dívida bruta – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Mon, 17 Feb 2014 14:05:26 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.8.1 O que é “contabilidade criativa”? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2132&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-que-e-contabilidade-criativa https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2132#comments Mon, 17 Feb 2014 14:05:26 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2132 Ao longo de 2013 muito se falou que o Governo Federal estaria lançando mão de procedimentos de “contabilidade criativa” para esconder a expansão da despesa pública, do déficit e da dívida governamental. Esse texto procura explicar como funcionam os procedimentos dessa natureza.

Para tanto, é preciso, em primeiro lugar, conhecer dois conceitos importantes: “resultado primário” e “dívida líquida do setor público”; bem como entender quais são as entidades incluídas no conceito de “setor público”. É no uso e manipulação desses conceitos que se abrem brechas para a contabilidade criativa.

“Resultado primário” é um indicador que mede as receitas não financeiras do governo deduzidas das despesas não financeiras. Ou seja, somam-se todas as receitas não financeiras (de tributos, de venda de patrimônio público, de aluguéis recebidos pelo setor público, etc.) e delas deduzem-se as despesas não financeiras (pagamento de pessoal, construção de estradas, compra de material de consumo, etc.). Os juros recebidos e pagos pelo governo não entram nem nas receitas nem nas despesas.

A ideia por trás desse conceito é verificar qual é o saldo em dinheiro que o governo consegue acumular ao longo de um período para pagar os juros de sua dívida (já descontados os juros que ele eventualmente recebe de empréstimos feitos a terceiros,  tais como financiamento a estudantes, empréstimos a outros países, etc). Fazendo um paralelo com o orçamento doméstico, é como se eu precisasse calcular tudo o que eu recebo de salário em um mês, menos as despesas de manutenção da casa (aluguel, escola das crianças, supermercado), para ver quanto sobra para pagar os juros de uma  dívida bancária que fiz no passado.

A dívida é um compromisso rígido, que foi assumido no passado, e que precisa ser pago. As despesas do dia a dia devem ser controladas para que haja sobras para o pagamento da dívida. Na prática, o governo costuma renovar a sua dívida vincenda. Para que ela não cresça indefinidamente, é preciso pagar os juros e renovar apenas o principal. O resultado primário é uma forma de medir quanto consigo economizar em despesas que podem ser controladas, e quanto consigo ampliar a minha receita, de modo a ter capacidade de honrar os juros que devo.

Por isso, o resultado primário funciona como um sinalizador da saúde financeira do setor público (você encontra um texto mais detalhado sobre resultado primário neste site, no post O que é e para que serve o “Resultado Primário”?). Se o superávit primário for menor que os juros a pagar, o governo terá que aumentar sua dívida para pagar parte dos juros não cobertos pelo superávit. Logo, a consequência de baixos superávits é o crescimento da dívida pública ao longo do tempo.

Chegamos, então, ao segundo conceito importante: dívida pública. Um governo que tem uma dívida alta e crescente está em apuros. Em algum momento não terá dinheiro para pagar os juros e a amortização dessa dívida. Investidores que compram títulos desse país não vão querer renovar os empréstimos, quando esses vencerem. Aumentará a necessidade de caixa do governo, para poder quitar os empréstimos não renovados. A taxa de juros paga por esse governo terá que aumentar, para atrair investidores dispostos a correr mais risco para ganhar mais dinheiro. Juros mais altos vão acelerar a dinâmica do endividamento e, além disso, vão desestimular o investimento e o crescimento econômico. Com menor crescimento haverá menor arrecadação de impostos, piorando a situação financeira do governo. Daí a importância de se monitorar a evolução da dívida pública.

O detalhe importante é que habitualmente o indicador de dívida relevante utilizado no Brasil é o de “dívida líquida”: tudo o que o governo deve menos os créditos que ele tem a receber. Um governo que deve muito, mas também tem muitos créditos, não estará em má situação, desde que seus credores paguem em dia. Os governos habitualmente têm créditos a receber de contribuintes que parcelaram impostos atrasados, de empréstimos feitos a outros governos, etc. Também costuma ter algum dinheiro em caixa, que também deve ser descontado da dívida total de forma a se apurar o montante líquido devido (neste site há dois textos analisando o conceito e a evolução da dívida líquida: “Dívida líquida do setor público decrescente significa política fiscal sob controle?” e “Dívida bruta e ativo do setor público: são imprescindíveis para se avaliar o equilíbrio fiscal?”).

O terceiro conceito importante é o de abrangência do conceito de “setor público”. Como se sabe, o setor público é formado não apenas pela administração pública direta (órgãos públicos, autarquias, fundações), mas também por empresas que pertencem ao governo. Elas podem ser empresas públicas (100% de propriedade do governo) ou de economia mista (o governo é o acionista majoritário). Entre as empresas públicas e de economia mista estão vários bancos (Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil, BNDES, Banco do Nordeste, etc.).

Na apuração do resultado primário o conceito de “setor público” utilizado é o de “setor público não financeiro”. Como a ideia do resultado primário é medir quanto o governo deve ao setor financeiro; e como parte dessa dívida é com bancos nos quais o governo tem participação ou é dono, os bancos do governo ficam de fora do conceito de “setor público”, justamente para que se possa apurar o total da dívida do governo com o setor financeiro da economia, seja ele público ou privado.

Também são excluídos do conceito de “setor público” aquelas empresas nas quais o governo tem participação, mas que são financeiramente independentes. A ideia, nesse caso, é de que empresas do governo que são dependentes de verbas públicas (por exemplo, a Embrapa, a Empresa Brasileira de Comunicações ou a Companhia Nacional de Abastecimento) funcionam, para fins de apuração do resultado primário, como se fossem um órgão de governo. Como elas não têm capacidade de gerar receita em montante suficiente para custear suas despesas, elas são dependentes de aportes do governo para, regularmente, pagar sua folha de pessoal, comprar insumos, etc. Por isso, a despesa dessas empresas deve ser monitorada e controlada, porque elas afetam a capacidade financeira do governo.

Já no caso de empresas do governo que têm grande capacidade de gerar receitas, como a Petrobras ou a Eletrobras, é possível deixá-las de fora do controle de despesas. Afinal, elas têm capacidade para financiar os próprios gastos. Ademais, submetê-las a um regime de controle de despesas pode afetar a eficiência de suas operações. Imagine, por exemplo, impedir que a Petrobras compre uma nova sonda para explorar petróleo com vistas a ampliar o resultado primário. Certamente isso reduzirá o espaço para gestão eficiente da empresa, tolhendo suas oportunidades de negócio, como também  impedirá a realização de investimentos relevantes ao crescimento econômico. Observe-se que as melhores práticas internacionais recomendam a exclusão de bancos públicos e de empresas estatais não dependentes do conceito de setor público.

Chegamos, então, ao ponto em que podemos apontar onde estão as oportunidades para a contabilidade criativa. Os fatos de:

(a) haver empresas (financeiras e não financeiras), nas quais o governo tem poder de mando, e que estão fora do conceito de “setor público” para fins de apuração do resultado primário e da dívida; e

(b) o conceito de dívida mais utilizado para avaliar a solvência do governo ser o de “dívida líquida”;

permitem que o governo crie relações financeiras com as empresas que estão fora do conceito de setor público de modo a expandir suas despesas e sua dívida bruta sem, contudo, afetar o resultado primário e a dívida líquida.

Com tais operações, o governo consegue expandir seus gastos e sua dívida total sem que isso apareça no resultado primário ou na dívida líquida. Seria uma forma de gastar mais fingindo ser financeiramente responsável.

A seguir são descritas algumas operações de contabilidade criativa utilizadas nos últimos anos, pelo Governo Federal, ressaltando-se os mecanismos que permitem a expansão dos gastos e da dívida sem que se afete o resultado primário e a dívida líquida.

1 – Pagamento de dividendos ao Tesouro por empresas que estão fora do conceito de setor público

Empresas que têm ações em mercado (as chamadas sociedades de capital aberto) usualmente remuneram seus acionistas por meio de pagamento de dividendos. O governo, como acionista de algumas empresas, também tem direito a dividendos. A decisão de pagar ou não dividendos, e do montante do pagamento, é usualmente tomada pelo conselho de administração da empresa. No caso de empresas em que o governo tem a maioria das ações com direito a voto, ele tem grande poder discricionário para decidir quando a empresa pagará dividendos e qual o valor a ser pago. Quanto maior o volume de dividendos pagos, menos recursos sobram para a empresa investir em seus projetos e fazer frente a suas obrigações.

Se o governo estiver gastando muito e, por isso, estiver enfrentando dificuldades para atingir o resultado primário necessário ao pagamento dos juros da dívida, ele pode pressionar as empresas que estão fora do conceito de setor público (empresas financeiras e empresas não dependentes do Tesouro) a pagar dividendos elevados. Com isso, entra no “setor público” dinheiro vindo de fora do “setor público”, o que aumenta o resultado primário.

Isso é feito às custas da descapitalização das empresas que foram induzidas a pagar dividendos excessivos. Tivessem elas autonomia para definir o montante de dividendos a pagar, provavelmente fariam pagamentos menores, utilizando os recursos para outras finalidades.

Do ponto de vista do equilíbrio fiscal, a receita de dividendos é uma receita eventual. Ela não decorre da capacidade regular do governo para arrecadar tributos, e não se pode esperar que, todo ano, o governo receba dividendos elevados das empresas das quais é acionista. Seja porque em alguns anos as empresas terão resultados ruins, seja porque não se pode extrair dividendos excessivos ano após ano, sob pena de fazer a empresa encolher devido à baixa capitalização e insuficiência de recursos para investir. No caso de empresas mistas, o problema se torna ainda mais grave ao longo do tempo, pois a interferência excessiva do governo nessas empresas desestimula novos aportes de capital por parte do setor privado.

Assim, embora reforce o caixa do governo no curto prazo, aumentando o resultado primário, a receita de dividendos não assegura que o governo esteja em uma situação confortável no longo prazo.

Para garantir transparência e boa conduta no trato dos dividendos das empresas controladas pelo poder público, seriam necessárias duas providências: (1) contabilizar em separado a receita de dividendos (e as demais receitas eventuais, tratadas adiante), apurando-se e divulgando-se um resultado primário com receitas eventuais, e outro sem essas receitas; (2) definir procedimentos padrão para o cálculo e a periodicidade de pagamento de dividendos por empresas controladas pelo setor público.

 2 – Venda de patrimônio público a empresas estatais que estão fora do conceito de setor público

Outra forma de obter uma receita eventual e reforçar o resultado primário é vender patrimônio público para uma empresa estatal que esteja fora do conceito de setor público. Por exemplo, em 2010 o Tesouro vendeu à Petrobras o direito de explorar cinco bilhões de barris de petróleo na camada pré-sal. Como a Petrobras não é considerada “setor público”, a contabilidade registrou a entrada de dinheiro para o setor público, o que elevou o resultado primário.

Há que se observar, aqui, uma outra característica da contabilidade pública que facilita o uso de práticas criativas: o patrimônio público (reservas de recursos naturais, estradas, prédios públicos, ações, etc.) não é integralmente contabilizado como ativo do governo ao qual pertence, nem aparece como item de dedução no cálculo da dívida líquida.

Com isso, sempre que se vende um desses ativos não contabilizados, com a consequente entrada de recursos nos cofres públicos, há um aumento no resultado primário sem que haja o registro da correspondente redução patrimonial. Tudo se passa como se eu vendesse minha casa, colocasse o dinheiro da venda no banco, e não deduzisse da minha lista de propriedades a casa vendida. Estaria mais rico com isso? Obviamente não: apesar de minha conta bancária ter engordado, não teria mais a casa. Transferindo o raciocínio para o setor público, a venda de ativos do governo, da forma como é atualmente contabilizada,  tem como consequência o aumento do resultado primário. Já a dívida líquida diminui, quando o correto seria que ela ficasse constante, pois a redução do ativo físico de propriedade do governo é exatamente compensada pela entrada de caixa.

Assim como no caso do pagamento de dividendos, a venda de patrimônio público gera uma receita eventual, e deve ser tratada em separado na contabilização do resultado primário, para que fique transparente qual é o superávit que se consegue obter com base nas receitas regulares e quanto do superávit se deve a uma receita extraordinária.

Diga-se de passagem, foi esse o procedimento adotado pelo Banco Central nos anos 90, quando o programa de privatizações vendeu diversas empresas que pertenciam ao patrimônio público.

Se a venda de patrimônio público for feita para empresas privadas ou governos estrangeiros, em condições de mercado, o governo vendedor terá pouca influência na definição do preço de venda do ativo. O preço de venda será aquele que os compradores estiverem dispostos a pagar. Porém, quando o governo vende um ativo para uma empresa de sua propriedade, como no caso da Petrobras, ele pode influenciar na definição do preço. Pode, então, vender patrimônio a um preço mais alto do que seria obtido em mercado, o que infla o resultado primário e prejudica a empresa. Ou pode sacrificar o resultado primário, fixando um preço favorável à empresa.

3 – Antecipação de receitas futuras

Os governos, além dos impostos que recolhem, têm diversos outros tipos de receitas que entram regularmente nos cofres públicos. Por exemplo, o Governo Federal construiu a usina de Itaipu em sociedade com o Paraguai. A empresa Itaipu Binacional paga ao governo brasileiro, regularmente, royalties pelo uso das águas do Rio Paraná na geração de energia.

Quando está com as contas apertadas, o governo pode antecipar o recebimento dessas receitas. Para tanto, o governo vende a terceiros o direito de receber essa receita. Em 2012 o Governo Federal vendeu R$ 6 bilhões desses créditos ao BNDES.

A antecipação de receitas aumenta o resultado primário de hoje às custas do resultado primário futuro. Isso significa que se está pagando despesas públicas de hoje com dinheiro que entraria no futuro. O político que está no governo hoje está gastando dinheiro que deveria entrar nos cofres públicos somente durante o mandato do seu sucessor.

O efeito é o de gerar um resultado primário pouco sustentável ao longo do tempo. Por isso, esse tipo de receita também deveria ser contabilizado em separado, explicitando-se o resultado primário com e sem essa receita eventual.

Assim como no caso da venda de patrimônio, analisada no item (2), se a venda das receitas futuras do governo for feita a uma empresa pública, o governo pode vender tais direitos acima de seu valor de mercado, o que infla o resultado primário.

4 – Empréstimos a empresas públicas que estão fora do conceito de setor público por meio de emissão de títulos

O governo pode ter o interesse de fazer empréstimos a determinados grupos de empresas privadas, seja para financiar exportações, para estimular o crescimento econômico ou para impulsionar o desenvolvimento de novas tecnologias. Para fazê-lo de forma transparente, através de um banco público, o governo deve fazer um aumento de capital desse banco. Dispondo de um capital mais elevado, o banco pode expandir seus empréstimos, seguindo as orientações do governo.

Ao injetar dinheiro no banco público, o governo terá feito uma “despesa de capital”, conhecida na contabilidade pública como “inversão financeira”. Essa despesa será considerada no cálculo do resultado primário, reduzindo-o, porque o governo fez um gasto a favor de uma entidade (o banco, que está fora do conceito de setor público): a decisão do governo em gastar com a capitalização do banco público terá sido contabilizado como uma despesa, de forma correta e transparente.

Para fazer a mesma operação de capitalização de um banco público, sem que haja reflexo na despesa governamental (e, portanto, sem afetar o resultado primário) o governo pode emitir títulos públicos e entregá-los, a título de empréstimo, para o banco público.

Nesse caso, não houve uma despesa do governo, logo o resultado primário não será afetado. A dívida líquida do governo tampouco será afetada, porque ao mesmo tempo em que a dívida total (ou dívida bruta) – aquela na qual não são deduzidos os créditos do governo junto a terceiros – cresceu, também aumentou, na mesma proporção, o crédito do setor público frente ao restante da economia (o banco público ficou devendo ao Tesouro o valor dos títulos que recebeu por empréstimo).

O banco público, por sua vez, pode vender a terceiros os títulos que recebeu do Tesouro, e usar o dinheiro levantado dessa forma para fazer empréstimos às empresas que o governo quer beneficiar.

Está feita a mágica: sem desembolsar um tostão, sem reduzir o resultado primário e sem aumentar a dívida líquida, o governo conseguiu fazer com que os empréstimos chegassem às empresas.

Esse procedimento foi diversas vezes usado pelo Governo Federal, que já emprestou mais de R$ 300 bilhões ao BNDES. Em operação similar, o Tesouro capitalizou a Caixa Econômica Federal no ano de 2012, entregando-lhe títulos públicos e privados de propriedade do Governo Federal.

Contudo, a despesa que não aparece acaba impactando as contas públicas de outras formas, quais sejam:

(a)    como afirmado acima, a dívida líquida não se altera, porque no momento da emissão e transferência dos títulos para o banco, a dívida e os haveres do Tesouro variam no mesmo montante. Porém, a qualidade da dívida líquida piora, porque o crédito que o governo tem com o BNDES pode não ser pago no futuro. Dado que se trata de uma instituição controlada pelo setor público, se os empréstimos feitos pelo BNDES (com o dinheiro repassado pelo Tesouro) vierem a sofrer inadimplência ou, se por outro motivo, o banco tiver resultados ruins, haverá uma tendência a cancelar o crédito do Tesouro, como uma forma indireta de capitalizar o banco;

(b)   como a intenção final do Tesouro era fazer empréstimos a juros baixos para empresas, o empréstimo feito ao BNDES foi a juros menores que aqueles que o próprio Tesouro paga sobre a sua dívida. Por exemplo, o Tesouro emite R$ 100 milhões em títulos que pagam juros de 10% ao ano, e os entrega ao BNDES, que se compromete a pagar o empréstimo em 30 anos, com juros de 5% ao ano. Assim, a cada ano, o Tesouro pagará R$10 milhões em juros, e receberá do BNDES apenas R$ 5 milhões. Em consequência, a dívida líquida do Tesouro irá subir, ano após ano, na razão de R$ 5 milhões por ano. Ou seja, a dívida líquida não se altera no momento da operação, mas depois cresce, ano após ano, em função do diferencial de juros. Para o diferencial atual, em torno de 5% ao ano, e considerando o montante de empréstimos da ordem de R$ 300 bilhões, a operação de crédito a bancos públicos deve custar ao Tesouro o equivalente a R$ 15 bilhões por ano;

5 – Fabricação de receita primária fictícia

Existe uma variação da operação descrita no item anterior que resulta na criação de receita primária fictícia. Assim como descrito no item 4, o Tesouro emite títulos e os entrega a um banco público, cobrando uma taxa de juros pelo empréstimo que é menor que a taxa paga pelo título público.

O banco público, em vez de ir ao mercado vender esses títulos, simplesmente os coloca em seu ativo. Suponha, como no exemplo anterior, que esses títulos rendam 10% ao ano, e que a dívida do banco público com o Tesouro custe 5% ao ano. Se o banco simplesmente fica sem fazer nada, mantendo os títulos em carteira, ele obterá lucros de 5% ao ano nessa operação, somente em função desse diferencial de taxas de juros.

Com o seu lucro engordado, ele paga dividendos mais elevados ao Tesouro. Essa receita de dividendos será contabilizada como receita primária do Tesouro (vide item 1 acima). Mais uma vez surge uma mágica: a partir de um aumento da sua dívida bruta, o governo passa a ter um resultado primário maior, tudo isso sem impacto imediato na dívida líquida!

Mais uma vez, os efeitos negativos vêm a médio e longo prazo: (a) piora o perfil da dívida líquida do Tesouro; (b) a dívida líquida cresce gradativamente devido ao diferencial de juros.

O uso repetido desse tipo de procedimento faz com que a dívida líquida deixe de ser um indicador relevante para a solvência do setor público. Se a maioria dos créditos ali listados, que abatem o valor da dívida bruta, são créditos “podres” ou que podem ser cancelados no futuro, então torna-se melhor medir a situação financeira do Tesouro olhando a sua dívida bruta, pois há pouca perspectiva de recuperar os haveres do governo.

6 – Pagamento de despesas com a entrega de títulos públicos

Para evitar fazer uma despesa que reduza o resultado primário, o governo pode simplesmente emitir um título público e entregá-lo para pagar a despesa. Nesse caso, como não houve desembolso de recursos que caracterize despesa, o resultado primário não é afetado.

Ao contrário dos dois casos anteriores, contudo, haverá aumento da dívida líquida, pois agora ocorreu apenas a emissão de título, sem a criação de um crédito para o Tesouro.

Essa operação, portanto, só consegue esconder uma das partes (a piora do resultado primário) sem esconder a outra (a elevação da dívida líquida).

A MP 615, de 2013, convertida na Lei 12.865, de 2013, por exemplo, autorizou, em seu art. 16, que a União emitisse títulos da dívida pública para cobrir os gastos do Tesouro com subvenções para redução nas tarifas de energia elétrica. Ou seja, em vez de desembolsar o subsídio à conta de luz, reduzindo o resultado primário e, posteriormente, emitir títulos para financiar essa despesa; o Governo Federal optou por fazer a “ligação direta”, já emitindo o título e depositando-o na conta responsável pelo pagamento das subvenções.

Posteriormente, em função da repercussão negativa da medida, o governo voltou atrás e fez o pagamento da forma usual, em dinheiro, impactando o resultado primário.

 7 – Adiamento de desembolsos, criando-se “restos a pagar”

Um detalhe importante do cálculo do resultado primário é o de que ele é feito no “conceito de caixa”. São considerados nos cálculos apenas os despesas efetivamente pagas e as receitas efetivamente recebidas dentro do intervalo de tempo para o qual se está calculando o resultado. Se, por exemplo, o governo comprar material de escritório no mês de dezembro de 2013, e o pagamento desse material for realizado apenas no mês de janeiro de 2014, essa despesa não entra no cálculo do resultado primário de 2013, e sim no cálculo para 2014.

Esse método é utilizado por facilitar o cálculo (muitas vezes feito a partir da variação do saldo bancário do Tesouro) e porque os juros da dívida pública a serem pagos com os recursos do resultado primário também são contabilizados da mesma forma.

Isso cria o incentivo para se “empurrar” despesa de um ano para outro, de modo a aumentar o resultado primário de um ano às custas do resultado primário do ano seguinte. Uma despesa feita em um exercício, cujo pagamento fica para o exercício seguinte, é registrada na contabilidade pública como “restos a pagar”.

Se o procedimento de empurrar despesa de um ano para outro for adotado ano após ano, a tendência é que os restos a pagar cresçam. E, de fato, é isso que tem ocorrido. O Orçamento da União de 2013 fechou com R$ 176 bilhões em restos a pagar. Esse é um valor muito grande, equivalente a nada menos que 80% do custo da folha de pagamento do Governo Federal em 2013.

 Considerações finais

Os conceitos de dívida e resultado primário têm duas finalidades básicas. Uma delas é medir o equilíbrio financeiro do governo, aferindo se ele está gastando demais, se ele é capaz de pagar a sua dívida, se esta dívida está crescendo de forma muito acelerada, etc. O uso da contabilidade criativa mascara a real situação financeira do governo. Como já afirmado acima, há situações em que a dívida líquida não cresce, mas perde qualidade, sinalizando que, no futuro, o governo não possa receber os créditos que está contabilizando na dedução da dívida bruta. Uma receita primária criada na base de pagamentos de dividendos insustentáveis pode sinalizar que, no futuro, o banco ou empresa pública que pagou o dividendo em excesso venha a precisar de uma capitalização do Tesouro, implicando aumento de despesa primária.

Ou seja, em algum momento a mágica é desfeita, e a real situação financeira do Tesouro se revela. A contabilidade criativa é, portanto, uma forma de obscurecer a real situação das contas públicas. A consequência disso é que os agentes econômicos (empresas, investidores, trabalhadores, etc.) perdem confiança nos números apresentados pelo governo, passam a ter maior incerteza quanto à real situação das finanças públicas, e passam a temer que o Governo tome alguma medida drástica no futuro, quando as despesas e dívidas empurradas para debaixo do tapete tiverem que ser pagas e não houver recursos para tanto (default da dívida, drástico ajuste fiscal com interrupção de serviços públicos essenciais, etc.).

A segunda finalidade das medidas de resultado primário é apurar o impulso que o governo está dando no consumo total da economia. Quanto maior o déficit primário, maior é a quantidade de bens e serviços que o governo está comprando da economia sem, ao mesmo tempo, reduzir o poder de compra dos outros consumidores via tributação de suas rendas. Mascarando-se o resultado primário, o governo apresenta um impulso dos gastos públicos sobre a demanda agregada que é menor do que o impulso real. O termômetro que mede a influência do setor público sobre o nível de atividade econômica e sobre a inflação para de funcionar adequadamente. Mais uma vez surge o problema de incerteza, falta de informação e temor de guinada na política econômica quando os desequilíbrios macroeconômicos provocarem seus efeitos reais sobre a renda das pessoas e das empresas.

Download:

  • veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=2132 12
Dívida bruta e ativo do setor público: são imprescindíveis para se avaliar o equilíbrio fiscal? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=720&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=divida-bruta-e-ativo-do-setor-publico-sao-imprescindiveis-para-se-avaliar-o-equilibrio-fiscal https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=720#comments Mon, 12 Sep 2011 07:17:14 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=720 O texto analisa o tamanho e a evolução da divida bruta e do ativo do setor público, bem como de seus principais componentes no período de dezembro de 2006 a julho de 2011. Tal abordagem traz importantes informações não evidenciadas quando se analisa apenas a dívida líquida, como é usual. Nesse período, enquanto a dívida líquida (dívida bruta deduzida do ativo) caiu, a dívida bruta subiu. Houve forte distanciamento entre esses agregados por conta da expansão do ativo, decorrente, do aumento das reservas internacionais e dos créditos junto ao BNDES.

Ademais, o perfil do ativo é bastante distinto do perfil da dívida bruta, notadamente no que tange à taxa de juros que incide sobre cada um. Também aumentou o peso das operações do Banco Central do Brasil na composição da dívida bruta, assim como a parcela dessa dívida indexada à taxa Selic. Todos esses acontecimentos configuram obstáculos à trajetória desejável de equilíbrio das contas públicas.

I – ASPECTOS ESTATÍSTICOS

A única fonte que apresenta dados conjuntos sobre a dívida bruta e o ativo do setor público é o Banco Central do Brasil (Bacen)[1]. A Autarquia divulga também dados relativos à dívida líquida, mas a abrangência não é a mesma do conceito de dívida bruta. No cômputo da dívida bruta e do ativo, congrega-se apenas o chamado Governo Geral, o qual inclui o governo federal, os governos estaduais e os governos municipais. Portanto, nesse conceito, não são consideradas as estatais e o Bacen.

Quanto às estatais, as implicações não são relevantes, pois a Petrobrás e a Eletrobrás foram excluídas das contas públicas. Já quanto ao Bacen, a exclusão no cômputo da dívida bruta e do ativo traz conseqüências importantes em vista do tamanho das suas contas e de suas relações com o Tesouro Nacional[2].

Diante desses fatos, opta-se aqui por considerar o Bacen no cômputo da dívida bruta e do ativo do Governo Geral. Isso é feito adicionando-se os saldos das contas do Bacen apresentados regularmente nas estatísticas da dívida líquida. Exclui-se desse procedimento as contas que retratam haveres ou passivos entre o Bacen e os governos estadual, municipal e, principalmente, federal.

Outra questão diz respeito à inclusão ou não da base monetária no cômputo da dívida bruta. A base monetária consta do passivo do Bacen e corresponde ao papel-moeda emitido e as reservas bancárias livres e compulsórias. Esse agregado monetário comporta-se de forma relativamente estável, próxima de 5% do PIB. Portanto, a questão não é relevante para a análise da evolução da dívida, mas sim para a aferição do tamanho do passivo. A opção aqui seguida será a de excluir a base monetária do cômputo da dívida, pois não há incidência de juros, nem sujeição a prazos de vencimento, como ocorre em relação aos passivos convencionais. Também não há evidências de que a base esteja sendo deliberadamente utilizada como canal de financiamento do governo[3].

II – TAMANHO E EVOLUÇÃO DA DÍVIDA BRUTA E DO ATIVO

A Tabela I apresenta os números da dívida bruta (linha A), do ativo (linha B) e da dívida líquida do Governo Geral e Bacen (linha C), calculados conforme descrito acima, sempre em relação ao PIB. Consta também a tradicional estatística da dívida líquida do setor público (Linha D), tal qual divulgada regularmente pelo Bacen. Ela resulta simplesmente de duas adições à dívida líquida do Governo Geral e Bacen: a dívida líquida das empresas estatais (linha E) e a base monetária (linha F) que não estão sendo aqui consideradas no cômputo da dívida.

Constata-se que, entre dezembro de 2006 e julho de 2011, a divida liquida caiu, fato amplamente divulgado pelos que querem enfatizar o controle das contas públicas. A divida líquida no conceito usual caiu 7,8% do PIB (linha D); enquanto no conceito aqui empregado, de dívida líquida do Governo Geral e Bacen, a queda foi menos pronunciada, 7,1% (linha C).

TABELA I – DÍVIDA BRUTA, DÍVIDA LÍQUIDA E ATIVO DO GOVERNO GERAL 1 E  BACEN
(% do PIB)
Período2 2006 2007 2008 2009 2010 2011 variação
DÍVIDA BRUTA (A) 60,0 61,8 59,8 63,8 63,2 65,0 5,0
ATIVO (B) 18,7 22,6 27,0 27,0 29,3 30,8 12,1
DÍVIDA LÍQUIDA (C = A – B) 41,3 39,2 32,8 36,8 33,9 34,2 -7,1
Dívida liquida do setor
público não financeiro (D=C+E+F) 47,3 45,5 38,5 42,8 40,2 39,5 -7,8
Dívida líquida das
empresas estatais3 (E) 0,9 0,8 0,8 0,7 0,7 0,6 -0,2
Base monetária (F) 5,1 5,5 4,9 5,2 5,6 4,6 -0,5
Fonte: Elaborada pelo autor com os dados primários do Bacen.
1 Governo Geral abrange governo federal, governos estaduais e governos municipais.
2 Dados de final de período. 2011 refere-se a julho.
3 Exclui Petrobrás e Eletrobrás.

Cabe indagar como um governo com elevado déficit conseguiu reduzir a sua dívida líquida. Há dois fatores que contribuíram para essa queda. Trata-se do superávit primário e do crescimento econômico. O primeiro atua impedindo que o déficit público e a dívida líquida em termos monetários fujam do controle. Já o segundo é capaz de reduzir a dívida líquida aferida em relação ao PIB. Vale lembrar que o crescimento econômico do Brasil nos últimos anos ficou acima da média histórica. Assim, o controle da dívida pública depende fortemente da geração de superávits primários e do crescimento econômico.

Enquanto a divida líquida do Governo Geral e Bacen caiu de 41,3% do PIB para 34,2% do PIB entre dezembro de 2006 e julho de 2011(linha C), a dívida bruta subiu de 60% do PIB para 65% do PIB, diferença de 5 pontos (linha A). Vê-se, portanto, que a dívida bruta está subindo e não caindo, como a dívida líquida. A diferença entre a dívida bruta e a dívida líquida subiu de 18,7% do PIB para 30,8% do PIB nesse período. Esses dois números correspondem ao tamanho do ativo do Governo Geral e Bacen nos dois momentos, aumento de 12,1 pontos percentuais do PIB (linha B).

Usualmente, o superávit primário serve para conter a expansão da dívida pública, ao prover os recursos para pagar os juros devidos e/ou resgatar o principal. Em um contexto de forte expansão do ativo, como o caso brasileiro dos últimos anos, o superávit primário serviu, na verdade, para financiar essa expansão. Como esse financiamento não foi suficiente para financiar toda a expansão do ativo, recorreu-se ainda ao aumento da dívida bruta.

III – COMPONENTES DO ATIVO

O distanciamento entre a dívida bruta e a dívida liquida pode ser um problema se o perfil do ativo for muito diferente do perfil da dívida bruta. No caso brasileiro, o que chama a atenção é a grande diferença entre a taxa de juros que incide sobre a dívida bruta e a rentabilidade dos componentes do ativo que mais subiram nos últimos anos. Isso eleva, em sequência, os juros líquidos devidos, o déficit público, a dívida bruta e a dívida líquida.

TABELA II – COMPOSIÇÃO DO ATIVO DO GOVERNO GERAL 1 E  BACEN
(% DO PIB)
Período2 2006 2007 2008 2009 2010 2011 variação
ATIVO TOTAL (A+B+C) 18,7 22,6 27,0 27,0 29,3 30,8 12,1
CRÉDITOS DA UNIÃO (A) 0,5 0,5 1,4 4,5 7,0 7,4 6,9
Instrumentos de capital e dívida 0,1 0,3 0,3 0,5 0,5 0,5 0,4
Créditos junto ao BNDES 0,4 0,2 1,2 4,1 6,4 6,9 6,5
RESERVAS INTERNACIONAIS2 (B) 7,7 12,0 15,9 12,8 12,9 13,5 5,8
OUTROS ATIVOS (C ) 10,4 10,0 9,6 9,7 9,5 9,9 -0,5
Disponibilidades do governo geral 0,9 1,1 1,2 1,2 1,3 2,1 1,2
Aplicações em fundos e programas 2,1 2,1 2,0 2,3 2,6 2,5 0,4
Recursos do FAT na rede bancária 5,2 4,8 4,5 4,4 4,0 3,8 -1,3
Créditos do Bacen às instituições. financeiras 0,8 0,9 0,9 0,9 0,8 0,8 0,0
Outros contas 1,4 1,1 1,0 0,8 0,8 0,7 -0,7
Fonte: Elaborada pelo autor com os dados primários do Bacen.
1 Governo Geral abrange governo federal, governos estaduais e governos municipais.
2 Deduz dívida externa do Bacen.

A Tabela II, acima, mostra a composição do ativo do Governo Geral e do Bacen. Observa-se que entre dezembro de 2006 e julho de 2011 houve acréscimo de 6,9 pontos percentuais de PIB dos créditos concedidos pela União às instituições financeiras oficiais, notadamente o BNDES (linha A). Esses créditos estão agora em 7,4% do PIB. No mesmo período, as reservas internacionais subiram 5,8 pontos percentuais do PIB, alcançando 13,5% do PIB (linha B). Assim, esses dois componentes explicam integralmente o aumento do ativo do Governo Geral e Bacen no período. Seguem-se comentários sobre cada um deles.

III.1 Créditos concedidos pela União ao BNDES

A intensificação das operações da União com o BNDES teve início em março de 2009 e, em junho de 2011, o saldo de todos os repasses somava R$ 215 bilhões[4]. O procedimento é o seguinte: o Tesouro Nacional emite títulos públicos que são repassados ao BNDES, em troca de crédito equivalente para o Tesouro junto ao Banco. Em seguida, o BNDES vende os títulos no mercado para levantar recursos que serão utilizados no financiamento às empresas.

Os R$ 100 bilhões de créditos inicialmente concedidos pelo Tesouro ao BNDES têm prazo médio de 17,5 anos e rendimento médio correspondente a TJLP mais 0,63% ao ano. Já os títulos públicos emitidos em contrapartida duram cerca de 4,2 anos e são corrigidos parte pela taxa Selic e parte por taxas prefixadas[5].

A diferença entre as taxas corresponde ao subsidio dado ao BNDES e às empresas que tomam créditos a juros baixos junto ao Banco. Estimativas mostram que a perda fiscal estimada do Tesouro ao repassar a carteira de títulos ao BNDES, financiando-se em mercado, é de 29% do valor de face do crédito total (100 bilhões), a ser apropriado ao longo de 30 anos, ou cerca de R$ 0,97 bilhão ao ano, em valor presente (Pereira & Simões, 2010, p. 17). Logo, se o total de R$ 215 bilhões de créditos já concedidos pelo Tesouro ao BNDES tiver obedecido às mesmas condições dos R$ 100 bilhões iniciais, o valor presente da perda do Tesouro com as operações pode chegar a R$ 62,3 bilhões, correspondentes a 29% dos R$ 215 bilhões.

III.2 Reservas internacionais

As reservas internacionais subiram de US$ 85,8 bilhões em dezembro de 2006 para cerca de US$ 346,1 bilhões em julho de 2011[6]. A expressiva aquisição de divisas do Bacen se deveu à tentativa de conter a valorização do real, diante da abundante entrada de capital no país e do forte aumento das exportações propiciado pela majoração dos preços das commodities.

A estratégia de contenção da valorização do real levou também ao resgate simultâneo de boa parte da dívida pública externa. De fato, se o governo se vê obrigado a comprar enormes quantidades de dólares no mercado de câmbio, o resgate da dívida externa pública faz mais sentido que o acúmulo de reservas internacionais, pois o custo do passivo externo supera a rentabilidade do ativo externo. Deduzindo-se das reservas internacionais o saldo da dívida externa, constata-se que o ativo externo liquido do Governo Geral e Bacen subiu de 1,3 % do PIB em dezembro de 2006 para 11,1 % do PIB em julho de 2011, portanto, aumento de 9,8 pontos percentuais do PIB.

Tradicionalmente, as reservas externas rendem muito pouco em relação ao rendimento dos ativos financeiros no Brasil. O último Relatório de Gestão das Reservas Internacionais do Bacen informa que a remuneração das reservas em dólar foi de apenas 1,82%, em 2010. Foi superior ao 0,83% de 2009, mas muito aquém da média de 5,2% do período 2002 a 2010[7].

Na verdade, em função do baixo rendimento em dólar das reservas, a variável fundamental para aferir o retorno das reservas é a própria variação cambial. As notas explicativas relativas às demonstrações financeiras do Bacen[8] informam a rentabilidade em real das reservas internacionais por trimestre, bem como o custo médio do passivo da Autarquia, o que permite o cálculo do custo de manutenção dessas reservas. Entre 2008 e 2009 o custo oscilou bastante em função da instabilidade da taxa de câmbio. Tomando-se 2007 até junho de 2011, o custo somado da manutenção das reservas foi de R$ 165,1 bilhões, já que nesse período prevaleceu a valorização do real.

IV – COMPONENTES DA DÍVIDA BRUTA

Depois de analisar os agregados dívida bruta e ativo, bem como os componentes do ativo, cabe focar os componentes da dívida bruta do Governo Geral e Bacen, os quais constam da Tabela III.

TABELA III – COMPOSIÇÃO DA DÍVIDA BRUTA DO GOVERNO GERAL 1 E  BACEN
(% do PIB)
Período2 2006 2007 2008 2009 2010 2011 variação
DÍVIDA BRUTA TOTAL (A=B+E) 60,0 61,8 59,8 63,8 63,2 65,0 5,0
DÍVIDA INTERNA (B=C+D) 53,6 57,4 55,0 60,3 60,2 62,6 9,0
Governo geral (C) 46,8 46,5 41,9 44,2 43,9 42,4 -4,3
Dívida mobiliária federal em mercado 45,3 45,3 40,8 43,0 42,7 41,3 -4,0
Outras contas 1,5 1,3 1,1 1,2 1,2 1,1 -0,3
Bacen (D) 6,8 10,8 13,1 16,2 16,3 20,1 13,3
Operações de mercado aberto2 3,3 7,0 10,7 14,3 7,9 11,4 8,1
Recolhimentos compulsórios3 3,5 3,8 1,8 2,0 8,6 8,9 5,4
Outras contas 0,0 -0,1 0,6 -0,1 -0,1 -0,1 -0,2
DÍVIDA EXTERNA4 (E) 6,4 4,4 4,8 3,5 3,0 2,4 -4,0
Fonte: Elaborada pelo autor com os dados primários do Bacen.
1 Governo Geral abrange governo federal, governos estaduais e governos municipais.
2 São denominadas operações compromissadas nas contas do Bacen.
3. São denominados outros depósitos nas contas do Bacen

4 A dívida externa do Bacen  está deduzida das reservas externas..

Entre dezembro de 2006 e julho de 2011, a dívida externa do Governo Geral (linha E) caiu 4 pontos percentuais de PIB, enquanto a dívida interna (linha B) subiu 9 pontos de PIB. Ademais, houve importante modificação na composição da dívida interna, já que seu aumento de 9 pontos do PIB se deveu ao incremento de 13,3 pontos do PIB no saldo das operações realizadas pelo Bacen (linha D), enquanto a dívida interna do Governo Geral caiu 4,3 pontos do PIB (linha C). As operações do Bacen, que correspondiam a 12,7% da dívida interna ao final de 2006, aumentaram seu peso para 32,1% em julho de 2011.

A redução da dívida externa se deu no âmbito da tentativa de controlar a valorização do real, conforme comentado anteriormente. Seu saldo estava em apenas 2,4% do PIB em julho de 2011 (linha E), algo impensável na década de oitenta, quando vivíamos a chamada crise da dívida externa.

Não é estranha também a elevada participação da dívida mobiliária federal em poder do mercado no total do passivo público, pois o mesmo deve ocorrer em países que possuem mercado de títulos públicos desenvolvido. Em julho de 2011, a dívida mobiliária estava em 41,3% do PIB. Esse percentual não inclui a totalidade dos títulos em poder do mercado, pois há ainda as operações de mercado aberto do Bacen que são analisadas em seguida.

O que chama a atenção na Tabela III é a evolução e o tamanho do saldo das operações do Bacen, saldo esse que chegou a 20,1% do PIB em julho de 2011 (linha D). Os principais responsáveis por esse fato foram as operações de mercado aberto e os recolhimentos compulsórios. O saldo da primeira subiu 8,1 pontos percentuais do PIB entre dezembro de 2006 e julho de 2011, chegando a 11,4% do PIB nesse último mês. Já os recolhimentos compulsórios subiram 5,4 pontos do PIB no mesmo período, o que resultou no saldo de 8,9% do PIB em julho do corrente ano.

As operações de mercado aberto correspondem à venda ao mercado dos títulos públicos que estão na carteira do Bacen, com o compromisso de recomprá-los em data futura. Por isso, tais operações aparecem nas contas do Bacen como operações compromissadas. Muitos países utilizam essas operações como instrumento de controle da liquidez da economia. A peculiaridade do Brasil é o seu elevado saldo, um múltiplo da base monetária, contribuindo com o financiamento do governo, em complemento às operações com títulos públicos realizadas diretamente pelo Tesouro Nacional.

Existem duas diferenças importantes entre as operações de mercado aberto do Bacen e a dívida mobiliária federal em mercado: o vencimento e o custo. Em julho de 2011, 58,7% das operações de mercado aberto venceriam em um prazo de até três meses (em meados de 2009, esse percentual aproximou-se de 90%). Os 58,7% correspondiam a R$ 244,5 bilhões, equivalentes a 6,2% do PIB. Já o prazo médio dos títulos colocados no mercado diretamente pelo Tesouro Nacional em oferta pública era de 43,8 meses, em julho de 2011. Apenas 2% desses papéis seriam resgatados em três meses, cerca de R$ 33,5 bilhões[9].

Quanto ao custo, as operações de mercado aberto são corrigidas pela taxa Selic[10], enquanto a dívida mobiliária federal compõe-se de um mix equilibrado de taxa Selic, taxa prefixada e índice de preços, notadamente IPCA, mais juro real. Até o início de 2010, pode-se afirmar que as operações de mercado aberto custavam menos que a dívida mobiliária federal em poder do mercado, porque as taxas prefixadas e o IPCA acrescido de juro real estavam acima da taxa Selic[11]. Entretanto, em março de 2010, iniciou-se um ciclo de aumentos dessa taxa, por conta do recrudescimento da inflação. Ela subiu de 8% ao ano para os atuais 12% ao ano, aumento esse que incidiu sobre o elevado e crescente passivo do Governo Geral e Bacen atrelado a essa taxa.

O outro item que subiu bastante entre as operações do Bacen foram os recolhimentos compulsórios. Esses não são os tradicionais depósitos compulsórios que integram a base monetária. São recolhimentos compulsórios adicionais das instituições financeiras junto ao Bacen, em espécie, de parcela dos depósitos bancários e de poupança. Na prática, esses recolhimentos cumprem o mesmo papel das operações de mercado aberto, pois ajudam a controlar a expansão da liquidez da economia. São também em grande parte corrigidos pela taxa Selic[12]. A diferença é o caráter voluntário das operações de mercado aberto, o que não ocorre com os recolhimentos. Houve forte aumento desses recolhimentos ao longo de 2010, como parte das chamadas medidas macro prudenciais de combate à inflação, substituindo em parte as operações compromissadas[13].

Um registro final importante sobre a composição da dívida bruta diz respeito aos indexadores dessa dívida. Conforme já visto, em março de 2010, iniciou-se a correção da taxa Selic que a levou de 8% para os atuais 12% ao ano. Ocorre que isso se deu em um contexto de forte aumento da parcela da dívida pública sobre a qual incide a taxa Selic, por conta do crescente peso das operações de mercado aberto e dos recolhimentos compulsórios, além de parte dos títulos emitidos no bojo dos créditos concedidos pela União ao BNDES[14]. A parcela selicada da dívida líquida do setor público subiu de 42,3% ao final de 2006 para 73,7% em julho de 2011. Percebe-se também o aumento do peso da TJLP e do câmbio, só que pelo lado do ativo, decorrente dos créditos junto ao BNDES, no caso da TJLP, e das reservas internacionais, no caso do câmbio.

V – CONCLUSÕES

Nos últimos anos, ocorreram importantes alterações na estrutura patrimonial do governo geral e Bacen. Houve forte aumento do ativo na forma de créditos junto ao BNDES e de reservas internacionais. A discrepância entre a rentabilidade desse ativo e o custo para financiá-lo aumenta os juros líquidos devidos pelo setor público, assim como, na seqüência, o déficit e o endividamento.

Outro movimento patrimonial importante foi a alteração da composição da dívida pública, em vista do resgate de relevante parcela da dívida externa e do forte aumento da participação na dívida interna das operações do Bacen. Além de impróprios como mecanismo de financiamento, essas operações elevaram, juntamente com parte dos títulos concedidos ao BNDES, a participação da Selic dentre os indexadores da dívida pública. Assim, o recrudescimento da inflação em 2010 e o consequente aumento da taxa Selic para controlá-la, afetaram diretamente o custo de boa parte dessa dívida, gerando novo impulso ao aumento do passivo.

Pode-se concluir, portanto, que a redução da dívida líquida não conta toda história da evolução das contas públicas nos últimos anos. A redução da dívida líquida sugere que se está caminhando para um cenário de maior equilíbrio fiscal. Porém, essa impressão é afastada pela constatação que a dívida bruta está subindo; que o ativo do governo tem baixa rentabilidade; e que a indexação pela taxa Selic e as operações do Bacen aumentaram seu peso na composição da dívida bruta.

Downloads:

  • veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).

Para ler mais sobre o tema:

Pellegrini, J.A.(2011) Dívida bruta e ativo do setor público: o que a queda da dívida líquida não mostra? Texto para Discussão nº 95. Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado. Senado Federal. http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD95-JosueAlfredoPellegrini.pdf


[1] Os dados são divulgados juntamente com a publicação mensal Nota para a Imprensa – Política Fiscal (Http://www.bcb.gov.br/?ECOIMPOLFISC), Quadro 17.

[2] Reconhecendo tal problema, o Bacen divulga desde fevereiro de 2008, com dados retroativos a dezembro de 2006, duas séries de dívida bruta: a série mais antiga, que inclui sua carteira de títulos públicos e a nova série com o saldo das suas operações de mercado aberto. Ver nota técnica em anexo à Nota para a Imprensa – Política Fiscal relativa à fevereiro de 2008. http://www.bcb.gov.br/htms/infecon/notas.asp?idioma=p.

[3] Os números da dívida bruta apresentados no trabalho recomendado ao final do texto diferem dos números aqui apresentados apenas por conta da opção feita agora, pela exclusão da base monetária.

[4] O BNDES divulga trimestralmente relatório sobre a aplicação desses recursos. No relatório relativo ao segundo trimestre de 2011, p. 14, afirma-se que o repasse autorizado do Tesouro ao Banco é de R$ 240,25 bilhões, mas até aquele momento R$ 215,25 bilhões haviam sido captados. Ver http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/empresa/download/Relatorio_Recursos_Financeiros_2trimestre2011.pdf.

[5] Essas informações foram extraídas de PEREIRA, T. & SIMÕES, A. O papel do BNDES na alocação de recursos: avaliação do custo fiscal do empréstimo de R$ 100 bilhões concedido pela União em 2009. Revista do BNDES, v. 33, p. 5-54, jun. 2010.

[6] Os dados sobre as reservas estão em http://www.bcb.gov.br/?RESERVAS.

[7] Os relatórios podem ser encontrados em http://www.bcb.gov.br/?GESTAORESERVAS.

[8] Essas notas estão em http://www.bcb.gov.br/?id=BALANCETE&ano=.

[9] Dados sobre o vencimento das operações de mercado aberto e sobre o prazo e cronograma de resgate da dívida mobiliária federal constam, respectivamente, das tabelas XXXVI, XXXVIII-A e XXXIX das estatísticas que acompanham a Nota para a Imprensa – Política Fiscal.

[10] As operações de mercado aberto são corrigidas pela Selic, mesmo que os títulos utilizados na operação tenham outro perfil. Juridicamente, os títulos são garantias de operações de empréstimos corrigidas pela Selic.

[11] Conforme se depreende do Relatório Mensal da Dívida Pública Federal do Tesouro Nacional, na parte relativa ao custo da dívida mobiliária por tipo de papel. O Relatório encontra-se em http://www.tesouro.fazenda.gov.br/hp/relatorios_divida_publica.asp. A vantagem dos papéis prefixados e atrelados a índices de preços, é que o custo do estoque não sobe com a adoção de uma política monetária mais restritiva.

[12] A composição por indexador desses depósitos pode ser vista na Tabela XI das estatísticas que acompanham a Nota para a Imprensa – Política Fiscal. Em julho de 2011, quase 78% eram indexados à taxa Selic e o restante à TR, por conta dos recolhimentos incidentes sobre os depósitos de poupança.

[13]. Os dados do recolhimento podem ser encontrados em http://www.bcb.gov.br/?INDECO.

[14] As informações sobre a composição da dívida por indexador fornecidas pelo Bacen se referem à divida líquida do setor público. Constam das Tabelas X a XI – B das estatísticas que acompanham a Nota para a Imprensa – Política Fiscal.

]]>
https://www.brasil-economia-governo.com.br/?feed=rss2&p=720 6