discriminação de preços – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Wed, 08 Feb 2012 13:39:45 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Quem deve pagar a conta dos subsídios nos serviços de utilidade pública? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1028&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=quem-deve-pagar-a-conta-dos-subsidios-nos-servicos-de-utilidade-publica https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1028#comments Tue, 07 Feb 2012 13:18:22 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1028 Muito mais corriqueiramente do que se imagina, alguns consumidores ajudam a pagar a conta de outros. São os chamados subsídios cruzados. Muitas vezes esses subsídios são difíceis de serem percebidos. Por exemplo, quem pede para embalar um presente está sendo subsidiado por quem não solicita esse serviço (afinal, o custo do papel e da mão-de-obra que irá embalar está embutido no preço final do bem); quem come pouco ajuda a pagar a conta de quem come muito em um rodízio; um paciente que demanda menos tempo do médico subsidia o que demora mais; quem parcela o pagamento de passagens aéreas sem pagar juros está sendo financiado por aqueles que pagam à vista.

Em todos os exemplos acima, o subsídio cruzado surge como uma solução de mercado, pois diferenciar o preço traria custos além dos benefícios. Pode também ser uma estratégia de marketing: cobrar por certos serviços pode parecer antipático aos olhos do consumidor. Apesar disso, ao longo dos últimos anos, vimos que a sociedade tem cada vez mais aceitado pagar valores diferentes, de acordo com os serviços adquiridos. Dessa forma, é cada vez mais comum shopping centers cobrarem pelo estacionamento, companhias aéreas cobrarem pelo despacho de malas ou pela comida servida a bordo, e lojas cobrarem para embalar produtos.

O que explica o fato de, em alguns casos, as empresas preferirem manter os subsídios cruzados e em outros casos optarem por diferenciar os preços conforme o serviço ou bem consumido é o custo que se incorre para fazer a diferenciação dos preços. Manter alguém vigiando a entrada de um banheiro restrito a pagantes pode ser mais caro do que liberar o acesso; cobrar um preço diferente para cada tipo de alimento em um restaurante a quilo é praticamente inviável; pode ser mais barato contratar um empacotador do que perder tempo com o próprio cliente empacotando as compras em um supermercado.

Preços uniformes também reduzem o custo de informação. A decisão de um consumidor fica mais fácil se ele sabe, de antemão, o preço dos ingressos nos cinemas X e Y, sem se preocupar com a duração ou com o custo de produção do filme. A informação de uma vitrine é mais clara se o preço de um modelo não depender do tamanho da roupa.

Por fim (e lembrando que essas explicações não formam uma lista exaustiva), pode haver assimetrias de informação e conflitos de interesse que tornam a diferenciação de preços ineficiente. Por exemplo, se o preço de um bem depender do tempo de negociação ou da duração do serviço (o tempo gasto em uma consulta médica ou em um corte de cabelo), pode ser gerado um incentivo perverso de as transações se estenderem além do tempo necessário. Um caso clássico é o do jornal Pravda, editado na antiga União Soviética, no qual os jornalistas eram remunerados pelo tamanho das reportagens escritas, o que resultava em textos enormes.

Em princípio, quando o preço pago é diferente do custo de produção, gera-se uma ineficiência na economia, com perda de bem-estar. Nos casos acima, entretanto, o subsídio cruzado pode aumentar a satisfação da sociedade se a cobrança de preços diferenciados gerar custos maiores do que a ineficiência decorrente da uniformização de preços.

Há situações, entretanto, em que o subsídio cruzado decorre de restrições institucionais. Um exemplo é a proibição de cobrança de preços diferenciados para compras à vista e com cartões de crédito (sobre esse tema, ver o artigo Deve-se proibir a diferenciação de preços entre compras à vista e com cartão de crédito?, neste site). Mas é na prestação de serviços de utilidade pública que ocorrem com maior frequência os subsídios cruzados.

Talvez a principal justificativa para o uso desses subsídios seja política. Em primeiro lugar, por não serem transparentes, são mais fáceis de serem cobrados. É mais provável que o usuário culpe a concessionária pelo alto preço da tarifa do que o governo, que está lhe tributando.

Em segundo lugar, porque a sociedade parece aceitar com certa facilidade a ideia de solidariedade entre grupos, ainda que artificialmente construídos e que não façam sentido econômico. Os consumidores passam a ser agregados em grupos como passageiros de ônibus, consumidores de energia, de água, etc, e tornam-se (compulsoriamente) solidários, com os mais abastados subsidiando os mais pobres.

Um exemplo está no transporte urbano, no qual os idosos têm direito a passagens gratuitas. Quem paga por isso? Normalmente são os demais usuários do transporte. Se não houvesse problemas de assimetria de informação, esse subsídio cruzado seria claramente indesejável do ponto de vista social.

Em primeiro lugar, porque a discrepância entre preço e custo (os passageiros pagantes pagam acima do custo, e os passageiros não pagantes ou com direito a desconto pagam abaixo do custo de produção), per si, gera ineficiências na alocação de recursos: os passageiros não subsidiados vão fazer menos viagens do que fariam se não precisassem subsidiar os mais velhos. Em segundo lugar, porque é injusto. Por que é o passageiro de ônibus (frequentemente, pertencente às classes menos favorecidas) quem deve pagar pelo transporte do idoso e não, digamos, quem anda de carro, quem vai ao cinema, quem faz compras no supermercado?

Não se trata aqui de discutir o mérito de os idosos poderem ou não viajar de graça. A questão é quem deve pagar por isso. Se a sociedade entende que a gratuidade (ou qualquer desconto) é justa, então deve ser o contribuinte, via pagamento de impostos – e não o usuário do ônibus – quem deve pagar pelo serviço.

Pode haver, entretanto, problemas de assimetria de informação que justifiquem o subsídio cruzado. A empresa de ônibus pode ter incentivos para inflar o número de idosos transportados e, com isso, arrecadar mais subsídios (pagos pelo orçamento público) do que teria direito. Se o custo de fiscalização for alto e/ou se o número de idosos usuários do sistema público de transporte for baixo (o que implica baixo impacto sobre os custos totais) pode ser socialmente preferível manter o sistema de subsídios cruzados.

Subsídios cruzados estão também presentes nas tarifas de energia e saneamento. Nos dois casos, as tarifas são definidas de forma a garantir a viabilidade financeira das respectivas concessionárias. Via de regra, as tarifas aumentam de acordo com a faixa de consumo e são calculadas de forma a viabilizar o provimento do serviço para as populações mais pobres e a expansão da rede. No caso da energia elétrica, a tarifa final embute ainda encargos destinados a financiar o fornecimento de energia para usuários que residem em algumas áreas da Região Norte[1].

É difícil encontrar justificativas econômicas para o subsídio aos consumidores dos estados nortistas por meio da tarifa de energia dos demais usuários. Assim como no exemplo da passagem de ônibus. Se a sociedade entende que deve haver o subsídio, é o contribuinte, via imposto, quem deve financiar o usuário de energia da Região Norte. Como se trata de uma transferência de recursos entre concessionárias, não se pode argumentar aqui que o subsídio cruzado pode ser justificado com base em redução de custos de informação, de transação ou para resolver problemas de assimetria de informações.

É igualmente difícil de justificar os usuários pagarem pela expansão da rede. Do ponto de vista distributivo, não faz sentido quem consome hoje subsidiar o consumidor de amanhã[2]. Para haver eficiência alocativa, é necessário que a tarifa reflita o custo de produção do serviço, que deve incluir o custo do financiamento para a infraestrutura já realizada. Se a tarifa passa a incluir também o financiamento para as concessionárias, seu valor passará a superar o custo de produção, fazendo com que o consumo de energia/saneamento fique abaixo do socialmente ótimo. Isso se torna ainda mais grave quando se considera que esses serviços trazem importantes benefícios à sociedade (externalidades positivas) (sobre as externalidades de água e saneamento, ver, neste site, o texto Por que é tão elevada a carga tributária sobre os serviços de saneamento básico?; e sobre o conceito de externalidades ver, também neste site, o texto Por que o governo deve intervir na economia?).

Por fim, é também discutível se a tarifa por Kwh consumido de quem consome mais deve ser maior do que a de quem consome menos. Se o objetivo é fazer justiça distributiva, não é esse o caminho mais adequado. Em primeiro lugar, porque a distribuição de renda quando feita pelo orçamento (ou seja, via impostos) não distorce o preço da energia/água em relação aos outros bens (uma vez que seriam igualmente tributados), reduzindo os impactos deletérios sobre a eficiência alocativa de recursos.

Em segundo lugar, porque não necessariamente está se fazendo justiça distributiva, pois a relação entre consumo de água/energia e riqueza não é direta. Famílias grandes tendem a consumir mais, mesmo não sendo mais ricas. Quem tem mais capital pode investir em um sistema de aquecimento solar, bem como trocar os aparelhos eletrodomésticos, reduzindo o seu consumo de energia. Pessoas que têm o hábito de comer fora e lavar a roupa em lavanderias também tendem a apresentar consumo mais baixo de água e energia. Casas de praia e de campo têm baixo consumo, pois são usadas apenas no final de semana. Enfim, o melhor indicador de riqueza de um indivíduo é sua renda e seu patrimônio, e não seu consumo de água e energia. A tributação da renda e do patrimônio é, dessa forma, um instrumento mais eficiente para se fazer justiça social do que a tributação sobre água e energia.

O subsídio cruzado nas contas de energia e água poderia ser justificado com base na redução de custos de transação. Esses custos, entretanto, devem ser relativamente baixos, pois não deve ser difícil para os órgãos reguladores (ou quem quer que venha a ser responsável pelo pagamento de subsídios) ter acesso ao consumo de cada domicílio, a partir do qual seria calculado o subsídio a que a concessionária teria direito.

Em síntese, mesmo reconhecendo que há justificativas para que serviços de utilidade pública sejam subsidiados, o financiamento desses subsídios deveria se feito através do orçamento público. A prática de se cobrar tarifas mais altas dos usuários que consomem mais, além de não garantir justiça social, pode reduzir o bem-estar da população devido à ineficiência gerada na alocação de recursos.

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[1] Sobre uma abrangente revisão dos encargos embutidos nas tarifas de energia elétirca, vide: Montalvão, Edmundo: “Impacto de tributos, encargos e subsídios setoriais sobre as contas de luz dos consumidores”, disponível em: http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD62-EdmundoMontalvao.pdf.

[2] Assim como nos casos anteriores, faz sentido, se a sociedade assim o entender, que o contribuinte hoje financie o contribuinte de amanhã.

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Quem ganha com a meia-entrada? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=811&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=quem-ganha-com-a-meia-entrada https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=811#comments Mon, 24 Oct 2011 18:26:01 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=811 I) A legislação da meia-entrada e equidade

Uma das regras mais conhecidas dos brasileiros é a meia-entrada em cinemas, shows, peças de teatro e outros eventos para estudantes[1] e, mais recentemente, idosos[2].

No segundo semestre de 2011, no entanto, a racionalidade da regra da meia-entrada tem sido debatida em função do questionamento da FIFA à sua aplicação nos jogos da copa do mundo, por comprometer suas receitas, e do estatuto da juventude[3] que garantiu o “direito” à meia-entrada a todo o jovem estudante com idade inferior a 30 anos.

Sempre houve dúvida se fazia sentido prover um desconto de 50% na entrada para estudantes e idosos, que se justificaria por uma alegada situação de “fragilidade” gerada pela “pouca” ou “muita” idade do indivíduo.

No caso de idosos, há uma desconfiança mais significativa sobre a “justiça” embutida na regra, dado que há uma relação positiva entre renda e idade como mostrado por Giambiagi e Castelar (2006)[4]. Se o Estado está privilegiando um segmento com renda média maior que a da população, o mecanismo implica uma piora na distribuição de renda da sociedade, o oposto do que teoricamente se busca com a medida.

No caso de estudantes, são conhecidas as variadas formas de se conseguir uma “carteirinha” por qualquer curso que se faça ou mesmo por simples fraude. Ademais, é sabido que grupos de maior renda ficam mais tempo na escola e universidade. Assim, é pouco claro em que medida a regra de meia-entrada para “estudantes” apresente a alegada direção de política social que lhe é atribuída.

De qualquer forma, as imagens de estudantes no início da vida e, portanto, com baixa ou nenhuma renda própria e de idosos com rarefeitas oportunidades de diversão tendem a ser fortes o suficiente para fazerem com que haja  aceitação da sociedade em relação ao tratamento diferenciado da meia-entrada.

Já em relação a todo o universo de adultos, estudantes ou não, até os 30 anos, mesmo com a maior das boas vontades, ficou patente que a medida protetiva foi longe demais.

II) Meia-entrada voluntária e discriminação de Preços

Mesmo que o governo não imponha a regra de meia-entrada, é plausível que os próprios ofertantes do serviço desejem utilizar alguma regra de discriminação de preços[5] que se baseie em proxies da disposição a pagar dos indivíduos. Quanto mais a variável observada identificar maior disposição a pagar, maiores os preços cobrados. Quanto melhor a calibragem desta discriminação, mais o empresário consegue lucrar sobre a mesma base de clientes.

Há três dificuldades básicas, entretanto, para que o empresário seja capaz de implementar esta discriminação. Primeiro, ele tem que ter algum poder de mercado ou se coordenar com outros empresários para implementar a mesma regra de discriminação. Isso porque se um empresário cobrar mais de um determinado grupo e outro não, naturalmente o segundo atrairá clientela do primeiro e frustrará a tentativa de discriminar preços.

Segundo, ele tem que ser capaz de evitar arbitragem, ou seja, um consumidor com preço mais baixo não pode adquirir o ingresso e repassar para um consumidor que teria que pagar um preço mais alto. Isso é usualmente conseguido estabelecendo (custosos) controles na entrada do espetáculo, requerendo a carteirinha com foto ou alguma prova de que aquele é realmente o consumidor que faz jus a um preço mais baixo.

Terceiro, o empresário deve ter algum mecanismo de identificação das características do indivíduo que indiquem o quanto ele está disposto a pagar. Menores de idade, por exemplo, tendem realmente a estar menos dispostos a pagar simplesmente por não terem renda e/ou depender dos adultos. O controle do empresário que deseja extrair o máximo de seus clientes pode ser eventualmente refinado cobrando menos só dos menores estudantes de escolas públicas, considerando que, para os menores estudantes de escola privada, os pais adultos tendem a ser mais generosos em prover a diversão de seus filhos, incrementando a disposição a pagar.

De qualquer forma, a capacidade de observar características que estejam associadas à disposição a pagar dos indivíduos tende a ser limitada, diminuindo o espaço para uma estratégia de discriminação de preços na entrada de espetáculos bem sucedida.

A ideia desta nota é realizar alguns exercícios de bem-estar da regra de meia-entrada com base em possíveis configurações das variáveis de disposição a pagar de grupos, A e B, e do número  de pessoas existentes em cada grupo.

III) Consequências econômicas da meia-entrada: análise de quatro casos

Há várias formas possíveis de simular o comportamento dos agentes. Uma das possibilidades mais rigorosas formalmente seria assumir grupos com preferências distintas entre si, gerando curvas de demanda também específicas para cada grupo. Dai se derivaria o processo de maximização de lucros do monopolista discriminador.

Uma forma de tornar tal exercício muito mais simples e intuitivo é assumir que cada indivíduo adquire apenas uma unidade e que todo o indivíduo de um de dois grupos possíveis possui tão somente um único “valor de reserva”  (em cada grupo). O “valor de reserva” é o preço máximo que cada grupo se dispõe a pagar[6]. Ademais, repetindo o exercício para algumas poucas configurações diferentes, já conseguimos identificar os principais resultados e variáveis envolvidas no que seria o caso mais geral.

Assim, suponha que A e B sejam dois grupos. O governo definirá uma regra de meia-entrada em favor do grupo B. O empresário observa precisamente quem pertence a A e quem pertence a B. Também tem informação completa sobre a máxima disposição a pagar e o número de pessoas em cada grupo, não enfrenta concorrência e é capaz de evitar arbitragem entre os grupos. Em síntese, assumimos que as dificuldades de implementação da discriminação apontadas na seção anterior não se verificam. Os custos da discriminação de preços são zero.

Vejamos o primeiro caso em que haja uma divisão populacional de 50%/50% entre os dois grupos em uma população hipotética de 100 indivíduos. Sejam os seguintes dados:

Caso 1 – Grupos Balanceados e Máximas Disposições a Pagar Não Muito Diferentes

Grupos Máxima disposição a pagar Número de pessoas no Grupo
A 10 50
B 7 50

Primeiro, cabe avaliar qual a melhor estratégia do empresário sem regulação. Ele simplesmente fixaria os preços conforme a máxima disposição a pagar de cada grupo, ou seja o preço para os de A pa =10 e o preço pb=7 para os de B. Sua receita (e, portanto, lucro, tendo em vista a hipótese de não haver custos) será

Receita sem regulação caso 1 = 10*50 + 7*50= 500 + 350 = 850

Agora suponha que o Estado imponha a regra de meia-entrada, ou seja, a entrada de um grupo (B) deve ser a metade da entrada do outro (A). Não há regulação absoluta de preço, apenas da relação entre eles (um deve ser a metade do outro). O empresário irá comparar duas estratégias de mercado, tendo como dada a restrição da meia-entrada. A primeira incorporando todos os consumidores A e B e a segunda excluindo ou os consumidores A ou os consumidores B.

Para não excluir os consumidores A no caso 1, o empresário fará pa= 10. Dada a regra de meia-entrada, pb=5 e, portanto, quando decide não excluir A, ele também não exclui B que, com disposição a pagar $ 7, aceitará pagar $ 5. A receita será, portanto:

Receita com regulação de meia-entrada sem exclusão de A caso 1 = 10*50 + 5*50 = 500 + 250 = 750

Se adotada a estratégia de não exclusão de qualquer grupo no caso 1, a regra de meia-entrada transfere ($ 850 – $ 750 = $ 100) de renda dos exibidores de espetáculos para o grupo B, que é aparentemente o que se pretende com a política.

Agora suponha que o empresário exclui A de forma a conseguir extrair o máximo possível de B. Assim, o preço da meia será pb= 7 e, por conseguinte, a da inteira se torna pa=14. Nesse caso, o preço de A ($14) excede o máximo que os consumidores A estão dispostos a pagar ($7) e, portanto, não há receitas de A. Em compensação aumentam as receitas de B.

A diferença é que na hipótese de não exclusão parte-se de pa=10, que é o preço que não alija o grupo A do mercado e chega-se à meia-entrada pb=5, enquanto que na hipótese de exclusão, parte-se do máximo que B está disposto a pagar de meia-entrada Pb=7 e chega-se ao valor da inteira Pa=14, invertendo a lógica de precificação. Visto de outra forma, na primeira hipótese é o preço da inteira que define o preço da meia-entrada (o que é a hipótese implícita na regulação de meia-entrada), enquanto que na segunda hipótese é o preço da meia-entrada que define o preço da inteira.

Teríamos a seguinte receita com regulação de meia-entrada e exclusão de A no caso 1:

Receita com regulação de meia-entrada com exclusão de A caso 1 = 7*50 = $350

Nesse caso 1, a opção do empresário por não excluir A é superior dado que a receita sem exclusão (750) supera a com exclusão (350) de A. O grupo A é um segmento suficientemente valioso para induzir o empresário a não optar por sua exclusão, ainda que pudesse cobrar $2 a mais no ingresso de B.

O governo consegue baratear a entrada para B sem qualquer custo em termos de exclusão do grupo A no caso 1. Note-se, de qualquer forma, que este barateamento não é de $5, a diferença do preço da inteira para a meia, mas de $ 2, a diferença do que os consumidores de B pagariam com discriminação perfeita ($ 7) com a regulação da meia-entrada neste caso ($5). Isso decorre do suposto de que o empresário observa a disposição a pagar de cada grupo e quem está em cada grupo. Assim, ainda que não houvesse regulação de meia-entrada, o empresário discriminaria voluntariamente preços e cobraria $ 3 a menos do grupo B, exatamente na medida de sua disposição a pagar em $ 7[7].

Como o empresário neste caso sempre opta por não excluir qualquer grupo do mercado, o custo da política de meia-entrada incide tão somente sobre os exibidores de espetáculos, transferindo um total de $ 850 – $ 750= $ 100 para o grupo B em função do desconto de $2, que é a diferença entre a situação de livre discriminação de preços ($ 7) e a de regulação de meia-entrada ($ 5).

De qualquer forma, como o que o grupo B ganha é exatamente o que os exibidores perdem ($ 100), não há uma perda líquida gerada pela política de meia-entrada, mas tão somente transferência de renda.

Uma hipótese importante do caso 1 é o número de indivíduos ser igualmente repartido entre os dois grupos, 50% para A e 50% para B. Vejamos o efeito de alterar esta proporção para 15% para A e 85% para B, fazendo crescer o grupo beneficiado pela política. A inclusão dos idosos na regra de meia-entrada pode constituir um exemplo de causa para este movimento ao que chamaremos de caso 2.

Caso 2 – Grupos Não Balanceados e Máximas Disposições a Pagar Não Muito Diferentes

Grupos Máxima disposição a pagar Número de pessoas no Grupo
A 10 15
B 7 85

Mais uma vez, cabe iniciar pelo cálculo da receita que seria obtida se o empresário pudesse discriminar livremente seus preços.

Receita sem regulação caso 2 = 10*15 + 7*85= 150 + 595 = 745

A receita do empresário sem exclusão de qualquer dos grupos agora será dada fazendo o preço da inteira pa=10, de forma a garantir a inclusão de A com o máximo de extração do excedente do consumidor, e, portanto, pb=5:

Receita com regulação de meia-entrada sem exclusão de A caso 2 = 10*15 + 5*85 = $ 150 + $425 = $ 575

Agora vejamos o que acontece se o empresário exclui A, cobrando B pelo máximo que estão dispostos a pagar pb=7 na meia-entrada e pa=14 na inteira:

Receita com regulação de meia-entrada com exclusão de A, caso 2 =  7*85 = $ 595

Ou seja, a receita com exclusão de A ($ 595) é superior à sem exclusão ($ 575), após um incremento suficientemente grande no número relativo de beneficiários da meia-entrada. Esta diferença induzirá o exibidor a precificar de forma a excluir o grupo A, ainda que este seja o grupo com maior disposição a pagar. Isto ocorre porque a perda de receitas pela diferença de $ 2 entre o cenário em que o empresário pode discriminar livremente ($7) e aquele em que ele deve cobrar metade do ingresso do grupo A (em que houve redução no número de pessoas, de 50 para 15), quando este último não é excluído ($5) passa a multiplicar agora um contingente relativamente grande de pessoas (85 em lugar de 50). Este incremento da relevância numérica de B é o que explica a inversão da lógica. Agora, é  o preço da meia-entrada que define o preço da inteira, e não o oposto, como é usualmente esperado pelos formuladores da política.

Nesta nova situação, o custo da política de meia-entrada não incide apenas sobre os exibidores de espetáculos, cuja receita cai de $ 745 para $ 595, em $ 150, mas também sobre o grupo A, cujo preço sobe acima ($ 14) daquilo que eles estão dispostos a pagar ($ 10) e, portanto, ficam, neste novo equilíbrio, excluídos do mercado.

Um ponto importante aqui é que, diferentemente do caso 1, o que o grupo B ganha é inferior ao que os exibidores perdem, tendo em vista a exclusão do grupo A, caracterizando uma perda de eficiência líquida no mercado. Os exibidores perdem $ 745 – $ 595 = $ 150 e o grupo B não ganha nada pela política de meia-entrada já que o preço cobrado de $ 7 é precisamente igual ao máximo que B está disposto a pagar, estando, portanto, calibrado para extrair todo o excedente de B. Ou seja, o preço de B neste novo equilíbrio é o que seria caso houvesse plena liberdade para discriminar.

Os exibidores desejariam ofertar e os consumidores A desejariam demandar a este preço $10, mas o equilíbrio gerado pela regulação de meia-entrada induz os primeiros a desconsiderarem os segundos.

Outro caso interessante acontece quando, ainda que as quantidades relativas dos dois grupos sejam balanceadas (50%/50% como no primeiro caso), a distância das disposições a pagar daqueles é suficientemente elevada para que a política de meia-entrada gere uma tendência de excluir o grupo B. Assim, suponha os seguintes dados:

Caso 3 – Grupos Balanceados e Máximas Disposições a Pagar Muito Diferentes

Grupos Máxima disposição a pagar Número de pessoas no Grupo
A 10 50
B 3 50

O resultado da receita com liberdade de precificação será o exibidor precificar com Pa=10 e Pb=3. Ou seja, o exibidor gostaria de ir além da meia-entrada e cobrar um preço ainda menor (Pb=3).

Receita sem regulação, caso 3 = 10*50 + 3*50= 500 + 150 = 650

Se o exibidor não fosse excluir nenhum grupo, ele teria que cobrar a meia-entrada pb=3 de B e, por conseguinte, a inteira pa=6 de A. Sua receita ficaria:

Receita com regulação de meia-entrada sem exclusão de B caso 3 = 6*50 + 3*50 = $ 300 + $150 = $ 450

Se o exibidor cobrar pa=10 de A, ele exclui o grupo B, pois a meia-entrada pb=5 é superior ao máximo que este grupo está disposto a pagar $ 3. Sua receita será:

Receita com regulação de meia-entrada com exclusão de B caso 3 = 10*50 = $ 500

Ou seja, a receita com exclusão de B ($ 500) é superior à sem exclusão ($ 450), sendo, portanto, a preferida do exibidor. A política de meia-entrada, neste caso 3, exclui justamente o grupo alvo B. O preço da inteira é calibrado para atender tão somente o mercado de elite A, deixando de lado o mercado B. A perda do exibidor por ingresso vendido ao grupo A, para viabilizar o atendimento do grupo B, é $ 10 – $ 6 = $ 4. A depender do número de indivíduos no grupo A, a perda total de receita pode ser muito relevante.

Note-se que o exibidor tem uma perda de $ 650 – $ 500 = $ 150 em função da política de meia-entrada, sem haver ganho por parte de qualquer grupo de consumidores, representando, portanto, mais uma vez perda líquida da economia. Para não excluir B, o exibidor perderia ainda mais $ 50 (a diferença entre $ 500 e $ 450), incrementando a ineficiência da economia para $ 200.

Se o desconto da meia-entrada representar um teto de preço e não “o preço” para o grupo B, esta ineficiência pode ser evitada. Isso porque o exibidor pode simplesmente replicar o resultado da receita sem regulação ($ 650), fazendo um valor da inteira igual à máxima disposição a pagar de A, pa=10, mas um valor da “meia” inferior à metade das inteira, pb=3. Resta saber se os consumidores interpretarão isto como uma vantagem a mais para os consumidores meia-entrada B ou, interpretação igualmente válida, uma desvantagem mais que proporcional à regulação usual da meia-entrada por um preço da inteira superior ao dobro da meia-entrada. Se a percepção do exibidor for de que a segunda interpretação menos benigna será aquela mais considerada e se isso se reverter em pressão política para baixar o preço da inteira, então volta-se ao equilíbrio com ineficiência e perda líquida.

Este resultado negativo gerado pela elevada diferença de disposição a gastar dos dois grupos ($ 10 -$ 3=$ 7) também poderia não acontecer se houvesse um número relativamente maior de indivíduos em B comparado a A. Assim, por exemplo, suponha que B represente 85% da população contra 15% de A. Teremos agora o caso 4:

Caso 4 – Grupos Não Balanceados e Máximas Disposições a Pagar Muito Diferentes

Grupos Máxima disposição a pagar Número de pessoas no Grupo
A 10 15
B 3 85

Com livre precificação, a receita do exibidor seria:

Receita sem regulação caso 4 = 10*15 + 3*85= 150 + 255 = 405

Sem exclusão do grupo B, o preço da meia-entrada deveria ser no máximo Pb=3 e, portanto, a inteira alcançaria Pa=6.

Receita com regulação de meia-entrada sem exclusão de B caso 4 = 6*15 + 3*85 = $ 90 + $ 255 = $ 345.

Se o exibidor decidir excluir B, sua receita passará a ser:

Receita com regulação de meia-entrada com exclusão de B caso 4 =10*15 =  $ 150.

A exclusão deixa de ser um bom negócio com as novas proporções pois o exibidor perderia $ 345 – $ 150 = $ 195 se apenas focasse o mercado de elite.

Note-se que, sem a exclusão do grupo B, não há mais ineficiência da economia. O exibidor perde $ 405 – $ 345 = $ 60 e o grupo A ganha a diferença entre o que pagaria com livre discriminação ($10) e com a política de meia-entrada ($ 6), igual a $4, o que multiplicado por 15 indivíduos de A resulta em um ganho total para A também de $ 60. Ou seja, o exibidor perde exatamente o que o grupo A ganha, não havendo perdas líquidas na economia.

O ponto curioso aqui é que quem ganha realmente com a política de meia-entrada não é o grupo alvo (B), mas sim o outro grupo (A) com maior disposição a pagar.

Ou seja, a alegada “fragilidade” do grupo beneficiário B não poderia ser utilizada como justificativa, nesse caso 4, para implementar a política de meia-entrada. O bem-estar do grupo B simplesmente não se altera com a política. Constitui uma transferência dos empresários exibidores para o grupo considerado não frágil (A).

IV) Conclusões

O objetivo deste texto foi demonstrar a possibilidade de alguns resultados não esperados da política de meia-entrada adotada no Brasil.

Tal como identificado na literatura convencional de discriminação de preços, limitações nesta prática, como no caso da política de meia-entrada, podem levar à exclusão seja do grupo pretensamente beneficiário (caso 3), seja do grupo não beneficiário (caso 2) da política. Outra possibilidade que afronta os objetivos precípuos da política é que o resultado final implique uma transferência de renda dos empresários exibidores não para o público alvo da política (B), mas sim para o outro público (A).

O caso em que a política leva ao resultado esperado (caso 1) é aquele em que as disposições a pagar não são tão distintas entre os grupos e os beneficiários representam um percentual da população próxima a dos não beneficiários. Nesse caso específico, o público alvo não constitui uma exceção, que é usualmente uma premissa implícita deste tipo de política voltada às “minorias”. Na verdade, como todo subsídio, o conjunto de beneficiários tende a crescer e a pretensa “minoria” se torna a própria “maioria”.

No limite deste processo de conversão da minoria em maioria, pode-se chegar ao caso 2 em que o grupo não beneficiário é tão prejudicado, que se torna mesmo excluído do mercado. Nesse mesmo limite, curiosamente, o grupo beneficiário, na realidade, não ganha benefício algum. Como ele é muito grande, o empresário passa a precificar com o objetivo de extrair o máximo de excedente do consumidor deste grupo majoritário. Isso eleva tanto o preço dos beneficiários (a “meia”) que torna a inteira proibitivamente cara.

É possível que os constantes incrementos do número de beneficiários da legislação estejam empurrando a situação do Brasil para o caso 2. A política de meia-entrada deixa de ser uma discriminação positiva em relação aos beneficiários e passa a ser uma discriminação negativa em relação a todo o resto da sociedade, não obrigatoriamente os mais ricos.

Certamente que há uma série de ponderações a este raciocínio. No caso de cinemas, a competição de locadoras de vídeos, a venda de vídeos piratas e não piratas e, mais recentemente, streaming de vídeos na internet limitam naturalmente a capacidade de tais exibidores discriminarem preços. Para outros tipos de espetáculos o grau de diferenciação do produto pode conferir um razoável poder de mercado que se reflete em incremento da capacidade de implementar estratégias de discriminação de preços.

O ponto principal, de qualquer forma, é que o potencial de distorções gerado pela política de meia-entrada indica que sua eliminação pode gerar ganhos de bem estar na sociedade brasileira.


[1] A Medida Provisória 2.208, de 17 de agosto de 2001 é a lei federal que dispõe sobre a meia-entrada para estudantes. Esta regulação, no entanto, não obriga a meia-entrada, mencionando tão somente “eventuais descontos”, o que deixa claro que a definição do percentual é atribuição do empresário. Há, entretanto, leis estaduais que definem o desconto de 50% para estudantes, como a Lei nº 2519, de 17 de janeiro de 1996..

[2] A LEI No 10.741, DE 1º DE OUTUBRO DE 2003, que garante o desconto mínimo de 50% para os idosos. Como veremos abaixo, é possível que o resultado de mercado seja um desconto superior a 50% para algum grupo com menor disposição a pagar. Não obrigatoriamente (ou mesmo provavelmente não) o grupo com menor disposição a pagar e que pode ser identificado é o de idosos.

[3] O Projeto de Lei 4529/2004 (Estatuto da Juventude) em seu art. 25 garante a meia-entrada a jovens estudantes. Comparando-o com a Medida Provisória 2.208/2001 (nota de rodapé 2), a diferença real é que agora (a depender do veto da presidente) há uma lei federal que obriga a meia-entrada para estudantes jovens (até 29 anos). Como visto, no caso específico do Rio de Janeiro, há estados em que já há esta obrigação (eventualmente todos) de meia-entrada para estudantes, mas sem qualquer restrição de idade. Considerando, portanto, as legislações de âmbito federal e estadual, ainda cabe avaliar em que medida houve realmente ampliação do benefício no estatuto da juventude.

[4] Ver Giambiagi, Fabio; Castelar, Armando: “A Nova Reforma Previdenciária”. Pgs 139 a 140 em “Rompendo o Marasmo: A Retomada do Desenvolvimento no Brasil”. Os autores reproduzem dados de Ricardo Paes e Barros mostrando que a renda familiar per capita cresce e o grau de pobreza cai com a idade no Brasil.

[5] No caso, discriminação de preços de terceiro grau, pois a regra de meia-entrada identifica expressamente quais tipos de agentes farão jus a um determinado desconto. O principal artigo teórico sobre discriminação de preços é Varian,H.: “Price Discrimination”. In “The Handbook of Industrial Organization”. Eds. Schmalensee,R. and Willig,R.1989. A análise desta seção se baseia primordialmente nesta referência.

[6] Essa simplificação oferece a intuição básica sobre os principais problemas de regras que constranjam estratégias de discriminação de preços: a potencial exclusão de um ou outro grupo do mercado. E esta potencial exclusão é o que embasa a ideia mais geral da teoria da discriminação de preços que, em geral, constitui conduta que tende a incrementar e não reduzir o bem-estar social. Tal constatação sugere que o Estado, em geral, deve evitar restringir ou limitar práticas de discriminação de preços, sendo a meia-entrada uma das muitas políticas que potencialmente constrangem a conduta. Spulber,D (“Regulation and Markets”. The MIT Press. 1989), por exemplo, critica duramente o Robinson-Patman Act dos EUA que visa a restringir a prática de discriminação de preços na ação da autoridade antitruste americana: “Os efeitos competitivos e de bem-estar (da conduta de discriminação de preços) geralmente não justificam preocupações no antitruste. Restrições da autoridade antitruste na conduta de discriminação de preços são frequentemente uma forma desnecessária de regulação de preços que pode reduzir o bem-estar dos consumidores, excluindo-os do mercado junto a algumas firmas.”

[7] Outro exercício interessante também é contrastar estes resultados com o resultado de preço único. Este pode se derivar de: i) uma regulação proibindo discriminar preços; ii) incapacidade de o empresário discernir quem é quem ou observar os tipos; iii) incapacidade de o empresário evitar operações de arbitragem e estas serem relevantes, ou seja, os consumidores de menor preço sistematicamente adquirirem ingressos e venderem para os de maior preço; iv) o empresário desconhecer que há disposições a pagar distintas.

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