limite de 1% do PIB para o chamado déficit nominal estrutural (um indicador de balanço fiscal de médio prazo, ajustado a variações do ciclo econômico), se o estoque da dívida é inferior a 60% do PIB, ou 0,5% do PIB, caso maior. Também faz parte desse pacto fiscal um mecanismo automático de correção, caso seja detectado desvio significativo da meta ou da respectiva trajetória de ajustamento – o que reforça o comprometimento, ex ante, dos governos em cumpri-las, na mesma linha do que está sendo proposto no PRS nº 84, de 2007.

Endividamento público é salutar tanto para o Estado quanto para o agente superavitário e a própria economia, mas encontra limite no tamanho e na trajetória da dívida.Daí que o limite de endividamento proposto pode ser benéfico para corrigir a trajetória de gastos, especialmente se indicadores de esforço primário e, mais ainda, resultado nominal, estabelecidos anualmente, estão sendo reiteradamente desconsiderados ou revisados. Por estar na competência privativa de controle do Senado, esse indicador terá maior estabilidade institucional para equacionar a dívida em uma trajetória sustentável no médio e longo prazo.

O projeto original dessa regulamentação, de 2000, do Executivo, foi desdobrado, no Senado, em duas proposições[3], uma que cuida da União e outra, dos demais entes federados. Esta segunda parte se transformou na Resolução nº 40, de 2001. Assim como o PL nº 3.744, de 2000, que tramita na Câmara, esta também se encontra praticamente no estágio em que foi apresentado – o que sugere uma simetria entre Senado e Câmara evidenciando que os impedimentos à tramitação desses temas não têm cores partidárias.

 

Nova Lei de Finanças Públicas

Também tramita no Senado Federal o Projeto de Lei Complementar (PLS) nº 229, de 2009, que visa introduzir nova lei geral de finanças públicas. O texto estabelece normas sobre orçamento, controle e contabilidade pública, além de contemplar temas como planejamento e orçamento; execução orçamentária; contabilidade e classificação da receita e da despesa. Também abrange aspectos relativos ao reconhecimento e pagamento de obrigações de exercício anterior, e diretrizes contábeis aplicáveis a fundos públicos.

Sua introdução deverá beneficiar o próprio processo legislativo orçamentário nacional, à medida que incorporará várias regras de cunho normativo geral, isto é, aplicáveis também para as demais esferas federadas, além de normas já aplicadas na esfera federal,que são, a cada ano, inseridas nas leis de diretrizes orçamentárias e que já deveriam estar consolidadas como regramento perene.

É relevante a nova regra de que a estimativa de receita orçamentária que o Poder Legislativo aprovar na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) deverá ser mantida tanto nesse projeto quanto no texto da Lei Orçamentária Anual (LOA) enviado para sanção presidencial – mecanismo que visa tornar mais crível o processo de previsão orçamentária das receitas, contrapondo-se ao viés altista não só do Executivo como do Legislativo para abarcar as emendas impositivas. O projeto também reformula o Plano Plurianual (PPA) para simplificá-lo com base no programa de governo eleito com o novo Presidente da República, acabando com o descasamento entre mandato presidencial e PPA.

Na esfera do planejamento, o Sistema Nacional de Projetos de Investimento agregará os dados dos sistemas dos municípios com mais de 200 mil habitantes, constituindo banco de dados único de projetos, cuja inclusão será pré-requisito para inserção no orçamento de cada ente federado. Esse mecanismo reforçará o papel da LDO, com a finalidade de os governos de todas as esferas federadas passarem a fazer um planejamento fiscal de médio prazo consistente, deixando de assumir obrigações futuras sem fontes de financiamento definidas. Para isso, prevê a projeção de todas obrigações já contratadas ou esperadas para os anos seguintes e, a partir da meta fiscal definida, a determinação do espaço disponível para novos projetos, contemplando que os projetos anteriormente aprovados sejam adequadamente observados. Esse detalhamento maior permitirá aprovar somente o que seja efetivamente viável em ser iniciado na prática.

 

Medidas Legislativas Complementares

A responsabilidade fiscal tem na apreciação das contas do Presidente da República pelo Congresso importante pilar institucional, mas a prerrogativa parlamentar acaba esvaziada se for intempestiva – como mostra as contas do governo Collor (1990-1992) que ainda aguardam parecer. A falta de prazos para apreciação de contas destoa do prazo fixo de 60 dias para apresentação das contas pelo Presidente da República e do prazo de 60 dias para emissão de parecer pelo TCU. O estabelecimento de prazo específico é uma necessidade para o exercício tempestivo da função fiscalizadora do Congresso Nacional, uma de suas prerrogativas básicas. Isso porque eventual reprovação de contas, por exemplo no primeiro semestre do ano seguinte ao ano de prestação das contas, pode constituir fato político relevante, além de subsidiar a sociedade sobre a qualidade do gestor público, permitindo-lhe formar melhor julgamento acerca da conveniência da reeleição de um político ou não. Trata-se de importante omissão de controle fiscal.

Também decorre daí a necessidade de sanção mais efetiva a políticos com contas reprovadas. Sanções de baixo custo ao agente político são ineficazes para coibir crime de responsabilidade, ou o desvio da conduta esperada do gestor público. No caso,a sanção de inelegibilidade política do mandatário com contas reprovadas não afeta o curso do próprio mandato, o que não gera uma preocupação tempestiva de curto prazo para o político, nema concomitante aderência às normas de finanças públicas. Talvez seja a hora de aprimorar as regras de gestão com foco nesse horizonte temporal.

O equacionamento da prática de contingenciamento e do uso da rubrica de Restos a Pagar (diante da falta de limite quantitativo específico) também merece avaliação, para valorizar a função de planejamento dos gastos. Se, por uma via, o contingenciamento é medida preventiva que favorece o equilíbrio das contas, sua utilização excessiva compromete a qualidade do gasto, distorcendo o planejamento das ações públicas, em especial por congelar, prioritariamente, despesas de investimentos, o que emperra o desenvolvimento. Sua prática reiterada mostra um enfraquecimento do PPA, que é o instrumento estratégico de investimentos. Hoje, o abuso do contingenciamento desarticula a execução orçamentária ao longo do exercício, que acaba, muitas vezes, concentrada no final do ano, quando sobra pouco tempo para se realizarem as despesas de forma eficiente e racional. Na prática, o Executivo costuma reter os recursos durante o exercício para, após a certeza do cumprimento das metas, pela realização da receita estimada, já próximo ao fim do ano, liberá-los em grandes quantidades para que sejam realizados. Este procedimento leva a sérias dúvidas quanto à qualidade do gasto e à observância do planejamento orçamentário, ensejando licitações aceleradas e preços oportunamente elevados pelos fornecedores.

Um aspecto importante do contingenciamento e da acumulação de contas a pagar no exercício fiscal seguintes é que acaba constituindo um segundo orçamento para competir com o novo orçamento aprovado. A existência de valores expressivos em Restos a Pagar indica, por definição, que será feito novo contingenciamento no ano fiscal seguinte, o que é ruim não apenas para o setor público como para a organização do próprio setor produtivo privado que é contratado. Nesse caso, a prática reiterada e abusiva do poder de contingenciamento e a não execução das despesas orçamentárias previstas acaba transformando o orçamento em uma peça de ficção, pois muitas das despesas previstas simplesmente deixam de ser executadas, ou apenas pagas. Ainda que o contingenciamento seja uma resposta do Executivo ao excesso de autorizações orçamentárias do Legislativo com base em superestimação da arrecadação, o fato é que Congresso Nacional e sociedade acabam não contando com o planejamento orçamentário para direcionar as ações públicas que serão efetivamente realizadas.O processo de planejamento precisa trazer previsibilidade dos gastos e resgatar a credibilidade e a importância do orçamento como mecanismo central da ação pública, que acaba sendo chamado, de forma pejorativa, como mera “carta de intenções”.

O ciclo fiscal é mais complexo do que apenas a etapa de execução dos gastos, pois parte do planejamento orçamentário, de receitas e despesas em equilíbrio, quando da elaboração das peças orçamentárias (com observação das regras de teto), e vai até a fiscalização e aprovação posterior das contas pelo Legislativo. Daí a capacidade de pilares como instituição fiscal independente,limite de endividamento federal e a introdução de novas normas de controle de finanças públicas,como citado, constituírem mecanismos institucionais críveis, que complementarão o arcabouço normativo atinente à gestão fiscal e conduzirão a gestão pública a uma trajetória de maior qualidade e sustentabilidade.

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1http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=20145
2Nesse sentido, o projeto de lei do Senado nº 141, de 2014, tramita para corrigir a fixação de uma composição geral excessivamente extensa ao CGF, com vistas a definir a composição do conselho de forma mais simples.
3http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/44833

 

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Um guia para o ajuste fiscal na economia brasileira: as 23 medidas https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2742&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=um-guia-para-o-ajuste-fiscal-na-economia-brasileira-as-23-medidas https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2742#comments Wed, 16 Mar 2016 12:37:45 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2742 1. Introdução

Apesar da constante negativa dos técnicos do governo, resta evidente que a situação fiscal da economia brasileira tem se deteriorado nos últimos anos. Tanto isso é verdade que, desde 2011, a equipe econômica do governo vem anunciando seguidos ajustes fiscais. Por exemplo, no início de 2011 o governo anunciou um ajuste da ordem de R$ 50 bilhões. Já em fevereiro de 2012 outro pacote fiscal foi anunciado, desse feita da ordem de R$ 55 bilhões.Em 2015 novo pacote de ajustes foi anunciado. A rigor nenhum desses ajustes foi levado a termo, contudo seu simples anúncio denota a preocupação das autoridades nacionais.

Em favor da estabilidade das contas públicas pode-se fazer referência aos seguidos superavits primários obtidos. Contudo, três observações se fazem necessárias nesse assunto: 1) boa parte do superávit tem sido obtida por meio de aumento na arrecadação de tributos, e não com a redução do gasto; 2) ocorreu uma verdadeira operação de maquiagem das contas públicas; e 3) mesmo se levando em consideração os itens 1 e 2, ainda assim o superavit primário tem se reduzido, tendo se convertido em déficit a partir de 2014. Isto é, a sustentabilidade fiscal da economia brasileira suscita dúvidas pertinentes

Do ponto de vista macroeconômico não restam dúvidas de que o lado fiscal desempenha papel importante no desenvolvimento econômico de longo prazo do país. Certamente existem agendas políticas e econômicas distintas. Contudo, é consenso geral de que o equilíbrio fiscal é uma meta de política econômica a ser perseguida. No momento em que escrevemos esse texto, nossa compreensão do cenário atual sugere a necessidade de um forte ajuste fiscal na economia Brasileira.

Este ensaio é apartidário, não se refere a nenhum candidato ou preferência ideológica específica. Aqui constatamos apenas que um forte ajuste fiscal terá que ser levado a cabo nos próximos anos. Este texto é então um guia prático para a realizaçào de tal ajuste. Além dessa introdução, na Seção 2 apresentamos um panorama geral do ajuste fiscal necessário para colocar a economia brasileira numa trajetória sustentável. A Seção 3 traz mais detalhes sobre cada proposta elaborada na seção anterior.A Seção 4 conclui este ensaio.

 

2. Panorama Geral do Ajuste Fiscal

O orçamento federal para o ano de 2012 era de R$ 866 bilhões, com o “corte” anunciado de R$ 55 bilhões ele se reduziu para R$ 811 bilhões. Contudo, dependendo de considerações técnicas, o governo federal teve uma despesa primária no ano de 2011 entre R$ 724 e R$ 757 bilhões. Isto é, o Brasil passou a ser o primeiro país no mundo que anunciou um ajuste fiscal que aumentavaem mais de 50 bilhões de reais (ao invés de diminuir) o gasto público.Mesmo em termos reais, o anunciado ajuste fiscal implicava aumento de despesas! No ano de 2015 não tem sido diferente, o governo anuncia cortes em relação ao orçamento, mas tem pouca capacidade de cortar os gastos em relação ao executado no ano anterior. No Brasil, ajuste fiscal deve ser feito por cortes de gastos em relação ao ano anterior, e não por anúncio de cortes orçamentários (que tal como no exemplo acima, podem implicar aumento de gastos).

Quando se conhece a estrutura do gasto público no Brasil, o primeiro detalhe que chama a atenção é a impossibilidade de se fazer grandes cortes de gastos num único ano. Assim, qualquer pacote fiscal deve ter em mente um horizonte mínimo de 3 a 4 anos. Grandes ajustes dependem de consistentes alterações ao longo dos anos. Essa é a única maneira de se produzir um ajuste fiscal sério no país. Junto com a redução do gasto público deve ser realizada uma reforma que reduza a carga tributária no Brasil.

Quem conhece contas públicas sabe que só existem 5 maneiras de se realizar grandes cortes orçamentários num único ano: 1) cortar investimentos; 2) cortar gastos sociais e transferências; 3) congelar o salário mínimo; 4) aumentar impostos; e 5) inflação. Estou desconsiderando a possibilidade de aumentar os restos a pagar, pois isso apenas transfere a dívida de um ano para outro – ainda assim, o Governo Dilma utilizou reiteradamente este instrumento.

Abaixo estão especificadas as medidas necessárias para a promoção de um ajuste fiscal duradouro na economia Brasileira. Frisamos novamente que a estrutura do gasto público impede sua redução se não forem feitas reformas importantes. De pouco adiantam medidas pontuais aqui. É fundamental que tanto a sociedade quanto a classe política compreendam que sem esse ajuste a situação de longo prazo de nossa economia tende a patamares inviáveis. Muitas vezes ouvimos a grande mídia repercutir sobre os ajustes fiscais ocorridos em alguns paises europeu, tais como na Grécia, como se os mesmos fossem uma questão de escolha política. Não, tais ajustes não foram questão de escolha, foram a consequência inevitável do colapso fiscal de determinados países.

No ritmo em que caminha a situação fiscal brasileira, em breve seremos obrigados a fazer ajustes dolorosos, independente de vontade ou negociação política. Sendo assim, sugerimos que devemos realizar tais ajustes antes do colapso fiscal, isto é, devemos realizar esses ajustes enquanto ainda existem margens de manobra e espaço para negociação política.

 

3. O Ajuste Fiscal Proposto

Dividimos essa seção em duas partes: a) redução do tamanho do Estado na economia pelo lado da despesa; e b) redução do tamanho do Estado na economia pelo lado da receita.

 

A. REDUÇÃO DO TAMANHO DO ESTADO NA ECONOMIA: LADO DA DESPESA

Medida 1: Tesouro – BNDES.

A mais fácil medida a ser tomada para o ajuste fiscal é o fim imediato das operações entre Tesouro Nacional e BNDES. Tais operações geram pesados ônus ao erário, e ao mesmo tempo fragilizam a situação fiscal do país.

De acordo com relatório do TCU,em 2011, o valor dos subsídios decorrentes das operações Tesouro-BNDES foram de R$ 19,2 bilhões (mais R$ 3,6 bilhões de custo orçamentário). Dados da Secretaria do Tesouro Nacional indicam que tais subsídios foram de R$ 7,6 bilhões em 2010, e R$ 1,4 bilhão em 2009. Observem a velocidade da evolução desses custos. Em 2014, após a aprovação da MP 633, o BNDES (e a FINEP) tiveram autorização para emprestar mais R$ 50 bilhões de reais a juros subsidiados. O custo para o contribuinte, apenas em relação a equalização de juros da expansão de R$ 50 bilhões, será de R$ 12,3 bilhões. No ano de 2015 outros R$ 30 bilhões foram transferidos do Tesouro para o BNDES. Tais transferências precisam parar imediatamente.

 

Medida 2: Substituir Investimento Público por Parcerias ou Concessões

Reduzir os gastos com investimento público. Essa é a maneira mais efetiva de se diminuir gastos no curto prazo. Em compensação o estímulo a parcerias público-privadas, ou a concessão a entes privados, pode ser uma política muito mais efetiva para melhorar a infra-estrutura do país.

Sem incluir empresas estatais, o investimento do governo central, estados e municípios é de aproximadamente de 2,3% do PIB.

 

Medida 3: Acabar com a regra atual de reajuste do salário mínimo.

Tal regra implica umpesado ônus para as contas públicas. Além disso, os efeitos deletérios dessa política sobre o mercado de trabalho podem parecer pequenos quando a economia está aquecida e a taxa de desemprego está baixa. Contudo, numa situação de retração econômica e de desemprego alto, esta regra de reajuste tem potencial para aumentar a taxa de desemprego entre os trabalhadores menos qualificados.

Congelar o salário mínimo ajuda muito nas contas da previdência e nas contas de alguns estados e municípios. Cada 1 real de aumento no salário mínimo pode impactar nas contas públicas em algo em torno de 350 milhões de reais/ano.

 

Medida 4: Minimizar os custos decorrentes da Copa do Mundo de 2014.

A escolha de sediar a Copa do Mundo foi um equívoco. Os recursos destinados à construção de estádios poderiam ter sido melhor utilizados numa série outra de programas. Dado que essa alternativa não é mais viável, faz-se necessário uma política pública que minimize os custos de manutenção com estádios. Nesse sentido, propomos duas frentes: a) recuperar o investimento público que foi feito por meio de empréstimos para a construção de estádios; e b) repassar a administração dos estádios a iniciativa privada.

 

Medida 5: Minimizar os custos decorrentes de sediar as Olimpíadas de 2016.

As mesmas ressalvas do item anterior se aplicam aqui. Afinal, num país sem esgoto e sem água encanada, isso não pode ser prioridade de políticas públicas.

 

Medida 6: Projeto de Lei que aumente a idade mínima para aposentadoria para 67 anos.

Não apenas a idade mínima de aposentadoria por idade deve ser aumentada, com uma regra de transição, como a aposentadoria por tempo de serviço deve ser extinta (novamente com regra de transição). Além disso, tanto homens como mulheres devem se aposentar com a mesma idade. Não se deve tentar corrigir problemas do mercado de trabalho (como a discriminação e a jornada dupla da mulher) no sistema de previdência. ESSA MEDIDA É FUNDAMENTAL PARA O EQUILÍBRIO DE LONGO PRAZO DAS CONTAS PÚBLICAS.

 

Medida 7: FIM da aposentadoria por tempo de serviço.

É simplesmente insustentável permitir que um trabalhador saudável se aposente aos 50 anos de idade.

 

Medida 8: Não elevação dos gastos com o bolsa família e implementação de uma regra compulsória de saída.

O problema do bolsa família não está na falta de recursos e nem em sua abrangência (com quase 14 milhões de famílias atendidas e orçamento para o ano de 2015 de R$ 27,7 bilhões). O problema do bolsa família está na ausência de uma regra de saída. Além disso, existem limites para o tamanho da população que pode ser mantida dentro desse sistema. Hoje aproximadamente 1 em cada 4 brasileiros depende do bolsa família. Não parece ser necessário aumentar ainda mais essa proporção.

 

Medida 9: Pente fino na necessidade de se realizar novos concursos públicos

Em anos de ajuste fiscal, a contratação de novos servidores deve ser vista com cautela. O que for possível postergar deve ser postergado.

 

Medida 10:Congelar o Salário dos Servidores Públicos.

Cada caso deve ser analisado separadamente. A regra de ouro aqui é, gradativamente, diminuir parte da excessiva atratividade do setor público. Salários altos, e risco, são características do setor privado. Quem quer ir para o setor público terá menos risco, mas ao custo de um salário menor. Sugestão pontual: congelar o salário dos servidores em 2016 (economia estimada de R$ 15 bilhões).

 

Medida 11: Forte redução com gastos de publicidade.

Deve-se incluir nessa redução não somente o gasto em publicidade do governo federal, mas também o gasto das empresas estatais e dos bancos públicos em propaganda.

 

Medida 12: Proibição do Banco do Brasil e da CEF de comprarem participação em bancos privados.

Tais operações costumam ser onerosas e cheias de risco. Se isso não for legalmente possível, então é melhor vendê-los.

 

Medida 13: Forte redução na quantidade de Ministérios.

Não faz o menor sentido uma estrutura federal composta de 39 ministérios. Tal número deve ser reduzido com a imediata redução do número de funcionários comissionados não concursados presentes nos mesmos. Reduzir o número de ministérios para 20, cortando em torno de 3000 cargos comissionados, e redução de estruturas físicas, tem o potencial de gerar uma economia entre R$ 500 milhões e R$ 1 bilhão (dependendo de quais estruturase de quais cargos seriam cortados).

 

Medida 14: Imediata auditoria nos repasses para todas as ONG´s

Escândalos recentes mostram como é importante, do ponto de vista de moralidade do gasto público, verificar com rigor o repasse de entes governamentais a Organizações Não-Governamentais, abrindo inclusive processo judicial quando se fizer o caso. Inclui-se aqui também o fim do repasse para qualquer ONG ligada a movimentos ilegais (tais como as ligadas ao MST).

 

Medida 15: Revisão das Concessões de Indenização aos grupos denominados “Perseguidos Políticos”

Já se aproxima da casa de R$ 1 bilhão de reais por ano o valor de benefícios concedidos aos anistiados políticos. É fundamental rever o valor das indenizações que esse grupo recebeu nos últimos anos, inclusive com ações judiciais para recuperar somas indevidamente pagas. Adicionalmente, devem ser suspensos novas concessões de indenização a pessoas que dizem ter sido perseguidas pelo regime militar até que sejam esclarecidas as dúvidas aqui levantadas (sobre a utilização desse fundo para beneficiar grupos que nada ou pouco perderam em decorrência da perseguição sofrida durante o regime militar). Caberia, ainda, cassar as indenizações de quem for condenado em crimes contra o erário.

 

Medida 16: Regra para o “Restos a pagar”

Em grande parte das ocasiões, “restos a pagar” é uma maneira de o governo enganar a opinião pública (dizendo que economizou um dinheiro que na verdade gastou). É fundamental para a transparência das contas públicas a aprovação de uma lei que regule “restos a pagar”, impondo limites ao montante de despesa que pode ser postergado para outros exercícios..

 

Medida 17: Redução nas despesas com saúde

De acordo com dados preliminares é possível reduzir os gastos federais com saúde numa magnitude ao redor de 3 bilhões.

 

Medida 18: Redução dos gastos federais em educação

De acordo com dados preliminares é possível reduzir os gastos federais com educação numa magnitude ao redor de 3 bilhões.

 

Medida 19: Abandonar, pelos próximos 4 anos, os grandes projetos tais como o programa Minha Casa Minha Vida ou o PAC

Tais programas são dispendiosos, e antes de se aventurar neles é fundamental sanar as contas públicas do país. O governo deve finalizar imediatamente tais programas, passando imediatamente àiniciativa privada a responsabilidade por tais obras. Na ausência de interesse do setor privado recomenda-se a extinção de TODOS esses grandes projetos quando tal alternativa se faça possível.

 

B. REDUÇÃO DO TAMANHO DO ESTADO NA ECONOMIA: LADO DA RECEITA

Medida 20: Suspensão de vários dos incentivos tributários concedidos nos últimos anos

Não há espaço orçamentário para muitas concessões. Entre os incentivos tributários concedidos ao longo dos últimos anos, a mais famosa foi a desoneração sobre a folha de pagamentos, mas um amplo conjunto adicional de medidas foi implementado para levar benefícios fiscais a setores específicos da economia. Tais incentivos devem ser revogados. Apenas em 2014 essa conta chegou a R$ 88 bilhões. Pelo menos 1/3 desses benefícios deve ser revisto, gerando uma economia aproximada de R$ 30 bilhões.

 

Medida 21: Fim da Isenção de IR para LCI e LCA

Igualar as regras de Imposto de Renda que já incide sobre os CDB’s nas Letras de Crédito Imobiliário (LCI) e nas Letras de Crédito do Agronegócio (LCA). Receita estimada R$ 5 bilhões.

 

Medida 22: Grande processo de privatização de empresas públicas

Captar ao menos R$ 50 bilhões com a venda de ativos públicos (empresas públicas e participações acionárias em empresas privadas).

 

Medida 23: Ampla revisão da legislação ambiental

Essa legislação é um embaraço constante a realização de investimentos privados. Além disso, tal legislação trava também as parecerias público-privadas, e os próprios investimentos públicos.

 

4. Considerações Finais

Ajuste fiscal é isso. Ajuste fiscal corta gastos e corta projetos que talvez sejam importantes, mas que não são urgentes. As medidas anunciadas aqui são certamente impopulares, mas são necessárias para colocar o Brasil novamente numa trajetória fiscal sustentável.

Adicionalmente, faço um alerta: existe uma maneira política mais fácil de se fazer o ajuste fiscal. O nome da saída fácil é inflação. Na presença de taxas de inflação elevadas, os gastos do governo sofrem considerável redução (principalmente a folha de salários, que corresponde a aproximadamente 4,5% do PIB). Além disso, não devemos esquecer que o imposto inflacionário também é uma fonte extra de receita para o governo. Sendo assim, e como o governo é capaz de indexar seus tributos, altas taxas de inflação melhoram as contas públicas. Espero que tenhamos a sabedoria de não incorrer nesse caminho fácil. Querer melhorar as contas públicas por meio de inflação é o mesmo que decepar a mão para se livrar da unha encravada. De maneira alguma devemos recorrer ao expediente inflacionário para sanar nossos problemas fiscais.Infelizmente o governo já está indo nessa direção.

Por fim, deve-se ressaltar que as contas fiscais dos estados e municípios também estão em situação precária, com vários dos entes federativos a beira do colapso fiscal. Em vez de realizar um trabalho sério, e doloroso, de ajuste fiscal, o governo prefere ajustes fiscais fictícios que se baseiam em aumento da arrecadação, truques contábeis, e ganhos com o processo inflacionário. Esse não é o caminho para estabilizar as contas públicas brasileiras no longo prazo.

 

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Contas públicas estaduais em 2015: melhora do resultado primário, mas piora do perfil fiscal https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2730&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=contas-publicas-estaduais-em-2015-melhora-do-resultado-primario-mas-piora-do-perfil-fiscal Mon, 29 Feb 2016 12:44:21 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2730 Introdução

A crise econômica iniciada em 2014 agravou sobremaneira o equilíbrio das contas dos estados brasileiros. Muitos estão com dificuldades para pagar despesas básicas, como folha de pagamento e manutenção. Este texto busca avaliar a evolução deste quadro, utilizando os dados mais recentes disponíveis.

Trata-se de analisar o comportamento das finanças públicas estaduais pelo resultado fiscal na metodologia “acima da linha”, com base nos Relatórios Resumidos de Execução Orçamentária (RREO). Essa metodologia permite avaliarmos os principais componentes do resultado primário, como os tipos de receitas e as despesas pública. O critério da apuração das despesas foi a liquidação, com objetivo de aproximar os resultados à ótica de caixa.

São as seguintes as principais conclusões da análise:

  • O ano de 2015 foi caracterizado pela melhora do resultado primário dos estados, fruto da forte restrição financeira que sofreram, dada sua incapacidade de elevar seu endividamento.
  •  Nenhum estado conseguiu apresentar crescimento real positivo nas receitas primárias, ocasionado pelo baixo dinamismo econômico e queda das transferências legais e voluntárias.
  • Piora do perfil fiscal dos estados: incapacidade de segurar o aumento das despesas de pessoal, cujo crescimento foi acima da inflação para a maioria dos entes, e forte retração dos investimentos.

 

É importante registrar que não existe uma metodologia uniforme para a contabilização das receitas e despesas primárias. Assim, a comparação entre estados pode não refletir, necessariamente,uma situação fiscal melhor ou pior, mas simplesmente formas diferentes de contabilização.

Em 2015, observa-se maior esforço fiscal dos entes estaduais, medido pelo resultado primário reportado, em relação ao ano anterior. Na maioria dos estados, a barra azul (resultado primário de 2015) é superior a barra amarela (resultado primário de 2014). Dos 25 estados analisados (cujos dados estão disponíveis), 19 apresentaram melhora no seu resultado primário, enquanto 6 pioraram. Os estados que reportaram pior resultado, em termos proporcionais às suas receitas primárias, foram o Distrito Federal, Rio de Janeiro, Ceará, Rio Grande do Sul, Acre e Bahia. Entanto Roraima, Amapá, Mato Grosso, Alagoas e Rondônia reportaram os melhores.

Gráfico 1: Superávit primário reportado em 2015 e 2014, em % das Receitas Primárias

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É importante fazer algumas observações sobre o resultado apresentado. Houve o mapeamento da utilização dos depósitos judiciais para o financiamento de despesas por pelo menos três estados. O Rio de Janeiro utilizou R$ 6,7 bilhões, Minas Gerais R$ 2 bilhões e o Rio Grande do Sul R$ 1,8 bilhão. Apesar da utilização dos depósitos judiciais terem características muito semelhantes a uma operação de crédito, uma vez que os estados devem ressarcir em algum dia e também pagam juros sobre o saldo utilizado, os estados classificaram como receitas primárias, o que melhorou o resultado do ano. Se fosse o ajuste do resultado retirando esses depósitos, o Rio de Janeiro passaria um resultado de -20% das receitas primárias em 2015.

Assim como ocorre com os depósitos judiciais, pode fazer outras formas “criativas” de registrar as receitas e despesas que podem distorcer o resultado apresentado. Os estados do Mato Grosso do Sul e do Rio Grande do Norte ainda não divulgaram o RREO do 6º bimestre, por isso foram retirados da análise. O Paraná e a Paraíba ainda não tiveram seu balanço homologado pelo Tesouro Nacional, podendo ainda sofrer alterações nos números. O Distrito Federal teve mudança de classificação das receitas e despesas das transferências do FCDF, de forma que foram feitos ajustes para manter a base comparável.

O resultado primário é um indicador de esforço fiscal, porém não mensura a perda ou melhora da qualidade (ou perfil) das finanças públicas. Dessa forma, foi avaliada a poupança corrente dos estados, calculada pela subtração das receitas correntes menos as despesas correntes dos entes (não são computados os investimentos). Ou seja, é o montante de recursos arrecadado pelo estado (sem se endividar) que não está alocado para despesas de manutenção da máquina pública (correntes). Trata-se de mensurar o quanto sobra para utilizar em despesas de forma discricionária dos recursos próprios dos entes.

Gráfico 2: Poupança Corrente em 2015 e 2014, em % das Receitas Primárias

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Dos 25 estados analisados, 18 pioraram sua situação, contra 7 de melhora. Da mesma forma que os resultados anteriores, a utilização dos depósitos judiciais melhorou artificialmente os resultados dos estados que os utilizaram. O que podemos diagnosticar é que a melhora do resultado primário dos estados em 2015 está associada a uma piora do perfil do gasto público. Este trabalho enumera 3 motivos para esse comportamento das finanças públicas em 2015.

Motivo 1: Menor dinamismo das receitas

O ano de 2015 foi caracterizado por uma forte retração econômica. O indicador de atividade do Banco Central registrou uma retração de 4,1% da economia no ano. Essa recessão provocou efeitos negativos sobre a arrecadação em todos os níveis de governo, uma vez que a base tributária se reduziu. A inflação no ano, calculada em 10,7% a.a. pelo IPCA, contribui para reduzir esses efeitos, porém 6 estados ainda apresentaram variação nominal negativa entre 2014 e 2015, no que tange às receitas.

O Gráfico 3 apresenta a variação das receitas primárias de 2015 em relação a 2014, em termos nominais. Observa-se que, em todos os estados (sem exceção), o crescimento das receitas não foi suficiente para recompor a inflação. Ou seja, observou-se um crescimento real negativo das receitas primárias dos estados. O estado do Rio de Janeiro foi o que apresentou o pior resultado, motivado, majoritariamente, pela queda das rendas e da atividade do setor do petróleo e gás.

Gráfico 3: Receitas Primárias em 2015, variação nominal anual, em %

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Motivo 2: Incapacidade dos governos em cortar despesas obrigatórias, notadamente pessoal

O Gráfico 4 apresenta a variação das despesas de pessoal de 2015 em relação a 2014, em termos nominais. Pode-se observar que a maioria dos estados apresentaram crescimento real positivo das despesas de pessoal, acima de 10% neste ano.

Gráfico 4: Despesas de Pessoal em 2015, variação nominal anual, em %

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Parte dos novos governantes receberam uma conta amarga do seu antecessor, os reajustes salariais parcelados com repercussão financeira no mandato seguinte. Trata-se de uma brecha ainda existente na LRF que provoca efeitos nefastos sobre as finanças públicas. Há o Projeto de Lei do Senado nº 389/2015, de autoria do Sen. Ricardo Ferraço, que tramita no Congresso e objetiva fechar essa lacuna na LRF.

Motivo 3: Ajuste fiscal pelo corte dos investimentos

Com a piora da arrecadação e aumento das despesas obrigatórias, a restrição financeira fez com que os estados fizessem o ajuste nas despesas discricionárias, notadamente nos investimentos. Infelizmente é o componente do gasto que gera maior efeito de longo prazo por ampliar a infraestrutura, além de promover maior efeito multiplicador na atividade econômica e ajudar o país a sair da recessão.

Um problema adicional em cortar investimentos se deve a paralisação de obras. Quando isso ocorre, os projetos passam necessariamente por uma revisão (para cima) nos preços, pelos custos associados à desmobilização de pessoal e equipamentos das obras. Trata-se de algo muito perverso do ponto de vista econômico e social. Os investimentos são as despesas que mais precisam de previsibilidade e são as que mais sofrem flutuações, não é à toa que a qualidade do gasto público é baixíssima no Brasil.

Observa-se que, em termos médios, os estados cortaram em mais de 50% os investimentos neste ano, se comparado com o ano anterior. Assim, o corte das despesas no investimento explica a melhora no resultado primário dos governos estaduais ao mesmo tempo que a poupança corrente piorasse, já que se observou menor crescimento das receitas e maior gasto com despesas corrente.

Gráfico 5: Despesas com investimentos em 2015, variação nominal anual, em %

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Resultados e Conclusões

Podemos observar que os estados passam por um forte processo de ajuste fiscal em relação ao ano anterior. Esse resultado está consistente com os dados apurados pela metodologia “abaixo da linha” do Banco Central. No entanto, devido a rigidez legal e orçamentária do setor público brasileiro, o ajuste fiscal foi de baixa qualidade com menor dinamismo da arrecadação, maior comprometimento com despesas obrigatórias (notadamente pessoal) e corte drástico nos investimentos públicos. Dessa forma, os estados atuam de forma pró-cíclica e agravam os efeitos recessivos da crise econômica sobre a atividade local.

Já passou da hora de revisitarmos as regras que regem o setor público objetivando garantir capacidade de reduzir as despesas obrigatórias e melhorar a qualidade do gasto por meio da flexibilização gerencial. Caso contrário, estaremos fadados a conviver com uma carga tributária cada vez maior e revivendo momentos de crise como o atual.

 

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O que explica a deterioração recente das finanças públicas estaduais e quais são as perspectivas? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2451&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-que-explica-a-deterioracao-recente-das-financas-publicas-estaduais-e-quais-sao-as-perspectivas https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2451#comments Tue, 07 Apr 2015 15:27:36 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2451 Introdução

Este trabalho tem o objetivo de apresentar os fatores condicionantes para a recente deterioração das finanças públicas estaduais e indicar as perspectivas futuras para avaliação do cenário fiscal de médio prazo. Utilizou-se como critério metodológico a abertura do resultado primário dos estados pelo resultado “acima da linha”, onde é possível analisar os componentes das receitas e despesas dos governos estaduais. Essa metodologia permite explicar os principais condicionantes da variação do resultado fiscal, assim como estabelecer critérios de avaliação das perspectivas futuras.

Foi interessante observar que, nos últimos 25 anos, a evolução das finanças públicas estaduais seguiu um comportamento cíclico. No período de 1992 a 1997, houve um processo de forte deterioração das contas públicas, onde o resultado primário saiu da estabilidade em proporção do PIB para um déficit de 0,8%. De acordo com Rigolon e Giambiagi (1999), após o lançamento do Plano Real, em 1994, agravaram-se os desequilíbrios financeiros dos estados e de seus bancos. O fim da hiperinflação e a elevação da taxa de juros real elevaram os compromissos financeiros, reduziram as receitas inflacionárias e anteciparam as crises de liquidez dos bancos estaduais.

Os bancos estaduais foram utilizados como instrumento para financiamento da expansão das despesas e, consequentemente, da elevação do endividamento dos entes. O maior problema encontrava-se na estrutura de incentivos que lastreiam o relacionamento entre os bancos estaduais e seus acionistas controladores majoritários (os governos). A intervenção do Banco Central em diversos bancos estaduais e as trocas de títulos dos estados por títulos federais não foram suficientes para conter o crescimento explosivo das dívidas e a deterioração patrimonial e de liquidez dos bancos estaduais. O governo central foi, então, forçado a negociar novo programa de ajuste fiscal para os governos subnacionais.

No processo de renegociação da dívida dos estados, a União assumiu R$ 101,9 bilhões de dívida estadual para ser parcelada em 30 anos a uma taxa de juros de 6% a 9% a.a., mais a correção monetária do IGP-DI. Em troca, o governo federal exigiu disciplina fiscal dos estados por meio de um contrato com metas relacionadas à: (i) dívida financeira em relação à receita líquida real; (ii) resultado primário; (iii) despesas com funcionalismo público; (iv) arrecadação de receitas próprias; (v) privatização, (vi) permissão ou concessão de serviços públicos, (vii) reforma administrativa e patrimonial e (viii) despesas de investimento.

De fato, pelos dados agregados, o programa de ajuste fiscal de 1997-98 foi bem sucedido nos seus objetivos. Como pode ser observado no Gráfico 1, o resultado primário dos governos estaduais saiu de um déficit acima de 0,4% do PIB em 1998 para um superávit de 1% do PIB em 2007. Esse comportamento, no entanto, iniciou tendência de deterioração em 2008, com a crise internacional até 2010. Em 2011, observamos comportamento de recuperação do resultado, seguindo o esforço observado pelo Governo Federal na época. Porém, desde 2012, o resultado primário dos estados apresentou tendência de deterioração de maneira drástica, registrando déficit de 0,3% em dezembro de 2014.  A seção seguinte busca mostrar os principais determinantes desse comportamento.

Gráfico 1: Resultado Primário dos Governos Estaduais acumulado em 12 meses, em % PIB

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Detalhamento dos Dados de Receitas e Despesas Primárias

A fonte de dados utilizada neste estudo foram os relatórios de execução orçamentária por meio do Siconfi (Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor Público Brasileiro), aberto ao público, pela Secretaria do Tesouro Nacional. O período de análise foi de 2002 a 2013 (último dado disponível para o resultado fiscal acima da linha). Foram realizados ajustes no banco de dados com o objetivo de padronizar as informações dos estados e corrigir mudanças metodológicas na medida do possível. Há estados, por exemplo, que contabilizam despesas de inativos e pensionistas como custeio. Utilizou-se o padrão de contabilização do Governo Federal para a reclassificação das despesas. Além disso, seguiu-se a definição do resultado primário conforme Relatório Resumido de Execução Orçamentária (RREO).

O Gráfico 2 apresenta a taxa de crescimento real das receitas e despesas primárias. Observa-se que, no período pré-crise, tanto as receitas como as despesas primárias cresciam a uma taxa bastante elevada. Além disso, o crescimento das receitas acima das despesas permitiu os ganhos observados no resultado primário até 2007. No período, a taxa de crescimento real das receitas em 6,5% a.a., superior ao do crescimento do PIB, implicou o aumento do tamanho do estado na economia.

Gráfico 2: Receitas e Despesas Primárias, taxa de crescimento real, em % a.a.

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Gráfico 3: Receitas e Despesas Primárias, em % PIB

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Após 2008, observa-se um quadro de deterioração fiscal com as despesas crescendo a taxas elevadas, enquanto as receitas já não conseguiram crescer com mesmo dinamismo. Essa tendência levou os estados a um resultado fiscal deficitário em 2013 (Gráfico 3).

Desagregando as receitas primárias em tributárias, transferências do governo federal e demais receitas primárias (Gráfico 4), verifica-se que a maior contribuição da arrecadação dos estados entre 2003 e 2008 veio das receitas de transferências, explicando a melhora em 0,9 p.p. do PIB na arrecadação. Essas receitas são influenciadas pela arrecadação do IPI, Imposto de Renda e CIDE. Nesse período, as políticas de transferência de renda do governo federal, estímulo ao consumo pela expansão do crédito e aumento da formalização do trabalho, ampliaram bastante a base de cálculo desses tributos. As demais receitas primárias e as receitas tributárias contribuíram com 0,3 p.p. e 0,2 p.p. do PIB respectivamente. No total, as receitas cresceram 1,4 p.p. do PIB (elevação da carga tributária) até 2008.

Gráfico 4: Receitas Primárias, em % PIB

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No período após 2008, observa-se que as receitas de transferência iniciam trajetória declinante, chegando a perder 0,5 p.p. do PIB até 2013 (último dado disponível). Essa trajetória das receitas de transferência é explicada pela política de desonerações do IPI (carros, eletrodomésticos, etc) e CIDE do Governo Federal, como forma de combater os efeitos da crise. Observou-se que a manutenção dessa estratégia política levou a uma trajetória de queda contínua das transferências.

As receitas tributárias sofreram pequena queda de 0,1 p.p. do PIB no período, mesmo com um crescimento menor do PIB no período. Parte significativa das receitas tributárias se concentra em ICMS sobre energia elétrica, telefone e combustíveis (preços administrados), que cresceram a uma taxa menor que a inflação média no período. A compensação da queda das duas classificações acima foi dada pelas demais receitas primárias, como juros e mora de tributos e “receitas diversas”. É possível que os estados tenham elevado seus esforços em reaver dívidas anteriores por meio de programas de desconto na renegociação com contribuintes inadimplentes.

Do lado das despesas (Gráfico 5), observamos uma tendência clara de expansão das despesas de pessoal pelos estados, a despeito da dificuldade de elevar, de forma significativa, os tão necessários investimentos públicos. Separando as despesas nos dois períodos de análise (2003-2008 e 2009-2013), observa-se que as despesas de pessoal, de custeio e de investimentos cresceram cada 0,4 p.p. do PIB entre 2003 e 2008. No total, as despesas totais cresceram 1,2 p.p. do PIB (inferior ao crescimento das receitas).

Gráfico 5: Despesas Primárias, em % PIB

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Após 2008, observa-se um forte crescimento das despesas de pessoal, com expansão de 0,7 p.p. do PIB até 2013, enquanto o custeio cresceu 0,1 p.p. e os investimentos 0,2 p.p. do PIB. No total, as despesas primárias cresceram 1,0 p.p. do PIB, superior ao 0,1 p.p. do crescimento das receitas, o que explica a deterioração das contas públicas no período. Dessa forma, a deterioração das contas públicas dos estados ocorrida entre 2008 e 2013 pode ser explicada 70% pela elevação das despesas de pessoal, 10% do custeio e apenas 20% dos investimentos.

É importante ressaltar que a redução temporária do resultado primário, em teoria, pode ser salutar, desde que os recursos sejam empregados na expansão da capacidade da economia, como por meio dos investimentos em infraestrutura ou em educação. O que observamos, nos dados acima, é que os investimentos não cresceram. Foi também feito um levantamento das despesas na função orçamentária educação dos estados. Em 2008, essas despesas equivaliam a 2,2% PIB e, em 2013, caíram para 2,0% do PIB. Ou seja, houve redução de 0,2 p.p. do PIB.

O que podemos verificar nos dados citados é que a participação dos investimentos em infraestrutura e em educação nas despesas totais dos estados caíram. Houve piora da situação fiscal (resultado primário) ao mesmo tempo em que houve piora do perfil do gasto público. É o pior cenário possível. Infelizmente, os estados, no agregado, perderam uma boa chance de ampliar seus investimentos em infraestrutura ou em educação no período, enquanto ainda dispunham de espaço fiscal. Agora, a situação fiscal será mais complexa de ser equacionada.

Outro fato interessante de ser observado é a rigidez orçamentária brasileira. Note que, no ano de 2011, houve ajuste fiscal tanto no nível federal, quanto no nível estadual. Infelizmente esse ajuste de 2011 foi realizado basicamente sobre os investimentos, com retração de 0,4 p.p., enquanto as despesas de pessoal subiram 0,2 p.p. e o custeio permaneceu estável no período. Esta é uma face perversa do ajuste fiscal realizado pelos governos. Não há como poupar os investimentos de cortes enquanto tivermos a atual rigidez da estrutura orçamentária brasileira.

Este trabalho também realizou a análise do endividamento dos estados e a capacidade de investir com recursos próprios. Define-se a capacidade de investir com recursos próprios (ou poupança corrente) como a diferença das receitas correntes com as despesas correntes. Em uma linguagem mais simplificada, o montante de recursos que sobram para investir fruto da diferença entre as receitas tributárias com os pagamentos das obrigações de pessoal, juros e custeio. Ou seja, não estão computados na capacidade de investir os recursos originários do endividamento público.

Gráfico 6: Receitas de Operações de Crédito e Capacidade de Investir com Recursos Próprios, em % PIB

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No Gráfico 6, é possível observar que, até 2008, a capacidade de investir com recursos próprios subiu consideravelmente, em 0,9 p.p. do PIB desde 2003. Porém, no período pós da crise de 2009, esse indicador caiu fortemente para 1,2% do PIB. Houve recuperação em 2010 e 2011 e voltou a mostrar deterioração em 2012 e 2013. Em 2013, a capacidade de investir com recursos próprios dos estados atingiu o menor nível em 10 anos, 1% do PIB, ou seja, apenas 7,5% de tudo o que é arrecadado pelos estados.

Esse comportamento é explicado em boa medida pelo comportamento das receitas de operações de crédito dos estados (endividamento). No Gráfico 6 é possível verificar que o montante dessas receitas estava relativamente estável até o ano de 2011. Em 2012, essas receitas triplicaram de valor como proporção do PIB, para 0,6%, e em 2013 elevaram ainda mais para 0,8% do PIB.

É interessante observar que a elevação das receitas de operações de crédito em 2012, em 0,4 p.p. do PIB, não implicou elevação das despesas de investimentos (Gráfico 5). O que observamos no ano de 2012 foi que as despesas de pessoal subiram na mesma magnitude (0,4 p.p. do PIB). Ou seja, há um indicativo de que a maior disponibilidade financeira das operações de crédito permitiu expansão das despesas de pessoal, enquanto os investimentos não foram realizados. Esse comportamento explica a queda na capacidade de investir dos estados nesse ano, uma vez que houve expansão de despesas correntes, por meio do endividamento, sem o aumento das receitas tributárias.

 

Perspectivas Futuras

O que podemos esperar das contas estaduais no médio prazo? Vai depender de inúmeros fatores econômicos e financeiros que impactam as contas públicas. Em 2015, podemos verificar que a maioria dos estados passam por situação crítica em suas finanças públicas. Muitos, inclusive, tendo problemas de caixa para pagar até as despesas de pessoal.

Enumero as cinco principais variáveis para o comportamento futuro das finanças públicas estaduais, assim como sua tendência de médio prazo:

  • Crescimento econômico: variável chave para a ampliação da base de arrecadação. Perspectivas não são boas. Neste ano de 2015, a previsão de mercado indica contração de 1% do PIB e de expansão de apenas 1,2% em 2016. Nos anos seguintes, o potencial de crescimento dependerá da implementação de reformas, principalmente microeconômicas, que o governo tenta fazer neste ano.
  • Inflação: variável igualmente importante para elevação da base tributária. Do ponto de vista fiscal, a tendência de alta dessa variável vai compensar parcialmente a falta de crescimento econômico nos próximos dois anos. A previsão de mercado indica inflação de 8,1% para 2015 e 5,6% em 2016. Destaca-se a elevação dos preços administrados acima da média geral, como gasolina e energia elétrica, que tem elevado peso nas arrecadações estaduais, o que pode ajudar na recuperação das receitas.
  • Royalties: Essas receitas são muito importantes para alguns estados e municípios. O preço do petróleo caiu fortemente nos últimos meses e não há perspectivas que ele retorne para os patamares observados nos últimos anos. É um fator negativo para o reequilíbrio das contas de alguns estados. Por outro lado, a depreciação cambial e o aumento da produção (em que pese a crise da Petrobras) podem neutralizar parte dessa queda.
  • Despesas: Dada a crise financeira que vários governos encontraram neste ano, há perspectiva de redução da taxa de crescimento das despesas. Infelizmente, o maior corte será sobre os investimentos. O problema se encontra na rigidez orçamentária brasileira (difícil cortar despesas de pessoal e custeio) e no comportamento oportunista de alguns governadores, no ano passado (eleição), de negociar reajustes salariais parcelados para a conta ser paga em 2015 e 2016.
  • Autorização de Endividamento: A ampliação dos limites de endividamento dos estados impacta negativamente o resultado primário pois se trata de uma receita financeira normalmente vinculada a gastos primários. Vescovi (2014) fez o levantamento do cronograma das operações de crédito já aprovadas. Verifica-se que em 2014 houve o impacto máximo das autorizações recentes dadas aos Estados (o que explica a forte queda no primário desse ano).  A perspectiva futura é de redução desse montante, caso o governo não autorize mais operações. Espera-se, dessa forma, que essa variável não seja propulsora futura de deterioração fiscal.

 Gráfico 7: Operações de Crédito Autorizadas aos Estados, em R$ bilhões

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Conclusão

As finanças públicas estaduais apresentaram comportamento cíclico no Brasil nos últimos 25 anos. Desde 2012 iniciamos um ciclo de deterioração mais acentuado das contas estaduais, que já reverteu os ganhos observados até o ano de 2008. Infelizmente os estados perderam a oportunidade de ampliar os investimentos em infraestrutura ou em educação, mantendo estáveis as despesas com custeio e pessoal. Agora, teremos que aguardar mais um ciclo de bonança para que os estados possam ampliar sua capacidade de investir. Nessa tendência cíclica, tudo indica que 2014 foi o ano com pior resultado fiscal e que as perspectivas futuras são de retomada gradual do superávit primário.

Essa tendência de recuperação gradual será ajudada pela inflação mais elevada, com correção dos preços relativos (administrados), pelo maior rigor no controle das despesas, com a crise financeira observada em alguns estados, e pelas perspectivas de redução no ritmo de aprovação das operações de crédito. Como força contrária, atuará o menor dinamismo da economia brasileira, associado à queda dos investimentos próprios, dos investimentos do governo federal e das estatais (notadamente a Petrobrás), além da redução do preço do petróleo.

É importante que reconheçamos a oportunidade perdida, no nível estadual, de melhorar o perfil do gasto público. O ciclo de bonança das contas públicas acabou e precisamos construir os alicerces para a sustentabilidade futura. É necessário refletir sobre o papel do estado em atuar com qualidade em suas atividades primordiais, como educação e infraestrutura, antes de querer expandir para outras áreas. Não custa lembrar que, na economia, nada é de graça. O princípio da escassez, já bem consolidado nas sociedades de economias avançadas, precisa ser discutido com maior seriedade no Brasil. Existem escolhas difíceis a serem exercidas pela sociedade brasileira, a protelação delas só vai agravar o quadro para o desenvolvimento econômico para as futuras gerações.

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Referências

RIGOLON, F. E GIAMBIAGI, F.  A Renegociação das Dívidas e o Regime Fiscal dos Estados. Textos para Discussão do BNDES número 69, 1999.

SICONFI (Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor Público Brasileiro). Base de Dados in https://siconfi.tesouro.gov.br/siconfi/. Secretaria do Tesouro Nacional, Ministério da Fazenda.

VESCOVI, A. P. Endividamento dos Estados. Apresentação, São Paulo, maio, 2014.

 

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Os conflitos federativos na democracia brasileira https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2278&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=os-conflitos-federativos-na-democracia-brasileira https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2278#comments Mon, 01 Sep 2014 14:14:44 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2278 Introdução

As regras de relação federativa no Brasil são em parte herdadas do período militar e em parte construídas ou adaptadas após a redemocratização. A parcela herdada do passado não–democrático – como o arranjo do CONFAZ para gerir o ICMS – simplesmente perdeu funcionalidade, porque pressupunha centralização de poder nas mãos do Executivo federal (no caso do CONFAZ, poder do Ministro da Fazenda e submissão dos secretários estaduais). A parcela criada ou reformulada no período democrático padece dos problemas vividos por nossa democracia que, como argumentado adiante, estimula forte conflito distributivo entre diferentes grupos de interesse, organizados em bases sociais, profissionais, ideológicas, religiosas, entre outras. Os problemas federativos são mais uma dimensão desse conflito, tendo as regiões, estados e municípios como núcleo de organização dos interesses conflitantes.

A democracia brasileira está sendo construída em uma sociedade bastante desigual. A desigualdade não se restringe às dimensões de renda e patrimônio, mas também de acesso a serviços públicos e à justiça, de nível educacional e também das condições econômicas e possibilidades de desenvolvimento regional.

Ao transitar de um regime fechado, sem espaço para pressões políticas por redistribuição, para um regime aberto, com ampla representação política, a sociedade brasileira viu explodir as demandas de diversos grupos de interesse. O Congresso Nacional tem representantes declarados ou ocultos de inúmeros grupos profissionais, sociais e ideológicos, oriundos de todos os níveis de renda: bancada ruralista, bancada da bola, movimento negro, bancada da saúde, bancada da educação, bancada municipalista, etc. O nosso sistema eleitoral permite esse tipo de representação, ao adotar o voto proporcional com distritos eleitorais amplos.

Embora não caiba aqui uma detalhada análise do sistema político eleitoral, o que inclusive exigiria que se explicitassem os benefícios que esse sistema traz; o que é relevante ressaltar é que cada um dos inúmeros grupos de interesse tem uma agenda que busca não apenas aumentar o gasto público em favor da sua causa ou grupo social, mas também criar regras que lhes concedam novos privilégios ou protejam os antigos. Por exemplo, subsídios ou proteção comercial criados no passado são renovados independentemente de terem sido bem-sucedidos ou não, porque criaram clientes que deles auferem renda e se mobilizam para perenizá-los.

A combinação de grande heterogeneidade social com ampla liberdade de reivindicação e de representação política acaba levando a forte conflito distributivo. Tal conflito, ao resultar na expansão do Estado, tanto pela via do gasto (e da tributação) quanto pela via da regulação econômica ineficiente (que busca proteger renda de grupos); acaba minando a eficiência da gestão pública e a produtividade da economia. O resultado é o baixo crescimento econômico. O bolo de renda a ser dividido fica menor do que poderia ser, o que reforça o conflito original, colocando o país em uma armadilha de baixo crescimento e limitada capacidade de fazer reformas que quebrem privilégios e sejam capazes de aumentar a eficiência e o crescimento.

O restante deste texto apresenta os principais problemas de relação federativa no Brasil, mostrando como eles se situam nesse modelo geral de democracia conflituosa e de herança de instituições do período autoritário.

ICMS e CONFAZ

O ICMS é um imposto sobre o valor agregado pertencente aos estados. Como forma de incentivo para atração de empresas, vários estados passaram a conceder isenção de impostos. Para evitar essa guerra fiscal, instituiu-se o Confaz como instância deliberativa, em que a isenção fiscal oferecida por determinado estado somente seria permitida caso os Secretários de Fazenda de todas as unidades da federação, por unanimidade, aprovassem tal isenção. Ocorre que esse modelo só funcionava em um ambiente político centralizado, no qual o poder central, representado pelo Ministério da Fazenda, impunha as regras, e os representantes estaduais não tinham poder para desafiá-las. A partir do momento em que houve democratização e descentralização do poder, tornou-se inviável a gestão consensual do ICMS.

Tampouco parece haver espaço para uma solução cooperativa, com a redução da alíquota interestadual do ICMS para coibir a guerra fiscal, simplesmente porque o Governo Federal não tem credibilidade para oferecer compensações aos perdedores.

Essa falta de credibilidade decorre, em primeiro lugar, do fato de que a real compensação seria a implantação de infraestrutura de transportes e logística que efetivamente integrasse as áreas mais distantes do país aos centros consumidores e aos pontos de exportação. Ocorre que o Governo Federal não consegue oferecer tal infraestrutura a curto e médio prazo, pois os investimentos no setor se tornaram presa do conflito distributivo em torno das verbas orçamentárias. Para gerar benefícios que representam renda no bolso dos diversos segmentos sociais (remuneração do funcionalismo, aposentadorias e pensões, assistência social, crédito subsidiado em bancos públicos, perdão de dívidas agrícolas, etc.) foi necessário não apenas elevar a tributação, mas também cortar os investimentos em infraestrutura.

Sem as necessárias artérias de transportes, os estados de economia mais atrasada não conseguem se integrar ao polo dinâmico da economia e perdem a oportunidade de utilizar suas vantagens comparativas (mão de obra e custo de terrenos mais baratos, por exemplo) para atrair investimentos e empregos. Resta o caminho conflituoso da guerra fiscal, que não só distribui custos de maneira aleatória (quem paga o custo do incentivo é o estado de destino das mercadorias), como incentiva a alocação ineficiente dos investimentos (que se baseia nos custos tributários e não nos custos de produção). Ademais, o excesso de regulação federal na área de portos, voltada a proteger a renda dos empregados do setor e o mercado dos operadores, impede que os estados litorâneos disponham de plataformas eficientes de comércio internacional.

Também contribui para a baixa credibilidade das ofertas federais de compensação a posteriori a experiência da Lei Kandir, em que alguns estados argumentam que não foram plenamente compensados pela desoneração de exportações, conforme estabelecido naquela lei. O fato é que, com o gasto público sempre crescente, decorrente do conflito distributivo acima referido, há sempre o risco de promessas de futuras compensações financeiras serem frustradas pelo próximo contingenciamento orçamentário.

Somente a ameaça de uma medida drástica, como a declaração de ilegalidade dos benefícios com efeito retroativo, pode forçar as partes a negociar e chegar a um acordo. Isso, contudo, não se fará sem impor perdas a alguns estados e deixar cicatrizes nas relações políticas.

Royalties de Petróleo e CFEM

A disputa aberta travada entre os estados acerca das regras de distribuição dos royalties do petróleo é um exemplo típico do conflito distributivo que impera no país. Não há argumentos tecnicamente convincentes para que os royalties se concentrem nos estados e municípios próximos aos locais de produção. Tampouco existem argumentos para sustentar a transferência desses recursos aos estados e municípios, em vez de concentrá-los nas mãos da União. Há robustas evidências empíricas de que os estados e municípios que “enriqueceram” com as receitas de royalties desperdiçaram parte significativa dos recursos, que somem sob a forma de captura pela burocracia, desperdício ou corrupção1. Apesar de tudo, continua o debate pela descentralização e redistribuição dos recursos. Quem fala mais alto leva!

Note-se que se está discutindo a distribuição das rendas de um petróleo que sequer saiu do fundo do mar e que enfrentará grandes desafios tecnológicos para chegar à superfície e ser transportado até o continente. Somos incapazes de nos concentrar na discussão sobre a forma mais eficiente de produzir e vender o petróleo, ou seja, de como aumentar a arrecadação total decorrente da extração do óleo. A discussão é essencialmente distributiva. E é assim porque o conflito é alto e acirrado. Quem cochilar perde tudo para o vizinho.

Por que não se discute a possibilidade de os recursos dos royalties de petróleo financiarem a tão necessária infraestrutura que integraria o país e daria competitividade aos estados e municípios mais distantes? Mais uma vez surge a falta de confiança entre as partes. Cada prefeito e governador prefere ter o dinheiro na mão, ainda que seja para fazer um investimento com menor impacto para o desenvolvimento local, quando comparado a grandes investimentos de âmbito nacional, com medo de que o governo federal simplesmente não faça investimento algum. Há também o risco de as obras federais, por mais importantes que sejam para o País como um todo, trazerem pouco benefício para determinado estado ou município. Por exemplo, a construção de uma rodovia interligando as áreas produtoras de soja do Mato Grosso ao Porto de Paranaguá pouco contribui diretamente para o bem estar de um morador da Bahia. Além disso, também existe, no âmbito estadual e municipal, o mesmo conflito distributivo, em que grupos demandam emprego público, subvenções e outros benefícios localizados. Portanto, a demanda de primeira ordem para governantes estaduais e municipais é ter dinheiro na mão para atender as pressões políticas locais.

Zona Franca de Manaus e Fundos de Desenvolvimento Regional

A Zona Franca de Manaus (ZFM), recentemente renovada por mais 50 anos, é um exemplo típico de incentivo que sobrevive graças ao seu fracasso. Seus beneficiários não querem perder o privilégio, e lutam para perpetuá-lo. A ideia original era dar incentivos fiscais temporários para que a indústria se instalasse naquela região e, com o tempo, adquirisse escala de produção suficiente para se tornar viável e capaz de competir com indústrias do restante do país e do mundo.

Passados 47 anos desde a implantação da ZFM, ela continua dependente de isenção tributária para sobreviver. O total de gastos tributários federais com a ZFM é da ordem de R$ 22 bilhões por ano. Cada um dos 500 mil empregos diretos e indiretos gerados na região custa ao país, em termos de benefícios fiscais, algo como R$ 44 mil por ano. No limite, seria mais eficiente pagar esse valor a cada pessoa hoje empregada na ZFM, o que corresponde a R$ 3,7 mil por mês, para que ela ficasse em casa, transferindo a produção para outra região do país que tenha competitividade para produzir sem precisar de incentivos fiscais2. Mantido o mesmo nível de gasto tributário, o País teria ganhos em termos de produtividade e redução de custos de logística e transportes, ficando em situação melhor que a atual, na qual, além dos custos fiscais, incorre nos custos de eficiência!

Porém, é politicamente inviável acabar com o incentivo e deixar um vazio demográfico e econômico em Manaus. O custo político é alto, e a pressão dos grupos beneficiados sobre o Congresso muito alta.

Raciocínio similar aplica-se aos fundos constitucionais de financiamento do setor produtivo. Apenas os fundos constitucionais absorvem 3% da receita de Imposto de Renda e IPI. A inadimplência dos tomadores desses recursos é alta, os custos operacionais dos bancos públicos que gerem os recursos são elevados (e consomem boa parte da verba orçamentária destinada aos financiamentos). Não há evidências de que, após décadas de financiamentos dessa natureza, tais instrumentos tenham sido capazes de fechar significativamente o hiato de desenvolvimento entre o Sul-Sudeste e o Norte-Nordeste. No entanto, os mecanismos seguem intocados, e sempre que possível as partes interessadas batalham por mais recursos e novos fundos.

Não há, no âmbito dos debates federativos, qualquer estudo mais detalhado de impacto, que mensure os custos e benefícios desses mecanismos e que abra um debate sobre como melhor usar esses recursos em prol do desenvolvimento regional. Faz-se hoje o que se fazia no passado, ainda que os resultados sejam medíocres. Qualquer possibilidade de reforma é bloqueada pelo medo de se perder recursos. Há um viés a favor do status quo.

O mesmo ocorria com os royalties, que durante anos foram canalizados para alguns poucos estados e municípios sem que os demais reclamassem. A perspectiva de aumento no valor total distribuído a partir da descoberta do pré-sal, contudo, aumentou o custo da inação política. E o debate sobre a redistribuição foi aberto.

No caso da ZFM, talvez os demais estados não se tenham dado conta do elevadíssimo custo. No caso dos fundos constitucionais, por beneficiarem estados de três regiões, é possível que haja, no parlamento, maioria favorável à sua continuidade. Afinal, rediscutir maior eficácia na aplicação desses recursos sempre gera o risco de se perder as verbas para outros grupos de pressão, localizados fora das áreas hoje beneficiadas pelos fundos. Não se pode esquecer, ademais, do grande incentivo que têm os atuais beneficiários de ambos os mecanismos para criar mobilização política em favor da manutenção de seus privilégios.

Criação de Obrigações aos Estados e Municípios sem o Respectivo Suporte Financeiro

Outra manifestação clara das consequências do conflito distributivo sobre as relações federativas são o que em inglês se chama de “unfunded mandates”: o legislador federal cria uma obrigação de ação ou gasto para os estados ou municípios sem, contudo, lhes fornecer os recursos necessários para cumprir a nova lei. Há abundantes exemplos de legislação recentemente aprovada no Congresso com essas características. Por exemplo, o piso nacional para a remuneração do magistério, a absorção dos agentes comunitários de saúde como servidores públicos com plenos direitos, as obrigações decorrentes da nova legislação de coleta e tratamento de lixo. Há mais demanda na fila, como a famosa PEC 300, que cria piso nacional para os policiais militares e bombeiros.

De uma hora para outra o prefeito ou governador descobre que tem mais metas a cumprir, mais gastos a fazer, e tem que encontrar dinheiro no orçamento para custear isso. Por que tais leis são aprovadas? Exatamente porque os grupos de pressão interessados nos benefícios que elas proporcionam (professores, agentes comunitários de saúde, organizações de defesa do meio-ambiente,etc.) conseguem se fazer ouvir e, sobretudo, conseguem fazer aprovar legislação sem um adequado estudo de seus custos e benefícios. Trata-se de clara expressão do conflito distributivo, em uma sociedade com interesses diversos e fragmentados, onde há ampla representação classista e setorial.

É preciso evoluir no sentido de se colocar restrições institucionais que impeçam o legislador federal de criar obrigações para os estados e municípios sem, concomitantemente, fornecer os meios financeiros para viabilizar a implantação de novas políticas. Isso certamente irá gerar legislação mais consequente, e abrirá caminho para soluções negociadas. Por exemplo, ainda que seja ótimo termos uma legislação muito avançada de coleta e processamento de lixo, é preciso analisar os seus custos fiscais. A eventual adoção de métodos mais avançados que os atuais não significa que precisamos ir para a fronteira tecnológica. É preciso balancear benefícios e custos, poupando-se recursos e adequando-se a ação pública às restrições fiscais dos estados e municípios. Ou seja, é bom sonhar em ter um Jaguar ou uma Mercedes, mas a realidade da conta bancária nos leva a comprar um carro mais modesto. No nosso sistema político atual, o legislador federal ordena aos prefeitos e governadores que comprem uma Mercedes, porque é isso que um grupo de pressão pediu ao Congresso. Mas não dá um tostão para ajudar a comprar o carrão.

O FPE e o FPM  e a lógica da Ação Coletiva

O Fundo de Participação dos Estados (FPE) e o Fundo de Participação dos Municípios (FPM) fornecem dois bons exemplos de como o conflito distributivo generalizado impede que se melhore a alocação dos recursos públicos.

Comecemos pelo FPE. Como é sabido, no passado recente alguns estados se sentiram prejudicados pelo fato de as cotas do FPE a que tinham direito estarem congeladas desde a década de 1990, e não mais obedecerem à regra de partilha anterior, em que se levava em conta a população e o inverso da renda per capita. Pois bem, seguindo a regra de cada um lutar pelo seu pedaço de orçamento, os estados prejudicados pela regra vigente ingressaram no Supremo Tribunal Federal com ação questionando a legislação. Pretendiam, com isso, aumentar o seu quinhão no FPE em prejuízo de outros estados, que perderiam participação.

O Supremo, como é sabido, decidiu pela inconstitucionalidade da lei e determinou ao Congresso a substituição da norma por outra cujos critérios contemplassem a variação das condições socioeconômicas dos estados ao longo do tempo. Tal norma deveria ser aprovada até 31 de dezembro de 2012. A obrigatoriedade de se discutir novos critérios, em que não havia como gerar ganhos para todos, e alguns estados certamente perderiam, abriu forte conflito. Jamais se chegou próximo a um acordo para uma solução que distribuísse os recursos de forma eficiente, que transferiria mais verbas para os estados com maior hiato entre a capacidade de arrecadação e os gastos obrigatórios.

Uma característica importante da decisão do Supremo era a de impor o risco de elevada perda a todos os estados, caso não se aprovasse uma nova legislação. Findo o prazo, o FPE deixaria de ser distribuído a todos. O correr do tempo sem se chegar a um consenso redistributivo levou os estados a se unirem em torno de uma solução para evitar a perda para todos, mantendo tudo como estava antes. Simplesmente aprovou-se uma lei que reproduzia a regra já existente, com uma transição para o novo critério que é tão lenta que vai durar mais de um século para que os novos critérios passem a valer.

A lição e o incentivo transmitidos aos estados nesse episódio é a seguinte: é muito perigoso para um ou alguns poucos entes federativos agirem sozinhos, contra o interesse dos demais, por mais justas que sejam as suas reivindicações. Abrir uma disputa entre entes federados torna todos mais vulneráveis. O risco de perder o FPE enquadrou os estados “rebeldes” e os fez aceitar a manutenção do status quo.

Com esse tipo de incentivo, fica muito difícil propor qualquer mudança de critério na partilha dos recursos que vise aumentar a equidade ou a eficiência na alocação das verbas. Esse tipo de debate coloca estado contra estado e enfraquece o grupo frente a suas disputas com o Governo Federal e com os demais grupos de pressão. Até porque, em outras disputas, em que a recompensa é tão alta que vale a pena partir para o conflito (como nos royalties e na guerra fiscal) já há grande tensão entre estados. Por isso, é preciso evitar conflito quando a recompensa não é alta, como no caso do FPE.

Situação similar ocorre com o FPM. Há muito o que melhorar na partilha desse Fundo. Atualmente, os pequenos e micromunicípios são excessivamente beneficiados, em prejuízo das cidades médias nordestinas e dos municípios situados nas periferias das regiões metropolitanas. Esse viés na distribuição dos recursos cria muita ineficiência e má alocação de recursos.

Há, por exemplo, um evidente incentivo à criação de pequenos municípios: três municípios de cinco mil habitantes recebem mais dinheiro que um município de quinze mil habitantes. Isso acaba gerando multiplicação das estruturas administrativas e perda de escala na oferta de serviços públicos.

Quando se olha a atuação das instituições representativas dos municípios no plano federal, o que se percebe é uma forte resistência a se discutir a ineficiência dos critérios de partilha do FPM. E isso é compreensível. Esse tipo de discussão vai colocar município contra município, e enfraquecer a capacidade de todos os municípios, de forma unida, participarem da luta por mais recursos junto ao governo federal. Há o justificado temor de o grupo perder força e perder espaço em uma encarniçada luta em que inúmeros grupos de pressão disputam recursos federais.

E há motivos para isso. Nos anos recentes, parte substancial do FPM (e do FPE) foi corroída pela concessão de incentivos fiscais no âmbito do IPI. O lobby dos contribuintes do IPI ganhou do lobby dos prefeitos e governadores. Gastar energia discutindo a redistribuição interna do FPM e do FPE significa ter menos tempo, energia e união para enfrentar, de forma unida, as ameaças que outros grupos de pressão colocam sobre as verbas estaduais e municipais.

Assim, o que se vê como demanda em relação ao FPM, no âmbito do Congresso Nacional, é a elevação do tamanho do bolo, aumentando-se a parcela do Imposto de Renda e do IPI destinados ao Fundo, em detrimento da parcela desses tributos destinada à União. Evita-se discutir as grandes distorções nos critérios de partilha, e o país como um todo segue perdendo com a alocação ineficiente dos recursos, sobretudo com a grande carência de verbas das cidades médias nordestinas e das periferias metropolitanas, onde se acumulam problemas sociais e faltam serviços públicos. Ao mesmo tempo, micromunicípios interioranos transformam a sua folha de pagamento na principal fonte de renda das cidades, criando legiões de pensionistas, com baixa produtividade e pouca prestação de serviço público.

Quem Ganha com a Renegociação das Dívidas junto à União?

É bem sabido que os grandes ganhadores com a renegociação proposta para a dívida refinanciada junto à União são cinco estados e um município: São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Alagoas e Município de São Paulo. No entanto, há quase unanimidade entre os estados na pressão pela aprovação da renegociação. Por que estados que não estão entre os maiores ganhadores também se interessam e pressionam pela renegociação? Não seria mais razoável colocar as fichas políticas em outros temas que lhes dessem maior retorno?

A resposta pode estar em um dos argumentos já apresentados acima. Em primeiro lugar, como os custos da renegociação vão ser pagos por toda a sociedade, cada administração estadual daquelas não tão beneficiadas pela renegociação irá pagar uma parcela pequena do custo. Portanto, não há preocupação com o custo fiscal ou macroeconômico da renegociação.

Em segundo lugar, há a lógica da ação coletiva e da reciprocidade. O estado A apoia o estado B na questão da dívida, e recebe o apoio de B quando tiver uma pendência de seu interesse junto à União. Por exemplo, a autorização para a contratação de uma operação de crédito.

Em terceiro lugar, ainda que não levem a maior parte dos benefícios, os outros estados levam “algum” benefício. E pouco é melhor do que nada. Esse argumento se torna mais relevante porque o benefício de uma não renegociação seria muito indireto. O impacto imediato da renegociação é transferir recursos da União para os estados. Sem renegociação, portanto, a União passa a dispor de mais recursos. Tais recursos podem ser utilizados em obras, mas nada garante que essas obras iriam beneficiar diretamente aquele estado que está pouco endividado. Alternativamente, esses recursos podem ser poupados, melhorando o ambiente macroeconômico. Para o governador de um estado, contudo, os benefícios de uma melhora do ambiente macroeconômico são mais difíceis de serem quantificados e, pelo menos do ponto de vista de propaganda eleitoral, devem trazer menos votos (para o governador) do que a realização de determinada obra, como  uma estrada ou escola.

Esta é, mais uma (com perdão pela insistência no argumento) manifestação de uma sociedade em estado de forte conflito distributivo. Cada um tira para si o que pode, prevalece o interesse individual (de cada estado ou município) e fenece o interesse coletivo.

A falta de disciplina fiscal gera alívio de curto prazo, mas piora o cenário de longo prazo

Nos últimos anos houve evidente redução da disciplina fiscal dos estados e municípios. O Governo Federal afrouxou os controles sobre a contratação de novos empréstimos, inclusive liberando aval da União para estados e municípios com classificação de crédito muito baixa, segundo os critérios de avaliação da própria Secretaria do Tesouro Nacional. Entre 2011 e 2014, foram nada menos que R$ 23 bilhões em dívidas autorizadas para estados e municípios com classificação de crédito “C”e “D”. Autorizações que foram ratificadas pelo Senado.

Com mais acesso a crédito, os governos subnacionais precisaram fazer menor esforço fiscal para gerar os excedentes necessários ao pagamento de juros e amortização de suas dívidas vincendas. Ou seja, passaram a ter caixa não só para pagar as dívidas anteriores, como para expandir despesas. O resultado foi a queda do superávit primário de estados e municípios, de 1,15% do PIB em 2007, para 0,34% em 2013.

Isso certamente melhora a situação de curto prazo para o gestor que está no poder. Mas em nada contribui para melhorar a qualidade da gestão pública ou gerar incentivos à boa gestão fiscal.

O enfraquecimento da restrição orçamentária e a expansão do endividamento subnacional, muitas vezes estimulado pelo Governo Federal, não é bom para a gestão pública. O histórico dos anos 70 e 80 mostra que isso acaba em sobre-endividamento, governos despreocupados com qualidade de gestão e crise fiscal. Governos locais que têm uma porta aberta para conseguir mais um espaço fiscal por concessão administrativa do Governo Federal acabam relaxando na busca de eficiência e qualidade de gestão. É sempre mais fácil manter um programa ineficiente e financiar isso via dívida, do que fazer cortes em funções comissionadas, extinguir secretarias, contrariar interesses estabelecidos, cancelar programas que apresentam baixos resultados e altos custos.

A qualidade de gestão só se tornou assunto importante em governo estadual e municipal no Brasil a partir da forte restrição orçamentária imposta pelas condicionalidades da renegociação da dívida de 1997-98 e pela aprovação da lei de responsabilidade fiscal em 2000. Quando deixou de existir a facilidade de acumular dívidas impagáveis e se exigiu efetivo desembolso para pagar os débitos existentes, é que os gestores tiveram incentivos para buscar eficiência, contrariar interesses e ajustar a máquina pública.

Nesse sentido, o afrouxamento das regras de endividamento, no passado recente, prejudica a qualidade da gestão fiscal e sinalizam para mais problemas futuros e mais conflitos para alocar, no futuro, os custos do endividamento excessivo.

O que fazer?

A agenda de negociações federativas teve, ao longo de 2012 e 2013, grande oportunidade de buscar uma negociação envolvendo os principais pontos de conflito: redistribuição do FPE, renegociação da dívida com a União, redução das alíquotas interestaduais do ICMS com regulamentação dos incentivos concedidos à revelia do CONFAZ e redistribuição dos royalties. Não foi viável, porém, costurar esse acordo. No parlamento, deu-se prioridade a negociar os assuntos em separado. No espírito do aguçado conflito distributivo, cada grupo vetava ou colocava em banho-maria a reforma que lhe prejudicava, ao mesmo tempo em que tentava fazer andar a que lhe beneficiava. Ao final chegou-se a uma não-reforma do FPE, a uma proposta de renegociação da dívida com alto custo fiscal para a União e com prejuízos à segurança jurídica, que o Executivo teme em bancar. Nada se avançou na questão do ICMS e os royalties viraram questão judicial.

Não parece haver, portanto, condições políticas para um amplo pacto federativo. Até porque, como já afirmado acima, há grande insegurança acerca da credibilidade de qualquer proposta da União no sentido de compensar os perdedores. Há, também, muita insegurança em torno dos números: quem serão os perdedores? Quanto efetivamente eles perderão?

É preciso, pois, buscar uma agenda que seja responsável em termos fiscais e que una interesses dos três níveis de governo, para que se comece a gerar resultados concretos. Um bom começo seria uma emenda à constituição que proíba a criação, no plano federal, de obrigações financeiras a estados e municípios (unfunded mandates). Isso não só daria previsibilidade e segurança financeira para os gestores estaduais e municipais, como também seria um escudo contra o poder de fortes lobbies  em busca de subsídios, rendas ou privilégios salariais e previdenciários.

Outro tema que poderia unir o interesse dos três níveis de governo seria a regulamentação do direito de greve dos servidores públicos. Afinal, os estados e municípios, por serem responsáveis pelas áreas de educação, segurança e saúde, empregam largos contingentes de servidores altamente sindicalizados. As longas greves de professores, médicos, policiais e outras categorias relevantes impõem perdas administrativas e de credibilidade aos prefeitos e governadores, ao mesmo tempo em que exigem esforço financeiro dos três níveis de governo.

Como é sabido,  há um vácuo legal na regulamentação do direito de greve no setor público, em que os servidores têm o direito constitucional de paralisarem atividades, mas não estão submetidos a regras explícitas de desconto dos dias parados, restrições a greves em áreas estratégicas ou demissão. O resultado é que greves no setor público ocorrem com mais frequência e duram mais que as do setor privado. De acordo com dados do DIEESE, em 2012 74% das horas paradas por greve corresponde a movimentos paredistas de servidores públicos (embora eles representem apenas 25% da força de trabalho total). Em média, uma greve do setor público dura o equivalente a 172 horas de trabalho, contra apenas 46 horas no setor privado.3

Os gestores públicos ficam refém desse poder desproporcional, o que tem dado aos servidores grande vantagem no conflito distributivo, garantindo remuneração elevada, além de barrar outras experiências de gestão como a terceirização da gestão de unidades de saúde, ou diferenciação de pagamento de professores em função do mérito e desempenho, por exemplo.

Da parte do Governo Federal é preciso rever a política do enfraquecimento das normas da Lei de Responsabilidade Fiscal no que diz respeito à autorização de novas operações de crédito. É preciso que haja forte restrição orçamentária para induzir estados e municípios a buscar a economia de gastos e melhora nos processos de gestão.

Em contrapartida, pode ser feito um ajuste nos contratos de dívida com a União, porém em termos menos benevolentes que os propostos no PLC 99/2013, que estipula a revisão dos contratos das dívidas de forma retroativa. Além de ser um grande prejuízo para a segurança jurídica do país, essa revisão retroativa de indexadores soa a casuísmo, visto que concentra benefícios em um único ente federado.

A substituição de indexadores, de IGP-DI por IPCA é bastante defensável, visto que as receitas estaduais e municipais têm maior correlação com o segundo que com o primeiro. A redução dos juros fixos também é admissível, visto que a faixa de 6% a 9% ao ano supera a taxa de juros de equilíbrio do passado recente. Porém nada inferior a 5% ou 4,5% deve ser buscado, visto que o país ainda tem perspectiva de um longo período de elevados juros reais pela frente. O uso da Selic como balizador dos juros, substituindo-os quando for menor que a taxa fixa contratual também é um bom seguro para os estados e municípios, porém prejudicial para a União.

Outro ponto relevante a se renegociar é a forma de pagamento do resíduo da dívida. Quando a dívida dos estados foi renegociada nos anos 1990, fixou-se um limite de até 15% da Receita Corrente Líquida dos estados para o pagamento de juros e amortizações. O que excedesse esse limite seria pago posteriormente. Por esse motivo, havia a possibilidade de, findo o prazo de 30 anos para o pagamento da dívida, parte dela ainda não teria sido quitada. Os contratos previam então que, nesse caso, haveria 10 anos adicionais para se pagar o resíduo. Em vez de um prazo fixo de 10 anos para quitação do passivo, poder-se-ia migrar para uma regra em que o ente subnacional comprometeria um percentual fixo de sua receita com o pagamento do resíduo e o pagamento se estenderia pelo prazo necessário à quitação do passivo. Com isso evitar-se-ia a situação que parece estar se configurando para alguns estados e para o Município de São Paulo de, ao final dos trinta anos da renegociação, ter um resíduo muito elevado, que consumiria mais de 20% de sua receita corrente para pagamento em dez anos. A mudança dessa regra tornaria todas as dívidas sustentáveis e reduziria o alto grau de incerteza que hoje paira sobre a saúde fiscal de longo prazo dos entes mais endividados.

A pressão gerada pela aprovação da nova regulamentação para criação de municípios, cujos projetos aprovados no Congresso foram duas vezes vetados pelo Executivo, forçará a discussão sobre os critérios de partilha do FPM. Se não houver um requisito de população mínima acima de, pelo menos, 15 mil habitantes para criação de nova jurisdição, haverá nova onda de criação de micromunicípios financeiramente inviáveis. O projeto recentemente vetado propunha limites populacionais baixos: 6 mil habitantes para o Norte e o Centro-Oeste e 12 mil habitantes para o Nordeste. Somente no Sul e Sudeste, onde são requeridos pelo menos 20 mil habitantes, é que os estímulos à fragmentação administrativa serão menos intensos.

Ainda que ao custo de divisão interna entre seus representados, as associações representativas de municípios terão que discutir os problemas das regras atuais de partilha do FPM. Há no Congresso, em estado avançado de tramitação, um projeto que corrige o problema mais básico, que é a divisão dos municípios em faixas populacionais, e que faz com que as receitas de FPM subam ou caiam muito quando um município muda de faixa. Uma mudança simples como essa, que gera evidente ganho de eficiência e equidade, tem sofrido resistência daqueles municípios que se veem como potenciais perdedores. Parece ser hora de aceitar a racionalização do FPM, sobretudo de reduzir o viés a favor dos micromunicípios, para que o municipalismo não seja enfraquecido junto à opinião pública, que não mais aceita a criação de cidades dedicadas a receber transferências.

Se as grandes reformas (do ICMS, dos royalties, etc.) estão travadas, então deve-se buscar avanço nas microrreformas, como a dos critérios do FPM e de ajustes pontuais da dívida. Com relação às grandes reformas, parece que um critério importante é garantir aos estados alguma prerrogativa de ter política fiscal própria. A viabilidade do modelo centralizado, consensual e unânime morreu com o fim do regime militar. O novo ICMS terá que dar espaço à concorrência entre estados, ainda que isso gere algum grau de ineficiência alocativa. O importante é evitar que, como ocorre hoje, um estado jogue o custo da sua política de incentivos sobre outro estado.

Ademais, o Governo Federal precisa avançar na agenda da infraestrutura, para garantir que cada estado e município possa explorar plenamente as suas vantagens comparativas. É preciso aproximar os estados mais distantes dos centros consumidores e de exportação. Para ter recursos para investimento, o Governo Federal precisa conter os gastos correntes, feitos em favor de inúmeros grupos de pressão. Um agenda comum com os estados e municípios, como a acima proposta, de limitação do poder das corporações e de grupos de pressão que pleiteiam a criação de unfunded mandates seria um bom começo.

___________________

1 Vide: Mendes, M.J. (2002) Descentralização fiscal baseada em transferências e captura de recursos públicos nos municípios brasileiros. Universidade de São Paulo. Faculdade de Administração, Contabilidade e Economia. Departamento de Economia. Tese de Doutorado; e Caselli, F., Michaels, G. (2009) Do oil windfalls improve living standards? Evidence from Brazil. NBER Working Paper Series w15550.

2 Vide Miranda, R.N. (2013) Zona Franca de Manaus: desafios e vulnerabilidades. Núcleo de Estudos e Pesquisas do Senado Federal – Texto para Discussão nº 126.

3 DIEESE (2013) Balanço das greves em 2012. – Estudos e Pesquisas nº 66, maio.

 

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O que é “contabilidade criativa”? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2132&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-que-e-contabilidade-criativa https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2132#comments Mon, 17 Feb 2014 14:05:26 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2132 Ao longo de 2013 muito se falou que o Governo Federal estaria lançando mão de procedimentos de “contabilidade criativa” para esconder a expansão da despesa pública, do déficit e da dívida governamental. Esse texto procura explicar como funcionam os procedimentos dessa natureza.

Para tanto, é preciso, em primeiro lugar, conhecer dois conceitos importantes: “resultado primário” e “dívida líquida do setor público”; bem como entender quais são as entidades incluídas no conceito de “setor público”. É no uso e manipulação desses conceitos que se abrem brechas para a contabilidade criativa.

“Resultado primário” é um indicador que mede as receitas não financeiras do governo deduzidas das despesas não financeiras. Ou seja, somam-se todas as receitas não financeiras (de tributos, de venda de patrimônio público, de aluguéis recebidos pelo setor público, etc.) e delas deduzem-se as despesas não financeiras (pagamento de pessoal, construção de estradas, compra de material de consumo, etc.). Os juros recebidos e pagos pelo governo não entram nem nas receitas nem nas despesas.

A ideia por trás desse conceito é verificar qual é o saldo em dinheiro que o governo consegue acumular ao longo de um período para pagar os juros de sua dívida (já descontados os juros que ele eventualmente recebe de empréstimos feitos a terceiros,  tais como financiamento a estudantes, empréstimos a outros países, etc). Fazendo um paralelo com o orçamento doméstico, é como se eu precisasse calcular tudo o que eu recebo de salário em um mês, menos as despesas de manutenção da casa (aluguel, escola das crianças, supermercado), para ver quanto sobra para pagar os juros de uma  dívida bancária que fiz no passado.

A dívida é um compromisso rígido, que foi assumido no passado, e que precisa ser pago. As despesas do dia a dia devem ser controladas para que haja sobras para o pagamento da dívida. Na prática, o governo costuma renovar a sua dívida vincenda. Para que ela não cresça indefinidamente, é preciso pagar os juros e renovar apenas o principal. O resultado primário é uma forma de medir quanto consigo economizar em despesas que podem ser controladas, e quanto consigo ampliar a minha receita, de modo a ter capacidade de honrar os juros que devo.

Por isso, o resultado primário funciona como um sinalizador da saúde financeira do setor público (você encontra um texto mais detalhado sobre resultado primário neste site, no post O que é e para que serve o “Resultado Primário”?). Se o superávit primário for menor que os juros a pagar, o governo terá que aumentar sua dívida para pagar parte dos juros não cobertos pelo superávit. Logo, a consequência de baixos superávits é o crescimento da dívida pública ao longo do tempo.

Chegamos, então, ao segundo conceito importante: dívida pública. Um governo que tem uma dívida alta e crescente está em apuros. Em algum momento não terá dinheiro para pagar os juros e a amortização dessa dívida. Investidores que compram títulos desse país não vão querer renovar os empréstimos, quando esses vencerem. Aumentará a necessidade de caixa do governo, para poder quitar os empréstimos não renovados. A taxa de juros paga por esse governo terá que aumentar, para atrair investidores dispostos a correr mais risco para ganhar mais dinheiro. Juros mais altos vão acelerar a dinâmica do endividamento e, além disso, vão desestimular o investimento e o crescimento econômico. Com menor crescimento haverá menor arrecadação de impostos, piorando a situação financeira do governo. Daí a importância de se monitorar a evolução da dívida pública.

O detalhe importante é que habitualmente o indicador de dívida relevante utilizado no Brasil é o de “dívida líquida”: tudo o que o governo deve menos os créditos que ele tem a receber. Um governo que deve muito, mas também tem muitos créditos, não estará em má situação, desde que seus credores paguem em dia. Os governos habitualmente têm créditos a receber de contribuintes que parcelaram impostos atrasados, de empréstimos feitos a outros governos, etc. Também costuma ter algum dinheiro em caixa, que também deve ser descontado da dívida total de forma a se apurar o montante líquido devido (neste site há dois textos analisando o conceito e a evolução da dívida líquida: “Dívida líquida do setor público decrescente significa política fiscal sob controle?” e “Dívida bruta e ativo do setor público: são imprescindíveis para se avaliar o equilíbrio fiscal?”).

O terceiro conceito importante é o de abrangência do conceito de “setor público”. Como se sabe, o setor público é formado não apenas pela administração pública direta (órgãos públicos, autarquias, fundações), mas também por empresas que pertencem ao governo. Elas podem ser empresas públicas (100% de propriedade do governo) ou de economia mista (o governo é o acionista majoritário). Entre as empresas públicas e de economia mista estão vários bancos (Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil, BNDES, Banco do Nordeste, etc.).

Na apuração do resultado primário o conceito de “setor público” utilizado é o de “setor público não financeiro”. Como a ideia do resultado primário é medir quanto o governo deve ao setor financeiro; e como parte dessa dívida é com bancos nos quais o governo tem participação ou é dono, os bancos do governo ficam de fora do conceito de “setor público”, justamente para que se possa apurar o total da dívida do governo com o setor financeiro da economia, seja ele público ou privado.

Também são excluídos do conceito de “setor público” aquelas empresas nas quais o governo tem participação, mas que são financeiramente independentes. A ideia, nesse caso, é de que empresas do governo que são dependentes de verbas públicas (por exemplo, a Embrapa, a Empresa Brasileira de Comunicações ou a Companhia Nacional de Abastecimento) funcionam, para fins de apuração do resultado primário, como se fossem um órgão de governo. Como elas não têm capacidade de gerar receita em montante suficiente para custear suas despesas, elas são dependentes de aportes do governo para, regularmente, pagar sua folha de pessoal, comprar insumos, etc. Por isso, a despesa dessas empresas deve ser monitorada e controlada, porque elas afetam a capacidade financeira do governo.

Já no caso de empresas do governo que têm grande capacidade de gerar receitas, como a Petrobras ou a Eletrobras, é possível deixá-las de fora do controle de despesas. Afinal, elas têm capacidade para financiar os próprios gastos. Ademais, submetê-las a um regime de controle de despesas pode afetar a eficiência de suas operações. Imagine, por exemplo, impedir que a Petrobras compre uma nova sonda para explorar petróleo com vistas a ampliar o resultado primário. Certamente isso reduzirá o espaço para gestão eficiente da empresa, tolhendo suas oportunidades de negócio, como também  impedirá a realização de investimentos relevantes ao crescimento econômico. Observe-se que as melhores práticas internacionais recomendam a exclusão de bancos públicos e de empresas estatais não dependentes do conceito de setor público.

Chegamos, então, ao ponto em que podemos apontar onde estão as oportunidades para a contabilidade criativa. Os fatos de:

(a) haver empresas (financeiras e não financeiras), nas quais o governo tem poder de mando, e que estão fora do conceito de “setor público” para fins de apuração do resultado primário e da dívida; e

(b) o conceito de dívida mais utilizado para avaliar a solvência do governo ser o de “dívida líquida”;

permitem que o governo crie relações financeiras com as empresas que estão fora do conceito de setor público de modo a expandir suas despesas e sua dívida bruta sem, contudo, afetar o resultado primário e a dívida líquida.

Com tais operações, o governo consegue expandir seus gastos e sua dívida total sem que isso apareça no resultado primário ou na dívida líquida. Seria uma forma de gastar mais fingindo ser financeiramente responsável.

A seguir são descritas algumas operações de contabilidade criativa utilizadas nos últimos anos, pelo Governo Federal, ressaltando-se os mecanismos que permitem a expansão dos gastos e da dívida sem que se afete o resultado primário e a dívida líquida.

1 – Pagamento de dividendos ao Tesouro por empresas que estão fora do conceito de setor público

Empresas que têm ações em mercado (as chamadas sociedades de capital aberto) usualmente remuneram seus acionistas por meio de pagamento de dividendos. O governo, como acionista de algumas empresas, também tem direito a dividendos. A decisão de pagar ou não dividendos, e do montante do pagamento, é usualmente tomada pelo conselho de administração da empresa. No caso de empresas em que o governo tem a maioria das ações com direito a voto, ele tem grande poder discricionário para decidir quando a empresa pagará dividendos e qual o valor a ser pago. Quanto maior o volume de dividendos pagos, menos recursos sobram para a empresa investir em seus projetos e fazer frente a suas obrigações.

Se o governo estiver gastando muito e, por isso, estiver enfrentando dificuldades para atingir o resultado primário necessário ao pagamento dos juros da dívida, ele pode pressionar as empresas que estão fora do conceito de setor público (empresas financeiras e empresas não dependentes do Tesouro) a pagar dividendos elevados. Com isso, entra no “setor público” dinheiro vindo de fora do “setor público”, o que aumenta o resultado primário.

Isso é feito às custas da descapitalização das empresas que foram induzidas a pagar dividendos excessivos. Tivessem elas autonomia para definir o montante de dividendos a pagar, provavelmente fariam pagamentos menores, utilizando os recursos para outras finalidades.

Do ponto de vista do equilíbrio fiscal, a receita de dividendos é uma receita eventual. Ela não decorre da capacidade regular do governo para arrecadar tributos, e não se pode esperar que, todo ano, o governo receba dividendos elevados das empresas das quais é acionista. Seja porque em alguns anos as empresas terão resultados ruins, seja porque não se pode extrair dividendos excessivos ano após ano, sob pena de fazer a empresa encolher devido à baixa capitalização e insuficiência de recursos para investir. No caso de empresas mistas, o problema se torna ainda mais grave ao longo do tempo, pois a interferência excessiva do governo nessas empresas desestimula novos aportes de capital por parte do setor privado.

Assim, embora reforce o caixa do governo no curto prazo, aumentando o resultado primário, a receita de dividendos não assegura que o governo esteja em uma situação confortável no longo prazo.

Para garantir transparência e boa conduta no trato dos dividendos das empresas controladas pelo poder público, seriam necessárias duas providências: (1) contabilizar em separado a receita de dividendos (e as demais receitas eventuais, tratadas adiante), apurando-se e divulgando-se um resultado primário com receitas eventuais, e outro sem essas receitas; (2) definir procedimentos padrão para o cálculo e a periodicidade de pagamento de dividendos por empresas controladas pelo setor público.

 2 – Venda de patrimônio público a empresas estatais que estão fora do conceito de setor público

Outra forma de obter uma receita eventual e reforçar o resultado primário é vender patrimônio público para uma empresa estatal que esteja fora do conceito de setor público. Por exemplo, em 2010 o Tesouro vendeu à Petrobras o direito de explorar cinco bilhões de barris de petróleo na camada pré-sal. Como a Petrobras não é considerada “setor público”, a contabilidade registrou a entrada de dinheiro para o setor público, o que elevou o resultado primário.

Há que se observar, aqui, uma outra característica da contabilidade pública que facilita o uso de práticas criativas: o patrimônio público (reservas de recursos naturais, estradas, prédios públicos, ações, etc.) não é integralmente contabilizado como ativo do governo ao qual pertence, nem aparece como item de dedução no cálculo da dívida líquida.

Com isso, sempre que se vende um desses ativos não contabilizados, com a consequente entrada de recursos nos cofres públicos, há um aumento no resultado primário sem que haja o registro da correspondente redução patrimonial. Tudo se passa como se eu vendesse minha casa, colocasse o dinheiro da venda no banco, e não deduzisse da minha lista de propriedades a casa vendida. Estaria mais rico com isso? Obviamente não: apesar de minha conta bancária ter engordado, não teria mais a casa. Transferindo o raciocínio para o setor público, a venda de ativos do governo, da forma como é atualmente contabilizada,  tem como consequência o aumento do resultado primário. Já a dívida líquida diminui, quando o correto seria que ela ficasse constante, pois a redução do ativo físico de propriedade do governo é exatamente compensada pela entrada de caixa.

Assim como no caso do pagamento de dividendos, a venda de patrimônio público gera uma receita eventual, e deve ser tratada em separado na contabilização do resultado primário, para que fique transparente qual é o superávit que se consegue obter com base nas receitas regulares e quanto do superávit se deve a uma receita extraordinária.

Diga-se de passagem, foi esse o procedimento adotado pelo Banco Central nos anos 90, quando o programa de privatizações vendeu diversas empresas que pertenciam ao patrimônio público.

Se a venda de patrimônio público for feita para empresas privadas ou governos estrangeiros, em condições de mercado, o governo vendedor terá pouca influência na definição do preço de venda do ativo. O preço de venda será aquele que os compradores estiverem dispostos a pagar. Porém, quando o governo vende um ativo para uma empresa de sua propriedade, como no caso da Petrobras, ele pode influenciar na definição do preço. Pode, então, vender patrimônio a um preço mais alto do que seria obtido em mercado, o que infla o resultado primário e prejudica a empresa. Ou pode sacrificar o resultado primário, fixando um preço favorável à empresa.

3 – Antecipação de receitas futuras

Os governos, além dos impostos que recolhem, têm diversos outros tipos de receitas que entram regularmente nos cofres públicos. Por exemplo, o Governo Federal construiu a usina de Itaipu em sociedade com o Paraguai. A empresa Itaipu Binacional paga ao governo brasileiro, regularmente, royalties pelo uso das águas do Rio Paraná na geração de energia.

Quando está com as contas apertadas, o governo pode antecipar o recebimento dessas receitas. Para tanto, o governo vende a terceiros o direito de receber essa receita. Em 2012 o Governo Federal vendeu R$ 6 bilhões desses créditos ao BNDES.

A antecipação de receitas aumenta o resultado primário de hoje às custas do resultado primário futuro. Isso significa que se está pagando despesas públicas de hoje com dinheiro que entraria no futuro. O político que está no governo hoje está gastando dinheiro que deveria entrar nos cofres públicos somente durante o mandato do seu sucessor.

O efeito é o de gerar um resultado primário pouco sustentável ao longo do tempo. Por isso, esse tipo de receita também deveria ser contabilizado em separado, explicitando-se o resultado primário com e sem essa receita eventual.

Assim como no caso da venda de patrimônio, analisada no item (2), se a venda das receitas futuras do governo for feita a uma empresa pública, o governo pode vender tais direitos acima de seu valor de mercado, o que infla o resultado primário.

4 – Empréstimos a empresas públicas que estão fora do conceito de setor público por meio de emissão de títulos

O governo pode ter o interesse de fazer empréstimos a determinados grupos de empresas privadas, seja para financiar exportações, para estimular o crescimento econômico ou para impulsionar o desenvolvimento de novas tecnologias. Para fazê-lo de forma transparente, através de um banco público, o governo deve fazer um aumento de capital desse banco. Dispondo de um capital mais elevado, o banco pode expandir seus empréstimos, seguindo as orientações do governo.

Ao injetar dinheiro no banco público, o governo terá feito uma “despesa de capital”, conhecida na contabilidade pública como “inversão financeira”. Essa despesa será considerada no cálculo do resultado primário, reduzindo-o, porque o governo fez um gasto a favor de uma entidade (o banco, que está fora do conceito de setor público): a decisão do governo em gastar com a capitalização do banco público terá sido contabilizado como uma despesa, de forma correta e transparente.

Para fazer a mesma operação de capitalização de um banco público, sem que haja reflexo na despesa governamental (e, portanto, sem afetar o resultado primário) o governo pode emitir títulos públicos e entregá-los, a título de empréstimo, para o banco público.

Nesse caso, não houve uma despesa do governo, logo o resultado primário não será afetado. A dívida líquida do governo tampouco será afetada, porque ao mesmo tempo em que a dívida total (ou dívida bruta) – aquela na qual não são deduzidos os créditos do governo junto a terceiros – cresceu, também aumentou, na mesma proporção, o crédito do setor público frente ao restante da economia (o banco público ficou devendo ao Tesouro o valor dos títulos que recebeu por empréstimo).

O banco público, por sua vez, pode vender a terceiros os títulos que recebeu do Tesouro, e usar o dinheiro levantado dessa forma para fazer empréstimos às empresas que o governo quer beneficiar.

Está feita a mágica: sem desembolsar um tostão, sem reduzir o resultado primário e sem aumentar a dívida líquida, o governo conseguiu fazer com que os empréstimos chegassem às empresas.

Esse procedimento foi diversas vezes usado pelo Governo Federal, que já emprestou mais de R$ 300 bilhões ao BNDES. Em operação similar, o Tesouro capitalizou a Caixa Econômica Federal no ano de 2012, entregando-lhe títulos públicos e privados de propriedade do Governo Federal.

Contudo, a despesa que não aparece acaba impactando as contas públicas de outras formas, quais sejam:

(a)    como afirmado acima, a dívida líquida não se altera, porque no momento da emissão e transferência dos títulos para o banco, a dívida e os haveres do Tesouro variam no mesmo montante. Porém, a qualidade da dívida líquida piora, porque o crédito que o governo tem com o BNDES pode não ser pago no futuro. Dado que se trata de uma instituição controlada pelo setor público, se os empréstimos feitos pelo BNDES (com o dinheiro repassado pelo Tesouro) vierem a sofrer inadimplência ou, se por outro motivo, o banco tiver resultados ruins, haverá uma tendência a cancelar o crédito do Tesouro, como uma forma indireta de capitalizar o banco;

(b)   como a intenção final do Tesouro era fazer empréstimos a juros baixos para empresas, o empréstimo feito ao BNDES foi a juros menores que aqueles que o próprio Tesouro paga sobre a sua dívida. Por exemplo, o Tesouro emite R$ 100 milhões em títulos que pagam juros de 10% ao ano, e os entrega ao BNDES, que se compromete a pagar o empréstimo em 30 anos, com juros de 5% ao ano. Assim, a cada ano, o Tesouro pagará R$10 milhões em juros, e receberá do BNDES apenas R$ 5 milhões. Em consequência, a dívida líquida do Tesouro irá subir, ano após ano, na razão de R$ 5 milhões por ano. Ou seja, a dívida líquida não se altera no momento da operação, mas depois cresce, ano após ano, em função do diferencial de juros. Para o diferencial atual, em torno de 5% ao ano, e considerando o montante de empréstimos da ordem de R$ 300 bilhões, a operação de crédito a bancos públicos deve custar ao Tesouro o equivalente a R$ 15 bilhões por ano;

5 – Fabricação de receita primária fictícia

Existe uma variação da operação descrita no item anterior que resulta na criação de receita primária fictícia. Assim como descrito no item 4, o Tesouro emite títulos e os entrega a um banco público, cobrando uma taxa de juros pelo empréstimo que é menor que a taxa paga pelo título público.

O banco público, em vez de ir ao mercado vender esses títulos, simplesmente os coloca em seu ativo. Suponha, como no exemplo anterior, que esses títulos rendam 10% ao ano, e que a dívida do banco público com o Tesouro custe 5% ao ano. Se o banco simplesmente fica sem fazer nada, mantendo os títulos em carteira, ele obterá lucros de 5% ao ano nessa operação, somente em função desse diferencial de taxas de juros.

Com o seu lucro engordado, ele paga dividendos mais elevados ao Tesouro. Essa receita de dividendos será contabilizada como receita primária do Tesouro (vide item 1 acima). Mais uma vez surge uma mágica: a partir de um aumento da sua dívida bruta, o governo passa a ter um resultado primário maior, tudo isso sem impacto imediato na dívida líquida!

Mais uma vez, os efeitos negativos vêm a médio e longo prazo: (a) piora o perfil da dívida líquida do Tesouro; (b) a dívida líquida cresce gradativamente devido ao diferencial de juros.

O uso repetido desse tipo de procedimento faz com que a dívida líquida deixe de ser um indicador relevante para a solvência do setor público. Se a maioria dos créditos ali listados, que abatem o valor da dívida bruta, são créditos “podres” ou que podem ser cancelados no futuro, então torna-se melhor medir a situação financeira do Tesouro olhando a sua dívida bruta, pois há pouca perspectiva de recuperar os haveres do governo.

6 – Pagamento de despesas com a entrega de títulos públicos

Para evitar fazer uma despesa que reduza o resultado primário, o governo pode simplesmente emitir um título público e entregá-lo para pagar a despesa. Nesse caso, como não houve desembolso de recursos que caracterize despesa, o resultado primário não é afetado.

Ao contrário dos dois casos anteriores, contudo, haverá aumento da dívida líquida, pois agora ocorreu apenas a emissão de título, sem a criação de um crédito para o Tesouro.

Essa operação, portanto, só consegue esconder uma das partes (a piora do resultado primário) sem esconder a outra (a elevação da dívida líquida).

A MP 615, de 2013, convertida na Lei 12.865, de 2013, por exemplo, autorizou, em seu art. 16, que a União emitisse títulos da dívida pública para cobrir os gastos do Tesouro com subvenções para redução nas tarifas de energia elétrica. Ou seja, em vez de desembolsar o subsídio à conta de luz, reduzindo o resultado primário e, posteriormente, emitir títulos para financiar essa despesa; o Governo Federal optou por fazer a “ligação direta”, já emitindo o título e depositando-o na conta responsável pelo pagamento das subvenções.

Posteriormente, em função da repercussão negativa da medida, o governo voltou atrás e fez o pagamento da forma usual, em dinheiro, impactando o resultado primário.

 7 – Adiamento de desembolsos, criando-se “restos a pagar”

Um detalhe importante do cálculo do resultado primário é o de que ele é feito no “conceito de caixa”. São considerados nos cálculos apenas os despesas efetivamente pagas e as receitas efetivamente recebidas dentro do intervalo de tempo para o qual se está calculando o resultado. Se, por exemplo, o governo comprar material de escritório no mês de dezembro de 2013, e o pagamento desse material for realizado apenas no mês de janeiro de 2014, essa despesa não entra no cálculo do resultado primário de 2013, e sim no cálculo para 2014.

Esse método é utilizado por facilitar o cálculo (muitas vezes feito a partir da variação do saldo bancário do Tesouro) e porque os juros da dívida pública a serem pagos com os recursos do resultado primário também são contabilizados da mesma forma.

Isso cria o incentivo para se “empurrar” despesa de um ano para outro, de modo a aumentar o resultado primário de um ano às custas do resultado primário do ano seguinte. Uma despesa feita em um exercício, cujo pagamento fica para o exercício seguinte, é registrada na contabilidade pública como “restos a pagar”.

Se o procedimento de empurrar despesa de um ano para outro for adotado ano após ano, a tendência é que os restos a pagar cresçam. E, de fato, é isso que tem ocorrido. O Orçamento da União de 2013 fechou com R$ 176 bilhões em restos a pagar. Esse é um valor muito grande, equivalente a nada menos que 80% do custo da folha de pagamento do Governo Federal em 2013.

 Considerações finais

Os conceitos de dívida e resultado primário têm duas finalidades básicas. Uma delas é medir o equilíbrio financeiro do governo, aferindo se ele está gastando demais, se ele é capaz de pagar a sua dívida, se esta dívida está crescendo de forma muito acelerada, etc. O uso da contabilidade criativa mascara a real situação financeira do governo. Como já afirmado acima, há situações em que a dívida líquida não cresce, mas perde qualidade, sinalizando que, no futuro, o governo não possa receber os créditos que está contabilizando na dedução da dívida bruta. Uma receita primária criada na base de pagamentos de dividendos insustentáveis pode sinalizar que, no futuro, o banco ou empresa pública que pagou o dividendo em excesso venha a precisar de uma capitalização do Tesouro, implicando aumento de despesa primária.

Ou seja, em algum momento a mágica é desfeita, e a real situação financeira do Tesouro se revela. A contabilidade criativa é, portanto, uma forma de obscurecer a real situação das contas públicas. A consequência disso é que os agentes econômicos (empresas, investidores, trabalhadores, etc.) perdem confiança nos números apresentados pelo governo, passam a ter maior incerteza quanto à real situação das finanças públicas, e passam a temer que o Governo tome alguma medida drástica no futuro, quando as despesas e dívidas empurradas para debaixo do tapete tiverem que ser pagas e não houver recursos para tanto (default da dívida, drástico ajuste fiscal com interrupção de serviços públicos essenciais, etc.).

A segunda finalidade das medidas de resultado primário é apurar o impulso que o governo está dando no consumo total da economia. Quanto maior o déficit primário, maior é a quantidade de bens e serviços que o governo está comprando da economia sem, ao mesmo tempo, reduzir o poder de compra dos outros consumidores via tributação de suas rendas. Mascarando-se o resultado primário, o governo apresenta um impulso dos gastos públicos sobre a demanda agregada que é menor do que o impulso real. O termômetro que mede a influência do setor público sobre o nível de atividade econômica e sobre a inflação para de funcionar adequadamente. Mais uma vez surge o problema de incerteza, falta de informação e temor de guinada na política econômica quando os desequilíbrios macroeconômicos provocarem seus efeitos reais sobre a renda das pessoas e das empresas.

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Como renegociar a dívida estadual e municipal? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1225&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=como-renegociar-a-divida-estadual-e-municipal https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1225#comments Mon, 28 May 2012 12:29:10 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1225 Este site já descreveu o problema da dívida dos estados e municípios com a União no texto Como evoluiu a dívida estadual nos últimos dez anos?. Também já apresentou, no texto Por que renegociar a dívida estadual e municipal?,  motivos pelos quais, na opinião do autor, essa dívida deve ser renegociada pela União.

O presente texto volta ao tema para avaliar outra questão: dado que se constatou, no texto acima citado, ser necessário renegociar a dívida, como fazer essa renegociação de forma a que seja reduzido o ônus excessivo hoje imposto aos estados e municípios, sem que daí decorra desequilíbrio fiscal e macroeconômico?

Os principais motivos apontados para a renegociação da dívida são:

  • Os juros nominais cobrados pela União aos estados e municípios (IGP-DI mais uma taxa de juros variando entre 6% e 9% ao ano) estão muito altos em comparação ao custo de financiamento da própria União, que é dado pela taxa Selic. Esses juros eram menores que a Selic à época da assinatura dos contratos, mas, com a redução da Selic, a dívida dos estados e municípios ficou cara em relação ao custo de financiamento da União. Não faz sentido o Governo Federal obter ganhos financeiros sobre os estados e municípios. Não é esse o espírito que preside a renegociação das dívidas;
  • Há pelo menos quatro estados (AL, MG, RS e SP) e um município (São Paulo) cuja trajetória do saldo devedor indica a impossibilidade de quitação do débito dentro do prazo contratual previsto (o que indica a insustentabilidade da dívida desses entes). A renegociação seria, pois, uma medida preventiva, para evitar uma crise fiscal.

Frente a essa situação, diversas propostas de renegociação têm sido apresentadas, seja mediante projetos de lei, seja via artigos na imprensa ou propostas dos poderes executivos de estados e municípios. Obviamente, as propostas são moldadas pelos interesses específicos de quem as formula, e não necessariamente destinadas a resolver os dois problemas básicos acima descritos.

O principal interesse dos governadores e prefeitos é o de liberar recursos hoje gastos com o pagamento da dívida para aumentar suas despesas, de modo a maximizar suas chances de reeleição. Buscam, por isso, um tipo de renegociação que tenha como resultado a redução do valor mensal das prestações pagas à União, independentemente do que ocorra com o saldo devedor. Para esses agentes, é secundário que o tamanho da dívida diminua, ou que esta se torne sustentável ao longo do tempo. O fundamental é, desde já, pagar prestações menores.

Trata-se, portanto, de um objetivo de curto prazo, que deixa em segundo plano a preocupação com a sustentabilidade da dívida (um dos dois principais problemas, como descrito acima). Afinal, quando o problema estourar, o mandato estará na mão de um sucessor.

O Governo Federal, por sua vez, tem como principal preocupação o cumprimento das metas anuais de superávit primário. Os estados e municípios dão importante contribuição a esse superávit ao fazerem economia para pagar suas dívidas junto à União. Se a renegociação da dívida redundar em redução dos pagamentos mensais a que estão obrigados os estados e municípios, provavelmente estes aumentarão seus gastos, levando a uma redução do resultado primário. Tal resultado não é de interesse da União, pois, nesse caso, o Governo Federal teria que fazer esforço adicional, aumentando o seu próprio superávit primário, para que a renegociação das dívidas não representasse impacto expansionista de política fiscal.

A primeira coluna da Tabela 1 mostra o superávit primário do setor público consolidado, por segmentos de governo, no ano de 2011, em percentagem do PIB. A segunda coluna apresenta uma simulação, considerando que, após a renegociação das dívidas, os estados e municípios zerassem seus resultados primários, e que o Governo Federal elevasse o seu superávit para compensar tal redução. O que se observa é que seria necessário um acréscimo de 35% no superávit primário do Governo Federal para existir tal compensação.

Tabela 1 – Simulação do aumento necessário no superávit primário do Governo Federal para compensar a redução promovida por estados e municípios após a renegociação da dívida

Fonte: Banco Central e simulações do autor

Certamente seria um valor considerável, que imporia forte constrangimento aos gastos públicos federais, em especial aos investimentos, que são a categoria de gasto que usualmente é comprimida quando se faz necessário um corte de gastos públicos. Outra alternativa seria a elevação da já significativa carga tributária.

No caso de o Governo Federal cortar despesas, teríamos uma substituição de despesas federais por despesas estaduais e municipais. Os ganhos ou perdas para a população dependeriam da qualidade dos gastos cortados pela União em comparação com os gastos realizados pelos estados e municípios. No caso de aumento de tributos federais, haveria um repasse direto aos contribuintes dos custos do alívio da dívida concedido aos estados e municípios.

Há que se considerar um aspecto importante nessa possibilidade de redução do pagamento de prestações mensais pelos estados e municípios. Como se mostrará adiante, nada menos que 81% da dívida são de responsabilidade de apenas quatro estados (SP, RJ, MG, RS) e um município (São Paulo). Logo, um alívio da dívida representará transferência de renda de todo o país para os governos desses entes federados, que são justamente os de maior renda. Não se trata, portanto, de um efeito neutro, em que a União terá que reduzir suas despesas (ou aumentar seus tributos) para financiar um aumento de gastos de todos os estados e municípios. Trata-se de um subsídio que será direcionado a esses quatro estados e ao Município de São Paulo.

Tendo apresentado os principais interesses envolvidos na negociação, passemos a analisar os pontos que comumente compõem as propostas de renegociação que têm sido apresentadas:

1) substituição do indexador atual (IGP-DI) pelo IPCA ou supressão da indexação da dívida, que passaria a ser remunerada apenas por uma taxa de juros fixa (na faixa de 3% ao ano) ou por uma taxa variável (em geral, a Selic);

2) aplicação dos novos critérios (novo indexador e nova taxa de juros) de forma retroativa ao início do contrato;

3) ampliação do prazo de pagamento da dívida;

4) redução do limite máximo de comprometimento da receita estadual com o pagamento da dívida;

5) redirecionamento, pela União, dos recursos recebidos pelo pagamento da dívida para gastos específicos nos estados e municípios, tais como investimentos em infraestrutura ou educação.

A opção (5) tem a vantagem de não reduzir as prestações mensais pagas por estados e municípios. Por outro lado, cria obrigações adicionais de gasto para a União. Ademais, cada estado e cada município têm prioridades específicas de gastos. Criar um modelo único de gasto compensatório a ser aplicado a todos eles (seja em investimentos, seja em educação ou em outra área) pode não ser eficiente. Além disso, se os gastos federais em cada unidade federada forem proporcionais ao montante pago de amortização da dívida, mantém-se o problema de os estados maiores e mais ricos serem os principais beneficiários do acordo.

As opções (1) a (4), aplicadas isoladamente ou em conjunto, podem gerar a redução da prestação mensal a ser paga por estados e municípios, o que é o objeto de desejo dos governadores e prefeitos, em especial daqueles dos entes mais endividados.

É importante salientar que as opções (2) e (4) não deveriam prosperar.

A opção (4) consiste em reduzir o limite máximo de pagamento mensal pelo estado ou município. Se isso for feito sem a redução dos juros e correção monetária, haverá um agravamento da insustentabilidade da dívida.  Como já explicado nos textos citados no primeiro parágrafo, os contratos de renegociação possuem uma cláusula que limita o pagamento mensal das prestações. Digamos, a título de exemplo, que o valor a pagar de uma prestação seja de R$ 12, mas que o estado ou município tenha o direito estabelecido em contrato de pagar um valor que não supere 13% de sua receita, e que tal percentual equivalha a R$ 10. Os R$ 2 restantes serão incorporados ao saldo devedor, e o estado ou município passará a pagar juros sobre esse montante. Esse é um dos motivos pelos quais a dívida de alguns entes tem entrado em trajetória de crescimento insustentável: paga-se mensalmente um percentual muito pequeno do valor da prestação integral.

Isso quer dizer que medidas no sentido de reduzir ainda mais o limite máximo de pagamento da prestação irão apenas agravar o problema da insustentabilidade da dívida. Governadores e prefeitos podem até achar bom que, no curto prazo, suas despesas mensais com o pagamento da dívida sejam reduzidos. Mas o que ocorrerá será um aumento mais acelerado do saldo devedor, que agravará as perspectivas de default futuro da dívida, principalmente daqueles entes que já se encontram em situação difícil.

A opção (2) consiste em aplicar os novos critérios de juros e correção monetária de forma retroativa, desde o início do contrato. Tal alternativa possui dois graves problemas.

Ela não faz sentido do ponto de vista econômico porque, no passado, as dívidas pagaram juros compatíveis com a taxa de juros de equilíbrio da economia e o custo de financiamento da União. Se ora se fala em renegociação da dívida, é porque a taxa de juros média caiu. Mas no passado ela era mais alta. Não faz sentido usar a taxa de juros mais baixa do presente para alterar o custo da dívida no passado, quando a taxa vigente era outra. No momento da assinatura do contrato, ao final da década de noventa, a taxa Selic superava os 20%, de modo que era ótimo negócio para os devedores indexar sua dívida ao IGP-DI mais juros fixos de 6% a 9% ao ano.

Do ponto de vista jurídico, alterar contratos de elevada monta de forma retroativa pode ser a abertura de uma perigosa porta para que o Estado passe a, unilateralmente, rever processos de privatização, de concessões ao setor privado, etc.; como já vem ocorrendo perigosamente em países vizinhos.

Ademais, o impacto financeiro dessa renegociação retroativa será muito grande, justamente porque o custo de financiamento da dívida foi muito alto nos primeiros anos. Em alguns casos, pode transformar os estados e municípios em credores da União.

Uma simulação mostra o impacto de tal opção. Infelizmente não dispomos de dados exatos acerca do saldo devedor de cada estado e cada município, uma vez que a Secretaria do Tesouro Nacional impõe restrições à divulgação dessa informação. Não obstante, é possível fazer uma estimativa aproximada desse saldo, tendo em vista que, em média, a dívida junto à União representa, em média, 85% do total da dívida dos estados. Assim, se trabalharmos com a hipótese de que toda a dívida dos estados e municípios (para a qual dispomos de dados) é devida à União, teremos um dado aproximado (um pouco superestimado) para trabalhar.

A Tabela 2 mostra, na coluna (A), a Dívida Consolidada Líquida dos estados e do Município de São Paulo. Percebe-se, como já afirmado acima, que se a União fizer uma renegociação, os grandes beneficiários em termos absolutos (por terem dívidas mais elevadas) serão: o Estado de São Paulo, de Minas Gerais, o Município de São Paulo, o Estado do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul. Esses cinco entes federados respondem por nada menos que 81% da dívida total.

Em termos relativos (o peso da prestação da dívida sobre a receita estadual é mostrado na coluna (G)), percebe-se que os mesmos entes acima citados mantêm-se entre os maiores beneficiários, a eles agregando-se os estados de Alagoas, Mato Grosso do Sul e Goiás.

Tabela 2 – Dívida Consolidada Líquida e projeções acerca da amortização das dívidas estaduais e municipais renegociadas com a União

Fontes: Portaria nº 238/2012 da STN (para a RLR), http://www.tesouro.fazenda.gov.br/lrf/index.asp (para a DCL dos estados), http://www.tesouro.fazenda.gov.br/estados_municipios/sistn.asp (para a DCL do Município de São Paulo). Rech, Celmar (2006) A sustentabilidade dos débitos estaduais junto à União. Tese de Mestado. Universidade de Brasília (para as condições contratuais).

Suponha um contrato fictício que tivesse um saldo devedor inicial de R$ 1.000, adotando-se duas possibilidades de recálculo da dívida:

  • substituição do IGP-DI pelo IPCA, mantendo-se a taxa de juros em 6% ao ano[1];
  • substituição do IGP-DI pelo IPCA e redução dos juros de 6% ao ano para 3% ao ano.

No período considerado (janeiro de 1996 a dezembro de 2011), o IGP-DI acumulou alta de 271%, enquanto a alta do IPCA foi bastante inferior: 170%. Logo, a substituição de indexador tende a reduzir substancialmente o saldo devedor da dívida.

O recálculo da dívida desde o início do contrato pressupõe que tudo o que foi pago a maior (seja porque o IGP-DI variou acima do IPCA, seja porque os juros fixos caíram de 6% para 3%) seja contabilizado com amortização antecipada da dívida.

Para lidar com a existência de limites máximos ao pagamento de prestações, conforme explicado acima, trabalhou-se nas simulações abaixo com dois cenários básicos. No primeiro, o estado/município hipotético paga integralmente a prestação devida. No segundo cenário, em função do limite imposto à prestação pela RLR, o ente paga apenas 80% da prestação devida, acumulando o restante no saldo devedor.

O resultado das simulações é mostrado na Tabela 3. Uma dívida de valor R$ 1.000 em janeiro de 1996, que pagasse juros de 6% ao ano, amortizada integralmente em prestações mensais e corrigida pelo IGP-DI, chegaria a dezembro de 2011 com um saldo devedor de R$ 1.733. No caso de o ente devedor pagar apenas 80% das prestações mensais, acumulando a diferença no saldo devedor, o saldo da dívida chegaria ao final de 2011 com valor de R$ 2.435.

Tabela 3 – Simulações de substituição do indexador e da taxa de juros das dívidas estaduais e municipais

Fonte: simulações feitas pelo autor.

No cenário de pagamento integral das prestações, se mudarmos o indexador da dívida do IGP-DI para o IPCA, e considerarmos como amortização extraordinária tudo o que, ao longo dos anos, foi pago acima do que deveria ser pago de acordo com os novos parâmetros do contrato[2], a dívida nominal em dezembro de 2011 seria de apenas R$ 233. Ou seja, seria concedido um abatimento no saldo devedor da dívida dos estados e municípios de nada menos que 87%.

Se além de mudarmos o indexador, reduzirmos a taxa de juros para 3% ao ano, o acúmulo de créditos dos estados e municípios ao longo dos anos será tão elevado que eles passarão a ter crédito junto à União, e não mais uma dívida. Haveria um desconto de 146% no valor da dívida.

Passando ao cenário em que o ente teria pago apenas 80% do valor das prestações ao longo da vida do contrato, a mudança do indexador da dívida, mantendo-se os juros em 6% ao ano, resultaria em um desconto de 68% no saldo devedor. Já na hipótese de mudança do indexador e redução dos juros, os estados e municípios passariam a ter crédito, equivalendo a um desconto de 118% do saldo devedor.

Em qualquer dos dois cenários (pagamento integral das prestações ou pagamento de 80% das prestações), os descontos acima estimados são muito grandes. A causa desses descontos é, como acima explicado, o fato de que nos primeiros anos de contrato a taxa de juros de equilíbrio da economia e de financiamento do Tesouro era

muito superior àquela que agora se pratica. Retroagir as condições de hoje para o cenário adverso do passado resulta neste enorme subsídio pago por todo o País aos estados e ao município mais endividados.

Dificilmente será aceitável para o Tesouro Nacional recalcular a dívida desde o início do contrato. Há que se lembrar, ainda, que no momento da assinatura dos contratos, os estados e municípios já ganharam substancial desconto no saldo devedor da dívida, em geral superior a 10% do valor da dívida.

A Tabela 4 faz uma simulação da dívida líquida do Tesouro Nacional caso seja implantada uma das opções de recálculo da dívida.

Tabela 4 – Simulação da dívida líquida do Tesouro Nacional após recálculo da dívida (R$ bilhões)

Fonte: STN e simulações do autor

A primeira coluna mostra a situação da dívida do Tesouro em dezembro de 2011. A dívida interna somava R$ 2,51 trilhões. Deduzindo-se os créditos junto a estados e municípios (R$ 486 bilhões) e outros haveres (R$ 1, 17 trilhão), chega-se a uma dívida interna líquida de R$ 853 bilhões. Somando-se a esse montante a dívida externa líquida, chega-se a uma dívida líquida total (interna e externa) da ordem de R$ 937 milhões, equivalente a 22,6% do PIB. Concedendo-se os descontos na dívida estadual e municipal acima estimados, a dívida líquida do Tesouro pode quase dobrar, chegando a 40% do PIB. O impacto financeiro, a ser pago pelo contribuinte é, certamente, muito alto e tem o potencial de desequilibrar a política fiscal e a estabilidade da economia.

Em conclusão, a renegociação da dívida dos estados e municípios deve se pautar pela busca de solução dos dois principais problemas que esta dívida representa para o País: (a)  com a recente queda da taxa Selic, a dívida se tornou cara; (b) há sinais de insustentabilidade da dívida de alguns estados.

Não se deve renegociar a dívida com vistas a proporcionar ganhos de curto prazo a alguns governadores e prefeitos, às custas dos contribuintes e da estabilidade fiscal e econômica do País.

Pelo exposto, a melhor solução parece ser a substituição do indexador da dívida (possivelmente de IGP-DI para Selic) e/ou a redução das taxas de juros fixas. Pode-se pensar, também, em fixar como remuneração máxima a taxa Selic.

Tais mudanças, contudo, devem vigorar a partir da data da renegociação, evitando-se o efeito retroativo. Igualmente contraindicada seria a redução do comprometimento máximo mensal da receita, que pode agravar a insustentabilidade da dívida de alguns entes.

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Para ler mais sobre o tema:

DIAS, Fernando Álvares Correia. O refinanciamento dos governos subnacionais e o ajuste fiscal 1999-2003. Texto para Discussão nº 17 do Núcleo de Estudos e Pesquisas do Senado Federal, Dezembro de 2004. Disponível em (http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD17-FernandoAlvaresDias.pdf)

MORA, Mônica. Federalismo e Dívida Estadual no Brasil. Texto para Discussão do IPEA nº 866, março de 2002. Disponível em  (http://www.ipea.gov.br/pub/td/2002/td_0866.pdf)

PELLEGRINI, Josué Alfredo. Dívida estadual Texto para Discussão nº 110 do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal,  março de 2012. Disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD110-JosuePellegrini.pdf

RIGOLON, Francisco e GIAMBIAGI, Fábio. A renegociação das dívidas e o regime fiscal dos Estados.  In Giambiagi, Fábio e Moreira, Maurício Mesquita (orgs.): A economia brasileira nos anos 90. Rio de Janeiro: BNDES, 1999.

RECH, Celmar. A sustentabilidade dos débitos estaduais junto à União. Tese de Mestrado em Economia do Setor Público. Universidade de Brasília, 2006.


[1] Note-se que temos aqui uma simplificação, pois há contratos como o da Prefeitura de São Paulo e do Estado de Minas Gerais que pagam juros acima de 6% ao ano, como pode ser visto na coluna B da Tabela 1, acima.
[2] E considerarmos como amortização negativa tudo o que foi pago a menor.

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Por que renegociar a dívida estadual e municipal? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1207&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-renegociar-a-divida-estadual-e-municipal https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1207#comments Mon, 21 May 2012 01:06:43 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1207 Este site já descreveu o problema da dívida dos estados com a União no texto Como evoluiu a dívida estadual nos últimos dez anos?. O presente texto volta ao tema buscando responder uma questão específica: por que se deve renegociar a dívida dos estados e municípios com a União?

A dívida dos estados e municípios com a União estava, ao final de abril de 2012, em R$ 438 bilhões, o que equivalia a 10,6% do PIB. Trata-se de um montante elevado, e cujas condições de pagamento ou risco de inadimplência têm forte impacto sobre a economia.

Essa dívida é o resultado de um bem sucedido acordo político realizado ao final dos anos 90, e vem sendo um dos sustentáculos da estabilidade econômica do País. Àquela época, a maioria dos estados e os municípios de maior porte estavam em péssima situação financeira, com dívidas elevadas, sobre as quais incidiam altas taxas de juros, e que precisavam ser refinanciadas quase diariamente. O Governo Federal ofereceu-se para assumir essa dívida. Vale dizer, o Governo Federal passaria a pagar a dívida aos credores originais (bancos nacionais e estrangeiros, empresas estatais, entre outros). E os estados e municípios passariam a dever ao Governo Federal.

Para os governos estaduais e municipais foi um acordo vantajoso. A dívida, que era de curto prazo, passou a ser paga em trinta anos. Foi concedido um desconto no valor total da dívida (variável para cada estado, em geral um pouco acima de 10%). A taxa de juros e a correção monetária estabelecidas eram, à época, mais baixos que as taxas de mercado, de modo que o custo da dívida caiu. Além disso, fixou-se que os estados e municípios pagariam, no máximo, um percentual fixo de suas receitas a título de prestação (em geral fixado em 13% das respectivas receitas). Assim, por exemplo, se o valor da prestação a pagar fosse de R$ 12, mas o limite máximo de 13% da receita fosse igual a R$ 8, o estado pagaria apenas os R$ 8, e os R$ 4 restantes seriam agregados ao saldo devedor da dívida. Isso impedia que as receitas estaduais fossem excessivamente consumidas pela dívida. Em contrapartida, surgia o risco de, ao final do contrato, ainda haver um saldo devedor a pagar. Por isso, criou-se um prazo adicional de 10 anos para a quitação desse resíduo.

Para o Governo Federal também foi um bom acordo. Isso porque os estados que aderissem ficavam obrigados a cumprir um programa de ajuste fiscal, controlando seus déficits e ajudando o governo federal no esforço de geração de superávit primário, instrumento central para manter a dívida pública agregada (federal e estadual) sob controle e, também, para controlar a inflação.

Se o acordo foi bom para todos, por que os estados e municípios têm reclamado tanto, demandando uma revisão do acordo? Será, de fato, necessário renegociar os termos dessa dívida?

A resposta a essa última pergunta parece ser positiva, por dois motivos: (1) as taxas de juros de mercado caíram e isso não se refletiu nos contratos da dívida estadual e municipal; (2) há alguns estados e um município cuja dívida está em trajetória explosiva, com baixíssima possibilidade de ser efetivamente paga nos termos atuais. Vejamos cada um desses pontos.

Os juros da dívida

As taxas de juros da economia caíram bastante desde o momento em que foram assinados os contratos entre a União e os estados e municípios (entre 1996 e 2001). À época, a taxa Selic, que constitui o custo de financiamento do Governo Federal, era muito superior à correção monetária mais os juros fixados no contrato dos estados e municípios. Tais contratos têm como correção monetária o Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna (IGP-DI) mais uma taxa fixa de juros, que varia entre 6% e 9% ao ano.  Ou seja, o Governo Federal tomava recursos no mercado pagando uma taxa Selic, que era maior do que IGP-DI + 6% a.a., usava os recursos para quitar os débitos dos estados e municípios com os credores originais, e só cobrava dos estados e municípios IGP-DI+6% a.a.. Logo, o Governo Federal estava subsidiando os estados e municípios.

Porém, ao longo dos anos a melhoria da situação macroeconômica permitiu significativa queda da taxa Selic, que caiu de um máximo de 46% a.a., em outubro de 1997, para 9% a.a., em maio de 2012. E os contratos das dívidas estaduais e municipais permaneceram com a mesma taxa de juros. Ou seja, o subsídio de juros foi diminuindo ao longo dos anos e, mais recentemente, o Governo Federal está cobrando dos estados e municípios uma taxa de juros que supera a taxa Selic.

O Gráfico 1 mostra a diferença das taxas acumuladas, tomando 1995 como ano base. Temos que se o contrato de refinanciamento das dívidas estaduais e municipais tivesse previsto a Selic como taxa de juros, e não o IGP-DI + 6% ao ano (maioria dos contratos), ou IGP-DI + 7,5% ao ano (contrato de MG, AL e PA), a dívida teria crescido com maior intensidade. Somente o  pior dos contratos (IGP-DI + 9% ao ano – aplicável somente para a Prefeitura de São Paulo) teve variação acumulada superior à Selic. Ou seja, ao longo dos 15 anos de contrato já cumpridos, os estados e municípios (exceto a Prefeitura de São Paulo) receberam relevante subsídio, se comparada a taxa paga com o custo de financiamento da União.

Gráfico 1 – Variação acumulada da Selic vs. IGP-DI mais juros: 1996-2011


Fonte: Banco Central do Brasil, dados elaborados pelo autor

Todavia, com a expressiva queda da Selic nos últimos anos, em períodos recentes a Selic representou custo mais elevado que o IGP-DI mais taxa fixa de juros.

O Gráfico 2 apresenta a diferença entre o IGP-DI mais juros fixos (nas três opções: 6%, 7,5% e 9% ao ano) e a Taxa Selic para diferentes períodos de tempo, desde o período 2004-2011 até o período 2010-2011. Valores positivos indicam que os custos do refinanciamento da dívida superaram a Selic. O que se percebe é que, com raras exceções, no período mais recente, o custo da dívida por IGP-DI mais taxa de juros fixa superou o custo representado pela Taxa Selic.

Gráfico 2 – Diferença acumulada entre o IGP-DI mais taxa de juros fixa e a  Selic para diversos períodos de tempo(% ao ano)


Fonte: Banco Central do Brasil, dados elaborados pelo autor.

Portanto, a primeira questão relevante que se estabelece é que as condições macroeconômicas vigentes à época da assinatura dos contratos mudaram para melhor, o que permitiu a queda da taxa de juros de equilíbrio da economia brasileira. Essa melhoria não se refletiu nos contratos de dívida dos Estados. Para que isso aconteça, é necessário que se reveja tanto o indexador da dívida (IGP-DI) quanto a taxa de juro fixa dos contratos.

Outro problema, não diretamente tratado neste artigo, refere-se ao indexador utilizado para corrigir as dívidas. O IGP-DI é um índice geral, fortemente influenciado pelos preços no atacado, que, por sua vez, são fortemente sensíveis à variação do dólar. O ideal seria escolher um índice de inflação que melhor acompanhasse a evolução nominal das receitas estaduais. Um índice de preços ao consumidor, como o IPCA, pode servir melhor a esse propósito.

A sustentabilidade da dívida

Outra questão relevante é saber se todos os estados e municípios serão capazes de pagar a dívida até o final do contrato. Caso isso não seja verdadeiro, então há a sinalização de uma possível crise da dívida, que deve ser evitada com a devida antecedência, para que não sejam amplificados seus efeitos adversos sobre a economia.

Aqui entra um ponto importante. Como afirmando no início do texto, os contratos têm uma cláusula que impõe um limite máximo ao valor da prestação mensal, em geral em torno de 13% da receita do estado ou município, com o restante não pago sendo agregado ao saldo devedor. Em alguns casos, os valores integrais das prestações eram muito superiores ao limite máximo, o que resultou em forte acúmulo de saldo devedor, indicando a impossibilidade de pagamento da dívida dentro do prazo contratual.

A situação dos entes federados é hoje bastante heterogênea. Para mostrar uma fotografia dessa heterogeneidade, foi elaborado um exercício matemático simplificado.

Embora não sejam divulgados dados detalhados da dívida de cada estado, é possível fazer um exercício, considerando-se que o valor total da dívida de cada estado é todo ele devido ao Governo Federal. Frente à limitação dos dados, tomou-se como proxy para tal dívida os números relativos à Dívida Consolidada Líquida (DCL). Em termos agregados, a dívida renegociada equivale a 85% da DCL dos Estados. Assim, as estimativas apresentadas na coluna (A) da Tabela 1 usam um saldo devedor que, em média, é um pouco superior ao valor efetivamente devido à União. Os resultados devem ser tomados apenas como ilustrativos, tendo em vista a precariedade dos dados acima referida.

As colunas (B), (C) e (D) apresentam as condições contratuais negociadas por cada ente federado. A coluna (E) expõe a Receita Líquida Real (RLR) de cada ente no mês de abril de 2012. Esse é o valor usado como base para limitar a prestação mensal paga por cada ente.

A coluna (F) calcula qual seria a prestação mensal a ser paga por cada ente, caso se decidisse que, a partir de janeiro de 2012 a dívida seria paga em 15 anos (prazo que resta para o final do contrato, sem considerar a prorrogação de dez anos para pagamento do resíduo), sem qualquer limitação ao valor da prestação mensal. Ou seja: os entes pagariam integralmente a prestação calculada pelo sistema PRICE. A coluna (G) mostra qual a proporção de tal prestação em relação à RLR. Fica claro que o Município de São Paulo e que os estados de  RS, MG, SP e AL dificilmente conseguiriam pagar integralmente a dívida.

A coluna (H) leva em conta a possibilidade de a dívida ter um período adicional de 10 anos, além dos 30 anos do contrato regular. Ou seja, trata-se de um exercício para verificar se o uso do prazo adicional de 10 anos, previsto para o pagamento do resíduo da dívida, resolveria a situação dos estados mais assoberbados pela dívida. Nesse caso, SP e AL passam a ter prestações mais palatáveis em relação à RLR, mas a situação da Prefeitura de São Paulo, RS e MG continua difícil.

Tabela 1 – Dívida Consolidada Líquida e projeções acerca da amortização das dívidas estaduais e municipais renegociadas com a União


Fontes: Portaria nº 238/2012 da STN (para a RLR), http://www.tesouro.fazenda.gov.br/lrf/index.asp (para a DCL dos estados), http://www.tesouro.fazenda.gov.br/estados_municipios/sistn.asp (para a DCL do Município de São Paulo). Rech, Celmar (2006) A sustentabilidade dos débitos estaduais junto à União. Tese de Mestado. Universidade de Brasília (para as condições contratuais).

Ressalte-se que dos entes que estão em pior situação, três têm taxas de juros acima de 6% ao ano, com destaque para a Prefeitura de São Paulo, que paga a mais alta taxa de juros: 9% ao ano (lembrando que as diferenças de taxas de juros decorrem do maior ou menor pagamento de parcela da dívida a vista: aqueles Estados e Municípios que fizeram privatizações e usaram a receita dessas vendas para quitar dívida com a União obtiveram contratos com juros mais baixos).

Ou seja, pelo menos quatro Estados e um Município apresentam indicações de que não conseguirão honrar sua dívida. E as dívidas desses entes representam nada menos que 70% do total devido à União.

Portanto existe uma inadimplência que se desenha para o futuro. Resolver esse problema agora, renegociando os contratos, será menos traumático que esperar o problema estourar, como exemplifica o caso da dívida grega.

Este texto procurou mostrar porque é importante renegociar a dívida de estados e municípios com a União. Posteriormente analisaremos como devem ser renegociados os contratos e as armadilhas que devem ser evitadas em tal renegociação.

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Para ler mais sobre o tema:

DIAS, Fernando Álvares Correia. O refinanciamento dos governos subnacionais e o ajuste fiscal 1999-2003. Texto para Discussão nº 17 do Núcleo de Estudos e Pesquisas do Senado Federal, Dezembro de 2004. Disponível em (http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD17-FernandoAlvaresDias.pdf)

MORA, Mônica. Federalismo e Dívida Estadual no Brasil. Texto para Discussão do IPEA nº 866, março de 2002. Disponível em  (http://www.ipea.gov.br/pub/td/2002/td_0866.pdf)

PELLEGRINI, Josué Alfredo. Dívida estadual Texto para Discussão nº 110 do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal,  março de 2012. Disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD110-JosuePellegrini.pdf

RIGOLON, Francisco e GIAMBIAGI, Fábio. A renegociação das dívidas e o regime fiscal dos Estados.  In Giambiagi, Fábio e Moreira, Maurício Mesquita (orgs.): A economia brasileira nos anos 90. Rio de Janeiro: BNDES, 1999.

RECH, Celmar. A sustentabilidade dos débitos estaduais junto à União. Tese de Mestrado em Economia do Setor Público. Universidade de Brasília, 2006.

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https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=1207 5
Como evoluiu a dívida estadual nos últimos dez anos? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1154&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=como-evoluiu-a-divida-estadual-nos-ultimos-dez-anos https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1154#comments Sun, 01 Apr 2012 22:00:47 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1154 O tema da dívida estadual adquiriu grandes proporções na década de noventa, quando o passivo dos Estados subiu rapidamente. Após a renegociação com a União nos anos finais da referida década, a atenção dada ao tema arrefeceu, mas reascende recorrentemente, em geral em meio a discussões sobre a partilha de receitas entre os entes federados. Depois de mais de uma década desde que a renegociação foi concluída, é preciso avaliar como evoluiu a dívida estadual nesse período. Antes, porém, cabe um histórico para situar o tema.

A atual situação da dívida estadual retrata importantes acontecimentos verificados na década de noventa, quando o passivo estadual subiu acentuadamente. Segundo Rigolon e Giambiagi (1999, p. 117), a dívida líquida dos Estados e Municípios aumentou de 5,8% do PIB, em 1989, para 14,4% do PIB, em 1998. A participação desse passivo na dívida líquida do setor público passou de 15%, em 1989, para 39%, na média do período 1995 a 1998, a despeito de renegociações realizadas nesse período.

O rápido aumento da dívida estadual levou a União a renegociá-la, o que se deu com base na Lei nº 9.496, de 1997. Antes dela, já haviam ocorrido outras renegociações com a União, mas que não foram suficientes para conter o crescente endividamento.

A renegociação de 1997 resultou em contratos firmados entre este ano e 1999 pela União e cada um dos Estados, a exceção do Amapá e de Tocantins. Como o mercado era credor de parte significativa da dívida estadual, a renegociação envolveu a assunção pela União desse passivo, tornando-se, em contrapartida, credora dos Estados nos termos negociados.

De acordo com Rigolon e Giambiagi (1999, p. 129), a renegociação envolveu 77,9% da dívida líquida dos Estados e Municípios ao final de 1998, cerca de 11,3% do PIB. Nesse montante não estão incluídos os valores negociados no âmbito do Proes, programa por meio do qual se processou a alienação ou liquidação dos bancos estaduais. As maiores dívidas renegociadas foram a dos Estados mais ricos da Federação, especialmente São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Mora (2002, p. 27) informa que esses Estados foram responsáveis por cerca de 90% da dívida renegociada.

Os termos da renegociação serão analisados adiante. Vale agora destacar que esses termos não se restringiram a um ajuste financeiro, mas também fiscal e patrimonial, na medida em que os contratos firmados entre a União e cada um dos Estados contemplaram também metas, garantias e incentivos para a geração de superávits primários (receitas não financeiras deduzidas de despesas não financeiras) e venda de ativos.

Esses superávits eram necessários para viabilizar a adimplência dos encargos (juros e amortização) da dívida renegociada, ao longo do período da vigência dos contratos. A União foi também autorizada a utilizar as transferências constitucionais no pagamento dos encargos da dívida em caso de inadimplência. Como resultado da renegociação, os déficits primários dos Estados, vigentes até 1998, foram revertidos e tenderam a superávits nos anos seguintes. Esse ajuste mostrou-se muito importante por conta da grave crise econômica então vivida pelo Brasil, e que só foi debelada com o ajuste fiscal do setor público, entre outras providências.

Feito esse histórico, cabe avaliar como evolui a dívida estadual no transcurso de vigência da renegociação firmada entre Estados e União. Utiliza-se aqui os dados da dívida líquida do setor público, aferida pelo Bacen, disponível desde dezembro de 2001[1]. Esse é o indicador normalmente utilizado quando se quer retratar a situação do endividamento público no Brasil.

A dívida líquida dos Estados ao final de 2011 era de R$ 434 bilhões, o que correspondia a 10,5% do PIB. Em dezembro de 2001, o saldo era de 18,1% do PIB. Portanto, em dez anos, houve queda de 42,2%, ou de 7,2 pontos percentuais do PIB. No mesmo período, a dívida líquida da União caiu 23,7%, o que reduziu a participação da dívida estadual no total da dívida líquida do setor público de 31,7% para 27,3%. Em que pese essa participação inferior a 1/3, os Estados foram responsáveis por 48,7% da queda da dívida líquida do setor público nos dez anos em questão.

Trata-se de evolução bastante distinta do descontrole verificado na década de noventa. Mesmo assim, são recorrentes as tensões entre Estados e União em torno do tema. Para entender essa situação é preciso analisar a composição da dívida bruta dos governos estaduais, sem considerar as estatais e os haveres. Do total de R$ 453,5 bilhões do saldo desse passivo em dezembro de 2011, os compromissos junto à União representavam R$ 407,8 bilhões ou 89,9%. São os passivos renegociados na década de noventa, especialmente a renegociação feita com base na Lei nº 9.496, de 1997, e que atualmente corresponde a 90,6% da dívida dos governos estaduais junto à União.

O passivo junto à União também caiu de forma expressiva de dezembro de 2001 a dezembro de 2011, tal qual a dívida líquida dos Estados. Nesse período, aquele passivo passou de 16,2% do PIB para 9,8% do PIB, queda de 39,2% ou 6,4 pontos percentuais do PIB. Entretanto, é preciso qualificar essa queda.

Em primeiro lugar, a queda ocorreu, em boa medida, em virtude dos aumentos do PIB. Na média do período de 2002 a 2011, o produto aumentou 12,3%. Quando a dívida dos governos estaduais junto à União é medida em termos reais, utilizando-se como índice de preços o IGP-DI, a queda real durante os dez anos foi de apenas 11,11%.

Em segundo lugar, mesmo em relação ao PIB, a queda de 6,4 pontos percentuais não é tão expressiva quanto parece. Vale observar que se trata de passivo que está há anos sendo amortizado, sem que novos empréstimos sejam feitos. Se o ritmo da queda verificado até aqui se reproduzir nos próximos anos (0,64 ponto de PIB por ano), serão ainda necessários mais quinze anos aproximadamente para que a dívida dos governos estaduais junto à União seja quitada, partindo-se do saldo atual de 9,8% do PIB. Esse prazo se transforma em dezenove ou em treze anos se o ritmo de queda reproduzir o período 2002-2006 ou o período 2007-2011, respectivamente.

Em quaisquer desses cenários está implícita a continuidade do esforço fiscal dos Estados. Em 2011, o superávit primário dos governos estaduais foi de 0,72% do PIB, mesmo número da média do período de 2002 a 2011. Possivelmente, o descontentamento dos Estados decorra do esforço fiscal requerido para manter a trajetória de queda da dívida e do tempo que ainda será necessário mantê-lo.

Mas porque razão a dívida dos governos estaduais junto à União não está caindo mais rapidamente, a despeito dos superávits primários gerados? A razão está nas condições dos contratos firmados com base na Lei nº 9.496, de 1997, que, conforme visto, rege grande parte do passivo estadual. Entre os termos firmados com cada Estado, destacam-se o pagamento em 360 prestações (30 anos), nas quais se incluem os juros e as amortizações; taxa de juros de 6% ao ano (7,5% em alguns casos); correção do saldo devedor pelo IGP-DI; e limite aos desembolsos feitos pelos Estados, dado por um percentual da receita estadual.

Esse último item merece um exemplo. Suponha que os desembolsos relativos aos encargos do passivo junto à União de um determinado Estado estejam limitados a 13,5% de sua receita. Caso a prestação, em um certo momento, corresponda a 16,5% da receita, essa diferença de três pontos percentuais deixa de ser paga imediatamente, e se junta ao saldo devedor, igualmente sujeita ao IGP-DI e à taxa de juros.

Dados esses termos, notadamente o limite para os desembolsos e a correção do passivo pelo IGP-DI, somado ainda ao cenário macroeconômico que determinou a evolução desse índice, os pagamentos feitos pelos Estados corresponderam basicamente aos juros reais (dados pelos 6% ou 7,5% ao ano), enquanto a amortização da dívida e a sua correção pelo IGP-DI se somaram ao saldo devedor, ao ultrapassarem o limite dos desembolsos.

Esses traços gerais dos fluxos financeiros da dívida renegociada com base na Lei nº 9.497, de 1996, podem ser observados a partir da análise dos usos e fontes da dívida líquida dos governos estaduais, divulgados pelo Bacen. Apesar de contemplarem a integridade dessa dívida, esses números são fortemente condicionados pelo amplamente majoritário passivo renegociado com base na referida lei.

Observa-se que, de 2002 a 2011, o superávit primário gerado pelos governos estaduais ou, em outros termos, os desembolsos feitos por conta dos encargos da dívida (juros e amortizações), foi de R$ 186,6 bilhões. Trata-se de montante elevado, mas muito próximo dos R$ 177,4 bilhões relativos aos juros líquidos da dívida interna, os quais incluem, majoritariamente, o pagamento da taxa de juros de 6% ao ano (ou de 7,5% para alguns Estados). Já a correção monetária da dívida líquida dos governos estaduais, que contempla basicamente a correção pelo IGP-DI, totalizou R$ 207,5 bilhões no período, em grande parte refinanciada por meio da sua incorporação ao principal da dívida.

Enfim, intencionalmente ou não, percebe-se que os superávits primários dos governos estaduais, calibrados pelo limite dado como percentual da receita estadual, são suficientes para pagar os juros reais da dívida, enquanto a amortização e a correção do passivo são automaticamente refinanciadas. Desse modo, não é de se estranhar que o saldo da dívida dos governos estaduais junto à União tenha caído apenas 11,11% de dezembro de 2001 a dezembro de 2011, em termos reais, corrigido pelo próprio indexador majoritário do passivo que é o IGP-DI. Note-se uma vez mais que, durante esses dez anos, houve apenas desembolsos, sem qualquer novo empréstimo da União aos Estados.

Um aspecto negligenciado até agora, mas que não pode deixar de ser considerado, são as especificidades de cada Estado, já que a situação de endividamento é bastante heterogênea entre eles. Isso pode ser constatado pelos dados da relação entre dívida consolidada líquida e de receita corrente líquida apresentados por Estado, para os anos de 2000 a 2010, pela Secretaria do Tesouro Nacional[2].  Esses dados constam da tabela abaixo.

Dívida consolidada líquida em relação à

receita corrente líquida por Estado

Estados dez./

2010

dez./

2000*

Variação

(%)

Estados dez./

2010

dez./

2000

Variação

(%)

RIO GRANDE DO SUL 2,14 2,66 -19,7 BAHIA 0,52 1,64 -68,2
MINAS GERAIS 1,82 2,34 -22,1 PERNAMBUCO 0,38 0,86 -55,3
ALAGOAS 1,62 2,23 -27,6 PARAÍBA 0,36 1,53 -76,6
RIO DE JANEIRO 1,56 2,07 -24,5 SERGIPE 0,33 0,88 -62,2
SÃO PAULO 1,53 1,93 -20,8 PARÁ 0,29 0,57 -49,6
GOIÁS 1,30 3,13 -58,5 CEARÁ 0,28 0,87 -68,3
MATO GRASSO DO SUL 1,20 3,10 -61,3 AMAZONAS 0,27 1,00 -72,9
PARANÁ 0,89 1,29 -30,8 RIO GRANDE DO NORTE 0,20 0,71 -71,4
MARANHÃO 0,64 2,58 -75,3 DISTRITO FEDERAL 0,18 0,36 -49,6
SANTA CATARINA 0,63 1,83 -65,6 AMAPÁ 0,18 0,05 294,4
MATO GROSSO 0,55 2,50 -77,9 ESPÍRITO SANTO 0,17 0,98 -82,4
PIAUÍ 0,54 1,73 -68,8 TOCANTINS 0,16 0,35 -53,3
RONDÔNIA 0,54 1,11 -51,3 RORAIMA 0,04 0,31 -86,7
ACRE 0,54 1,04 -48,5 TOTAL 1,12 1,70 -34,1

Fonte primária: STN.

* 2001, no caso de Minas Gerais.

Percebe-se que há um grupo de Estados cuja situação do endividamento é menos favorável. São eles: Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Esses quatro Estados respondem por 76,8% da dívida estadual e ocupam, juntamente com Alagoas, as cinco primeiras posições na classificação por ordem decrescente de relação entre dívida e receita, para o ano de 2010. A situação menos confortável é a do Rio Grande do Sul com relação de 2,14. Somente mais dois Estados, Goiás e Mato Grosso do Sul, possuem relação superior à unidade. Ocorre que, nesses dois casos, a relação caiu de forma expressiva de 2000 a 2010, ao contrário do que se constada com os quatro grandes Estados, cuja queda oscilou entre 19,7% e 24,5%, muito abaixo dos 60,9% relativos a todos os demais Estados.

Não existem informações detalhadas sobre o endividamento de cada Estado. O desempenho dos quatro Estados pode estar associado a vários fatores, mas um elemento que parece decisivo é o peso da dívida renegociada com base na Lei nº 9.496, de 1997. O Bacen divulga a composição da dívida por Região, somando-se Estados e Municípios[3]. O peso dessa dívida no total do passivo dos entes da Região Sudeste e Sul ao final de 2010 é de 88% e 83%, respectivamente[4]. Reflexo disso é a similaridade entre a queda de 19,7% a 24,5%, de 2000 a 2010, da relação entre dívida e receita desses quatro Estados, e a queda de 24,7%, de 2001 a 2011, da dívida renegociada com base na referida lei, aferida em relação ao PIB.

Assim, constata-se que os traços gerais da dinâmica da dívida dos governos estaduais perante a União, considerando-se os Estados conjuntamente, retratam mais fielmente a situação financeira dos quatro maiores Estados do Brasil, responsáveis por grande parte do passivo estadual.

Conforme visto, a continuidade desse arranjo, superávits primários inclusive, juntamente com um cenário macroeconômico que não seja pior do que a média dos últimos dez anos, tornará a dívida dos governos estaduais junto à União irrelevante ao longo dos próximos quinze anos, aferida em relação ao PIB. A questão em aberto é qual o grau de disposição dos Estados em aceitar a continuidade das linhas gerais desse arranjo por esse tempo extra. O descontentamento se expressa em demandas pela alteração dos contratos firmados com base na Lei nº 9.496, de 1997, notadamente quanto ao indexador e/ou à taxa de juros empregados.

Existem importantes obstáculos a uma nova renegociação da dívida dos governos estaduais junto à União. Há a proibição imposta pelo art. 35 da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei complementar nº 101, de 2000). Entretanto, mesmo que esse dispositivo seja alterado, os contratos firmados são atos jurídicos perfeitos, o que significa que a revisão dos contratos depende da concordância da União.

É justamente na disposição da União onde reside a maior dificuldade. As alterações que possam ser relevantes representam, em última instância, transferências de recursos da União para os Estados, a serem financiados de algum modo por aquele ente. Suponha-se que a taxa de juros de 6% ao ano ou o limite de desembolsos seja diminuído. Tal mudança reduziria o superávit primário dos Estados, pois os recursos liberados provavelmente financiariam despesas primárias, como gastos correntes ou investimentos. Se a União pretendesse manter o superávit e a trajetória da dívida do setor público, teria que elevar compensatoriamente seu próprio superávit, com cortes de gastos e/ou elevação de receitas federais.

Existem ainda outras dificuldades a serem suplantadas para rever os contratos. Cabe referência a duas delas. Quanto à primeira, costuma-se sugerir a troca do IGP-DI pelo IPCA como indexador da dívida estadual junto à União. De fato, no transcurso dos contratos, o acumulado do primeiro índice subiu mais rapidamente que o segundo. Ocorre que não há qualquer garantia de que o padrão se mantenha no futuro. Aliás, não se observa tendência de afastamento entre os índices desde 2003. O problema do IGP-DI é a sua correlação com a taxa de câmbio e, enquanto não houver desvalorizações acentuadas do real, a referida tendência deverá ser mantida.

Certamente, a situação é bastante distinta se a revisão do índice for retroativa ao período anterior a 2003. A resistência da União em abrir a negociação decorre em boa medida do receio das demandas retroativas.

Quanto à segunda dificuldade, diz respeito à já comentada heterogeneidade da situação de endividamento dos Estados. Os termos da dívida renegociada com base na Lei nº 9.496, de 1997, afetam os Estados de modo muito distinto. Os mais beneficiados por uma eventual renegociação tendem a ser os maiores da Federação. Provavelmente, os outros Estados fariam demandas compensatórias no próprio âmbito da discussão da dívida ou em qualquer outro tema dentre as várias opções propiciadas pelo complexo federalismo fiscal brasileiro, a exemplo da distribuição dos recursos do Fundo de Participação dos Estados ou dos royalties relativos à exploração do petróleo.

Em meio às tensões entre os entes federados, o resultado poderá ser a flexibilização dos controles sobre novos empréstimos dos Estados junto aos bancos públicos ou privados ou junto aos credores externos. De certo modo, isso já vem ocorrendo nos últimos anos, ainda que timidamente. Cabe discernir as consequências caso esse financiamento seja ou não condicionado ao uso na amortização da dívida junto à União.

Caso a autorização para novos financiamentos seja condicionada ao uso na amortização da dívida junto à União, os Estados só terão interesse se o custo desse novo financiamento for mais baixo que o custo da dívida junto à União. Isso possivelmente só ocorrerá para o financiamento externo. Dois problemas advirão, então. Os Estados estarão mais sujeitos ao risco cambial e as operações de crédito externo serão um fator a mais a reduzir o preço do dólar no mercado cambial, uma tendência macroeconômica contra a qual o Governo Federal vem lutando, a fim de proteger a indústria nacional da concorrência dos produtos importados.

Se os Estados aderirem à estratégia de reestruturação do passivo, é claro que a União terá que utilizar os recursos extras, decorrentes da amortização mais rápida do crédito junto aos Estados, no resgate da sua própria dívida. De outro modo, a dívida líquida federal subirá, pois a redução do crédito não será compensada por equivalente redução do passivo.

Quanto à outra alternativa, a não obrigatoriedade do uso dos novos financiamentos no resgate do passivo junto à União, o resultado provavelmente será o aumento da dívida estadual e, por consequência, da dívida do setor público, aferida em relação ao PIB, eventualmente revertendo a tendência de queda verificada nos últimos anos. Isso só não ocorrerá se a própria União agir para que a dinâmica do seu passivo compense o aumento da dívida estadual.

Em qualquer hipótese, a flexibilização das restrições ao aumento do financiamento estadual terá que levar em conta as diferentes situações de endividamento dos Estados, de modo a não reiniciar as condições que levaram à dolorosa experiência da década de noventa.

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Referências bibliográficas:

MORA, Mônica. Federalismo e Dívida Estadual no Brasil. Texto para Discussão do IPEA nº 866, de março de 2002.

(http://www.ipea.gov.br/pub/td/2002/td_0866.pdf)

RIGOLON, Francisco e GIAMBIAGI, Fábio. A renegociação das dívidas e o regime fiscal dos Estados. In Giambiagi, Fábio e Moreira, Maurício Mesquita (orgs.): A economia brasileira nos anos 90. Rio de Janeiro: BNDES, 1999.


[1] Notas para a Imprensa – Política Fiscal (http://www.bcb.gov.br/?ECOIMPOLFISC). Como a série começou em 2001, não necessariamente é compatível com os dados relativos ao período anterior.

[2] Esses conceitos foram introduzidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 2000), com o intuito de estabelecer parâmetros legais de desempenho fiscal para os Entes Federados. A série completa dessas duas variáveis para o período 2000 a 2010 pode  ser encontrada em http://www.tesouro.fazenda.gov.br/lrf/downloads/financas_estaduais_divida_liquida.pdf

[3] Http://www.bcb.gov.br/ESTATISTICADLSP.

[4] Vale observar que, no caso da Região Sul, o passivo dos Municípios é inexpressivo, e o Rio Grande do Sul responde por 64,2% da dívida estadual dessa Região.

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A Grécia deve abandonar o euro? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1118&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-grecia-deve-abandonar-o-euro https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1118#comments Mon, 12 Mar 2012 13:40:46 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1118 O elevado endividamento do governo grego não é exatamente uma novidade. A expressão “PIGS” (acrônimo dos nomes em inglês de Portugal, Itália, Grécia e Espanha), utilizada para denominar países com finanças públicas desorganizadas do sul da Europa, foi cunhada já nos anos 90. Neste artigo farei uma breve exposição do problema grego e discutirei as duas alternativas que se colocam: a Grécia deve fazer um programa de ajuste sob a supervisão da troika (FMI, União Europeia e Banco Central Europeu), ou deve abandonar o euro e tentar um caminho sozinha?

De 2000 a 2008, o endividamento grego cresceu sem maiores problemas. Havia grande liquidez no mundo, decorrente, entre outros fatores, de um maior desenvolvimento e integração do sistema financeiro e de um forte aumento da poupança asiática (em especial, da China), que disponibilizou mais recursos para empréstimos.

A introdução do euro, em 2002, também contribuiu para o endividamento. Em primeiro lugar porque a perspectiva de maior integração europeia significava maior perspectiva de crescimento. Além disso, a moeda única reduzia custos de transação e, sobretudo, o risco cambial, permitindo reduzir as taxas cobradas. Por fim, também contribuiu uma euforia do mercado financeiro, que não enxergou corretamente os riscos que estavam incorrendo, ou conheciam bem os riscos, mas acreditavam que os demais governos da eurozona não deixariam um país quebrar.

A crise financeira internacional já apresentou alguns sinais em 2007, mas se tornou evidente com a falência do Lehman Brothers em setembro de 2008. A recessão global que se seguiu atingiu fortemente a Grécia, entre outros motivos, porque uma de suas principais indústrias, a do turismo, é particularmente sensível a variações do PIB. O governo grego, assim como o de diversos outros países, tentou amenizar os impactos da crise fazendo uma política fiscal expansionista, seja gastando mais, seja reduzindo os impostos. Isso fez com que a dívida grega se acelerasse, passando de cerca de 105% do PIB em 2008 para 145% em 2010. Para se ter uma base de comparação, a relação dívida/PIB dos países da Zona do Euro passou de 70% para 85% no período.

Diante da forte deterioração fiscal, a Grécia fez um plano de austeridade e, em maio de 2010, fechou o primeiro acordo com o FMI e União Europeia, no valor de € 110 bilhões. Isso, entretanto, não foi suficiente para equilibrar suas finanças. Em verdade, a política de austeridade posta em vigor pode ter até deteriorado as finanças gregas, pois fez cair a arrecadação de tributos e não foi suficiente para restabelecer a confiança do setor privado na economia.

Ao longo de 2011 foram feitas várias negociações, que culminaram, em fevereiro de 2012, com um acordo em que a Grécia se comprometeria a cumprir um novo programa de ajustamento. Em troca, receberia empréstimos de € 130 bilhões, e os credores privados aceitariam um desconto de 53% no valor dos títulos. Esse acordo permitirá que a relação dívida/PIB grega convirja dos atuais 160% para 120% em 2020.

Está longe de haver um consenso de qual é a melhor opção para a Grécia. As principais posições antagônicas são entre a Grécia abandonar o euro e dar um calote generalizado ou fazer o programa de ajuste imposto pela troika.

Há algumas vantagens em participar do programa de ajuste. Em primeiro lugar, institucionaliza-se o default parcial sobre os títulos (a redução de 53% no valor de face da dívida), reduzindo a probabilidade de contestações judiciais. Em segundo lugar, os empréstimos darão ao país um colchão de liquidez, reduzindo a probabilidade de insolvência no curto e médio prazos.

Por outro lado, manter-se na Zona do Euro traz todos os problemas associados à regimes de câmbio fixo em países em situação de desequilíbrio fiscal e de balanço de pagamentos. A Grécia vem apresentando constantes déficits em transações correntes. No início dos anos 2000, esse déficit já era da ordem de 7% do PIB. Com a crise de 2008, o déficit aumentou, superando 14% do PIB em 2009 e, mesmo tendo se reduzido, situou-se acima de 10% do PIB em 2011.

O déficit em transações correntes corresponde à poupança externa que está sendo injetada no país. Não há país em crise que consiga financiamento de 10% de seu PIB, principalmente após o calote parcial que impôs ao setor privado. Daí a importância do empréstimo coordenado pela troika no curto prazo. No médio prazo, entretanto, a Grécia terá de reverter esse déficit em conta corrente, o que necessariamente passa pelo aumento das exportações de bens e serviços, vis a vis as importações.

O aumento da competitividade de um país implica mudança de preços relativos, tornando caros os bens e serviços comercializáveis (ou seja, os bens e serviços que podem ser vendidos para ou comprados do exterior) em relação aos serviços não comercializáveis. Essa mudança de preços relativos reduz a demanda doméstica dos produtos comercializáveis, estimulando as exportações e reduzindo as importações.

Quando o país dispõe de autonomia monetária, pode desvalorizar a moeda e, com isso, conseguir facilmente a mudança de preços relativos (pode haver problemas não desprezíveis nessa transição, que serão discutidos a seguir). Mantendo-se atrelada ao euro, a Grécia não dispõe dessa opção. Na ausência de choques exógenos positivos (por exemplo, recuperação surpreendente da economia europeia, aumentando o fluxo de turistas para o país), há duas formas mais óbvias de se conseguir a mudança de preços relativos.

A primeira é instituir reformas que aumentem a produtividade do país (mais rapidamente do que a dos outros países da área do euro). Um aumento de produtividade permite abaixar os custos. No caso de bens e serviços não comercializáveis, a concorrência deve fazer com que seus preços caiam. Já para os bens e serviços comercializáveis, o preço (em euros) tende a ficar inalterado, pois é formado no mercado internacional.

A outra forma de alterar os preços relativos é por meio de uma forte redução da demanda agregada, ou seja, por meio de uma recessão. Isso reduz a demanda por todos os bens e serviços, comercializáveis ou não. Entretanto, como o preço dos comercializáveis é estabelecido no mercado internacional, ele permanece inalterado. Já o preço dos não comercializáveis tende a cair, gerando a mudança de preços relativos necessária para aumentar a competitividade da economia.

Além dos impactos negativos de uma recessão sobre o bem estar da população decorrentes do aumento do desemprego e/ou da queda de renda, há ainda os impactos fiscais, associados à queda da arrecadação tributária. Ou seja, corre-se o risco de a Grécia entrar em um círculo vicioso, em que um programa de ajuste levaria a uma recessão, que deterioraria a situação fiscal, tornando necessário um ajuste ainda maior. O Brasil viveu situação similar no período 1980-83, quando precisou ajustar-se ao segundo choque do petróleo, ocorrido em 1979.

Apesar do descrito acima, tal programa de ajuste não está fadado ao fracasso. O setor privado poderá voltar a investir se perceber que as medidas de austeridade e que as reformas econômicas serão de fato implementadas  e se estiver ciente de que não haverá crise de liquidez (afinal, a Grécia receberá créditos de centenas de bilhões de euros). Os ganhos de produtividade poderão ser sentidos já no médio prazo (digamos, em três ou quatro anos) e o país pode entrar em um círculo virtuoso, voltando a crescer.

Se, em vez de fazer o programa de ajuste, a Grécia optar por sair do euro, poderá fazer o ajuste de preços relativos com muito mais rapidez, em tese, sem necessidade de recessão bastando, para isso, deixar a sua “nova” moeda se desvalorizar. Mas essa opção não está livre de riscos. O cenário mais provável é de uma forte recessão no curto prazo.

Em primeiro lugar, o abandono do euro sem um programa de apoio obrigaria o país a dar um desconto ainda maior na dívida do que o 53% que está sendo proposto. Afinal, se o governo grego está sem caixa, e se não houver empréstimos de regularização, simplesmente não haverá como pagar os credores. Ademais, a dívida grega continuará a ter o euro como moeda de referência. Com uma moeda nova desvalorizada em relação ao euro, a capacidade de pagamento do país diminui.

O não pagamento da dívida implica o isolamento do governo grego do sistema financeiro (pelo menos no curto prazo), requerendo, a partir daí, que o setor público não incorra mais em déficits. É claro que, caso se recuse a pagar a dívida, as despesas com juros cairiam a zero. Mas há outras despesas governamentais (pessoal, aposentadoria, transferências, etc), e, para não depender de financiamento, a Grécia teria de apresentar resultado primário (isto é, receitas governamentais menos despesas, desconsiderando o pagamento de juros) positivo ou neutro. O resultado primário já melhorou muito, mas, ainda assim, foi deficitário em 2,5% do PIB em 2011. Ou seja, mesmo se sair da Zona do Euro, o governo grego terá de promover ajustes para, no mínimo, zerar o déficit primário.

No curto prazo, a política de desvalorização com default provavelmente terá um impacto mais forte sobre o setor privado. Em primeiro lugar, cerca de 40% da dívida do governo grego está em mãos de investidores domésticos. O não pagamento dessa dívida reduzirá a riqueza do setor privado do país, reduzindo a demanda agregada. Em segundo lugar, porque as empresas gregas que estiverem endividadas em euros (ou em outra divisa) sofrerão um forte desequilíbrio patrimonial: suas dívidas serão aumentadas na proporção da desvalorização da moeda, enquanto que suas receitas (exceto no caso de empresas exportadoras) serão corrigidos pela inflação doméstica, supostamente, mais branda que a desvalorização cambial (se a inflação for maior que a desvalorização do câmbio, o câmbio real não terá se desvalorizado e os desequilíbrios externos do país permanecerão).

Teme-se ainda que a desvalorização da “nova” moeda leve a um aumento da inflação, eventualmente, a uma hiperinflação. Conforme colocado anteriormente, para que o país se torne mais competitivo, é necessária uma mudança de preços relativos, com encarecimento dos bens e serviços comercializáveis. Em tese, é possível que uma desvalorização nominal da moeda seja suficiente para garantir esse ajuste. Considerando, entretanto, haver rigidez salarial e, talvez, alguns mecanismos de indexação (formais ou informais) ao câmbio ou à inflação, o mais comum é a desvalorização cambial trazer um impacto inflacionário. Se houver descontrole fiscal, a probabilidade de explosão inflacionária aumenta consideravelmente.

A hiperinflação não é um cenário a ser descartado nesse caso, embora a experiência brasileira de 1999[1] mostre que é possível desvalorizar a moeda mantendo a inflação sob controle. É necessário, contudo, manter uma postura firme do Banco Central, mantendo os juros altos, e do Tesouro, garantindo, pelo menos, superávit primário. No nosso caso, o acordo em vigor com o FMI e acordos informais, que garantiram a manutenção do fluxo de capitais externos, ajudaram a impedir que o PIB caísse naquele ano, tornando nossa transição relativamente suave. Já na Argentina e México, a transição do regime de câmbio fixo para de câmbio flutuante foi mais traumática, com quedas do PIB da ordem de 6%.

O abandono do euro traz ainda dificuldades de implementação, pois não pode  ser anunciado com antecedência. Do contrário, haverá uma corrida bancária (todos tentarão sacar o máximo possível de euros), com prováveis riscos sistêmicos. Observe-se que a frágil situação fiscal grega dificulta que o governo se envolva em operações de resgate de bancos.

Em um cenário mais catastrófico, uma crise bancária combinada com hiperinflação pode desestruturar o país, levando, inclusive, a convulsões sociais. Já em um cenário benigno, o setor público faria as reformas necessárias e  as exportações gregas rapidamente ganhariam competitividade. Livre de dívidas passadas e com forte (e crível) compromisso de estabilidade financeira, a Grécia voltaria a ter acesso ao crédito e encontraria mais rapidamente (comparativamente à opção do ajuste proposto pela troika) o caminho do crescimento sustentável.

Resumidamente, não há fórmula mágica para a saída da crise grega, assim como não houve solução indolor para as crises cambiais e da dívida dos países latino-americanos. Parece inevitável que a Grécia sofra uma recessão no curto prazo. Também parece inevitável o default, mesmo que parcial. Independentemente da escolha entre ficar ou sair do euro, para recuperar a estabilidade fiscal e  voltar a crescer, o governo grego deverá dar mostras de que é capaz de fazer um ajuste em suas contas e de que está fortemente comprometido com esse ajuste.

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[1] Argentina e México também são exemplos de que é possível abandonar o câmbio fixo sem haver hiperinflação. No caso do México, a inflação subiu para cerca de 50% logo após a desvalorização do peso, em 1995, mas caiu nos anos seguintes.

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A redução dos juros pelo Banco Central diminuirá no mesmo ritmo o custo da dívida do governo? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=831&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-reducao-dos-juros-pelo-banco-central-diminuira-no-mesmo-ritmo-o-custo-da-divida-do-governo https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=831#comments Thu, 10 Nov 2011 04:00:27 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=831 Há um mito de que a taxa de juros básica fixada pelo Banco Central (BC), a famosa taxa Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (SELIC), seria o grande referencial do custo da dívida do setor público brasileiro, de modo que reduções nessa taxa de juros implicariam imediata queda do custo dessa dívida.

Isso deixou de ser verdade há alguns anos. Tanto é que, de 2003 até 2010, a SELIC caiu em ritmo muito mais rápido do que diminuição dos gastos governamentais com juros. Similarmente, os gastos com juros em 2011 cresceram mais rápido do que o aumento da taxa SELIC ocorrido entre abril de 2010 e setembro de 2011.

Por isso, é preciso cuidado para não cair na tentação ou na fácil leitura de que, com o mais recente ciclo de corte de taxas, iniciado na segunda metade de 2011, os gastos governamentais com juros cairão nos próximos meses na mesma velocidade da queda da taxa SELIC, o que permitiria abrir um espaço fiscal, inclusive para maiores gastos ou para menor superávit.

Destaque-se que, mesmo admitindo que a SELIC tenha atualmente um impacto mais limitado sobre os gastos com juros do setor público, isso não significa que devemos condenar o seu corte ou defender sua manutenção em patamar elevado. O juro real no Brasil continua (lamentavelmente) na liderança mundial, apesar do dito ousado ciclo de baixa iniciado pelo BC. Porém, são questões diferentes: uma é sobre a política monetária, seus caminhos ou sua correção, outra diz respeito ao impacto dessa política sobre a política fiscal.

O objetivo deste breve texto não é, portanto, discutir se a taxa SELIC deve ou não cair, mas as consequências de uma eventual queda, antecipando a conclusão de que não se deve esperar que um corte na SELIC produza direta e proporcionalmente igual redução no gasto governamental com juros.

O impacto de variações da SELIC sobre os gastos com juros dependerão de dois fatores importantes:

i) proporção da dívida indexada à SELIC, sendo que, quanto maior for essa proporção, maior será o impacto;

ii) composição da Dívida Líquida do Setor Público (DLSP), que corresponde à diferença entre a dívida bruta e os ativos financeiros do governo. Quanto maior for essa diferença entre estes estoques e também a distância entre a remuneração de um e de outro, menor será o impacto da SELIC sobre os gastos com juros do setor público.

No passado distante, a maior parte da dívida mobiliária era indexada à taxa SELIC. Adicionalmente, a diferença entre a dívida bruta e os créditos do governo não era grande e as taxas de remuneração e prazos de vencimento tampouco eram tão díspares como hoje. Naquele cenário, variações da SELIC impactavam bem mais forte e diretamente os gastos com juros.

A seguir detalharemos um pouco mais o comportamento da taxa SELIC e dos gastos com juros. Mostraremos que esse deslocamento ocorreu tanto durante o longo ciclo de baixa da SELIC, entre 2003 e 2010, como no mais recente ciclo de alta, entre 2010 e 2011.

Evidências: longo ciclo de baixa (até 2010)

Antes do recente e curto ciclo de alta da SELIC, a taxa registrou uma longa trajetória de redução – desde a sua maior taxa acumulada no período de doze meses, em setembro de 2003 (24,25%), e a mais baixa, em maio de 2010 (8,92%). Ainda que tenha apresentado pequenas oscilações ao longo desse período, a tendência foi obviamente decrescente.

Considerando os valores extremos da série, a SELIC caiu de 23,36% a.a. em 2003 para 9,75% a.a. em 2010, ou seja, um recuo de 13,6 pontos ou de 58%, em termos relativos. Já o setor público gastou com juros nominais 8,51% e 5,3% do PIB, respectivamente, nos dois citados anos, com uma redução em 3,1 pontos do produto ou de 36% em termos proporcionais. Comportamento semelhante pode ser observado em subperíodos da amostra. Por exemplo, entre 2008 e 2010, a taxa SELIC caiu 22%, enquanto os gastos com juros como proporção do PIB reduziram-se somente em 5%.

Ao analisar a evolução comparada de taxa e gasto nos últimos anos, também se evidenciou um descasamento cada vez maior no período mais recente, e isso dá pistas para se compreender quais foram as mudanças na política fiscal que mais contribuíram para explicar esse fenômeno.

Por princípio, se fosse levado em contas apenas o que o governo deve, e ainda mais se for computado tão somente o que deve por conta da emissão de títulos, é fácil depreender que a diminuição da proporção daqueles indexados à SELIC (caso das Letras Financeiras do Tesouro – LFTs) constitui a razão direta para que a evolução de sua taxa perdesse poder de influência no custo total da dívida mobiliária, ou melhor, na sua evolução real. A menor participação de títulos indexados à SELIC na dívida pública, por sua vez, decorreu da redução da inflação e do alongamento dos prazos, que permitiram ao Tesouro Nacional colocar cada vez mais papéis prefixados a vencerem no longo prazo e títulos indexados a índices de preço.

Pode-se argumentar que as tendências ou direções da SELIC acabam se refletindo, ainda que com alguma defasagem, nas taxas pré-fixadas (o próprio Tesouro pode forçar isso ao aceitar ou rejeitar as condições pedidas pelos investidores desses papéis) e no próprio índice de inflação.

Sem entrar na discussão se a SELIC continua apresentando qualidade ou potência como instrumento de gestão da política monetária, o fato é que essa taxa perdeu poder de influência sobre os gastos públicos com juros. E uma forma mais direta para tirar tal conclusão é comparar a dimensão e a evolução entre duas taxas de juros: a SELIC, já comentada, e a chamada taxa implícita da DLSP, apurada pelo BC pela razão entre os gastos com juros e o montante da dívida líquida de cada período de referência. O gráfico a seguir mostra a evolução das duas taxas.

Na fase inicial, de 2002 a 2005, a taxa da SELIC superou a implícita. Desde 2006, contudo, a curva da SELIC passou a correr sempre por baixo da taxa implícita, indicando que os custos de outras dívidas foram mais altos que a SELIC e/ou que os créditos do governo renderam menos que esta. Observe-se também que a trajetória da taxa SELIC oscilou bem mais que da taxa implícita de juros. Essa última ficou relativamente constante em torno de 15%.

As razões dessas trajetórias distintas tem menos relação com a mudança no perfil da dívida mobiliária (ou seja, na redução da participação de títulos indexados à SELIC) e com a alteração no volume dos componentes da DSLP. Como já mostrado neste site, no artigo Dívida bruta e ativo do setor público: são imprescindíveis para se avaliar o equilíbrio fiscal? , a dívida líquida corresponde à diferença entre a dívida bruta (que passou a ser concentrada na dívida mobiliária interna federal) e dos créditos (composta tanto por disponibilidades, desde o caixa interno dos governos até as reservas internacionais, bem como por haveres financeiros, que compreendem, sobretudo, empréstimos concedidos a fundos, a instituições financeiras e até mesmo a empresas e a outros países).

O total de créditos internos, abatidos da dívida bruta, mal alcançava 20% do PIB, da primeira metade da década passada até 2008; depois, saltaram para patamar superior a 25% do PIB desde 2009. Se computadas as reservas internacionais (13,5% do PIB em meados de 2011), o total dos ativos do governo, que era inferior a 20% do PIB em 2006, chegou a mais de 30% do PIB em meados de 2011. Em sua grande parte, os ativos do governo aumentaram no período devido ao acúmulo de reservas cambiais e à concessão de empréstimos ao BNDES. Esses ativos apresentaram rendimento bastante inferior à taxa SELIC no período. Em 2010, segundo avaliação do BC em uma nota especial sobre a evolução dos juros,[1] consideradas apenas as taxas implícitas anuais, os 14,9% de toda a dívida resultou do contraste de 10,1% só nos débitos contra 4,3% nos créditos. Isto é, o setor público, na média, se endivida a uma taxa 2,3 vezes maior do que a que empresta e, se não ter ativos tão pouco rentáveis, seu gasto com juros seria cerca de um terço inferior ao realizado.

As reservas são aplicadas no exterior, preponderantemente em títulos do governo norte-americano, cujas taxas foram drasticamente reduzidas no combate à crise financeira internacional pelo Banco Central norte-americano. Tais ativos mal têm rendido 1% ao ano, muito menos que a SELIC, que, direta ou indiretamente, acaba por remunerar a maior os títulos utilizados para esterilizar o impacto monetário da entrada das reservas. Somente quando há episódios de desvalorização do real frente ao dólar é que as reservas internacionais se tornam mais rentáveis, ainda assim em termos nominais.

Quando o País passou a acumular crescentes reservas internacionais (o que aumenta o ativo), o BC procurou compensar a expansão monetária colocando mais títulos públicos no mercado. Ou seja, com uma mão, ele entrega reais aos exportadores e investidores que trazem cada vez mais dólares; com outra mão, ele tira reais da economia ao firmar operações compromissadas com títulos do Tesouro e ao aumentar os depósitos compulsórios dos bancos. O efeito final é aumentar o gasto com juros, tendo em vista que os títulos do Tesouro pagam taxas mais altas do que recebe como remuneração das reservas.

Quanto aos créditos para instituições oficiais, na virada da década houve súbito aumento dos empréstimos extraordinários concedidos pelo Tesouro Nacional (chega próximo a R$ 300 bilhões o cedido ao BNDES), quase sempre remunerados à Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), que tem sido arbitrada na casa de 6% ao ano. Tais operações começaram com o pretexto de combater a crise, mas prosseguiram mesmo depois da retomada da economia. Nota-se que não se trata aqui do subsídio creditício direto, no qual o Tesouro Nacional arca com a diferença entre a TJLP e a taxa de juros cobrada pelo BNDES em projetos considerados prioritários[2].

Evidência: último ciclo de alta (2010/11)

Uma simples comparação da SELIC e dos encargos financeiros dos governos nos primeiros oito meses de 2011 vis-à-vis igual período de 2010 constitui a evidência mais recente do descolamento entre taxa e gasto. Vale lembrar que em abril de 2010 aquela taxa iniciou um ciclo de alta que só veio a ser interrompido em setembro de 2011.

A SELIC apresentou uma média simples da taxa anual apurada diariamente até agosto de 2011 de 11,84 pontos.[3] Em igual período de 2010, a média foi de 9,48 pontos. A variação foi de 24,9%.  Já os juros nominais pagos pelo setor público consolidado aumentaram de R$ 125 bilhões para R$ 160,2 bilhões no mesmo período, um aumento de 28,1%.

A diferença, contudo, torna-se mais acentuada quando se limitam os dados ao governo central. Os juros nominais saltaram de R$ 83,9 para 125 bilhões entre os oito primeiros meses de 2010 e de 2011, uma variação de 49%. Ou seja, isolados apenas os encargos do governo central, estes cresceram ao dobro da velocidade do aumento da taxa básica de juros.

Em síntese, alguns analistas acreditam que se a taxa básica de juros paga pelos títulos da dívida pública federal (conhecida como SELIC) cair, o governo gastaria menos com juros e assim economizaria recursos. Esses recursos tanto poderiam ser aplicados em melhores gastos, como na ampliação dos investimentos fixos e de serviços sociais básicos, como poderiam permitir um esforço fiscal menos severo, até mesmo abrindo caminho para reduzir a carga tributária. Como as autoridades monetárias decidiram reduzir a SELIC desde agosto de 2011, tornou-se predominante a ideia de que o governo gastará proporcionalmente menos com juros.

Infelizmente, isso não passa de mais um mito que paira sobre as finanças públicas brasileiras, inegavelmente complexas. No passado recente, houve um crescente divórcio entre taxa e gasto. Quando a SELIC recuou, anos atrás, o gasto não caiu no mesmo ritmo. Depois, quando a taxa voltou a subir, o referido gasto cresceu à frente. Dois motivos explicam esse divórcio.

Em primeiro lugar, porque nem todos os títulos públicos são indexados à SELIC. Com a maior estabilização da economia, aumentou a proporção de títulos pré-fixados, cuja remuneração não é afetada pelas decisões das autoridades monetárias; pelo menos no curto prazo.

Em segundo lugar, porque a dívida líquida corresponde à diferença entre a dívida bruta e os ativos financeiros do governo, constituídos majoritariamente pelas reservas internacionais e créditos contra instituições financeiras federais. Quanto maior for a taxa SELIC em relação à taxa que remunera os ativos financeiros do governo, maior será a discrepância entre a SELIC e taxa implícita de juros incidente sobre a dívida pública.

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[1] Ver “Análise Evolutiva dos Juros Nominais Apropriados sobre a DLSP”, Relatório de Inflação, Março de 2011: http://www.bcb.gov.br/htms/relinf/port/2011/03/ri201103b4p.pdf

[2] Sobre esses créditos, pode-se acessar vários artigos em: http://mansueto.wordpress.com/

[3] Médias calculadas por Vivian Almeida a partir de série do IPEADATA. A variação é praticamente a mesma que se chega em um cálculo mais refinado, ponderando as médias diárias da SELIC, se chega a uma taxa acumulada no ano de 7,74% e de 6,21%, até agosto de 2010 e de 2011, respectivamente, o que resulta numa variação de 24,6% – veja várias séries ponderadas em: http://www.portalbrasil.net/indices_selic.htm

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Dívida bruta e ativo do setor público: são imprescindíveis para se avaliar o equilíbrio fiscal? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=720&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=divida-bruta-e-ativo-do-setor-publico-sao-imprescindiveis-para-se-avaliar-o-equilibrio-fiscal https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=720#comments Mon, 12 Sep 2011 07:17:14 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=720 O texto analisa o tamanho e a evolução da divida bruta e do ativo do setor público, bem como de seus principais componentes no período de dezembro de 2006 a julho de 2011. Tal abordagem traz importantes informações não evidenciadas quando se analisa apenas a dívida líquida, como é usual. Nesse período, enquanto a dívida líquida (dívida bruta deduzida do ativo) caiu, a dívida bruta subiu. Houve forte distanciamento entre esses agregados por conta da expansão do ativo, decorrente, do aumento das reservas internacionais e dos créditos junto ao BNDES.

Ademais, o perfil do ativo é bastante distinto do perfil da dívida bruta, notadamente no que tange à taxa de juros que incide sobre cada um. Também aumentou o peso das operações do Banco Central do Brasil na composição da dívida bruta, assim como a parcela dessa dívida indexada à taxa Selic. Todos esses acontecimentos configuram obstáculos à trajetória desejável de equilíbrio das contas públicas.

I – ASPECTOS ESTATÍSTICOS

A única fonte que apresenta dados conjuntos sobre a dívida bruta e o ativo do setor público é o Banco Central do Brasil (Bacen)[1]. A Autarquia divulga também dados relativos à dívida líquida, mas a abrangência não é a mesma do conceito de dívida bruta. No cômputo da dívida bruta e do ativo, congrega-se apenas o chamado Governo Geral, o qual inclui o governo federal, os governos estaduais e os governos municipais. Portanto, nesse conceito, não são consideradas as estatais e o Bacen.

Quanto às estatais, as implicações não são relevantes, pois a Petrobrás e a Eletrobrás foram excluídas das contas públicas. Já quanto ao Bacen, a exclusão no cômputo da dívida bruta e do ativo traz conseqüências importantes em vista do tamanho das suas contas e de suas relações com o Tesouro Nacional[2].

Diante desses fatos, opta-se aqui por considerar o Bacen no cômputo da dívida bruta e do ativo do Governo Geral. Isso é feito adicionando-se os saldos das contas do Bacen apresentados regularmente nas estatísticas da dívida líquida. Exclui-se desse procedimento as contas que retratam haveres ou passivos entre o Bacen e os governos estadual, municipal e, principalmente, federal.

Outra questão diz respeito à inclusão ou não da base monetária no cômputo da dívida bruta. A base monetária consta do passivo do Bacen e corresponde ao papel-moeda emitido e as reservas bancárias livres e compulsórias. Esse agregado monetário comporta-se de forma relativamente estável, próxima de 5% do PIB. Portanto, a questão não é relevante para a análise da evolução da dívida, mas sim para a aferição do tamanho do passivo. A opção aqui seguida será a de excluir a base monetária do cômputo da dívida, pois não há incidência de juros, nem sujeição a prazos de vencimento, como ocorre em relação aos passivos convencionais. Também não há evidências de que a base esteja sendo deliberadamente utilizada como canal de financiamento do governo[3].

II – TAMANHO E EVOLUÇÃO DA DÍVIDA BRUTA E DO ATIVO

A Tabela I apresenta os números da dívida bruta (linha A), do ativo (linha B) e da dívida líquida do Governo Geral e Bacen (linha C), calculados conforme descrito acima, sempre em relação ao PIB. Consta também a tradicional estatística da dívida líquida do setor público (Linha D), tal qual divulgada regularmente pelo Bacen. Ela resulta simplesmente de duas adições à dívida líquida do Governo Geral e Bacen: a dívida líquida das empresas estatais (linha E) e a base monetária (linha F) que não estão sendo aqui consideradas no cômputo da dívida.

Constata-se que, entre dezembro de 2006 e julho de 2011, a divida liquida caiu, fato amplamente divulgado pelos que querem enfatizar o controle das contas públicas. A divida líquida no conceito usual caiu 7,8% do PIB (linha D); enquanto no conceito aqui empregado, de dívida líquida do Governo Geral e Bacen, a queda foi menos pronunciada, 7,1% (linha C).

TABELA I – DÍVIDA BRUTA, DÍVIDA LÍQUIDA E ATIVO DO GOVERNO GERAL 1 E  BACEN
(% do PIB)
Período2 2006 2007 2008 2009 2010 2011 variação
DÍVIDA BRUTA (A) 60,0 61,8 59,8 63,8 63,2 65,0 5,0
ATIVO (B) 18,7 22,6 27,0 27,0 29,3 30,8 12,1
DÍVIDA LÍQUIDA (C = A – B) 41,3 39,2 32,8 36,8 33,9 34,2 -7,1
Dívida liquida do setor
público não financeiro (D=C+E+F) 47,3 45,5 38,5 42,8 40,2 39,5 -7,8
Dívida líquida das
empresas estatais3 (E) 0,9 0,8 0,8 0,7 0,7 0,6 -0,2
Base monetária (F) 5,1 5,5 4,9 5,2 5,6 4,6 -0,5
Fonte: Elaborada pelo autor com os dados primários do Bacen.
1 Governo Geral abrange governo federal, governos estaduais e governos municipais.
2 Dados de final de período. 2011 refere-se a julho.
3 Exclui Petrobrás e Eletrobrás.

Cabe indagar como um governo com elevado déficit conseguiu reduzir a sua dívida líquida. Há dois fatores que contribuíram para essa queda. Trata-se do superávit primário e do crescimento econômico. O primeiro atua impedindo que o déficit público e a dívida líquida em termos monetários fujam do controle. Já o segundo é capaz de reduzir a dívida líquida aferida em relação ao PIB. Vale lembrar que o crescimento econômico do Brasil nos últimos anos ficou acima da média histórica. Assim, o controle da dívida pública depende fortemente da geração de superávits primários e do crescimento econômico.

Enquanto a divida líquida do Governo Geral e Bacen caiu de 41,3% do PIB para 34,2% do PIB entre dezembro de 2006 e julho de 2011(linha C), a dívida bruta subiu de 60% do PIB para 65% do PIB, diferença de 5 pontos (linha A). Vê-se, portanto, que a dívida bruta está subindo e não caindo, como a dívida líquida. A diferença entre a dívida bruta e a dívida líquida subiu de 18,7% do PIB para 30,8% do PIB nesse período. Esses dois números correspondem ao tamanho do ativo do Governo Geral e Bacen nos dois momentos, aumento de 12,1 pontos percentuais do PIB (linha B).

Usualmente, o superávit primário serve para conter a expansão da dívida pública, ao prover os recursos para pagar os juros devidos e/ou resgatar o principal. Em um contexto de forte expansão do ativo, como o caso brasileiro dos últimos anos, o superávit primário serviu, na verdade, para financiar essa expansão. Como esse financiamento não foi suficiente para financiar toda a expansão do ativo, recorreu-se ainda ao aumento da dívida bruta.

III – COMPONENTES DO ATIVO

O distanciamento entre a dívida bruta e a dívida liquida pode ser um problema se o perfil do ativo for muito diferente do perfil da dívida bruta. No caso brasileiro, o que chama a atenção é a grande diferença entre a taxa de juros que incide sobre a dívida bruta e a rentabilidade dos componentes do ativo que mais subiram nos últimos anos. Isso eleva, em sequência, os juros líquidos devidos, o déficit público, a dívida bruta e a dívida líquida.

TABELA II – COMPOSIÇÃO DO ATIVO DO GOVERNO GERAL 1 E  BACEN
(% DO PIB)
Período2 2006 2007 2008 2009 2010 2011 variação
ATIVO TOTAL (A+B+C) 18,7 22,6 27,0 27,0 29,3 30,8 12,1
CRÉDITOS DA UNIÃO (A) 0,5 0,5 1,4 4,5 7,0 7,4 6,9
Instrumentos de capital e dívida 0,1 0,3 0,3 0,5 0,5 0,5 0,4
Créditos junto ao BNDES 0,4 0,2 1,2 4,1 6,4 6,9 6,5
RESERVAS INTERNACIONAIS2 (B) 7,7 12,0 15,9 12,8 12,9 13,5 5,8
OUTROS ATIVOS (C ) 10,4 10,0 9,6 9,7 9,5 9,9 -0,5
Disponibilidades do governo geral 0,9 1,1 1,2 1,2 1,3 2,1 1,2
Aplicações em fundos e programas 2,1 2,1 2,0 2,3 2,6 2,5 0,4
Recursos do FAT na rede bancária 5,2 4,8 4,5 4,4 4,0 3,8 -1,3
Créditos do Bacen às instituições. financeiras 0,8 0,9 0,9 0,9 0,8 0,8 0,0
Outros contas 1,4 1,1 1,0 0,8 0,8 0,7 -0,7
Fonte: Elaborada pelo autor com os dados primários do Bacen.
1 Governo Geral abrange governo federal, governos estaduais e governos municipais.
2 Deduz dívida externa do Bacen.

A Tabela II, acima, mostra a composição do ativo do Governo Geral e do Bacen. Observa-se que entre dezembro de 2006 e julho de 2011 houve acréscimo de 6,9 pontos percentuais de PIB dos créditos concedidos pela União às instituições financeiras oficiais, notadamente o BNDES (linha A). Esses créditos estão agora em 7,4% do PIB. No mesmo período, as reservas internacionais subiram 5,8 pontos percentuais do PIB, alcançando 13,5% do PIB (linha B). Assim, esses dois componentes explicam integralmente o aumento do ativo do Governo Geral e Bacen no período. Seguem-se comentários sobre cada um deles.

III.1 Créditos concedidos pela União ao BNDES

A intensificação das operações da União com o BNDES teve início em março de 2009 e, em junho de 2011, o saldo de todos os repasses somava R$ 215 bilhões[4]. O procedimento é o seguinte: o Tesouro Nacional emite títulos públicos que são repassados ao BNDES, em troca de crédito equivalente para o Tesouro junto ao Banco. Em seguida, o BNDES vende os títulos no mercado para levantar recursos que serão utilizados no financiamento às empresas.

Os R$ 100 bilhões de créditos inicialmente concedidos pelo Tesouro ao BNDES têm prazo médio de 17,5 anos e rendimento médio correspondente a TJLP mais 0,63% ao ano. Já os títulos públicos emitidos em contrapartida duram cerca de 4,2 anos e são corrigidos parte pela taxa Selic e parte por taxas prefixadas[5].

A diferença entre as taxas corresponde ao subsidio dado ao BNDES e às empresas que tomam créditos a juros baixos junto ao Banco. Estimativas mostram que a perda fiscal estimada do Tesouro ao repassar a carteira de títulos ao BNDES, financiando-se em mercado, é de 29% do valor de face do crédito total (100 bilhões), a ser apropriado ao longo de 30 anos, ou cerca de R$ 0,97 bilhão ao ano, em valor presente (Pereira & Simões, 2010, p. 17). Logo, se o total de R$ 215 bilhões de créditos já concedidos pelo Tesouro ao BNDES tiver obedecido às mesmas condições dos R$ 100 bilhões iniciais, o valor presente da perda do Tesouro com as operações pode chegar a R$ 62,3 bilhões, correspondentes a 29% dos R$ 215 bilhões.

III.2 Reservas internacionais

As reservas internacionais subiram de US$ 85,8 bilhões em dezembro de 2006 para cerca de US$ 346,1 bilhões em julho de 2011[6]. A expressiva aquisição de divisas do Bacen se deveu à tentativa de conter a valorização do real, diante da abundante entrada de capital no país e do forte aumento das exportações propiciado pela majoração dos preços das commodities.

A estratégia de contenção da valorização do real levou também ao resgate simultâneo de boa parte da dívida pública externa. De fato, se o governo se vê obrigado a comprar enormes quantidades de dólares no mercado de câmbio, o resgate da dívida externa pública faz mais sentido que o acúmulo de reservas internacionais, pois o custo do passivo externo supera a rentabilidade do ativo externo. Deduzindo-se das reservas internacionais o saldo da dívida externa, constata-se que o ativo externo liquido do Governo Geral e Bacen subiu de 1,3 % do PIB em dezembro de 2006 para 11,1 % do PIB em julho de 2011, portanto, aumento de 9,8 pontos percentuais do PIB.

Tradicionalmente, as reservas externas rendem muito pouco em relação ao rendimento dos ativos financeiros no Brasil. O último Relatório de Gestão das Reservas Internacionais do Bacen informa que a remuneração das reservas em dólar foi de apenas 1,82%, em 2010. Foi superior ao 0,83% de 2009, mas muito aquém da média de 5,2% do período 2002 a 2010[7].

Na verdade, em função do baixo rendimento em dólar das reservas, a variável fundamental para aferir o retorno das reservas é a própria variação cambial. As notas explicativas relativas às demonstrações financeiras do Bacen[8] informam a rentabilidade em real das reservas internacionais por trimestre, bem como o custo médio do passivo da Autarquia, o que permite o cálculo do custo de manutenção dessas reservas. Entre 2008 e 2009 o custo oscilou bastante em função da instabilidade da taxa de câmbio. Tomando-se 2007 até junho de 2011, o custo somado da manutenção das reservas foi de R$ 165,1 bilhões, já que nesse período prevaleceu a valorização do real.

IV – COMPONENTES DA DÍVIDA BRUTA

Depois de analisar os agregados dívida bruta e ativo, bem como os componentes do ativo, cabe focar os componentes da dívida bruta do Governo Geral e Bacen, os quais constam da Tabela III.

TABELA III – COMPOSIÇÃO DA DÍVIDA BRUTA DO GOVERNO GERAL 1 E  BACEN
(% do PIB)
Período2 2006 2007 2008 2009 2010 2011 variação
DÍVIDA BRUTA TOTAL (A=B+E) 60,0 61,8 59,8 63,8 63,2 65,0 5,0
DÍVIDA INTERNA (B=C+D) 53,6 57,4 55,0 60,3 60,2 62,6 9,0
Governo geral (C) 46,8 46,5 41,9 44,2 43,9 42,4 -4,3
Dívida mobiliária federal em mercado 45,3 45,3 40,8 43,0 42,7 41,3 -4,0
Outras contas 1,5 1,3 1,1 1,2 1,2 1,1 -0,3
Bacen (D) 6,8 10,8 13,1 16,2 16,3 20,1 13,3
Operações de mercado aberto2 3,3 7,0 10,7 14,3 7,9 11,4 8,1
Recolhimentos compulsórios3 3,5 3,8 1,8 2,0 8,6 8,9 5,4
Outras contas 0,0 -0,1 0,6 -0,1 -0,1 -0,1 -0,2
DÍVIDA EXTERNA4 (E) 6,4 4,4 4,8 3,5 3,0 2,4 -4,0
Fonte: Elaborada pelo autor com os dados primários do Bacen.
1 Governo Geral abrange governo federal, governos estaduais e governos municipais.
2 São denominadas operações compromissadas nas contas do Bacen.
3. São denominados outros depósitos nas contas do Bacen

4 A dívida externa do Bacen  está deduzida das reservas externas..

Entre dezembro de 2006 e julho de 2011, a dívida externa do Governo Geral (linha E) caiu 4 pontos percentuais de PIB, enquanto a dívida interna (linha B) subiu 9 pontos de PIB. Ademais, houve importante modificação na composição da dívida interna, já que seu aumento de 9 pontos do PIB se deveu ao incremento de 13,3 pontos do PIB no saldo das operações realizadas pelo Bacen (linha D), enquanto a dívida interna do Governo Geral caiu 4,3 pontos do PIB (linha C). As operações do Bacen, que correspondiam a 12,7% da dívida interna ao final de 2006, aumentaram seu peso para 32,1% em julho de 2011.

A redução da dívida externa se deu no âmbito da tentativa de controlar a valorização do real, conforme comentado anteriormente. Seu saldo estava em apenas 2,4% do PIB em julho de 2011 (linha E), algo impensável na década de oitenta, quando vivíamos a chamada crise da dívida externa.

Não é estranha também a elevada participação da dívida mobiliária federal em poder do mercado no total do passivo público, pois o mesmo deve ocorrer em países que possuem mercado de títulos públicos desenvolvido. Em julho de 2011, a dívida mobiliária estava em 41,3% do PIB. Esse percentual não inclui a totalidade dos títulos em poder do mercado, pois há ainda as operações de mercado aberto do Bacen que são analisadas em seguida.

O que chama a atenção na Tabela III é a evolução e o tamanho do saldo das operações do Bacen, saldo esse que chegou a 20,1% do PIB em julho de 2011 (linha D). Os principais responsáveis por esse fato foram as operações de mercado aberto e os recolhimentos compulsórios. O saldo da primeira subiu 8,1 pontos percentuais do PIB entre dezembro de 2006 e julho de 2011, chegando a 11,4% do PIB nesse último mês. Já os recolhimentos compulsórios subiram 5,4 pontos do PIB no mesmo período, o que resultou no saldo de 8,9% do PIB em julho do corrente ano.

As operações de mercado aberto correspondem à venda ao mercado dos títulos públicos que estão na carteira do Bacen, com o compromisso de recomprá-los em data futura. Por isso, tais operações aparecem nas contas do Bacen como operações compromissadas. Muitos países utilizam essas operações como instrumento de controle da liquidez da economia. A peculiaridade do Brasil é o seu elevado saldo, um múltiplo da base monetária, contribuindo com o financiamento do governo, em complemento às operações com títulos públicos realizadas diretamente pelo Tesouro Nacional.

Existem duas diferenças importantes entre as operações de mercado aberto do Bacen e a dívida mobiliária federal em mercado: o vencimento e o custo. Em julho de 2011, 58,7% das operações de mercado aberto venceriam em um prazo de até três meses (em meados de 2009, esse percentual aproximou-se de 90%). Os 58,7% correspondiam a R$ 244,5 bilhões, equivalentes a 6,2% do PIB. Já o prazo médio dos títulos colocados no mercado diretamente pelo Tesouro Nacional em oferta pública era de 43,8 meses, em julho de 2011. Apenas 2% desses papéis seriam resgatados em três meses, cerca de R$ 33,5 bilhões[9].

Quanto ao custo, as operações de mercado aberto são corrigidas pela taxa Selic[10], enquanto a dívida mobiliária federal compõe-se de um mix equilibrado de taxa Selic, taxa prefixada e índice de preços, notadamente IPCA, mais juro real. Até o início de 2010, pode-se afirmar que as operações de mercado aberto custavam menos que a dívida mobiliária federal em poder do mercado, porque as taxas prefixadas e o IPCA acrescido de juro real estavam acima da taxa Selic[11]. Entretanto, em março de 2010, iniciou-se um ciclo de aumentos dessa taxa, por conta do recrudescimento da inflação. Ela subiu de 8% ao ano para os atuais 12% ao ano, aumento esse que incidiu sobre o elevado e crescente passivo do Governo Geral e Bacen atrelado a essa taxa.

O outro item que subiu bastante entre as operações do Bacen foram os recolhimentos compulsórios. Esses não são os tradicionais depósitos compulsórios que integram a base monetária. São recolhimentos compulsórios adicionais das instituições financeiras junto ao Bacen, em espécie, de parcela dos depósitos bancários e de poupança. Na prática, esses recolhimentos cumprem o mesmo papel das operações de mercado aberto, pois ajudam a controlar a expansão da liquidez da economia. São também em grande parte corrigidos pela taxa Selic[12]. A diferença é o caráter voluntário das operações de mercado aberto, o que não ocorre com os recolhimentos. Houve forte aumento desses recolhimentos ao longo de 2010, como parte das chamadas medidas macro prudenciais de combate à inflação, substituindo em parte as operações compromissadas[13].

Um registro final importante sobre a composição da dívida bruta diz respeito aos indexadores dessa dívida. Conforme já visto, em março de 2010, iniciou-se a correção da taxa Selic que a levou de 8% para os atuais 12% ao ano. Ocorre que isso se deu em um contexto de forte aumento da parcela da dívida pública sobre a qual incide a taxa Selic, por conta do crescente peso das operações de mercado aberto e dos recolhimentos compulsórios, além de parte dos títulos emitidos no bojo dos créditos concedidos pela União ao BNDES[14]. A parcela selicada da dívida líquida do setor público subiu de 42,3% ao final de 2006 para 73,7% em julho de 2011. Percebe-se também o aumento do peso da TJLP e do câmbio, só que pelo lado do ativo, decorrente dos créditos junto ao BNDES, no caso da TJLP, e das reservas internacionais, no caso do câmbio.

V – CONCLUSÕES

Nos últimos anos, ocorreram importantes alterações na estrutura patrimonial do governo geral e Bacen. Houve forte aumento do ativo na forma de créditos junto ao BNDES e de reservas internacionais. A discrepância entre a rentabilidade desse ativo e o custo para financiá-lo aumenta os juros líquidos devidos pelo setor público, assim como, na seqüência, o déficit e o endividamento.

Outro movimento patrimonial importante foi a alteração da composição da dívida pública, em vista do resgate de relevante parcela da dívida externa e do forte aumento da participação na dívida interna das operações do Bacen. Além de impróprios como mecanismo de financiamento, essas operações elevaram, juntamente com parte dos títulos concedidos ao BNDES, a participação da Selic dentre os indexadores da dívida pública. Assim, o recrudescimento da inflação em 2010 e o consequente aumento da taxa Selic para controlá-la, afetaram diretamente o custo de boa parte dessa dívida, gerando novo impulso ao aumento do passivo.

Pode-se concluir, portanto, que a redução da dívida líquida não conta toda história da evolução das contas públicas nos últimos anos. A redução da dívida líquida sugere que se está caminhando para um cenário de maior equilíbrio fiscal. Porém, essa impressão é afastada pela constatação que a dívida bruta está subindo; que o ativo do governo tem baixa rentabilidade; e que a indexação pela taxa Selic e as operações do Bacen aumentaram seu peso na composição da dívida bruta.

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Para ler mais sobre o tema:

Pellegrini, J.A.(2011) Dívida bruta e ativo do setor público: o que a queda da dívida líquida não mostra? Texto para Discussão nº 95. Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado. Senado Federal. http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD95-JosueAlfredoPellegrini.pdf


[1] Os dados são divulgados juntamente com a publicação mensal Nota para a Imprensa – Política Fiscal (Http://www.bcb.gov.br/?ECOIMPOLFISC), Quadro 17.

[2] Reconhecendo tal problema, o Bacen divulga desde fevereiro de 2008, com dados retroativos a dezembro de 2006, duas séries de dívida bruta: a série mais antiga, que inclui sua carteira de títulos públicos e a nova série com o saldo das suas operações de mercado aberto. Ver nota técnica em anexo à Nota para a Imprensa – Política Fiscal relativa à fevereiro de 2008. http://www.bcb.gov.br/htms/infecon/notas.asp?idioma=p.

[3] Os números da dívida bruta apresentados no trabalho recomendado ao final do texto diferem dos números aqui apresentados apenas por conta da opção feita agora, pela exclusão da base monetária.

[4] O BNDES divulga trimestralmente relatório sobre a aplicação desses recursos. No relatório relativo ao segundo trimestre de 2011, p. 14, afirma-se que o repasse autorizado do Tesouro ao Banco é de R$ 240,25 bilhões, mas até aquele momento R$ 215,25 bilhões haviam sido captados. Ver http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/empresa/download/Relatorio_Recursos_Financeiros_2trimestre2011.pdf.

[5] Essas informações foram extraídas de PEREIRA, T. & SIMÕES, A. O papel do BNDES na alocação de recursos: avaliação do custo fiscal do empréstimo de R$ 100 bilhões concedido pela União em 2009. Revista do BNDES, v. 33, p. 5-54, jun. 2010.

[6] Os dados sobre as reservas estão em http://www.bcb.gov.br/?RESERVAS.

[7] Os relatórios podem ser encontrados em http://www.bcb.gov.br/?GESTAORESERVAS.

[8] Essas notas estão em http://www.bcb.gov.br/?id=BALANCETE&ano=.

[9] Dados sobre o vencimento das operações de mercado aberto e sobre o prazo e cronograma de resgate da dívida mobiliária federal constam, respectivamente, das tabelas XXXVI, XXXVIII-A e XXXIX das estatísticas que acompanham a Nota para a Imprensa – Política Fiscal.

[10] As operações de mercado aberto são corrigidas pela Selic, mesmo que os títulos utilizados na operação tenham outro perfil. Juridicamente, os títulos são garantias de operações de empréstimos corrigidas pela Selic.

[11] Conforme se depreende do Relatório Mensal da Dívida Pública Federal do Tesouro Nacional, na parte relativa ao custo da dívida mobiliária por tipo de papel. O Relatório encontra-se em http://www.tesouro.fazenda.gov.br/hp/relatorios_divida_publica.asp. A vantagem dos papéis prefixados e atrelados a índices de preços, é que o custo do estoque não sobe com a adoção de uma política monetária mais restritiva.

[12] A composição por indexador desses depósitos pode ser vista na Tabela XI das estatísticas que acompanham a Nota para a Imprensa – Política Fiscal. Em julho de 2011, quase 78% eram indexados à taxa Selic e o restante à TR, por conta dos recolhimentos incidentes sobre os depósitos de poupança.

[13]. Os dados do recolhimento podem ser encontrados em http://www.bcb.gov.br/?INDECO.

[14] As informações sobre a composição da dívida por indexador fornecidas pelo Bacen se referem à divida líquida do setor público. Constam das Tabelas X a XI – B das estatísticas que acompanham a Nota para a Imprensa – Política Fiscal.

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