diferenciação de preços – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Wed, 08 Feb 2012 13:39:45 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 Quem deve pagar a conta dos subsídios nos serviços de utilidade pública? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1028&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=quem-deve-pagar-a-conta-dos-subsidios-nos-servicos-de-utilidade-publica https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1028#comments Tue, 07 Feb 2012 13:18:22 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1028 Muito mais corriqueiramente do que se imagina, alguns consumidores ajudam a pagar a conta de outros. São os chamados subsídios cruzados. Muitas vezes esses subsídios são difíceis de serem percebidos. Por exemplo, quem pede para embalar um presente está sendo subsidiado por quem não solicita esse serviço (afinal, o custo do papel e da mão-de-obra que irá embalar está embutido no preço final do bem); quem come pouco ajuda a pagar a conta de quem come muito em um rodízio; um paciente que demanda menos tempo do médico subsidia o que demora mais; quem parcela o pagamento de passagens aéreas sem pagar juros está sendo financiado por aqueles que pagam à vista.

Em todos os exemplos acima, o subsídio cruzado surge como uma solução de mercado, pois diferenciar o preço traria custos além dos benefícios. Pode também ser uma estratégia de marketing: cobrar por certos serviços pode parecer antipático aos olhos do consumidor. Apesar disso, ao longo dos últimos anos, vimos que a sociedade tem cada vez mais aceitado pagar valores diferentes, de acordo com os serviços adquiridos. Dessa forma, é cada vez mais comum shopping centers cobrarem pelo estacionamento, companhias aéreas cobrarem pelo despacho de malas ou pela comida servida a bordo, e lojas cobrarem para embalar produtos.

O que explica o fato de, em alguns casos, as empresas preferirem manter os subsídios cruzados e em outros casos optarem por diferenciar os preços conforme o serviço ou bem consumido é o custo que se incorre para fazer a diferenciação dos preços. Manter alguém vigiando a entrada de um banheiro restrito a pagantes pode ser mais caro do que liberar o acesso; cobrar um preço diferente para cada tipo de alimento em um restaurante a quilo é praticamente inviável; pode ser mais barato contratar um empacotador do que perder tempo com o próprio cliente empacotando as compras em um supermercado.

Preços uniformes também reduzem o custo de informação. A decisão de um consumidor fica mais fácil se ele sabe, de antemão, o preço dos ingressos nos cinemas X e Y, sem se preocupar com a duração ou com o custo de produção do filme. A informação de uma vitrine é mais clara se o preço de um modelo não depender do tamanho da roupa.

Por fim (e lembrando que essas explicações não formam uma lista exaustiva), pode haver assimetrias de informação e conflitos de interesse que tornam a diferenciação de preços ineficiente. Por exemplo, se o preço de um bem depender do tempo de negociação ou da duração do serviço (o tempo gasto em uma consulta médica ou em um corte de cabelo), pode ser gerado um incentivo perverso de as transações se estenderem além do tempo necessário. Um caso clássico é o do jornal Pravda, editado na antiga União Soviética, no qual os jornalistas eram remunerados pelo tamanho das reportagens escritas, o que resultava em textos enormes.

Em princípio, quando o preço pago é diferente do custo de produção, gera-se uma ineficiência na economia, com perda de bem-estar. Nos casos acima, entretanto, o subsídio cruzado pode aumentar a satisfação da sociedade se a cobrança de preços diferenciados gerar custos maiores do que a ineficiência decorrente da uniformização de preços.

Há situações, entretanto, em que o subsídio cruzado decorre de restrições institucionais. Um exemplo é a proibição de cobrança de preços diferenciados para compras à vista e com cartões de crédito (sobre esse tema, ver o artigo Deve-se proibir a diferenciação de preços entre compras à vista e com cartão de crédito?, neste site). Mas é na prestação de serviços de utilidade pública que ocorrem com maior frequência os subsídios cruzados.

Talvez a principal justificativa para o uso desses subsídios seja política. Em primeiro lugar, por não serem transparentes, são mais fáceis de serem cobrados. É mais provável que o usuário culpe a concessionária pelo alto preço da tarifa do que o governo, que está lhe tributando.

Em segundo lugar, porque a sociedade parece aceitar com certa facilidade a ideia de solidariedade entre grupos, ainda que artificialmente construídos e que não façam sentido econômico. Os consumidores passam a ser agregados em grupos como passageiros de ônibus, consumidores de energia, de água, etc, e tornam-se (compulsoriamente) solidários, com os mais abastados subsidiando os mais pobres.

Um exemplo está no transporte urbano, no qual os idosos têm direito a passagens gratuitas. Quem paga por isso? Normalmente são os demais usuários do transporte. Se não houvesse problemas de assimetria de informação, esse subsídio cruzado seria claramente indesejável do ponto de vista social.

Em primeiro lugar, porque a discrepância entre preço e custo (os passageiros pagantes pagam acima do custo, e os passageiros não pagantes ou com direito a desconto pagam abaixo do custo de produção), per si, gera ineficiências na alocação de recursos: os passageiros não subsidiados vão fazer menos viagens do que fariam se não precisassem subsidiar os mais velhos. Em segundo lugar, porque é injusto. Por que é o passageiro de ônibus (frequentemente, pertencente às classes menos favorecidas) quem deve pagar pelo transporte do idoso e não, digamos, quem anda de carro, quem vai ao cinema, quem faz compras no supermercado?

Não se trata aqui de discutir o mérito de os idosos poderem ou não viajar de graça. A questão é quem deve pagar por isso. Se a sociedade entende que a gratuidade (ou qualquer desconto) é justa, então deve ser o contribuinte, via pagamento de impostos – e não o usuário do ônibus – quem deve pagar pelo serviço.

Pode haver, entretanto, problemas de assimetria de informação que justifiquem o subsídio cruzado. A empresa de ônibus pode ter incentivos para inflar o número de idosos transportados e, com isso, arrecadar mais subsídios (pagos pelo orçamento público) do que teria direito. Se o custo de fiscalização for alto e/ou se o número de idosos usuários do sistema público de transporte for baixo (o que implica baixo impacto sobre os custos totais) pode ser socialmente preferível manter o sistema de subsídios cruzados.

Subsídios cruzados estão também presentes nas tarifas de energia e saneamento. Nos dois casos, as tarifas são definidas de forma a garantir a viabilidade financeira das respectivas concessionárias. Via de regra, as tarifas aumentam de acordo com a faixa de consumo e são calculadas de forma a viabilizar o provimento do serviço para as populações mais pobres e a expansão da rede. No caso da energia elétrica, a tarifa final embute ainda encargos destinados a financiar o fornecimento de energia para usuários que residem em algumas áreas da Região Norte[1].

É difícil encontrar justificativas econômicas para o subsídio aos consumidores dos estados nortistas por meio da tarifa de energia dos demais usuários. Assim como no exemplo da passagem de ônibus. Se a sociedade entende que deve haver o subsídio, é o contribuinte, via imposto, quem deve financiar o usuário de energia da Região Norte. Como se trata de uma transferência de recursos entre concessionárias, não se pode argumentar aqui que o subsídio cruzado pode ser justificado com base em redução de custos de informação, de transação ou para resolver problemas de assimetria de informações.

É igualmente difícil de justificar os usuários pagarem pela expansão da rede. Do ponto de vista distributivo, não faz sentido quem consome hoje subsidiar o consumidor de amanhã[2]. Para haver eficiência alocativa, é necessário que a tarifa reflita o custo de produção do serviço, que deve incluir o custo do financiamento para a infraestrutura já realizada. Se a tarifa passa a incluir também o financiamento para as concessionárias, seu valor passará a superar o custo de produção, fazendo com que o consumo de energia/saneamento fique abaixo do socialmente ótimo. Isso se torna ainda mais grave quando se considera que esses serviços trazem importantes benefícios à sociedade (externalidades positivas) (sobre as externalidades de água e saneamento, ver, neste site, o texto Por que é tão elevada a carga tributária sobre os serviços de saneamento básico?; e sobre o conceito de externalidades ver, também neste site, o texto Por que o governo deve intervir na economia?).

Por fim, é também discutível se a tarifa por Kwh consumido de quem consome mais deve ser maior do que a de quem consome menos. Se o objetivo é fazer justiça distributiva, não é esse o caminho mais adequado. Em primeiro lugar, porque a distribuição de renda quando feita pelo orçamento (ou seja, via impostos) não distorce o preço da energia/água em relação aos outros bens (uma vez que seriam igualmente tributados), reduzindo os impactos deletérios sobre a eficiência alocativa de recursos.

Em segundo lugar, porque não necessariamente está se fazendo justiça distributiva, pois a relação entre consumo de água/energia e riqueza não é direta. Famílias grandes tendem a consumir mais, mesmo não sendo mais ricas. Quem tem mais capital pode investir em um sistema de aquecimento solar, bem como trocar os aparelhos eletrodomésticos, reduzindo o seu consumo de energia. Pessoas que têm o hábito de comer fora e lavar a roupa em lavanderias também tendem a apresentar consumo mais baixo de água e energia. Casas de praia e de campo têm baixo consumo, pois são usadas apenas no final de semana. Enfim, o melhor indicador de riqueza de um indivíduo é sua renda e seu patrimônio, e não seu consumo de água e energia. A tributação da renda e do patrimônio é, dessa forma, um instrumento mais eficiente para se fazer justiça social do que a tributação sobre água e energia.

O subsídio cruzado nas contas de energia e água poderia ser justificado com base na redução de custos de transação. Esses custos, entretanto, devem ser relativamente baixos, pois não deve ser difícil para os órgãos reguladores (ou quem quer que venha a ser responsável pelo pagamento de subsídios) ter acesso ao consumo de cada domicílio, a partir do qual seria calculado o subsídio a que a concessionária teria direito.

Em síntese, mesmo reconhecendo que há justificativas para que serviços de utilidade pública sejam subsidiados, o financiamento desses subsídios deveria se feito através do orçamento público. A prática de se cobrar tarifas mais altas dos usuários que consomem mais, além de não garantir justiça social, pode reduzir o bem-estar da população devido à ineficiência gerada na alocação de recursos.

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[1] Sobre uma abrangente revisão dos encargos embutidos nas tarifas de energia elétirca, vide: Montalvão, Edmundo: “Impacto de tributos, encargos e subsídios setoriais sobre as contas de luz dos consumidores”, disponível em: http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD62-EdmundoMontalvao.pdf.

[2] Assim como nos casos anteriores, faz sentido, se a sociedade assim o entender, que o contribuinte hoje financie o contribuinte de amanhã.

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Deve-se proibir a diferenciação de preços entre compras à vista e com cartão de crédito? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=611&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=deve-se-proibir-a-diferenciacao-de-precos-entre-compras-a-vista-e-com-cartao-de-credito https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=611#comments Wed, 15 Jun 2011 12:35:16 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=611 De tempos em tempos a sociedade debate se deve ser permitida a diferenciação de preços entre compras à vista e com cartão de crédito. Sabemos que, na prática, pequenos estabelecimentos concedem descontos para pagamentos em dinheiro ou cheque, mas, formalmente, tais descontos são irregulares.

Os contratos entre as empresas de cartão de crédito e o lojista proíbem diferenciação de preços. Adicionalmente, a Nota nº 103 CGAJ/DNPC/2004, do Departamento Nacional do Ministério da Justiça, esclarece que a diferenciação de preços é considerada abusiva, nos termos do art. 39 do Código de Defesa do Consumidor, por exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva e por significar recusa de venda a quem se disponha a adquirir bens mediante pronto pagamento.

Dois argumentos favoráveis à diferenciação de preços são mais diretos e independem do conhecimento da indústria de cartões. O primeiro é que proibir preços diferenciados fere a liberdade de mercado. Para o lojista, o custo para venda com cartões é diferente do custo para venda à vista ou com cheques. Isso porque, para cada venda com cartão, o lojista é obrigado a pagar uma tarifa, denominada taxa de desconto, que pode ultrapassar 5% do valor da compra, no caso de estabelecimentos pequenos. Além da taxa de desconto, ao vender com cartão, o lojista tem de aguardar trinta dias para receber o valor da venda. Diante das altas taxas de juros no Brasil, essa espera representa um custo adicional não desprezível.

É verdade que outros meios de pagamento também impõem custos ao comerciante: o cheque pode ser devolvido por insuficiência de fundos, e o dinheiro em espécie pode ser roubado. Ainda assim, exceto em situações extremas (como postos de gasolina em regiões onde há muitos assaltos), o mais comum é o lojista arcar com custos mais elevados quando vende com cartão.

Se os custos são diferentes, não há porque obrigar que se cobre o mesmo preço. Do ponto de vista econômico, um bem vendido à vista se diferencia do mesmo bem vendido com cartão, assim como um bem vendido em uma loja de grife é diferente do mesmo bem vendido em uma loja simples.

O segundo argumento favorável à diferenciação de preços é o subsídio cruzado existente quando o preço é único. Como dissemos, o pagamento com cartão embute um custo para o lojista, e esse custo necessariamente é repassado para os consumidores (se não houver o repasse, no longo prazo, a loja terá prejuízo e irá à falência). Se o preço tem de ser o mesmo, o custo será igualmente dividido entre aqueles que pagam com cartão e aqueles que utilizam outros meios de pagamento. A questão que se coloca é: por que quem paga com dinheiro ou cheque deve subsidiar aquele que compra com cartão? Seria tão absurdo quanto exigir, por exemplo, que quem compra arroz tivesse de pagar um pouco mais, para baratear o preço daqueles que compram carne. O subsídio cruzado torna-se ainda mais criticável quando se considera que, em geral, os indivíduos que não têm cartão têm menor poder aquisitivo.

Tratando agora de argumentos contrários, começamos pelo estímulo ao uso de cheques que a diferenciação de preços provocaria. Poucas pessoas andam com dinheiro vivo na carteira, especialmente por questões de segurança. A alternativa mais viável para aproveitarem preços mais baixos para pagamentos à vista seria o pagamento com cheques. Ocorre que, apesar de o cliente não pagar, o custo do cheque é muito elevado: de acordo com o Banco Central, o custo médio de uma transação por meio eletrônico é cerca da metade do custo de transação por outros meios. Do ponto de vista social, portanto, o maior uso de cheques implica desperdício de recursos: a mão-de-obra, os recursos computacionais, o espaço físico e todos os insumos necessários para proceder a confecção, preenchimento e compensação de cheques poderiam ser utilizados em outras atividades, aumentando a eficiência da economia.

Esse argumento é procedente. Mas o problema do uso excessivo de cheques que adviria da diferenciação de preços não decorre da diferenciação de preços, mas do fato de que o preço pago pelo portador pelo uso do cheque é inferior ao custo do serviço. A solução, portanto, não seria proibir a diferenciação de preços entre compras à vista e com cartão, mas instituir uma cobrança para cada meio de pagamento, de acordo com seu custo.

Antes de explicar os demais argumentos contrários e favoráveis, farei uma necessária exposição sobre algumas características da indústria de cartões. Quando pensamos em cartões, vêm logo à cabeça os nomes das bandeiras (Visa, Mastercard, etc), mas, em verdade, a indústria de cartões é composta pelos seguintes participantes:

i)                   portador: é o consumidor final, o indivíduo que utiliza o cartão para fazer compras. O portador paga ao emissor a anuidade do cartão e eventuais juros incidentes sobre saldo devedor não pago. Por motivos que ficarão claros adiante, a anuidade do cartão chega mesmo a ser negativa, nos casos em que o cartão oferece programas de recompensas, como passagens aéreas, acesso a salas VIP, seguros, etc.

ii)                 emissor: normalmente representado por um banco, que se relaciona diretamente com o portador. É o emissor quem analisa a proposta de adesão, determina o limite de crédito, as taxas cobradas do consumidor final e faz o lançamento da fatura. O número de emissores no Brasil é relativamente elevado, cerca de 20 no sistema Mastercard e de 40 no sistema Visa. Os emissores são remunerados pelas tarifas que cobram dos portadores, pelos juros (caso o portador não quite toda a fatura na data de vencimento) e pela tarifa de intercâmbio, a ser explicada a seguir. É importante observar que, como o emissor recebe a tarifa de intercâmbio, pode ser interessante não cobrar (ou até pagar) para o portador ter o cartão, afinal, uma condição necessária para que o banco receba a tarifa de intercâmbio é que ocorram compras.

iii)               credenciador (ou adquirente): é o responsável pelo relacionamento com o estabelecimento comercial. Como o nome sugere, é o credenciador quem credencia o lojista no sistema. Também é responsabilidade do credenciador fazer a captura, transmissão, processamento e liquidação das transações com os cartões da respectiva bandeira. A principal fonte de receita do credenciador é a taxa de desconto, usualmente uma proporção do valor da venda, cobrada do comerciante. A principal despesa do credenciador é a tarifa de intercâmbio, também uma proporção do valor transacionado, pago ao banco emissor. O mercado de credenciamento é muito concentrado no Brasil. Até 2010, havia somente um credenciador para a bandeira Visa – a então Visanet, posteriormente transformada em Cielo – e um credenciador para a bandeira Mastercard – a Redecard. Atualmente, Cielo e Redecard credenciam ambas as bandeiras, e entraram novos concorrentes, como o Banco Santander.

iv)               lojista: ou estabelecimento comercial. É quem aceita o pagamento com cartão. O principal custo em que o lojista incorre é a já mencionada taxa de desconto, paga ao credenciador.

v)                 bandeira: É a marca do cartão, como Visa, Mastercard, Hipercard ou American Express. A bandeira atua como uma espécie de franqueadora da marca, sendo também responsável por estabelecer normas, fornecer infraestrutura básica e realizar atividades de pesquisa e desenvolvimento para o aperfeiçoamento do sistema. Em alguns esquemas, como American Express e Hipercard, a bandeira, emissor e credenciador são unificadas. Já os esquemas Visa e Mastercard, que respondem por mais de 90% das transações, possuem um sistema aberto, com diferentes emissores e credenciadores.

O cartão de crédito é, assim, uma plataforma, conectando o portador ao lojista. Uma característica importante do mercado de cartões é a de ser aquilo que se denomina mercado de dois lados. Em um mercado normal (ou de um só lado), a demanda depende do preço do produto: se o preço do bem ou serviço aumenta, a demanda cai e vice-versa. Já em mercados de dois lados, além do preço do produto, a demanda depende também de como o custo é repartido entre os consumidores finais.

Para entender melhor o contraste entre os dois tipos de mercado, pensemos no caso da tributação. Quando o governo aumenta a tributação, é irrelevante saber se será o consumidor ou o vendedor quem irá pagar o tributo. A demanda dependerá somente do preço final (incluindo impostos) do bem. Mas isso não ocorre em mercados de dois lados. Por exemplo, uma boate, que pode ser vista como uma plataforma de encontro entre homens e mulheres, deverá ter maior clientela se cobrar menos das mulheres. Assim, comparando duas boates com o mesmo preço médio de ingresso, aquela que cobra menos das mulheres deverá ser mais bem sucedida em atrair clientes.

No início da telefonia celular no Brasil, quem recebia a chamada também pagava pela ligação. Isso fazia com que o proprietário do aparelho somente divulgasse seu número para determinadas pessoas, o que reduzia o potencial de ligações. Quando a cobrança passou a recair somente sobre quem fazia a chamada, ampliou-se a divulgação dos números, aumentando o volume das transações. Outro exemplo são os jornais de bairro, usualmente gratuitos para os leitores, mas pagos pelos anunciantes. Se a forma de divisão dos custos fosse diferente, por exemplo, com os leitores passando a arcar com a maior parte dos custos, é provável que a demanda pelo jornal caísse substancialmente.

Na indústria de cartões, ocorre a mesma coisa. Parte importante do sucesso da indústria de cartões é explicada pelo fato de o custo recair quase que exclusivamente sobre o lojista, e pouquíssimo (exceto no que diz respeito aos juros pagos) sobre o portador.

Outra característica importante na indústria de cartões é a presença da chamada externalidade de rede. Um indivíduo só se interessa em adquirir um cartão se souber que haverá um número suficiente de lojas dispostas a aceitá-lo. Já um lojista só irá se interessar em se credenciar para determinada bandeira se souber que há um número suficiente de portadores de cartão daquela bandeira. Portanto, quando um consumidor decide adquirir um cartão, além do benefício próprio, ele está beneficiando toda a rede associada àquele cartão. Da mesma forma, quando um lojista adere ao sistema, ele beneficia indiretamente todos os demais lojistas pois, ainda que marginalmente, o fato de ter uma loja a mais afiliada ao sistema, estimula novos consumidores a adquirir o cartão daquela bandeira, o que, por sua vez, estimula novos lojistas a se credenciarem. O benefício não precificado que um agente causa a outro é denominado externalidade positiva[1]. Como um consumidor, ao adquirir um cartão, gera externalidade positiva, o preço que ela paga pelo serviço deveria ser menor do que o custo que acarreta. Do contrário, ele tenderia a utilizar o serviço menos do que seria considerado socialmente ótimo.

Uma vez feitas as explicações sobre as principais características da indústria de cartões, apresentaremos a seguir outros argumentos contrários e favoráveis à diferenciação de preços.

O mercado de cartões cresceu aceleradamente porque foi possível transferir a maior parte do custo para os lojistas. Isso estimulou a entrada de consumidores no mercado, o que atraiu novos lojistas, o que estimulou mais consumidores a adquirir cartões, etc. Pode-se demonstrar que essa repartição de custos, onde o lojista paga a maior parte, somente é possível se o preço pago à vista for o mesmo pago com o cartão. Em outras palavras, se for possível para o lojista repassar integralmente o custo do cartão para o consumidor, então cada ponta do mercado (consumidores e lojistas) arcarão igualmente com os custos do cartão. E, quando o consumidor passa a pagar mais caro pelo uso do cartão, ele tende a utilizá-lo menos. Mas, ao fazer isso, devido às externalidades de rede, o consumidor prejudica todo o sistema. No limite, a diferenciação perfeita de preços torna o uso de cartão de crédito menos atrativo para os consumidores. Com menos consumidores, menos lojistas se interessarão em se manter no sistema. Esse círculo vicioso se perpetuaria, de forma que a conseqüência da diferenciação de preços seria um encolhimento da indústria, com prejuízos para todos seus participantes.

Pode-se contra-argumentar de duas formas. Em primeiro lugar, o sistema atual, em que os consumidores são desproporcionalmente incentivados a utilizar o cartão, pode levar a um inchamento ineficiente da indústria. Um exemplo dessa ineficiência pode ser observado em padarias, quando clientes utilizam o cartão para pagar pequenas contas com o objetivo de acumular pontos em programas de benefícios. Além do custo direto associado ao processamento dos dados para se fazer o pagamento, existe a externalidade negativa provocada pela fila que se forma. Se o pagamento fosse feito em dinheiro, a transação seria muito mais rápida, economizando tempo dos demais clientes e funcionários, que, em vez de ficar no caixa, poderiam realizar outras tarefas.

Assim, é verdade que a diferenciação de preços possa desestimular o uso do cartão. Mas, se partimos de uma situação em que o uso do cartão é excessivo, pode ser desejável, do ponto de vista de bem-estar social, reduzir o tamanho da indústria.

A segunda contra-argumentação é de ordem prática. É pouco provável que as comerciantes venham a repassar integralmente os custos do cartão para seus clientes. Em primeiro lugar, porque os lojistas auferem benefícios em receber com cartão, como maior segurança. Em segundo lugar, porque, por uma questão de marketing, é comum os estabelecimentos oferecerem serviços adicionais, sem cobrarem a mais por eles. Por exemplo, muitas lojas não cobram para fazer embrulhos de presente, outras oferecem estacionamento gratuito, outras não cobram adicional para entregar em casa. Oferecer a possibilidade de pagamento com cartão sem cobrança adicional seria uma comodidade adicional que a loja ofereceria. Destaca-se que, de acordo com a experiência internacional, nos países onde passou a ser permitida a diferenciação de preços, o repasse da taxa de desconto para os clientes foi baixo.

Finalmente, outro argumento a favor da diferenciação de preços está relacionado com a estrutura de mercado. Conforme dito anteriormente, o mercado de credenciadores é muito concentrado no Brasil. Apesar da maior abertura recente, o mercado de credenciamento continua muito concentrado. Se um lojista quiser aceitar Visa ou Mastercard (as duas principais bandeiras), será praticamente forçado a negociar com a Cielo ou com a Redecard, pois a participação dos demais credenciadores é mínima. Isso faz com que a taxa de desconto (relembrando, a porcentagem das vendas que os comerciantes pagam aos credenciadores) é muito acima da média internacional. Para pequenos lojistas, a taxa chega a exceder 5% do valor da venda.

Em uma estrutura de mercado tão concentrada como essa, a permissão para cobrança de preços diferenciados permite um aumento da concorrência – no caso, não com outros credenciadores, mas com outros meios de pagamento. Por isso, um resultado provável de se permitir a diferenciação de preços será os estabelecimentos continuarem a cobrar o mesmo preço para pagamento com dinheiro ou com cartão, porém incorrendo em um custo mais baixo, devido à redução da taxa de desconto cobrada pelo credenciador.

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Para ler mais sobre o tema:

Freitas, Paulo Springer de: “Mercado de Cartões de Crédito no Brasil: problemas de regulação e oportunidades de aperfeiçoamento da legislação.” Texto para Discussão nº 37, Senado Federal, Brasília. 2007. Texto disponível em:

http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD37-PauloSpringer.pdf

Banco Central do Brasil;Secretaria de Acompanhamento Econômico – Ministério da Fazenda e Secretaria de Direito Econômico – Ministério da Justiça. Relatório sobre a Indústria de Cartões de Pagamento. Banco Central do Brasil, Brasília. 1º Edição. Maio de 2010. Texto disponível em:

http://www.bcb.gov.br/htms/spb/Relatorio_Cartoes.pdf


[1] Sobre o conceito de externalidade, vide o texto “Por que o governo deve interferir na economia?”, publicado neste site.

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