despesa corrente – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Fri, 01 Apr 2011 11:15:34 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 O gasto público ajuda ou atrapalha o crescimento econômico? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=408&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-gasto-publico-ajuda-ou-atrapalha-o-crescimento-economico Fri, 01 Apr 2011 11:15:34 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=408 1. Motivação

Desde o início da recente crise econômica global, muitos governos têm elevado seus gastos para gerar um estímulo de curto prazo à economia. Todavia, o efeito desses estímulos sobre o crescimento econômico ainda não são plenamente conhecidos.

A importância do gasto público, inclusive da composição desse gasto, vem sendo amplamente estudada na literatura, seguindo a contribuição seminal de Barro (1990). Embora muitos estudos sugiram que existe uma relação positiva entre despesa pública e crescimento da economia, há diferentes visões sobre quais categorias de gasto promovem tal crescimento[1].

Há duas questões interessantes a analisar:

1.                      Será que nos países em desenvolvimento que apresentam rápido crescimento a relação entre o nível da despesa pública, composição dessa despesa e o crescimento econômico é distinta da que ocorre em países em desenvolvimento que apresentam taxas mais baixas de crescimento?

2.                       Qual é o papel da composição da despesa pública com respeito ao desempenho da economia dos países em desenvolvimento.

A resposta a essas questões pode ter importantes implicações sobre a gestão pública, no que diz respeito à composição da despesa governamental, uma vez que essa composição pode ter impactos diferenciados, e até opostos, sobre o crescimento de curto e de médio prazo.

2. Metodologia

2.1 Seleção da Amostra

A maioria das análises empíricas que estudam a ligação entre despesa pública, seus componentes, e o crescimento econômico combinam muitos países diferentes em suas amostras. A presente análise classifica os países em dois grupos: uma amostra de países em desenvolvimento com desempenho de crescimento similares e uma amostra de comparação incluindo países em desenvolvimento com desempenhos variados durante o período considerado (1970-2005)[2]. O primeiro grupo é composto pelos seguintes países: Coréia do Sul, Singapura, Malásia, Tailândia, Indonésia, Botswana e Ilhas Maurício; que estão entre os melhores desempenhos do mundo em termos de crescimento do Produto Nacional Bruto real per capita durante o período sob análise. O segundo grupo inclui: Chile, Costa Rica, México, Filipinas, Turquia, Uruguai e Venezuela. Estes países formam um grupo de comparação[3].

2.2 Classificação da despesa pública

Essa análise usa duas classificações alternativas de despesa pública. A despesa pública total é, primeiro, desagregada usando definição baseada em Bleaney, Gemmell, e Kneller (2001) e em Kneller, Bleaney e Gemmell (1999), que classificam a despesa, a priori, como tendo alguns componentes que são produtivos e outros improdutivos. Trata-se de um critério baseado na expectativa de impacto do gasto público na função de produção do setor privado. O conjunto de despesas produtivas é formado por aquelas referentes a: serviços públicos gerais, defesa, educação, saúde, habitação, transportes e comunicações.

Neste texto introduzimos uma classificação alternativa: despesas fundamentais versus não-fundamentais, que podem ser mais apropriadas para os países em desenvolvimento. As despesas fundamentais são: serviços públicos gerais, educação, saúde, habitação, transportes, comunicação, e combustível e energia.

A principal diferença entre as duas definições é que a última inclui a categoria “combustível e energia”, que frequentemente tem ligação estreita com outras categorias de despesa com impacto significativo sobre o crescimento. Além disso, há a exclusão da despesa com “defesa”, uma categoria sobre a qual os economistas nem sempre têm conhecimento suficiente.

3. Análise qualitativa e quantitativa

3.1 Estudo comparativo

Enquanto os países de rápido crescimento tiveram (em média) um crescimento de 5% no Produto Nacional Bruto per capita no período 1970-2005, os países do grupo de comparação cresceram apenas 1,6%. O tamanho da despesa pública como proporção do Produto Nacional Bruto é bastante próximo nos dois grupos (em torno de 21%). O déficit orçamentário é um pouco maior no grupo de comparação (1,9% do PNB contra 1,3% do PNB, em média).

Quando se comparam os componentes do gasto público, a participação das despesas consideradas como produtivas na despesa total é significativamente maior para o grupo de rápido crescimento econômico: 64% contra 50% no grupo de comparação. Outra observação interessante é que esse percentual tende a declinar significativamente para o grupo de comparação, especialmente após 1980.

Possíveis diferenças entre os dois grupos também podem estar associadas com a efetividade do governo e qualidade da governança. Em termos de efetividade[4], todos os países do primeiro grupo (com exceção da Indonésia) estão melhor ranqueados que os do segundo grupo. De modo similar, existe um grande hiato entre os dois grupos em termos de qualidade da burocracia.

3.2 Resultados empíricos

Os resultados gerais sugerem que o gasto público, especialmente os seus componentes produtivos, tem, de fato, impacto positivo e estatisticamente significante na taxa de crescimento real per capita do PNB dos países do primeiro grupo. Para os países do grupo de comparação não se pode estabelecer uma relação similar que seja estatisticamente robusta. Além disso, o efeito líquido conjunto da política fiscal (calculado como a soma dos coeficientes estimados para as despesas, receitas e resultado fiscal) é também positivo e estatisticamente significante apenas para o primeiro grupo.

Os resultados originais se mantêm quando se usa a classificação alternativa dos gastos: despesas fundamentais versus não-fundamentais. Os componentes fundamentais são, mais uma vez, estatisticamente correlacionados com o crescimento econômico apenas no primeiro grupo de países.

É fundamental reconhecer a contribuição do setor privado e da estabilidade macroeconômica para o crescimento. A inflação é negativamente correlacionada com o crescimento, principalmente no primeiro grupo, indicando que reduzir a inflação estimula o crescimento desses países e, portanto, o crescimento responde mais à estabilidade macroeconômica. As duas variáveis de controle utilizadas, de forma alternada, para capturar a influência do setor privado (investimento privado e abertura comercial) também tendem a ser fortemente significantes na explicação do crescimento do primeiro grupo de países. Esses resultados apontam para a existência de uma política econômica que cria um ambiente mais propício ao crescimento, bem como uma forte contribuição do setor privado no primeiro grupo.

Outro resultado interessante é que, quando os dois grupos são combinados em uma única estimação, a significância estatística e econômica, bem como a magnitude do efeito da despesa total sobre o crescimento, cai substancialmente. De modo similar, quando diferentes componentes do gasto público são desagregados, as despesas “produtivas” e as “fundamentais” se tornam estatisticamente não significativas para a explicação do crescimento da amostra total (primeiro e segundo grupo de países juntos).

Esses resultados indicam que quando um grupo mais heterogêneo de países em desenvolvimento (em termos de desempenho de crescimento) é incluído no estudo, cai a significância da despesa pública e de outros componentes do orçamento na explicação do crescimento econômico. Isso pode explicar porque alguns dos estudos empíricos prévios que misturaram países com diferentes padrões de crescimento não encontraram relações estatísticas significativas entre gasto público e crescimento.

3.3 Implicações para a política fiscal

Os resultados mostram que, levando em conta o impacto (negativo) da tributação sobre o crescimento, a despesa pública tem efeito positivo sobre o desempenho da economia através dos seus componentes “produtivos” e “fundamentais”, em um ambiente de política econômica em que o investimento privado, a abertura da economia, e a estabilidade macroeconômica também são indutoras de crescimento.

A análise indica que o volume de despesa pública nos setores produtivos ou fundamentais, que consistem em uma combinação de despesas correntes e despesas de capital em infraestrutura, saúde, educação e outros setores econômicos críticos para o desenvolvimento, podem ter significativo impacto conjunto sobre o crescimento. Para os formuladores de políticas públicas, esse resultado implica que o planejamento e a execução integrados de despesa nesses setores estratégicos, levando em conta as inter-relações existentes entre eles, bem como entre os seus componentes correntes e de capital, tendem a conduzir ao crescimento.

Esses resultados têm importante implicação para o debate acerca do desenho de regras fiscais em um contexto de crescimento. Muitos países em desenvolvimento, usando a “regra de ouro”[5], tentam manter o equilíbrio ou superávit nos seus orçamentos de despesa corrente, enquanto a despesa de capital é crescentemente financiada por empréstimos. Mais precisamente, sob a regra de Blanchard-Giavazzi (2002), os governos devem tomar empréstimos em termos líquidos continuamente apenas para financiar investimentos líquidos (ou seja, investimentos brutos menos a depreciação do da infraestrutura pública). Essa regra permite crescente endividamento bruto para o propósito de refinanciar dívida vincenda, desde que se mantenha a dívida líquida constante.

Em adição à “contabilidade criativa”[6], aos incentivos negativos[7], e à fragmentação e distorção do orçamento que a regra de Blanchard-Giavazzi podem gerar, outro possível problema com tal regra seria o fato de que ela não leva em conta a possível interação entre categorias setoriais da despesa pública independentemente de elas serem despesa corrente ou de capital. Sob a vigência da regra de ouro, é possível que alguns investimentos, como em hospitais e escolas, sejam plenamente financiados ao mesmo tempo em que não exista verba para financiar despesa de contratação de pessoal para funcionamento desses hospitais e escolas, bem como para sua manutenção. Dado que essas despesas correntes são essenciais para garantir o funcionamento adequado dos ativos de capital, a sua escassez resultará em serviços públicos ineficientes e, no final das contas, um peso para o país, com duvidosos efeitos sobre o crescimento econômico.

Todavia, é importante notar que para ser capaz de extrair recomendações em relação à composição da despesa pública para um país específico, com vistas a estimular o crescimento, é necessário adicionar às conclusões aqui obtidas estudos empíricos individuais sobre o país em questão. Tais estudos devem considerar características específicas do país que possivelmente afetem a composição do gasto público, assim como os outros determinantes do crescimento.

A sugestão de classificação dos gastos como “produtivos” ou “fundamentais” feita neste artigo deve ser guiada e adaptada pelas características individuais de cada país[8]. Por exemplo, em um país em que a agricultura represente um alto percentual do PNB, despesas públicas com irrigação, infraestrutura rural e energia rural devem ser consideradas como “fundamentais”, enquanto em outros países muito dependentes da exportação de produtos minerais e energia, fundos públicos alocados para aquele setor devem ser incluídos no grupo de despesas “fundamentais”.

Finalmente, dado que a análise qualitativa mostrou que a qualidade da governança, medida pela efetividade e qualidade da burocracia do governo, é consistentemente maior para o grupo de países de alto crescimento, os efeitos de grupo que são introduzidos na especificação empírica (países de rápido crescimento versus grupo de comparação) capturam parcialmente a qualidade da governança. Por isso, uma importante extensão da presente análise seria um estudo detalhado do papel dos indicadores de qualidade da governança na relação entre gasto público e crescimento econômico.

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Para ler mais sobre o tema:

Moreno-Dodson, B. 2008. “Assessing the Impact of Public Spending on Growth: An Empirical Analysis for Seven Fast-Growing Countries.” World Bank Policy Research Working Paper 4663, Washington, DC.

Referências bibliográficas:

Ang, J. B. 2009. “Do Public Investment and FDI Crowd In or Crowd Out Private Domestic Investment in Malaysia?” Applied Economics 41(7): 913–19.

Baldacci, E., B. Clements, S. Gupta, and Q. Cui. 2008. “Social Spending, Human Capital, and Growth in Developing Countries.” World Development 36(8): 1317–41.

Barro, R. J. 1990. “Government Spending in a Simple Model of Endogenous Growth.” Journal of Political Economy 98 (October): s103–s25.

Bayraktar, N., and B. Moreno-Dodson. 2010. “How Can Public Spending  Help You Grow? An Empirical Analysis for Developing Countries. World Bank Policy Research Working Paper No. 5367 (July), Washington, DC.

Benos, N. 2009. “Fiscal Policy and Economic Growth: Empirical Evidence from EU Countries.” Unpublished work, University of Ioannina.

Blanchard, Olivier J., and Francesco Giavazzi. 2002. “Current Account Deficits in the Euro Area: The End of the Feldstein Horioka Puzzle?” Brookings Papers on Economic Activity 33(2): 147–210.

Bleaney, M., N. Gemmell, and R. Kneller. 2001. “Testing the Endogenous Growth Model: Public Expenditure, Taxation, and Growth over the Long Run.” Canadian Journal of Economics 34(1): 36–57.

Bose, N., M. E. Haque, and D. R. Osborn. 2007. “Public Expenditure and Economic Growth: A Disaggregated Analysis for Developing Countries.” The Manchester School 75(5): 533–56.

Brahmbhatt, Milan. Forthcoming. “Fiscal Policy for Growth and Development in India: A Review.” Working Paper, Washington, DC.

Calvo, Oscar. Forthcoming. Peru Public Expenditure Review (PER). Washington, DC, World Bank.

Colombier, C. 2009. “Growth Effects of Fiscal Policies: An Application of Robust Modified M-Estimator.” Applied Economics 41(7): 899–912.

Ghosh, S., and A. Gregoriou. 2008. “The Composition of Government Spending and Growth: Is Current or Capital Spending Better?” Oxford Economic Papers 60 (June): 484–516.

Kneller, R., M. Bleaney, and N. Gemmell. 1999. “Fiscal Policy and Growth: Evidence from OECD Countries.” Journal of Public Economics 74(2): 171–90.

Segura-Ubiergo, A., A. Simone, S. Gupta, and Q. Cui. 2009. “New Evidence on Fiscal Adjustment and Growth in Transition Economies.” Comparative Economic Studies 52(1).


[1] Veja Moreno-Dodson (2008) e Bayraktar e Moreno-Dodson (2010) para uma detalhada revisão da literatura. Alguns dos recentes estudos nessa área são os seguintes: Bose, Haque e Osborn (2007), em um estudo focando países em desenvolvimento, encontram que a despesa de capital, especialmente na área de educação (construção de escolas, por exemplo), está positivamente correlacionada com crescimento, enquanto a despesa corrente não tem impacto significativo. Benos (2009), usando 14 países da União Européia, mostra que a realocação de componentes do gasto do governo, especialmente em direção à infraestrutura e ao capital humano, pode estimular o crescimento. Ghosh e Gregoriou (2008), analisando um grupo de 15 países em desenvolvimento, mostram que a despesa corrente tem impacto positivo no crescimento, enquanto o gasto de capital tem efeito negativo. Baldacci et al. (2008) indicam que, com o uso explícito de controles para a governança e incorporando não-linearidades, os gastos em educação e saúde dão suporte a um maior crescimento econômico nos países em desenvolvimento. Segura-Ubiergo et al. (2009) apresentam um impacto positivo do ajuste fiscal no crescimento de economias em transição. Colombier (2009), focalizando os países da OCDE, e Ang (2009), estudando o caso da Malásia, apontam a importância das despesas de capital do governo para o crescimento.

[2] O presente estudo é uma extensão de Moreno-Dodson (2008), que inclui apenas países de rápido crescimento. Moreno-Dodson mostra que a ligação entre despesa pública total e crescimento é positiva no geral, com alguns componentes de despesa sendo particularmente importantes para o crescimento. Componentes improdutivos da despesa pública são menos significantes – ou têm até mesmo impacto negativo sobre o crescimento – enquanto os componentes produtivos da despesa pública são estatisticamente significantes.

[3] A principal fonte de dados é o Government Financial Statistics, do FMI.

[4] Usando os indicadores de governança KMM.

[5] Regra que estabelece que o governo deve se endividar apenas para financiar despesa de capital. (NT)

[6] Por exemplo, classificar despesas correntes como sendo despesas de capital para viabilizar seu financiamento via dívida (NT).

[7] Por exemplo, preferência por investimentos, que podem ser financiados via dívida, a despesas correntes, que precisam ser financiados por tributação (NT)

[8] Para uma aplicação dessa metodologia a país individual ver, por exemplo, o Peru public expenditure review (Calvo, a publicar), e o World Bank Working Paper “Fiscal Policy for Growth and Development in India: a review” (Brahmbhatt, a publicar).

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É possível controlar o gasto do Governo apenas enxugando os desperdícios? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=220&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=e-possivel-controlar-o-gasto-do-governo-apenas-enxugando-os-desperdicios https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=220#comments Thu, 24 Feb 2011 01:48:47 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=220 É muito comum o argumento de que o governo é “perdulário” e que ações visando o enxugamento de desperdícios seriam suficientes para conter a expansão do gasto público. Sendo válido esse argumento, a política de controle de gastos deveria se concentrar nas chamadas “despesas de custeio” da máquina governamental: diárias e passagens, material de consumo, serviços terceirizados (limpeza, vigilância, etc.), consultorias prestadas por empresas privadas, etc.

O que se demonstra nesse texto é que, embora seja desejável a redução de eventuais desperdícios no custeio, esse tipo de controle de gasto nem de longe resolveria o desequilíbrio das contas do Governo Federal.

Em valores de 2010, um ajuste fiscal significativo estaria na ordem de R$ 40 a R$ 50 bilhões. O que se poderia obter com um corte radical no custeio não passaria de R$ 19 bilhões.

Tomando-se os dados da execução orçamentária do Governo Federal, temos que os “gastos de custeio” são aqueles classificados como “outras despesas correntes”. Mostra-se, a seguir, que a efetiva e significativa redução das “outras despesas correntes” depende de mudanças de fôlego na legislação e nas políticas públicas, tais como: alteração nos requisitos para concessão de aposentadorias e pensões, revisão da política de valorização real do salário mínimo e reavaliação da indexação do gasto com saúde ao crescimento do PIB nominal.

São, portanto, medidas muito mais profundas do que a restrição ao gasto com passagens aéreas ou com compra de material de consumo.

A Tabela 1 abre as “outras despesas correntes” em grandes itens de despesa. Olhando o valor da despesa total (R$ 594 bilhões) parece fácil fazer o ajuste fiscal. Se precisamos cortar R$50 bilhões para zerar o déficit nominal do Governo, então estamos falando de um ajuste de menos de 10% no custeio da máquina pública: nada que um “aperto de cintos” não pudesse resolver.

Mas essa impressão é ilusória. As outras linhas da Tabela 1 desagregam a despesa total, apresentando os itens em que ela é rígida, seja por determinação legal, seja por se tratar de política pública prioritária.

O primeiro item refere-se à “distribuição obrigatória de receitas”: Fundos de Participação dos Estados e dos Municípios, Fundo Constitucional do DF, royalties de petróleo, etc. O Governo Federal, por determinação constitucional ou de diversas leis, é obrigado a compartilhar sua arrecadação com estados. Trata-se, portanto, de despesa obrigatória e incomprimível[1].

O segundo item de despesa é aquele referente à Saúde. De acordo com a Emenda Constitucional nº 29, de 2000, o Governo Federal é obrigado a gastar com saúde o valor efetivamente gasto no exercício anterior acrescido da variação nominal do PIB. Portanto, tudo o que se gasta em saúde em um ano converte-se em despesa obrigatória para o ano seguinte, reajustado pela variação do PIB. Não só não há possibilidade de cortes, como há obrigatoriedade de crescimento real desse gasto ano após ano.

Tabela 1 – Outras despesas correntes do Governo Central (orçamentos fiscal e da seguridade social): 2010

Despesa R$ Bilhões % do Total
OUTRAS DESPESAS CORRENTES (TOTAL) (A) 593,8 100%
1 – DISTRIBUIÇÃO OBRIGATÓRIA DE RECEITAS 137,0 23%
2 – SAÚDE 50,9 9%
3 – ASSOCIADA A PESSOAL E ENCARGOS (EXCETO SAÚDE) 3,8 1%
4 – SENT. JUDIC., EXERC ANT. E COMPR. FINANC.(EXCETO SAUDE) 16,5 3%
5 – BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS E ASSISTENCIAIS (EXCETO SAUDE) 246,5 42%
6 – SEGURO DESEMPREGO E PIS PASEP 29,2 5%
7 – BENEFÍCIO MENSAL AO DEFICIENTE E AO IDOSO 22,2 4%
9 – EDUCAÇÃO 22,0 4%
10 – Bolsa Família 13,5 2%
SOMATÓRIO DAS DESPESAS RÍGIDAS (1+2+…+8) (B) 541,7 91%
OUTRAS DESPESAS CORRENTES NÃO RÍGIDAS (C)=(A)-(B) 52,1 9%
Memo: Despesas vinculadas ao salário mínimo, ao PIB ou à inflação: 2+5+6+7 348,8 59%

Fonte: SIAFI – Sistema “Siga Brasil”. Elaborado pelo autor.

(*) Conceito de “despesa liquidada”.

O terceiro grupo de despesas é aquele associado aos gastos com pessoal. Os pagamentos de remunerações de servidores públicos não são classificados como “outras despesas correntes”. São classificados como “pessoal e encargos sociais”. Não fazem parte, portanto, do “custeio” analisado nesse texto. Porém, existem despesas classificadas como “outras despesas correntes” intimamente ligadas à despesa de pessoal, tais como: auxílio alimentação, auxílio transporte, salário família, etc. Todas essas despesas decorrem de obrigações legais da União na condição de empregadora. Logo, o seu valor é determinado a reboque das despesas com pessoal e encargos sociais. Sua redução dependeria, portanto, da redução nos gastos de pessoal. Mas os gastos de pessoal também são rígidos, devido a fatores como estabilidade no cargo e irredutibilidade de vencimentos[2].

O quarto item da Tabela 1 representa despesas geradas no passado e que não podem ser cortadas no presente. É o caso, por exemplo, de sentenças judiciais, indenizações e restituições que a União é obrigada a pagar. A única forma de cortar dispêndio nesse item seria desobedecer ao Judiciário ou ficar inadimplente junto a credores. Certamente essa não é uma forma consistente de se fazer ajuste fiscal[3].

O item 5 representa as aposentadorias, pensões e outros benefícios previdenciários pagos pelo INSS. Obviamente essa é uma despesa devida a todos aqueles que preenchem os requisitos legais para requerer uma aposentadoria, uma pensão, um auxílio doença ou qualquer outro benefício pago pelo INSS. Não há como fazer redução dessa despesa negando-se a concessão de benefícios para os quais os requerentes tenham direito.

Ademais, por decisão governamental, o salário mínimo (que é a base de referência para aproximadamente 2/3 dos benefícios previdenciários) tem subido acima da inflação. Nos últimos anos o seu reajuste tem sido feito com base no crescimento do PIB. Os benefícios previdenciários superiores a um salário mínimo são reajustados pela inflação passada.

Por isso, as únicas formas de redução desse tipo de dispêndio são a reforma na legislação previdenciária ou a desvinculação do valor dos benefícios básicos do valor do salário mínimo[4].

Os itens 6 e 7 são similares ao anterior. Referem-se a benefícios que são pagos a todos os requerentes que cumpram os requisitos legais. A Lei Orgânica da Assistência Social define a obrigatoriedade do pagamento de benefícios aos deficientes físicos e idosos de baixa renda. Tais benefícios são indexados ao salário mínimo. O PIS-PASEP e o seguro desemprego pagam abonos e remuneram temporariamente os desempregados. Embora esse benefício não esteja formalmente vinculado ao salário mínimo, parte substancial dos beneficiários está nessa faixa de renda, de modo que os reajustes reais do mínimo também impactam essa categoria de despesa.

O item 8 contém as “outras despesas correntes” em educação. Na educação há um complexo sistema de vinculação de impostos aos gastos com “manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE)”[5]: 18% da arrecadação de impostos do Governo Federal devem ser destinados a essa finalidade. Além disso, há a obrigatoriedade de se fazer aportes de recursos federais, a título de complementação, ao Fundo de Desenvolvimento e Manutenção da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB)[6].

Tais obrigações legais não chegam a ser uma fonte importante de rigidez nas “outras despesas correntes” em educação, pois o gasto obrigatório recai quase que totalmente no item “despesa de pessoal e encargos sociais”. No entanto, esse é um setor prioritário da gestão pública. Ainda que possa haver desperdícios no custeio da educação, a economia eventualmente feita com o corte desses desperdícios tenderia a ser reaplicada em outros programas (mais eficientes) dentro da própria área da educação. No limite, fazendo uma hipótese heróica, poderíamos imaginar que um corte radical no custeio da educação representaria uma economia de 10 a 20%. Ou seja, no máximo R$ 4,4 bilhões.

O último item diz respeito ao Programa Bolsa Família. De acordo com a Lei nº 10.836, de 2004, que rege o programa, é o Governo que define o valor e a quantidade de bolsas a serem concedidas. A rigor, se desejasse cortar o programa, não seria necessário revogar a lei. Bastaria definir um valor irrisório para a bolsa (cujo valor não está indexado ao salário mínimo ou a qualquer outro indicador) ou reduzir drasticamente o número de beneficiários.

Obviamente, o grande peso político desse programa, aliado aos seus resultados positivos na mitigação da miséria, e possíveis contestações judiciais à redução do valor do benefício, tornam tal procedimento bastante improvável.

Ao deduzir todos esses itens rígidos das “outras despesas de custeio” sobram apenas R$ 52 bilhões de despesas flexíveis: 9% da despesa total. Como fazer um ajuste fiscal da ordem de R$ 50 bilhões (necessários para zerar o déficit nominal) se o conjunto de despesas a ser submetida a enxugamento é de R$ 52 bilhões? Seria preciso interromper todos os programas de governo que não tenham sido listados na tabela 1: saneamento básico, ciência e tecnologia, defesa, urbanização, agricultura, meio-ambiente, etc.

Outro indicador da dificuldade de se cortar o custeio está na última linha da Tabela 1: nada menos que 59% das “outras despesas correntes” são reajustados, automaticamente, pela variação do PIB ou pela inflação do ano anterior.

Um corte forte nas “outras despesas correntes” não rígidas, da ordem de 20%, levaria a uma economia de R$ 10,4 bilhões. Somando-se a isso a economia na área da educação, acima calculada em R$ 4,4 bilhões, teríamos um corte de R$ 14,8 bilhões, obtido mediante forte comprometimento da gestão governamental. E mesmo esse grande esforço não nos colocaria nem perto do necessário ajuste de R$ 50 bilhões.

Ademais, seriam altas as chances de que esses cortes fossem revertidos em exercícios posteriores, mediante pressões para a retomada de política públicas por eles prejudicadas.

Fica claro que não há opções de ajuste fiscal permanente, consistente e com efeito a longo prazo que se baseie apenas no “enxugamento de desperdícios nas despesas de custeio”. Embora seja salutar e desejável que se busque cortar desperdícios, o ajuste necessário vai além e requer reorientação da ação do Governo em políticas relevantes. É preciso, inclusive, tomar medidas que ajustem a despesa em itens que não foram aqui analisados, como a despesa de pessoal, investimentos e inversões financeiras.

Um roteiro para um ajuste da despesa pública passa pelos seguintes pontos:

a)        racionalização da política de pessoal, voltada para a qualidade na contratação, o estímulo ao bom desempenho e o controle da folha de pagamento;

b)        forte esforço de avaliação dos investimentos públicos prioritários, com o cancelamento de investimentos desnecessários ou questionáveis;

c)        dinamização dos procedimentos de concessões e demais modalidades de participação da iniciativa privada nos investimentos de infraestrutura (inclusive a melhoria na regulação e na capacidade de atuação das agências reguladoras), com vistas a se acelerar os investimentos nessa área, com o envolvimento de menos recursos públicos e com maior eficiência;

d)       revisão da política de reajuste do salário mínimo, para reduzir a velocidade de crescimento das despesas a ele indexadas;

e)        complementação da reforma da previdência social;

f)         revisão da regra de despesa mínima em saúde, vinculando-se a expansão da verba a melhorias na gestão e a indicadores de qualidade;

g)        revisão das políticas industrial e de incentivos regionais, visando à redução dos recursos aplicados em financiamentos subsidiados a programas de baixo retorno social ou à gradual retirada do Governo Federal do mercado de financiamento de longo prazo ao setor privado.

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Para ler mais sobre o tema:

Mendes, Marcos (2011). Desembrulhando o ajuste fiscal: há espaço para ajuste fiscal no Governo Federal sem reformas legais ou revisão de políticas públicas? Texto para Discussão nº 86. Centro de Estudos da Consultoria do Senado. Disponível em: http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao.htm


[1] Note-se que não foi considerado nesse total o montante de transferências emergenciais, feitas aos estados e municípios em 2009 e 2010, a título de compensação por perdas de receitas decorrentes da crise econômica internacional. Esta seria uma despesa não-obrigatória.

[2] Não se considera nesse item as “outras despesas correntes” associadas ao gasto com pessoal na função saúde, pois já foram incluídas no item anterior.

[3] Mais uma vez, não se incluem nesse item as despesas realizadas no âmbito da função saúde, já consideradas no item 2.

[4] Sempre há a necessidade de manter vigilância em relação às fraudes contra a previdência. No passado recente, por exemplo, um maior rigor na concessão de auxílio doença provocou uma forte desaceleração no crescimento dessa despesa. Mas esse tipo de providência gerencial não é capaz de fazer a despesa da previdência diminuir de forma significativa.

[5] Vide art. 212 da Constituição Federal.

[6] Lei nº 11.494, de 2007.

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