desigualdade – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Tue, 14 Sep 2021 21:28:42 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 O ‘V’, o ‘K’ e o ‘X’ https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3497&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-v-o-k-e-o-x Tue, 14 Sep 2021 21:28:42 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3497 O ‘V’, o ‘K’ e o ‘X’

 Paulo Guedes encharca-se com ideias equivocadas, enquanto a sociedade fica mais injusta e desigual

 Por Luís Eduardo Assis*

A divulgação do PIB do segundo trimestre gerou confusão. Como sempre, o IBGE deu destaque para os números dessazonalizados. Retirar dos indicadores a influência de fatores sazonais requer modelos econométricos que não têm a pretensão de oferecer mais do que aproximações. Conforme os parâmetros escolhidos os resultados podem variar bastante, sem falar que a pandemia deve ter alterado os padrões sazonais. Olhando os dados brutos, sem adivinhar os fatores sazonais, o que se sabe é que o PIB entre abril e junho subiu (sim, subiu) 1,2% em relação ao primeiro trimestre e foi 12,4% maior que no mesmo período do ano passado.

Esse desempenho, de todo modo pífio, animou o ministro da Economia a jactar-se da recuperação “em V” do nível de atividade. Aqui Paulo Guedes ataca espantalhos. Nunca se disse que, passado o isolamento social, a economia iria manter o nível de atividade de antes. Se houve interrupção momentânea das atividades, o retorno à rotina anterior só poderia aparecer nos gráficos com a forma de um V. Não há nada de surpreendente. O que assusta é que, na falta de um projeto de crescimento, essa recuperação nem sequer nos coloca na posição medíocre em que estávamos antes. Comparado com o segundo trimestre de 2019, estamos hoje com um PIB apenas 0,2% maior. Em relação ao segundo trimestre de 2013, o PIB do segundo trimestre de 2021 ficou ainda 2,5% menor. Nesses oito anos, a população cresceu 6,1%.

Além de irrisória, a recuperação da economia vem agravar nossas iniquidades, já que a retomada foi ainda mais frágil no mercado de trabalho. A Pnad mostra que entre dezembro de 2019 e agosto de 2020 a pandemia reduziu em 12,9 milhões, ou quase 14%, o número de pessoas ocupadas. Desde então, a recuperação econômica reincorporou apenas 6,1 milhões de pessoas. Para os trabalhadores, não houve V. A inflação também acirrou a desigualdade. Nos 12 meses terminados em julho, a inflação das pessoas com renda inferior a R$ 1.810,13 foi de mais de 10%, ante 7,1% da inflação dos felizardos que têm renda mensal maior que R$ 18.106,00. O item “Alimentação no Domicílio”, que atinge em cheio as pessoas mais pobres, aumentou 21,8%, ante 6,7% para a alimentação fora do domicílio. O desemprego comprime a renda dos trabalhadores menos qualificados. O custo dos serviços de manicure compilados no IPCA subiu menos de 5% nos últimos 12 meses. Para “Cabeleireiros e Barbeiros”, o aumento foi ainda menor, 1,6%, o que não é tão ruim quanto o caso das costureiras, cujo serviço ficou 0,4% mais barato nesse período.

Enquanto isso, o gás de cozinha aumentou 32,8% e o coxão duro ficou 37,6% mais caro. Na outra ponta do Brasil, o mercado de bens de luxo vai de vento em popa. Os endinheirados que têm aplicações no exterior se regozijam com o dólar mais caro e, na falta das viagens internacionais, se deleitam comprando aqui mesmo. Qual a forma de combater a inflação? Juros mais altos é o que temos para o momento, o que premia os rentistas, deteriora as finanças públicas e aguça a concentração de renda. Ou seja, a recuperação tem mais a forma de um K. A população mais pobre vê sua condição se deteriorar, enquanto os mais ricos têm dificuldade em escolher no que gastar. Como lembra J. Stiglitz em The Price of Inequality, a desigualdade custa muito caro: instabilidade econômica, menor crescimento e riscos à democracia. O ministro da Economia perde-se em especulações nefelibatas, encharca-se com ideias equivocadas, contenta-se com o V minúsculo e ignora que o X da questão é o fato de que estamos criando uma sociedade ainda mais injusta e desigual. Terá muito o que explicar no futuro. Paulo Guedes tem um passado pela frente.

* Luís Eduardo Assis é economista, foi diretor de Política Monetária do Banco Central e é membro do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial. e-mail : luiseduardoassis@gmail.com

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 13 de setembro de 2021.

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Por que é tão difícil fazer reformas no Brasil? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3219&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-e-tao-dificil-fazer-reformas-no-brasil https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3219#comments Tue, 07 May 2019 16:23:55 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3219 *Esse texto consiste em resumo de relatório de pesquisa desenvolvido pelo autor junto ao Instituto de Pesquisas Casa das Garças.

 

Para voltar a crescer e diminuir a desigualdade de renda, o Brasil precisa fazer um conjunto amplo de reformas. Previdência, tributos, mercado de crédito, ambiente de negócios, segurança jurídica, abertura comercial, privatização, políticas sociais e educação.

Não é fácil fazer reformas em nenhum lugar do mundo. Reformar significa tirar privilégios de alguns grupos, que obviamente resistem. Os custos são concentrados em poucos, e os benefícios são difusos. Os prejudicados se organizam e resistem, enquanto os beneficiários muitas vezes nem sequer sabem que estão ganhando com aquela medida.

Reformas também provocam incerteza: ainda que todos saibam que o país ficará melhor no futuro, cada indivíduo enfrenta a incerteza de qual será a sua situação particular após a reforma. Afinal, empregos menos eficientes tendem a ser destruídos e outros são criados, requerendo novas habilidades. Muitas pessoas temem não se adaptar à nova realidade, em especial os mais velhos.

Os resultados das reformas também demoram a aparecer. No Chile, por exemplo, em 1985, dez anos após o início das reformas, a renda per capita ainda era a mesma de 1969. Somente nos anos 1990 a renda começou a subir de forma consistente.

Na Nova Zelândia, uma reforma radical, que transformou o país em uma das sociedades mais prósperas do mundo, gerou, inicialmente, uma taxa de desemprego de 14%, que só voltou ao padrão pré-reforma depois de dez anos.

O calendário das eleições é mais curto que o prazo para o efeito das reformas. O próximo pleito acontece antes de as reformas elevarem a popularidade do governante reformista.

Apesar dessas dificuldades, ao longo dos últimos 50 anos, muitos países fizeram reformas abrangentes. Estudando essas experiências, podemos observar características desses países que ajudaram a quebrar resistências. Infelizmente, o Brasil não possui nenhuma dessas características “facilitadoras” de reformas.

Em primeiro lugar, é mais fácil reformar economias de países pequenos. Estes não têm mercado interno significativo e precisam se abrir para o mundo. Com economia aberta, são mais vulneráveis a oscilações da economia internacional e, por isso, precisam manter a macroeconomia saudável. Para atrair capitais externos, precisam de uma Justiça rápida e segura.

Além disso, têm uma elite menos numerosa, o que diminui o custo de transação para realizar acordos. Também têm governo unitário, não sofrendo os conflitos e bloqueios gerados nos sistemas federativos. Singapura, Malta, Hong Kong, Estônia, Nova Zelândia e Irlanda seriam exemplos nesse grupo.

O Brasil, grande, fechado e com uma Federação conflituosa, está longe desse perfil.

Outra característica importante está na transição de ditaduras para democracias. Países que fizeram reformas econômicas antes da abertura política geraram uma economia dinâmica, capaz de elevar a renda, ampliar a classe média, criar ambiente de mercado estável e consolidar o liberalismo econômico, conduzindo a mais investimentos e crescimento. Com o tempo, a melhoria das condições de vida induz a transição para regime democrático, como ocorreu na Coreia do Sul, no Chile, na Malásia e na Indonésia, por exemplo.

Por outro lado, redemocratizar antes de reformar a economia pode levar ao populismo e a mecanismos de apropriação de renda por grupos de interesse.

Em uma economia fechada e estatizada, há grande espaço para a inscrição de privilégios e políticas inconsistentes na legislação. Esse parece ter sido o caso de Brasil, Argentina e Filipinas. Fazer reformas nesses países é muito mais difícil agora, pois significa desmontar benefícios a grupos organizados, cristalizados na Constituição e nas leis.

Também facilitam as reformas os sistemas político-eleitorais que induzem a geração de maioria no Legislativo, dando maior governabilidade ao Poder Executivo.

No Reino Unido, por exemplo, as eleições para o Parlamento seguem o modelo distrital, com voto majoritário, que induz a disputa entre dois grandes partidos, com o vencedor quase sempre sendo majoritário no Legislativo e, portanto, capaz de aprovar reformas sem precisar contar com o apoio de outros partidos.

Além disso, é mais fácil fazer reformas em Parlamentos unicamerais, onde uma medida não precisa passar pelo referendo de Câmara e Senado. Também facilita o fato de cada um dos três Poderes ter claramente delimitado o seu raio de ação, não havendo espaço para o Judiciário interferir em decisões do Legislativo.

Mais uma vez o Brasil não tem tais características. Nosso sistema eleitoral gera grande fragmentação partidária no Parlamento, temos sistema bicameral e frequente judicialização das decisões legislativas e das políticas públicas.

A literatura também mostra que sociedades mais coesas são mais capazes de gerar os acordos sociais necessários para realizar reformas. Essas são sociedades em que a classe média tem uma parcela grande da renda (e, portanto, a desigualdade geral é baixa) e na qual há baixo grau de violência.

Em geral, são sociedades em que as pessoas têm padrões de vida similares, não temem agressões físicas ou aos seus direitos. Por isso têm maior confiança umas nas outras e nas instituições públicas.

Confiança é essencial para o sucesso de reformas. Afinal, estas ​nada mais são que um acordo em que todos fazem sacrifícios no curto prazo com vistas a ter um futuro melhor. Se há baixa coesão e desconfiança, cada grupo de interesse tentará empurrar os custos da reforma para o outro, e a negociação emperra ou a reforma tem seus custos colocados nas costas dos mais fracos.

A figura acima mostra que o grau de coesão social no Brasil é extremamente baixo. No eixo horizontal, temos a participação da classe média na renda (percentual da renda total que vai para os 60% dos indivíduos no centro da distribuição de renda). Somente África do Sul, Namíbia, Zimbábue, Moçambique e Guiné-Bissau têm classe média “mais magra” que a brasileira, ficando mais à esquerda no gráfico.

No eixo vertical temos um índice de violência e confiança mútua. Nesse quesito, o Brasil só supera Camarões e Costa do Marfim. E fica um pouco abaixo de Quênia, El Salvador e Libéria.

A localização do país na parte inferior esquerda do gráfico é uma imagem clara da nossa baixa coesão social. Somos inequivocamente um país desigual, violento, em que as pessoas não confiam umas nas outras. No canto superior direito do gráfico estão os países mais coesos.

A importância da coesão social como fator de estabilidade tem ficado clara nos recentes episódios de radicalização política vividos em diversos países. O encolhimento da participação da classe média na renda tem gerado desconforto com a representação política tradicional, e novos partidos extremistas têm ganhado espaço em vários países. Há crescente fragmentação partidária, levando a governos minoritários, como na Espanha e na Itália.

O brexit surgiu de movimento de descontentamento de uma classe trabalhadora ameaçada pela abertura comercial. Donald Trump e sua política externa mercantilista têm origem semelhante.

No Brasil, o baixo consenso social alimenta um ambiente antirreformas por uma combinação de populismo, conflito distributivo em torno de rendas intermediadas pelo Estado, fragmentação política e protecionismo comercial e regulatório.

Não obstante todas essas dificuldades “estruturais” para fazer reformas no Brasil, sempre surgem algumas janelas de oportunidade. Em geral, elas são criadas por crises, que evidenciam a necessidade de mudanças e enfraquecem a defesa de interesses corporativos específicos.

Também abre espaço para reformas o “efeito lua de mel”, que existe nos primeiros meses de gestão de um governante recém-eleito.

Desde os anos 1980, o Brasil aproveitou essas situações para fazer reformas. Assim, por exemplo, a crise de balanço de pagamentos de 1982-83 gerou reformas fiscais e monetárias. A hiperinflação criou condições para o sucesso do Plano Real.

O efeito lua de mel no governo Collor permitiu um movimento de abertura comercial, e nos governos FHC e Lula viabilizaram-se duas reformas da Previdência.

Da crise de balanço de pagamentos de 1998 vieram o sistema de metas de inflação, o câmbio flutuante e o regime de metas fiscais.

Porém, recentemente o Brasil andou na direção contrária. De 2005 a 2015 vivemos um período de reversão de reformas. A crise política do mensalão levou à expansão do gasto público como forma de sustentar politicamente o governo. Uma expansão no preço internacional de commodities deu impulso ao crescimento e criou a ilusão de que os desequilíbrios fiscais estruturais estavam resolvidos.

Relaxou-se o equilíbrio fiscal e praticou-se política pública na direção oposta das reformas de que o país necessita: aumentou a interferência estatal nas decisões privadas, a exploração do petróleo foi praticamente reestatizada, houve generalizada interferência do governo nos preços de energia e combustíveis, proteção setorial e fechamento da economia, grande desperdício de recursos públicos e privados em investimentos inviáveis.

 

Artigo publicado pela Folha de S. Paulo em 05 de maio de 2019.

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Como as universidades públicas no Brasil perpetuam a desigualdade de renda: fatos, dados e soluções https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2793&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=como-as-universidades-publicas-no-brasil-perpetuam-a-desigualdade-de-renda-fatos-dados-e-solucoes https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2793#comments Wed, 15 Jun 2016 14:06:14 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2793 SUMÁRIO EXECUTIVO

  • Níveis educacionais melhoraram sensivelmente nos últimos 20 anos no país, mas o Brasil continua com resultados comparativamente baixos em relação a seus pares latino-americanos.
  • Em gastos por aluno, o setor público escolheu por priorizar a educação superior. Para cada estudante em uma universidade pública, em média, seria possível manter quatro estudantes de ensino médio ou fundamental na escola.
  • Essa priorização beneficia os mais ricos. Estudantes de universidade pública têm uma renda familiar per capita duas vezes maior do que aqueles que não vão para a universidade. A representação proporcional da classe alta nas universidades públicas é quase o dobro daquela observada na sociedade como um todo.
  • A probabilidade estimada de um jovem com renda familiar per capita de R$250 ao mês estudar em universidade pública é virtualmente nula: cerca de 2%. Já aqueles jovens que têm uma renda familiar per capita de R$20 mil reais ao mês têm uma chance de 40% de estudar em uma universidade pública.
  • Existe uma desigualdade também no acesso a cursos mais concorridos. Em universidades públicas, cursos com nota de corte mais alta no SISU tendem a ter uma presença menor de negros. Negros são também sub-representados no Ciência sem Fronteiras.
  • Transferir renda para financiar a educação dos mais ricos com impostos ajuda a perpetuar desigualdades, pois anos adicionais de estudo incrementam a renda de quem recebeu o benefício. Para cada ano adicional de estudo, adultos têm um aumento de sua renda entre 6,5% e 10%.
  • Mudar o foco das universidades públicas para outros níveis de ensino amenizaria essas desigualdades. Retornos ao investimento em educação, em termos econômicos para a sociedade e cognitivos para as crianças, são maiores quando esses investimentos são direcionados à educação de base.
  • Algumas alternativas em políticas públicas seriam: (a) permitir e financiar a criação de escolas públicas de administração autônoma; (b) criar o ProUni do ensino básico e distribuir vale-escola para estudantes pobres se matricularem em escolas privadas; e (c) estimular a educação na primeira infância, eliminando impostos sobre creches e pré-escolas, facilitando seu processo de criação e registro.
  • Para financiar essas mudanças, seria necessário instituir mensalidades nas universidades públicas federais para aqueles que podem pagar, com bolsas condicionais à renda familiar per capita do estudante ingressante.
  • Com a limitação dos recursos transferidos pelo governo federal, seria necessário reformar a legislação para facilitar e incentivar a captação autônoma de recursos pelas próprias universidades em complementação à cobrança de mensalidades. Entre essas medidas, poderiam se incluir, dentre outras: (a) a reforma na legislação para permitir às universidades receber doações diretas; (b) a ampliação da cooperação existente entre universidades públicas e o setor privado, que deve passar a ser mensurada de forma adequada pelo Ministério da Educação; e (c) a flexibilização da legislação de modo a permitir às instituições de ensino superior licenciar suas marcas e experimentar individualmente métodos distintos de financiamento.
  • Em termos regulatórios, é necessária uma ampla reforma do sistema educacional brasileiro. Na educação superior, a instituição de mensalidades proporcionais à renda familiar do estudante e a flexibilização dos métodos de captação de recursos por universidades reduziria o fardo de impostos necessários para o financiamento dessas instituições. Na educação de base, alternativas de descentralização da educação pública e empoderamento dos pais de crianças pobres na escolha da educação de seus filhos, seja por meio de escolas públicas autônomas ou por vales educacionais, contribuiriam com a melhoria da educação recebida pelos grupos economicamente desfavorecidos.

 

INTRODUÇÃO

Na última década, o Brasil deu passos importantes na expansão do nível educacional da população. Num espaço de dez anos, a proporção de pessoas que tem ensino médio ou superior completo subiu de 30% para 42% da população. Esse incremento de 12% corresponde a, aproximadamente, 24 milhões de pessoas a mais com o ciclo do ensino básico terminado.

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Tal avanço não se restringiu a um grupo específico de municípios, mas ocorreu de forma generalizada. Contudo, ainda há uma dispersão muito grande nos resultados. Enquanto em municípios como Florianópolis (SC) mais de 65% da população adulta concluíram o Ensino Médio, em outros, como Chaves (PA), apenas 4% o fizeram. Os avanços ao longo do tempo, bem como a desigualdade entre os municípios, podem ser observados na Figura 2 abaixo, com as curvas progredindo para a direita.

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Apesar dessas melhorias, o país ainda apresenta números comparativamente baixos em relação aos seus pares latino-americanos. Entre os maiores países do continente, somente a Colômbia apresenta níveis educacionais semelhantes aos brasileiros. O hiato entre os níveis brasileiros e os líderes da região chega a quase três anos de estudo.

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Mesmo com mais da metade da população sem ensino médio e com índices de educação básica comparativamente baixos, o investimento por aluno no Brasil prioriza o ensino superior. Segundo dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômicos (OCDE), gasta-se quatro vezes com cada aluno do ensino superior público o valor que se investe em estudantes do ensino fundamental ou médio. Em média, países da OCDE gastam com cada estudante de ensino superior 1,5 vezes o gasto do ensino médio – o que indica que a priorização brasileira ao ensino superior é mais evidente.

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Apesar de um estudante de ensino superior custar muito mais que o de uma educação básica e mais da metade da população não ter terminado o ensino médio, o país observou uma expansão forte das universidades públicas na última década. Se nos 20 anos entre 1980 e 2000 as vagas cresceram 80%, no período mais curto entre 2000 e 2014 as vagas em instituições públicas aumentaram 120%.

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Priorizar o ensino superior público em um país em que mais da metade da população não termina o ensino médio significa uma transferência de renda para os mais ricos. Não apenas os estudantes de famílias mais ricas têm uma probabilidade maior de estudar nas universidades públicas, como também pessoas que são beneficiadas por essas políticas e estudam mais anos tendem a ter salários maiores no futuro, perpetuando as desigualdades.

 

A ESTRUTURA SOCIAL E DEMOGRÁFICA DAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS

Quase toda política pública é uma forma de transferência de renda. Quando os custos de uma política estão dispersos por toda a sociedade e os benefícios estão concentrados em um grupo específico, aqueles que ajudam a financiar uma política, mas dela não se beneficiam, estão subsidiando os que recebem os serviços prestados pelo governo.

Com as universidades públicas isso se torna ainda mais claro: todos pagam pelas instituições, mas somente alguns têm acesso ao serviço educacional que elas oferecem. Por causa da alta concorrência das universidades públicas e da baixa qualidade das escolas públicas brasileiras, aqueles em situação econômica mais vulnerável têm pouca chance de conseguir uma vaga para estudar em uma universidade financiada pelo contribuinte.

Em média, a renda familiar per capita de jovens que frequentam universidades públicas (R$1422) é mais de duas vezes maior do que a daqueles jovens que não frequentam universidade (R$690)1. As famílias 20% mais pobres têm várias dificuldades. Uma boa parte deles (50,8%) sequer termina o ensino médio. Além disso, a pressão que eles têm por trabalhar para contribuir com o orçamento familiar diminui a possibilidade que eles têm de se preparar para os altamente concorridos vestibulares ou mesmo se dedicar a um curso integral (e, na maior parte das vezes, diurno) que vai limitar sua possibilidade de trabalho.

Por isso, as universidades públicas tendem a beneficiar os ricos de forma desproporcional. Segundo dados da Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (PNAD), a classe alta corresponde a 24,8% da população. Mas, nas universidades públicas, a classe alta ocupa 45,5% das vagas. Do outro lado dessa equação, as pessoas que estão hoje na classe baixa são 23,1% da população brasileira, mas apenas 8,4% da população universitária.

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A probabilidade de um jovem estudar em uma universidade pública está diretamente relacionada a sua renda familiar. A probabilidade estimada de um jovem com renda familiar per capita de R$250 ao mês – por exemplo, uma chefe de família que recebe R$1000 ao mês e sustenta um cônjuge e dois filhos – é virtualmente nula: cerca de 2%. Já aqueles jovens que vêm de famílias muito ricas, tendo uma renda familiar per capita de R$20 mil reais ao mês – digamos, o filho de um diretor de uma multinacional – têm uma chance de 40% de estudar em uma universidade pública2.

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O acesso desproporcional de grupos privilegiados à universidade pública é mais pronunciado em determinados cursos. Não há dados de renda familiar disponíveis para a composição de cursos das universidades públicas, mas as tendências de desigualdade são evidenciadas por diferenças nas composições de cor/raça. Enquanto cursos como Pedagogia e Serviço Social são majoritariamente negros, em outros, como Engenharia Mecânica e Relações Internacionais, negros são menos de um terço do corpo discente3.

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Essa tendência mantém um padrão: quanto mais difícil o ingresso em um curso, menor a presença de negros entre os estudantes – e, presumivelmente, isso também se correlaciona com a renda familiar. Como pode-se observar na Figura 9 abaixo, dentre os 90 cursos de universidades públicas com mais de 10 mil estudantes, a correlação entre porcentagem de negros dentre os alunos e a nota de corte média de cursos no Sistema de Seleção Unificada (SISU) do Ministério da Educação é negativa e estatisticamente significante.

Do modo como está desenhada atualmente, a política de cotas raciais em nada altera essa existente desigualdade entre cursos. Embora ela possa alterar a presença de negros em todos os cursos, empurrando a linha da regressão na Figura 9 para cima, não há nenhum efeito esperado na inclinação da linha – ou seja, na relação esperada entre notas do SISU e queda na proporção de negros.

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Novos programas de investimento em universidades públicas, como o Ciência sem Fronteiras (CsF), exacerbam essas desigualdades. Isso acontece por uma confluência de fatores. De início, como evidenciado anteriormente, negros têm menos acesso a cursos mais competitivos – que tendem a ser aqueles contemplados pelo CsF. Além disso, dentre os cursos elegíveis4, negros estão sub-representados no grupo que é escolhido para ir ao exterior. Enquanto brancos são cerca de metade do corpo discente dos cursos elegíveis para o CsF, dentre aqueles selecionados para, de fato, ir ao exterior, eles são 70%.

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Subsidiar a educação superior dos mais ricos enquanto os mais pobres sequer terminam o ensino médio resulta em transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos. Enquanto os filhos da elite são educados com o dinheiro dos contribuintes (no Brasil, majoritariamente negros e pobres), os filhos dos mais pobres terão pouquíssimas chances de conseguir entrar na universidade pública.

Transferir renda para financiar a educação dos mais ricos com impostos ajuda a perpetuar desigualdades, pois anos adicionais de estudo incrementam a renda de quem recebeu o benefício. Para cada ano adicional de estudo, adultos têm um aumento de sua renda entre 6,5% e 10%5. Por isso, as universidades públicas brasileiras são um dos mais importantes mecanismos de perpetuação das desigualdades de renda que já existiu na história brasileira.

 

NOVAS ALTERNATIVAS DE POLÍTICA EDUCACIONAL

Como as universidades públicas beneficiam desproporcionalmente os mais ricos, os gestores públicos deveriam reverter a priorização do ensino superior. Há vastas evidências científicas que demonstram que retornos ao investimento em educação, em termos econômicos para a sociedade e cognitivos para as crianças, são maiores quando esses investimentos são direcionados à educação de base – em especial na primeira infância6.

Desigualdades na educação de base são determinantes para desigualdades econômicas e sociais futuras. Diversas pesquisas já demonstraram que desigualdades de renda, nível de desemprego, encarceramento, gravidez na adolescência e saúde entre brancos e negros, por exemplo, são, em sua maior parte, explicadas por diferenças na qualidade da educação de base recebida7. No Brasil, a redução das desigualdades na educação de base na década de 2000 explicam 40% da redução da desigualdade de renda no período8.

O governo federal tem autoridade para reverter parte do dinheiro investido nas universidades públicas para o Fundo Nacional da Educação Básica e alterar este para financiar novos modelos de educação. Algumas possibilidades políticas de tais novos modelos são:

  • Permitir e financiar, com os recursos repriorizados, a criação de escolas públicas de administração autônoma (charter schools).Essas escolas, apesar de públicas, têm maior autonomia em sua administração. No lugar de currículos rígidos determinados pelas capitais, seus gestores têm capacidade para desenhar currículos individuais que atendam às demandas específicas daquela escola. Além disso, as escolas também têm independência administrativa para sua organização interna e contratação e demissão de pessoal. Ao mesmo tempo, como o financiamento é condicional à performance, isso dá aos gestores públicos maior capacidade de fiscalização e maior espaço para uma saudável competição e trocas de boas práticas entre as escolas. Diversos estudos experimentais9 demonstraram que essas escolas têm um efeito positivo sobre a performance acadêmica, em especial ao desempenho de matemática10. Seria viável alterar o artigo 20 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação para enquadrar tais escolas públicas de administração autônoma como “escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas”, previstas pelo artigo 213 da Constituição, ou, ainda, estabelecer parcerias público-privadas para a administração dessas escolas.
  • Criar o ProUni do ensino básico e distribuir vales educacionais para estudantes pobres se matricularem em escolas privadas.O modelo de vales educacionais (também conhecido como “vouchers”) foi aplicado já em diversos países, como os Estados Unidos, a Colômbia, o Chile e a Suécia. A ideia é substituir uma estruturação centralizada da política educacional por uma descentralizada. Como no Bolsa Família, no lugar de os governantes distribuírem produtos diretamente para a população, dá-se aos indivíduos a possibilidade de escolher no mercado aquilo que eles entendem como melhor. Por exemplo, os pais que prefiram uma educação mais generalista e humanista podem escolher uma escola de tal linha. Já os que prefiram uma educação mais tradicionalista e focada em resultados em termos de notas e provas também o podem fazer. Não haveria um modelo centralizado com todas as respostas. Estudos empíricos demonstraram dois efeitos positivos dessas políticas11. Em termos diretos, sendo as escolas privadas mais eficientes, os estudantes que receberam vales educacionais viram uma melhora na sua performance acadêmica, em especial na parte de exatas. Indiretamente, como esses programas inicialmente se focalizaram em regiões de pior desempenho educacional, ao retirar o fardo nessas regiões dos profissionais da rede pública, as escolas públicas tradicionais também responderam positivamente, beneficiando estudantes que não participaram do programa.
  • Estimular a educação na primeira infância, eliminando impostos sobre creches e pré-escolas, facilitando seu processo de criação e registro junto ao Ministério da Educação e/ou criando benefícios fiscais similares aos existentes para as Instituições de Ensino Superior que se beneficiam do ProUni. Estudos experimentais demonstraram de forma causal que crianças que recebem atenção na primeira infância tendem a ter melhores resultados escolares e a ter uma probabilidade menor de cometer crimes ou engravidar na adolescência12.

 

Para financiar essas mudanças, seria necessário instituir mensalidades nas universidades públicas federais para aqueles que podem pagar, com bolsas condicionais à renda familiar per capita do estudante ingressante. Esse modelo já existe no mundo. Por exemplo, a Universidade da Califórnia, que é uma universidade pública, adota um modelo em que as bolsas podem cobrir desde três quartos do custo total da educação (incluindo habitação, alimentação, livros, etc.) para estudantes mais pobres mas converge para zero à medida que a renda familiar aumenta. É importante frisar que, em tal modelo, é possível que aqueles estudantes que tenham renda familiar mais baixa, na verdade, recebam mais recursos do que hoje recebem com universidade sem mensalidade e com sistemas de assistência estudantil. De fato, o custo da mensalidade é apenas um terço do total13 e, ao focalizar recursos naqueles que não podem pagar, foi possível aumentar os benefícios para os que mais precisam. Ao mesmo tempo, as famílias ricas quase não recebem nenhum subsídio do governo, limitando a transferência de renda de pobres para ricos que existiria se eles adotassem um modelo como o brasileiro.

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Há um projeto de lei apresentado no Senado Federal que pretende instituir a cobrança de mensalidade para filhos de famílias cuja renda familiar mensal for superior a R$ 26.40014. Como essa proposta atingiria tão-somente uma parcela muito pequena daqueles que, pertencentes à classe alta, hoje se beneficiam das universidades públicas, um sistema proporcional, conforme o mencionado acima, seria mais eficiente em levantar recursos para amenizar transferências de renda de pobres para ricos. Caso haja dúvidas sobre a constitucionalidade desse projeto, seria necessário emendar o Art. 206 da Constituição para levar essa reforma adiante.

Adicionalmente, com a limitação dos recursos transferidos pelo governo federal, seria necessário reformar a legislação para facilitar e incentivar a captação autônoma de recursos pelas próprias universidades em complementação à cobrança de mensalidades. Entre essas medidas, poderiam se incluir, dentre outras:

  • A reforma na legislação para permitir às universidades receber doações diretas, o que atualmente é proibido.Atualmente, doações para universidades públicas têm de ser feitas por meio de depósitos na Conta Única do Tesouro, utilizando-se Guias de Recolhimento da União e subsequentes saldos de aporte liberados pelo Tesouro Nacional. Na prática, esse tipo de centralização torna burocraticamente improvável que essas doações sejam efetivadas. Uma alternativa já apresentada no Congresso Nacional15 é a criação de fundos patrimoniais (endowment funds), que facilitariam doações e fariam investimentos em nome das universidades. Nos Estados Unidos, em 2015, o valor total sob administração dos fundos patrimoniais das universidades públicas chegava 165 bilhões. Desse total, cerca de 5% (ou 8 bilhões de dólares) são utilizados pelas universidades ao ano para financiar pesquisa, ensino e extensão16. Esses recursos poderiam, se efetivados, contribuir com a substituição do uso de impostos em universidades públicas.
  • A ampliação da cooperação existente entre universidades públicas e o setor privado, que deve passar a ser mensurada de forma adequada pelo Ministério da Educação.Mudanças na legislação nas últimas duas décadas regulamentaram a possibilidade da criação de fundações públicas de direito privado para apoiar o ensino, a pesquisa e a extensão em universidades públicas17. Essas fundações podem receber verba de empresas privadas e outras instituições da sociedade civil para execução de projetos e devem repassar parte dessa verba para as universidades. Além disso, professores que façam pesquisa em alguma área que demande recursos muito altos podem utilizar uma dessas fundações para conseguir financiamentos específicos em parceria com setor privado. Em 2013, 74 fundações de apoio foram credenciadas/recredenciadas pelo Ministério da Educação18, com um prazo usual de dois anos para a vigência de cada credenciamento. Atualmente, não existe uma base de dados pública e de fácil acesso que consolide as informações quanto ao volume de financiamento dessas fundações e que facilite a análise de custo benefício destas. O Ministério da Educação poderia organizar e disponibilizar tais dados para facilitar a racionalização do desenho de políticas públicas.
  • A flexibilização da legislação de modo a permitir às instituições de ensino superior licenciar suas marcas e experimentar individualmente métodos distintos de financiamento.Entre possibilidades que já foram experimentadas em outros países, incluem-se o licenciamento da marca de universidades em produtos distintos (como peças de roupa, indumentária esportiva, peças decorativas e outros produtos) e a possibilidade de batismo de prédios, salas e cátedras da universidade em nome de empresas ou pessoas físicas que estejam dispostas a financiá-las. Mais importante, ao descentralizar esse tipo de planejamento, as universidades poderão experimentar com possibilidades diversas e aprender com as falhas e sucessos umas das outras – melhorando, assim, o sistema de financiamento da educação superior pública.

 

Em uma transição, o financiamento das universidades públicas pode combinar o atual regime de impostos com fontes alternativas de financiamento. Excluindo-se os gastos com servidores inativos, o gasto por aluno necessário para financiar as universidades federais é de aproximadamente R$ 29 mil ao ano (ou cerca de R$ 2,4 mil ao mês)19. Até que um sistema de financiamento privado via doações e cooperação com o setor privado seja construído, é provável que o financiamento exclusivamente por mensalidades seja politicamente inviável. Por isso, um novo regime de financiamento deve incorporar uma transição suave de médio prazo.

 

CONCLUSÕES

A atual priorização do ensino superior em termos de gasto por estudante, em uma média muito maior do que a dos países da OCDE, contribui para a perpetuação de desigualdades sociais no Brasil. Como políticas públicas, universidades estatais transferem rendas de pessoas relativamente pobres para aquelas relativamente ricas.

Reverter essa priorização focando-se na educação de base traria importantes retornos em termos cognitivos para as crianças, econômicos para a sociedade e contribuiria para reduzir as desigualdades sociais e de renda. Uma vez que desigualdades de performance sócio-econômica na vida adulta tendem a estar relacionadas diretamente com a qualidade da educação de base, uma equalização de oportunidades na educação de base tenderia a amenizar desigualdades futuras.

Em termos regulatórios, é necessária uma ampla reforma do sistema educacional brasileiro. Na educação superior, a instituição de mensalidades proporcionais à renda familiar do estudante e a flexibilização dos métodos de captação de recursos por universidades reduziria o fardo de impostos necessários para o financiamento dessas instituições. Na educação de base, alternativas de descentralização da educação pública e empoderamento dos pais de crianças pobres na escolha da educação de seus filhos, seja por meio de escolas públicas autônomas ou por vales educacionais, contribuiria com melhoria da educação recebida pelos grupos economicamente desfavorecidos.

 

Os autores agradecem a Cássio Ribeiro, Ronald Barbosa e Irapuã Santana pela ajuda fundamental na compreensão da legislação que regula doações e financiamento em universidades e por seus comentários e críticas; e a Marília Mareto por sua cuidadosa revisão. Enfatizamos que qualquer erro e omissão do presente estudo é nossa responsabilidade.

 

Versão completa deste texto foi publicada no site do Instituto Mercado Popular, em 18 de maio de 2016.

 

___________________

1 O conceito de jovens abarca indivíduos que têm entre 18 e 24 anos. Essa é a divisão etária que a Pesquisa Mensal de Empregos do IBGE utiliza para caracterização de desemprego juvenil.

2 Essas probabilidades são valores preditos por uma regressão logística que tem a probabilidade de se estudar em uma universidade pública como variável dependente e o logaritmo da renda familiar per capita como variável independente. Ver Anexo 3 para detalhes da estimação.

3 O critério do IBGE para cor/raça faz uma divisão entre “pretos” e “pardos”. Neste estudo, decidiu-se por fazer uma agregação das duas categorias sob o rótulo de “negros”.

4 Como o período 2012-2014 era um período de transição quanto à elegibilidade de curso para o Ciência sem Fronteiras, definimos “cursos” elegíveis como aqueles que têm ao menos um estudante listado no Censo da Educação Superior de 2014 como participante do Ciência Sem Fronteiras.

5 Estimações resultantes de uma regressão linear que utiliza dados da PNAD de 2013. Veja Anexo 4 para detalhes metodológicos.

6 Heckman, James. 2008. “School, Skills, and Synapses”. Economic Inquiry. Volume 46, Issue 3, pages 289–324, July 2008

7 Ver, por exemplo, Fyer Jr., Roland. 2010 “Racial Inequality in the 21st Century: The Declining Significance of Discrimination.” NBER Working Paper No. 16256.

8 Menezes Filho; Naercio; Oliveira, Alison. 2014. “A Contribuição da Educação para a Queda na Desigualdade de Renda per Capita no Brasil”. Insper Policy Paper n. 9.

9 Nós mencionamos prioritariamente estudos experimentais comorandomized control trials ou loterias para ascensão às escolas. Isso porque, ao adicionar aleatoriedade ao processo de seleção, eles permitem uma inferência causal mais forte, indo além de mera correlação.

10 Betts, Julian & Y. Emily Tang. 2014. “A Meta-Analysis of the Literature on the Effect of Charter Schools on Student Achievement.” CRPE Working Paper. August 2014.

11 Forster, Greg. 2013. “A Win-Win Solution: The Empirical Evidence on School Choice.” The Friedman Foundation. April 2013.

12 Heckman, James, et al. 2013. “Understanding the Mechanisms through Which an Influential Early Childhood Program Boosted Adult Outcomes.” American Economic Review, 103(6): 2052-86.

13 University of California. “How Aid Works: Student Scenarios”. http://admission.universityofcalifornia.edu/paying-for-uc/how-aid-works/student-scenarios/index.html. Acessado em 7/4/2016.

14 Projeto de Lei 782/2015, do Sen. Marcello Crivella, que “dispõe sobre o pagamento, pelo estudante universitário, de anuidade em instituições públicas de ensino superior”.

15 Projeto de Lei 4643/2012, da Dep. Bruna Furlan, que “autoriza a criação de Fundo Patrimonial (endowment fund) nas instituições federais de ensino superior”.

16 National Association of College and University Business Officers. 2015. “NACUBO-Commonfund Study of Endowments.” Disponível em: http://www.nacubo.org/Research/NACUBO-Commonfund_Study_of_Endowments/Public_NCSE_Tables.html. Acessado em 13/4/2016.

17 Ver Lei 8.958/1994 e Lei 12.349/2010, que regulamentam as fundações de apoio às universidades públicas.

18 Secretaria de Educação Superior, Ministério da Educação. 2014. “A democratização e expansão da educação superior no país 2003 – 2014”.

19 O orçamento das universidades públicas federais em 2014 foi de, aproximadamente, 34 bilhões de reais e o número de vagas foi de, aproximadamente, 1,2 milhões.

 

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Quanto deve custar um juiz? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2702&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=quanto-deve-custar-um-juiz https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2702#comments Tue, 15 Dec 2015 12:16:19 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2702 No século XXI de Thomas Piketty, a desigualdade é o tema do momento: nos Estados Unidos, veio do movimento Occupy Wall Street o slogan “We are the 99%”, fazendo alusão à grande concentração de renda no 1% mais rico da população. No Brasil da recessão, o teto do funcionalismo federal deve passar dos R$ 39 mil em 2016 (remuneração bruta). Com isso, o gasto do país com a remuneração (direta) de um ministro do STF passará a ser equivalente ao gasto com 1.213 grávidas abaixo da linha da pobreza, beneficiárias do Bolsa Família. Este texto trata dessa questão, se aplicando, portanto, a remuneração do funcionalismo como um todo, e não apenas o caso dos juízes, que é apenas anedótico.

Como se o valor do teto não fosse alto o suficiente, muitas categorias de servidores construíram sobre ele uma laje, ou mesmo verdadeiras coberturas. Para disciplinar a matéria, o governo apresentou em regime de urgência o PL 3.123/2015, que veda nada menos do que 37 truques usados para furar o teto constitucional.  Até agora, a proposta não ganhou a devida atenção, apesar do momento de ajuste fiscal e de estagnação da queda da desigualdade no país. No início de dezembro, ela foi ao Plenário da Câmara dos Deputados, depois de ser aprovada em duas comissões daquela Casa. Depois do “realismo tarifário”, chegou a hora também do “realismo remuneratório” no serviço público.

Um monopolista frequentemente é aquele que atua em um mercado com barreiras à entrada e à saída. No mercado de contratação de servidores, há barreiras à entrada (o concurso público, que não é periódico e exige alto investimento para superar as exigências desproporcionais de conteúdo) e barreiras à saída (a estabilidade funcional). Assim, o trabalho do servidor não é fácil de ser substituído, criando terreno fértil para o rent-seeking e remunerações fora da realidade.

O valor do teto constantemente driblado já colocaria um servidor no 1% brasileiro (confortavelmente). O teto constitucional de 2016 é equivalente a 8 vezes o teto do INSS, 21 vezes o rendimento médio do trabalho ou ainda a 45 salários mínimos. Segundo estudo do Ipea (2013)1, os salários do funcionalismo como um todo seriam responsáveis por nada menos do que 24% de toda desigualdade de renda no país. Na última década, quase toda a queda na desigualdade gerada pelo Bolsa Família teria sido compensada por aumentos salariais a servidores. Daí o mérito da proposta de realismo remuneratório, fazendo com que o teto da Constituição seja finalmente cumprido.

O projeto é essencial porque existe um “efeito farol” a partir das maiores remunerações do funcionalismo, espécie de cascata informal que tende a criar pressões por aumentos sucessivos em várias carreiras a partir do topo da pirâmide. Embora a vinculação de salários seja proibida, há uma vinculação fictícia que baliza a remuneração de muitos órgãos por todo o país. Quando um deles cria uma maneira de burlar o teto, abre-se a porteira para que outras carreiras deem seu jeitinho de chegar ao sobreteto, seja por via administrativa, legislativa ou judicial.

Defensores públicos indenizados porque o colega saiu de férias, juízes que recebem auxílio para comprar livros, burocratas que embolsam jetons de estatais dependentes que não produzem um parafuso, ou procuradores que ganham honorários pelo trabalho para o qual já ganham salários fixos elevados2. Esses são alguns dos casos de “indenizações” usados hoje para furar o teto e que seriam proibidas de fazê-lo pelo PL 3123. As possibilidades totalizam 37 incisos, tantos que a lista inclui, entre ajudas, adicionais e gratificações, até algo exótico chamado de “cascatinha”.

Diante desse cenário, que justificativas são apresentadas para as coberturas construídas acima do teto? As principais são a reposição de perdas inflacionárias, a necessidade de manter bons profissionais e até o nível de dificuldade dos concursos públicos.

Perda por inflação

A primeira justificativa é amparada pelo inciso X do art. 37 da Constituição, um resquício da época de hiperinflação que prevê indexação dos salários do funcionalismo. Esse contrato constitucional faz pouco sentido quando se considera que foi justamente com o combate à cultura de indexação que vencemos a hiperinflação. Para qualquer grupo, seria um privilégio no conflito distributivo ter a renda indexada à inflação enquanto outros grupos não possuem tal proteção. Vira um privilégio mais injustificável quando a renda deste grupo provém diretamente da renda de grupos que não estão protegidos. O teto constitucional é indexado, mas o Bolsa Família não.

Ainda, é preciso relativizar a perda de poder aquisitivo de quem ganha o sobreteto, por conta do que os economistas chamam de “viés de substituição”. Isto é, a possibilidade de trocas nos bens de consumo por conta de mudança nos preços relativos, que tende a ser muito maior na cesta de consumo dos que ganham mais.  Viajar para outro destino que não Miami se o dólar subir muito não é a equivalente a ter de substituir a carne do almoço que encareceu.

Aqui, pode-se fazer um paralelo na teoria econômica com a conhecida concepção de “utilidade marginal decrescente do dinheiro”.

Vale lembrar também que muitas carreiras possuem ainda promoções automáticas ao longo do tempo, sem contrapartidas de produtividade, enfraquecendo o argumento da perda por inflação. Em qualquer caso, é natural que o valor real do salário varie ao longo do tempo, o que implica que os reajustes salariais não devem acompanhar a inflação. Em períodos de crescimento econômico, a produtividade do trabalho tende a subir e o salário real aumenta, o que implica que o salário nominal aumenta acima da inflação. Em períodos de crise, a produtividade do trabalho tende a cair, fazendo com que o salário real caia, ou seja, o reajuste nominal é abaixo da inflação. Indexar o salário à inflação implica congelar um preço relativo, o que não faz sentido e é prejudicial para a economia.

Manutenção de bons profissionais e o crowding out motivacional

Justifica-se também que os supersalários são necessários para manter bons profissionais, e mantê-los produtivos. Trata-se de uma falácia: entre o serviço público e a iniciativa privada não parece haver “porta giratória”, mas sim um movimento de mão única. Quase não se observa servidores saindo para as empresas, mas, a título de ilustração, somente o concurso de 2015 do TRT de Minas teve 130 mil inscritos.

Contrariamente ao senso comum, a moderna Economia do Trabalho não prescreve que maiores salários aumentam a produtividade. A partir de um determinado nível de remuneração, ocorre o chamado “crowding out motivacional” (deslocamento motivacional). Isto é, uma remuneração maior não levaria necessariamente a um desempenho melhor, considerados salários que já estejam em um patamar razoável.

Baseados em larga pesquisa acadêmica, expoentes da Economia Comportamental como Dan Ariely e Daniel Pink enfatizam a importância, para a produtividade e a motivação, de valores mais “intrínsecos”, como senso de propósito e de aprimoramento de expertise (a remuneração seria um valor “extrínseco”).

Esta visão foi pioneiramente definida por Deci (1971), que enfatiza o papel que uma política de remuneração pode ter em fazer com que os trabalhadores percam “interesse intrínseco pela atividade”. Para Pink (2009), ela tem o poder de “reduzir a motivação de longo prazo”:

Empresas, mas também governos e organizações não-lucrativas ainda operam com hipóteses sobre o potencial humano e performance individual que são obsoletas, não estudadas e enraizadas mais em folclore do que em ciência.

Para Pink, aumentos em remunerações altas “geralmente não funcionam e frequentemente causam danos”, em relação a seus efeitos na motivação e na produtividade. Tal tipo de política estaria “se tornando incompatível com muitos aspectos do trabalho contemporâneo”.  A exceção se daria em atividades “rotineiras”, passíveis de automação, em que não há interesse intrínseco a ser contemplado: ainda assim, mesmo nesses casos, a remuneração estaria condicionada à produtividade (como um vendedor que recebe comissões).

Mesmo onde pode haver uma correlação entre salários extremamente elevados e produtividade – como no sistema financeiro ou nos altos cargos executivos de grandes corporações – essas mega remunerações usualmente vêm acompanhada de metas bem ousadas. Como é notório, metas de produtividade para atividades rotineiras ainda não são comuns no serviço público.

Daniel Pink, que já foi escolhido um dos 15 principais pensadores do mundo dos negócios3 e foi assessor do ex-presidente americano Al Gore, considera que a motivação no mercado de trabalho se apoia no tripé autonomia, domínio e propósito (autonomy, mastery e purpose), remetendo a uma conhecida teoria da psicologia, a da autodeterminação, de Deci e Ryan (2002).

O termo “domínio” se refere a “uma necessidade inata (…) de aprender e criar novas coisas”, enquanto “propósito” é definido como a necessidade de melhorar a própria vida e também o mundo. Dessa forma, motivadores mais poderosos do que a remuneração seriam a busca por conquistas e por crescimento pessoal. Um exemplo seria a manutenção da enciclopédia on-line Wikipedia, feita por voluntários.  No mesmo sentido, Karim Lahkani, da Harvard Business School, e Robert Wolf, do The Boston Consulting Group, argumentam que a motivação intrínseca, tida como “quão criativa uma pessoa se sente trabalhando em um projeto” seria o motivador “mais forte e mais pervasivo”.

Ariely (2008) argumenta que aspectos como esses seriam especialmente relevantes para políticas de RH em carreiras públicas. Não se trata de uma visão romântica, mas científica. Para Pink, esta análise está consoante com a visão de que a ciência econômica não é o estudo do dinheiro, mas sim o estudo do comportamento. Bruno Frey, um dos cinquenta economistas mais influentes do universo acadêmico4, considera que a “motivação intrínseca é de grande importância para todas as atividades econômicas. É inconcebível que as pessoas sejam motivadas somente ou principalmente por incentivos externos”.

Essa visão difere de formulações mais tradicionais na economia, em que o trabalho é tido como uma “desutilidade”, e não como uma utilidade. No mesmo sentido, em Giambiagi (2015) fala-se em “renda psíquica”, aludindo à utilidade do trabalho no serviço público. Para Pink, a ideia de crowding out, ou deslocamento motivacional, “é uma das descobertas mais robustas das ciências sociais – e também uma das mais ignoradas”.

Por fim, a teoria econômica tem incorporado cada vez mais não só elementos da psicologia, mas também da sociologia. O Prêmio Nobel George Akerlof5 (2010), amparado no conceito de “normas sociais”, defende que mais importante do que a remuneração para o desempenho do trabalhador é a identificação com o emprego e a missão do empregador.

Tais conclusões sugerem que, em muitas carreiras, a política remuneratória do governo é ineficiente, porque ele poderia obter os mesmos serviços pagando menos. Os especialistas em Economia Comportamental relativizam até mesmo o impacto de aumentos sobre salários já altos na satisfação individual de quem os recebe (discutido no blog aqui), o que indica também que este é um gasto ineficiente do ponto de vista do bem-estar social, urgindo o realismo remuneratório.

Dificuldade de concursos

Um último argumento dos servidores se relaciona ao que pesquisadores chamam da Economia Comportamental de “efeito licenciamento”, a ideia de que um “sacrifício” individual deve ser (bem) recompensado posteriormente. É comum ouvir, até em microfones de grevistas, que os servidores “merecem ser valorizados” porque passaram em concursos concorridos. É razoável que um candidato ao estudar se motive pensando que o esforço para conseguir a sua aprovação será recompensado com um bom emprego. O que não faz sentido é dar sucessivos aumentos ao funcionalismo por conta disso. A lógica correta é que os cargos são concorridos porque são bons, e não que devem ser bons porque são concorridos.

Considerações finais

O aumento das despesas com funcionalismo nos últimos anos contribuiu para a rigidez do orçamento, dificultando o ajuste fiscal. Ainda assim, a casta que fura o teto mobiliza de forma coordenada o lobby para manter seus privilégios, contra o PL 3123. O que deve ficar claro neste debate é que a sociedade está pagando mais do que tem condições e do que precisa pagar para manter esses funcionários produzindo. Sem realismo para essas remunerações, estamos matando, por inanição, políticas públicas e investimentos. Especialmente os voltados para os mais necessitados dos 99%.

 

Versão resumida deste texto foi publicada no jornal Valor Econômico, edição de 26/11/2015, sob o título “O PL do teto do funcionalismo”.

 

Referências:

AKERLOF, G. A.; KRANTON, R. E. Identity Economics: how our identities shape our work, wages, and well-being. Princeton: Princeton University Press, 2010.

ARIELY, D. Predictably Irrational: The Hidden Forces that Shape our Decisions. New York: Harper  Collins, 2008.

DECI, E. L. The effects of externally mediated rewards on intrinsic motivation. Journal of Personality and Social Psychology, 1971, 18, 105-115.

ÉPOCA. Juízes estaduais e promotores: eles ganham 23 vezes mais do que você. 12 de junho de 2015.

GIAMBIAGI, F. Capitalismo: Modo de Usar. Rio de Janeiro: Elsevier, 2015.

MEDEIROS, M; SOUZA, P. Gasto Público, Tributos e Desigualdade de Renda no Brasil. Texto para Discussão nº 1844. Brasília: IPEA, Junho de 2013. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_1844b.pdf.

PINK, D. H. Drive: The Surprising Truth about What Motivates Us. New York: Riverhead, 2009.

RYAN, R.; DECI, E. The Handbook of Self-Determination Research. Rochester: University of Rochester, 2002.

________________

1 Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_1844b.pdf. Os autores divulgaram recentemente novos resultados sobre a desigualdade de renda, usando dados do imposto de renda, o que permite incorporar outras rendas do setor privado, tendendo a reduzir a participação estimada da renda do setor público na desigualdade total.

2 A edição de 12 junho de 2015 da revista Época apresenta um extenso catálogo das indenizações usadas para furar o teto no Judiciário e no Ministério Público.

3 http://thinkers50.com/t50-ranking/2013-2/

4 Economist Rankings at IDEAS (RePEc): https://ideas.repec.org/top/top.person.all.html. Acesso em junho de 2014.

5 Akerlof é também casado com a presidente do Banco Central americano (FED), Janet Yellen.

 

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O que é economia da felicidade e como ela pode ser aplicada às políticas públicas? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2309&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-que-e-economia-da-felicidade-e-como-ela-pode-ser-aplicada-as-politicas-publicas https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2309#comments Mon, 13 Oct 2014 18:04:04 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2309 INTRODUÇÃO

A Economia da Felicidade investiga os fatores por trás da felicidade das pessoas, usando não apenas conceitos e ferramentas da economia, mas também da sociologia, da ciência política, e, especialmente, da psicologia. Os estudos em Economia da Felicidade são fundamentalmente empíricos e baseados em surveys (pesquisas de opinião) sobre o nível de felicidade das pessoas: a relação entre as características econômicas, sociais e demográficas – entre outras – e o nível de felicidade reportado pelos entrevistados é analisado estatisticamente, para que se compreenda o que torna alguns indivíduos mais felizes do que outros (com técnicas de econometria, por exemplo).

Apesar de novo, o campo conta com contribuições de acadêmicos importantes. Vários estudos em Economia da Felicidade se baseiam em trabalhos de vencedores do Prêmio Nobel em economia, como Daniel Kahneman, Amartya Sen e Gary Becker. O professor Bruno Frey, um dos principais expoentes da área, é listado entre os cinquenta economistas mais influentes do mundo, à frente de macroeconomistas conhecidos1. Assim, o ramo vem se consolidando como uma área emergente, cada vez mais distante de ser apenas uma mera curiosidade.

Compreendendo o que torna os cidadãos mais felizes, uma análise cuidadosa dos resultados das pesquisas em Economia da Felicidade pode prescrever mudanças em algumas políticas públicas, com a cautela de não sugerir uma atuação paternalista por parte do Estado. Vários dos serviços que um governo busca prover aos seus cidadãos, principalmente em países democráticos, já são serviços que se relacionam com o nível de felicidade e bem-estar das pessoas, como os serviços de saúde. Por outro lado, a Economia da Felicidade traz insights de áreas que estão ligadas à felicidade dos indivíduos e onde ainda há espaço para atuação do governo.

Neste texto, apresenta-se de uma maneira geral a Economia da Felicidade e os principais resultados das pesquisas, dividindo os fatores econômicos e não econômicos por trás da felicidade. Ainda, discute-se como esses resultados se encaixam na realidade brasileira, tão diferente da dos países em que muitos dos estudos foram realizados, e como as descobertas se inserem no âmbito das políticas públicas.

FATORES ECONÔMICOS

Naturalmente, as pesquisas em Economia da Felicidade analisam como variáveis econômicas afetam o bem-estar subjetivo (felicidade) dos indivíduos, dando particular atenção à influência da renda e do emprego na felicidade – mas também da desigualdade e da inflação.

Renda

De fato, encontrou-se em vários estudos uma correlação positiva entre renda e felicidade. No entanto, os estudos demonstram que mais do que a renda absoluta, o que importa para a satisfação das pessoas é a renda relativa, baseada na comparação com alguns grupos específicos próximos do indivíduo. Verificou-se também que a influência do dinheiro na felicidade é cada vez menor à medida que a renda cresce. Assim, a relação entre renda e felicidade é não linear, com as pesquisas confirmando, por outro lado, que a pobreza é uma importante fonte de infelicidade.

O nível de bem-estar subjetivo nos países ricos tende a ser maior do que nos países pobres, mas, entre países em um mesmo patamar de renda, a variação nos níveis de felicidade não se correlaciona com a renda, o que ocorreria tanto entre países ricos quanto entre países pobres. Essa relação pode ser bem visualizada na Figura 1, retirada de Borrero et. al (2013): os autores relacionaram o nível de bem-estar subjetivo e a renda nacional bruta per capita para 197 países. No mesmo sentido, Easterlin (1974) observou que, no período pós-Segunda Guerra, o nível de felicidade dos países desenvolvidos se manteve constante ao longo das décadas, mesmo com o grande crescimento da renda real – fato estilizado que é conhecido na literatura como “Paradoxo de Easterlin”.

Figura 1 – Satisfação com a vida e Renda nacional bruta per capita

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Fonte: Borrero et. al (2013)

 

Também os estudos em Economia da Felicidade que focam na comparação em nível individual encontraram limites para o efeito da renda sobre a felicidade.  As pesquisas mostram que, na média, pessoas com renda maior têm um nível de bem-estar subjetivo também maior. Entretanto, o impacto da renda adicional no nível de felicidade diminui à medida que a renda aumenta. Frey (2008) ressalta que essa descoberta coaduna com a teoria econômica tradicional, que considera decrescente a utilidade marginal (incremental) da renda. Na teoria, a utilidade é um conceito próximo do de “satisfação” no sentido comum.

Há uma preocupação nesses estudos em resolver o problema da direção da causalidade entre renda e felicidade, já que uma possibilidade para explicar a correlação entre as variáveis é de que indivíduos mais felizes tendem a possuir características que levam a uma renda maior. A solução de parte dos estudos em Economia da Felicidade foi analisar o efeito de variações na renda não associadas ao trabalho, e, portanto, não associadas a características pessoais dos indivíduos, como o recebimento de heranças e de prêmios de loteria2. Outras variáveis independentes controladas nesses estudos incluem idade, escolaridade, emprego e gênero, entre outras.

A felicidade é mais afetada pela posição relativa da renda do que pela renda absoluta de um indivíduo. O economista brasileiro André Lara Resende reflete nessa linha: “não é a riqueza absoluta, mas a riqueza relativa que importa. Não nos basta ser apenas ricos, mas, sim, mais ricos do que nossos pares”3. No mesmo sentido, Kahneman (2011) explica que a relação entre satisfação e renda depende de “pontos de referência” estabelecidos pelos próprios indivíduos. Os grupos de comparação incluem a família, colegas de trabalho e outras pessoas com a mesma faixa etária e escolaridade do indivíduo.

Da psicologia vem um conceito que explica o porquê de ganhos de renda não trazerem sempre ganhos proporcionais em bem-estar. Não apenas os indivíduos se comparam, mas também se “adaptam” a seus níveis de renda. Lyubomirsky (2010, pág. 201) define “adaptação hedônica” como “o processo psicológico pelo qual as pessoas se acostumam com um estímulo positivo ou negativo, de forma que os efeitos emocionais do estímulo são atenuados ao longo do tempo”. Assim, mais renda não traria mais felicidade porque as pessoas se acostumariam com a renda maior. Algumas pesquisas sugerem que o efeito da adaptação eliminaria entre 60 e 80% do efeito da renda no bem-estar4.

Compreendido o conceito de adaptação, chegamos à “teoria dos níveis de aspiração”5, que explica de maneira mais ampla a ligação entre renda e felicidade. Frey e Stutzer (2002, pág. 414), explicam que “De acordo com a teoria dos níveis de aspiração, o bem-estar individual é determinado pela distância entre aspiração e realização”. Dessa forma, tanto a noção sobre a renda relativa e o processo de comparação entre os indivíduos quanto à ideia de adaptação hedônica em relação à renda anterior fazem parte de uma teoria mais ampla, a dos níveis de aspiração.  Frey (2008) conclui que, juntos, os dois processos fazem os indivíduos buscarem aspirações maiores. Seria esta teoria a explicação para o Paradoxo de Easterlin.

Entretanto, a relação entre renda e felicidade é não linear, e a renda tem sim efeitos significativos em níveis menores de renda. Para Kahneman (2011, pág. 396), “ser pobre torna uma pessoa miserável” e ele ressalta ainda que “a pobreza extrema amplifica os efeitos e de outros infortúnios da vida. Em particular, doenças são muito piores para os muito pobres”. Já Frey (2008, pág. 76) afirma que “a noção de que as pessoas em países pobres são mais felizes porque vivem em condições mais “naturais” e menos estressantes é um mito.”

Desemprego

Com a importância da renda sobre a felicidade relativizada, focamos a atenção para outra variável econômica que tem impacto devastador nos níveis de satisfação individual: o desemprego. Frey (2008) ressalta que a forte influência negativa do desemprego no bem-estar subjetivo é uma das descobertas mais robustas da Economia da Felicidade e que as pessoas nessa condição se tornam “muito infelizes”. Clark e Oswald (1994) observaram que nada diminui mais o bem-estar individual do que o desemprego, nem mesmo uma situação de divórcio ou separação.

O que muda na vida de um indivíduo que passa da situação de empregado para a de desempregado? O custo individual é, a princípio, a perda de renda. Em compensação, esses indivíduos também têm mais tempo livre, que pode ser despendido com mais lazer. Entretanto, o que os estudos indicam é que mesmo quando controlada a mudança de renda, o bem-estar individual é afetado negativamente de maneira significativa pelo desemprego.

Como antes, também na relação entre desemprego e felicidade existe o desafio de se determinar a direção da causalidade1. Afinal, pessoas infelizes podem ter uma atuação inferior no mercado de trabalho e essas características indesejáveis poderiam levar ao desemprego. Como no caso da renda, “experimentos naturais” foram usados para solucionar esse problema de endogeneidade, isto é, fatos exógenos que levaram a situação de desemprego, que não têm relação com características individuais: um exemplo é o desemprego causado pelo fechamento de uma fábrica.

Segundo Frey, se a queda de bem-estar não é explicada pela mudança de renda nem pela autosseleção de pessoas que já eram infelizes, o desemprego possui custos não financeiros, sendo o principal o “custo psicológico”.

Inflação

De acordo com Frey (2008, pág. 56), “O estudo da felicidade encontra que a inflação sistemática e marcadamente reduz o bem-estar individual reportado”. Como a experiência brasileira ensina, o autor ressalta que as pessoas precisam despender muitos esforços em se informar sobre a alta de preços esperada, e também em se proteger  dela. Do histórico brasileiro com a inflação também sabemos que a renda real dos mais pobres é a que mais é corroída – vimos que a pobreza extrema é um determinante importante da infelicidade dos indivíduos. Di Tella et. al (2001b), no entanto, consideram o efeito da inflação na felicidade “substancial, mas não tão grande”. Frey (2008) afirma que, segundo os economistas, seria perigosa apenas uma inflação rampante, mas uma inflação de até 5% ao ano (“baixa”) não causaria maiores problemas.

Desigualdade

Ao contrário das pesquisas sobre o efeito da renda, do desemprego e da inflação na felicidade, as pesquisas sobre o efeito da desigualdade não levam a uma conclusão consensual. Observam-se impactos diferentes de acordo com o país pesquisado. Para Alesina et. al (2004, 2005) a diferença seria explicada por percepções diferentes em relação às possibilidades de ascensão social e das convicções acerca da origem da desigualdade.

Consumo

A Economia da Felicidade também analisa o papel do consumo na satisfação das pessoas. Como lembra Frey (2008), o dinheiro é valorizado pelo status que gera, mas principalmente porque permite a aquisição de mais bens materiais e serviços. No entanto, vários conceitos da psicologia desafiam a ideia de que mais consumo gera mais bem-estar.

Para o psicólogo agraciado com o Prêmio Nobel de Economia Daniel Kahneman, o conceito de “ilusão de foco” (focusing illusion) é um conceito científico tão importante que deveria ser amplamente popularizado6. Também conhecido como “focalismo” (focalism), esse conceito se refere a um viés cognitivo que ocorre quando muita atenção é dada a um único aspecto de uma situação, gerando uma previsão errada sobre o bem-estar futuro7. Na presente discussão, este aspecto seria o consumo de um bem material e a situação, de maneira ampla, a satisfação de um indivíduo com a sua vida. A ilusão de foco seria uma das causas do que Wilson e Gilbert (2003) chamam de “erro de previsão afetiva” (affective forecasting error), que ocorre quando os indivíduos erram ao imaginar o seu futuro estado emocional, e que pode ter como consequência más escolhas ou decisões (miswanting no termo criado por Wilson e Gilbert). Tais conceitos explicariam porque o consumo de vários bens materiais não eleva os níveis de felicidade: os indivíduos superestimam a importância que a aquisição de bens materiais, por exemplo, o carro do ano, terá em seu bem-estar8.

Nesse sentido, André Lara Resende critica a ênfase dada a esse consumo: “Já não faz mais sentido associar desenvolvimento exclusivamente ao crescimento e ao aumento do consumo material”9. O economista considera que, ultrapassado um determinado nível de renda, “a qualidade de vida não está mais necessariamente associada ao consumo material”. Para ele, as políticas públicas devem ser revistas para que se alcance o bem-estar. Esta revisão não implica a escolha por menos crescimento, mas por “mudança na composição do produto, um aumento do peso dos serviços – mais entretenimento, mais esporte, mais educação, mais saúde, mais música”, concluindo que as indústrias do setor de serviços liderarão o crescimento no futuro10.

O resultado das pesquisas e a realidade brasileira

Boa parte das pesquisas citadas até agora se utilizam de dados amostrais de países desenvolvidos, de modo que é oportuno discutir as aplicações desses estudos ao caso brasileiro. Como os resultados das pesquisas se relacionam com os indicadores brasileiros de renda, desemprego, inflação e com a realidade da desigualdade e do consumo?

A análise conjunta dos resultados das pesquisas e da realidade brasileira indica que, por ora, a Economia da Felicidade tem pouco a acrescentar ao debate de política econômica do país. Neste debate, as principais forças políticas concordam que a renda ainda deve crescer, a desigualdade diminuir e que o atual nível da inflação é desconfortável. Talvez as maiores contribuições da Economia da Felicidade para o caso brasileiro seja em outras políticas públicas e desenhos institucionais – essas contribuições são apresentadas a seguir.

FATORES NÃO ECONÔMICOS

A Economia da Felicidade estuda também, além dos fatores econômicos, a influência de fatores não econômicos no nível de satisfação das pessoas. Destaca-se o efeito, sobre a felicidade, de boas instituições, de uma mobilidade urbana eficiente, de um desenho urbano que privilegie a convivência, e da boa saúde física, entre outros. Ainda no âmbito das políticas públicas, as pesquisas podem contribuir para a sua avaliação.

Instituições

De maneira ampla, instituições são entendidas como os mecanismos que moldam o comportamento dos indivíduos – ou “as regras do jogo”. Assim, em ciências sociais, o termo “instituições” tem uma acepção particular e não deve ser confundido, por exemplo, com órgãos públicos. Muitos pesquisadores descobriram efeitos importantes de boas instituições no bem-estar subjetivo.

Frey (2008, pág. 64) conclui que as instituições democráticas aumentam o bem-estar das pessoas consideravelmente”. Uma parte importante deste efeito se daria na “utilidade processual” (procedural utility), conceito muito difundido na Economia da Felicidade que explicaria o efeito desse e também de outros fatores na satisfação individual. De maneira diversa da utilidade concebida na teoria econômica tradicional, em que predomina a importância de resultados (objetivos), a utilidade processual contempla a satisfação que decorre das situações que levam a um resultado, e não apenas a que decorre do resultado. No caso da democracia, por exemplo, existiriam ganhos porque o processo democrático traria como resultado decisões mais próximas das preferências das pessoas (utilidade “tradicional”) e também porque os cidadãos apreciam participar do processo (utilidade processual).

Outras instituições importantes verificadas pelos estudos incluem honestidade, eficiência, ausência de corrupção e a existência de um Estado de Direito, além de mecanismos de participação democrática mais direta11.

Mobilidade urbana

O estudo da felicidade mostra também que existe uma forte relação negativa entre o tempo gasto no percurso casa-trabalho e os níveis de felicidade. O resultado é observado mesmo quando são controladas outras variáveis, como a renda.

Stutzer e Frey (2007), ao observarem a relação, a definiram como “O paradoxo do deslocamento casa-trabalho” (The commuting paradox)12. Eles argumentam que, apesar de para a maioria das pessoas tal deslocamento ser um fardo mental e físico, na teoria econômica o tempo gasto com o percurso seria apenas mais uma decisão racional tomada pelos indivíduos. De acordo com o prescrito pela Economia Regional e pela Economia Urbana, não deveria haver desutilidade em morar longe do trabalho, já que, em contrapartida, haveria ganhos de utilidade, por meio de um custo de vida menor (imóvel residencial mais barato) ou de um emprego com remuneração maior (em linha com o que o conceito da Economia do Trabalho de diferenciais compensatórios).

Entretanto, a observação empírica foi de encontro com a teoria, e, mantidas outras variáveis constantes, o nível de bem-estar individual é negativamente afetado pelo tempo gasto com a viagem – verificando-se o paradoxo. Também Kahneman et. al (2004) verificou, em uma amostra composta apenas por mulheres, que o período gasto no trajeto matinal casa-trabalho foi o mais associado com emoções negativas, a frente até mesmo do período no próprio trabalho e do período gasto com tarefas domésticas.

As perdas de bem-estar ocorreriam porque, além de estar associado a um maior custo financeiro, um tempo maior no deslocamento casa-trabalho implica menor tempo de lazer. Os efeitos negativos do deslocamento casa-trabalho não se limitam, porém, apenas aos aspectos financeiro e de lazer. Koslowsky et. al (1995) associam um maior tempo no trajeto casa-trabalho a problemas de pressão sanguínea, angina, dores crônicas (transtornos musculoesqueléticos), ansiedade e raiva, além de problemas cognitivos. Entre  as condições que causam reações físicas e emoções negativas estão o desconforto com a temperatura, a existência de multidões, barulho e poluição. Todas são características notórias do transporte público nas grandes cidades do país.

Para Kahneman (2011, pág. 395), as descobertas sobre o efeito do deslocamento casa-trabalho no bem-estar têm implicações para a sociedade e ele defende que “um transporte melhor para a força de trabalho” está entre as maneiras relativamente eficientes de elevar o bem-estar da população.

Desenho urbano

A inserção em comunidades é um dos principais fatores relacionados à felicidade para a Psicologia Positiva – ramo da psicologia que, em vez de focar em patologias, estuda, entre outras coisas, o bem-estar13. Para Frey (2008, pág. 154), existe na Psicologia Positiva um “reconhecimento de que as pessoas e experiências integram um contexto social. Comunidades positivas como a igreja ou a família são consideradas fatores importantes para alcançar a felicidade.” Assim, um desenho urbano que privilegie a convivência e dê espaço a essas comunidades contribuiria positivamente para o bem-estar individual.

Para Helliwell, espaços públicos que permitam a convivência agradável geram cidadãos mais felizes14.   Para Carter e Gilovich (2010), “aquisições de experiências” tendem a deixar os indivíduos mais felizes do que aquisições materiais. Os autores concluem que fortes conexões sociais, como as decorrentes de organizações recreativas e cívicas são “essenciais” para o bem-estar psicológico. Para Gilovich, o resultado sugere que as políticas públicas devem permitir que os cidadãos tenham essas experiências e opina que as comunidades devem ter “parques, trilhas e assim por diante, que promovam experiências que produzam satisfação real”.15

Saúde

Um importante aspecto ligado à felicidade e que é diretamente afetado por políticas públicas é o estado de saúde de um indivíduo. Alguns pesquisadores defendem que, por conta da adaptação hedônica, algumas condições de saúde não influenciam tanto os níveis de bem-estar, que seria mais afetado por condições que retém de forma quase permanente a atenção do doente – mas essa visão é contestada por outros pesquisadores. No entanto, todos concordam que pelo menos alguns estados de saúde têm forte efeito permanente sobre a satisfação com a vida. Ainda, muitos pesquisadores apontam a relevância da saúde mental para o bem-estar individual16.

Outros fatores

O estudo da felicidade encontrou ainda a influência de outros fatores não econômicos no nível de bem-estar subjetivo. Entre eles estão, positivamente, o voluntariado e o convívio social, e, negativamente, a insegurança, a degradação ambiental, a discriminação e a publicidade.

Iniciativas pelo mundo

Vários países e organismos têm dado uma atenção maior tem sido dada aos indicadores de bem-estar. Um exemplo foi a criação,  pelo ex-presidente francês Nicholas Sarkozy, da Comissão para a Mensuração da Performance Econômica e do Progresso Social (Comissão Stiglitz-Sen), liderada pelos vencedores do prêmio Nobel em Economia Joseph Stiglitz e Amartya Sem, e que contou com a participação também de outros acadêmicos ilustres (alguns deles também laureados com o Nobel), como Daniel Kahneman, James Heckman e Kenneth Arrow, Angus Deaton, Alan Krueger e Cass Sunstein. A Comissão estudou os limites do PIB como um indicador desempenho econômico e como poderiam ser produzidos outros indicadores relevantes de progresso social.

Na mesma linha, em 2011, a Assembleia Geral da ONU aprovou unanimemente a Resolução 65/309, convidando os países membros a medir a felicidade de seus cidadãos e a usar os dados para orientar suas políticas públicas. Na Resolução, a ONU coloca a busca da felicidade como um objetivo humano fundamental, reconhece que  o objetivo da felicidade e a sua aspiração encarna o espírito dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.

Os países já contam também com um padrão internacional para a mensuração do bem-estar: a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou, em 2013, documento oficial com diretrizes técnicas orientando os países em como mensurar o bem-estar subjetivo17.

Também no âmbito internacional, vários rankings comparam o nível de bem-estar subjetivo entre os países, como o The World Happiness Report, organizado pelos economistas John Helliwell, Richard Layard e Jeffrey Sachs, com a última versão em 2013 – com o Brasil aparecendo em 24º lugar dentre 156 países.

Felicidade Interna Bruta como objetivo?

A mais conhecida iniciativa internacional, entretanto, é a do Reino do Butão, que já nos anos 70 colocou como objetivo do país aumentar a “Felicidade Interna Bruta”, aludindo ao Produto Interno Bruto (PIB).  No entanto, a visão mais dominante na Economia da Felicidade é que, em vez disso, os resultados das pesquisas devem servir de insumos adicionais no debate político, não devendo o Estado se comprometer em maximizar um indicador de felicidade.

Como então a Economia da Felicidade pode se relacionar com as políticas públicas? A Economia da Felicidade traz novas informações empíricas para a discussão política sobre determinadas políticas, como visto no caso da mobilidade urbana. Projetos de mobilidade urbana tendem a ser priorizados por conta de suas vantagens, como o incremento da produtividade na economia ou o combate à poluição, e preteridos quando outras políticas são consideradas preferenciais, como quando o governo estimula a compra de carros ou subsidia o preço da gasolina. Neste exemplo, o estudo da felicidade traz mais um elemento para o debate: a descoberta robusta de que uma mobilidade urbana eficiente contribui diretamente para melhorar o bem-estar da população. O caso ilustra como os achados do estudo da felicidade podem ser incorporados pela esfera governamental sem que o governo necessariamente busque maximizar um indicador de felicidade.

Para Frey (2008, pág. 167), em uma democracia, o desenho constitucional permite que os cidadãos “revelem suas preferências e forneçam aos políticos (o governo) o incentivo para torná-las realidade”, concluindo que a maximização de um indicador de felicidade não respeita esse processo. Os cidadãos podem distorcer o resultado das pesquisas respondendo a elas de maneira estratégica, em vez de sincera; e o governo pode dar mais importância para políticas populistas que elevem o indicador, ainda que elas não sejam sustentáveis, ou alterar a metodologia do indicador de maneira que lhe seja benéfica (um exemplo parecido é o de governos que “maquiam” a taxa de inflação). Assim, a discussão remeteria à chamada “Lei de Goodhart”, que afirma que, quando uma medida passa a ser um objetivo, ela não é mais uma boa medida do que se está avaliando18.

Conclusão

Conforme Frey, caberia aos resultados do estudo da felicidade prover “inputs” ao processo político: “Esses inputs devem ser colocados à prova na competição política e no debate entre os cidadãos, e entre os cidadãos e os políticos.” (pág. 181).

Dessa forma, a visão das pesquisas em felicidade competiria com outras visões, deixando para o processo político a atribuição de tomar a melhor decisão a respeito de quais resultados devem ser incorporados. Com isso, ainda segundo Frey (2008, pág. 182): “O perigo de paternalismo estatal desaparece e os indivíduos recebem a chance de determinar por si como eles escolhem elevar o seu bem-estar”.

Assim, como mostrado no texto, os resultados de muitas pesquisas podem ser úteis ao debate de políticas públicas de várias áreas no Brasil, sem passar por cima de outros argumentos ou de outras políticas públicas que não se liguem à felicidade. Para o economista Eduardo Giannetti da Fonseca, por exemplo, a economia ainda é muito importante, mas ele espera que ela “deixe de ocupar o lugar de proeminência que ocupa hoje no debate brasileiro para que a gente possa focar em questões ligadas à cidadania, à realização humana, à felicidade.19” O pensamento de Giannetti em relação ao crescimento econômico seria ilustrativo: expandido para outras áreas estaria sendo consoante com o estado atual da Economia da Felicidade, que reconhece a importância de temas atualmente em debate, mas ressalta áreas para onde a nossa atenção deve migrar.

(Este texto é baseado no trabalho “Economia da Felicidade: Implicações para Políticas”. O estudo integral consta do Texto para Discussão nº 156 do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado, disponível no seguinte link: http://www.senado.gov.br/estudos)

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1 Ver, entre outros, Gardner e Oswald (2001).

2  LARA RESENDE, A. Além da conjuntura. Valor Econômico, São Paulo, 21 dez. 2012.

3 van Herwaarden et. al (1977) e van Praag e van der Sar (1988).

4 Ver Irwin (1944).

5 Ver, entre outros, Winkelmann e Winkelmann (1998) e Marks e Fleming (1999).

6 KAHNEMAN, D. 2011: What scientific concept would improve everybody’s cognitive toolkit? Edge. Disponível em: http://edge.org/responses/what-scientific-concept-would-improve-everybodys-cognitive-toolkit. Acesso em 21/07/2014

7 Vass (2012)

8 Outros conceitos relacionados apresentados por Kahneman (2011) são os de “negligência com a duração” (duration neglect) e “regra do pico-fim” (peak-end rule), que explicariam o pequeno efeito do consumo pelo relativamente pouco tempo gasto com os bens adquiridos.

9 LARA RESENDE, A. ‘É preciso crescer com qualidade de vida’, diz Lara Resende. [8 de março, 2014]. São Paulo: O Estado de São Paulo. Entrevista concedida a Alexa Salomão e Ricardo Grinbaum. Disponível em: http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,e-preciso-crescer-com-qualidade-de-vida-diz-lara-resende,179169e. Acesso em: 21/07/2014

10 Cabe observar que o conceito macroeconômico de “consumo” não se refere apenas ao consumo de bens materiais, incluindo também o consumo de serviços.

11 Ver Helliwell e Huang (2007) e Frey e Stutzer (2000)

12 O verbo inglês “to commute” se refere não apenas ao trajeto de casa até o trabalho, mas também a um local de estudo. Por simplificação, adota-se aqui o termo “casa-trabalho”.

13 Ver, entre outros, Seligman e Csikszentmihalyi (2000).

14 Bogota’s Urban Happiness Movement [25 de junho, 2007]. Toronto: The Globe and Mail. Entrevista concedida a Charles Montgomery. Disponível em: http://www.theglobeandmail.com/life/bogotas-urban-happiness-movement/article1087786/?page=all . Acesso em: 06/08/2014

15 GILOVICH, T. Glee from Buying Objects Wanes, While Joy of Buying Experiences Keeps Growing. [31 de março, 2010]. Ithaca: Cornell Chronicle. Entrevista concedida a George Lowery. Disponível em: http://www.news.cornell.edu/stories/2010/03/study-shows-experiences-are-better-possessions. Acesso em: 06/08/2014

16 Ver Kahneman (2011), Easterlin (2003), Helliwell et. al (2013).

17 ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (2013). Guidelines on measuring subjective well-being. Paris: OCDE.

18 Ver Goodhart (1975).

19 GIANNETTI DA FONSECA, E.  Programa de Marina será cumprido quando conta fiscal permitir. [8 de setembro, 2014]. São Paulo: Valor Econômico. Entrevista concedida a Denise Neumann e Catherine Vieira.

20 Economist Rankings at IDEAS (RePEc): http://ideas.repec.org/top/top.person.all.html. Acesso em junho de 2014.

 

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A desigualdade de renda parou de cair? (Parte III) https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2041&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-desigualdade-de-renda-parou-de-cair-parte-iii https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2041#comments Tue, 29 Oct 2013 13:44:19 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2041 O texto da semana passada mostrou como o mercado de trabalho atuou no sentido de reduzir a desigualdade de renda desde pelo menos o início da primeira década do século XXI. Argumentou-se, naquele texto, que as condições que levaram à redução da desigualdade podem não se reproduzir nos próximos anos, o que faria com que a trajetória de queda se interrompesse.

O presente texto analisa o impacto das políticas sociais mostrando que, também nesse caso, os ganhos mais fáceis em termos de redistribuição já foram obtidos, podendo-se prever redução do seu efeito redistributivo nos próximos anos.

De acordo com IPEA (2013)1, aproximadamente 40% da queda da desigualdade entre 2002 e 2012 decorreu de políticas governamentais, sendo os seguintes os impactos individuais de cada política: aumento do valor real das aposentadorias de menor valor, indexadas ao salário-mínimo (21%); expansão do Bolsa Família (12%) e do Benefício de Prestação Continuada (BPC) (6%). Souza e Medeiros (2013)2, analisando a variação da desigualdade entre 2002 e 2009, chegam a números similares.

Trata-se de impacto significativo: as políticas sociais estão, de fato, ajudando a reduzir a desigualdade. Todavia, o governo poderia ter feito muito mais em termos de redução da desigualdade e da pobreza sem, ao mesmo tempo, ter prejudicado tanto as perspectivas de crescimento econômico, no curto e no médio prazo.

Em primeiro lugar, deve-se considerar que o Bolsa Família, entre os instrumentos de políticas públicas de redução de pobreza e desigualdade, é o mais eficiente, pois reduz a desigualdade a baixo custo. Já os benefícios previdenciários indexados ao salário-mínimo e o BPC (que também é reajustado de acordo com o mínimo) têm elevado custo fiscal. Outros programas públicos, como o Seguro-Desemprego e o Abono Salarial, além de impacto pífio sobre a desigualdade, também têm custo mais alto que o Bolsa Família.

Não obstante isso, o governo insiste em manter programas sociais menos eficientes e de alto custo, em vez de ampliar as intervenções de menor custo, na linha do Bolsa Família. Em especial, insiste nos aumentos reais do salário-mínimo, que provocam grandes aumentos de despesa pública, gerando desequilíbrio fiscal (além do problema citado na parte II, publicada na semana passada: elevação de custos e perda de competitividade das empresas).

Os aumentos reais do salário-mínimo são uma importante ferramenta eleitoral, o que torna difícil alteração de rota em tal política, a despeito de seus impactos adversos. O resultado é a expansão do gasto público, que pressiona a taxa de juros e a carga tributária. Ambos desestimulam o investimento e o crescimento econômico.

Em segundo lugar, é preciso considerar que a Previdência Social como um todo (considerando-se não só os benefícios de um salário-mínimo mas todas as aposentadorias, pensões e demais benefícios pagos) é fortemente concentradora de renda. De acordo com IPEA (2012)3, em 2011 a Previdência era responsável por 18% de toda desigualdade de renda. Ou seja, se não existissem os pagamentos feitos pela Previdência Social, o Índice de Gini seria aproximadamente 18% menor.

Isso ocorre porque são pagos benefícios de valor mais elevado para segmentos de renda mais alta. Uma reforma da previdência que reduzisse os privilégios hoje existentes (como, por exemplo, a concessão de pensões por morte sem qualquer limitação do prazo de concessão ou restrições de valores), diminuiria esse efeito concentrador de renda. No entanto a reforma da previdência saiu da agenda política, tendo sido aprovada apenas uma versão mitigada da previdência complementar dos servidores públicos.

Em terceiro lugar, houve no período 2007-2010 (segundo mandato do Presidente Lula) significativos aumentos salariais para os servidores públicos, o que também tem impacto concentrador de renda, pois o funcionalismo está no topo da distribuição de renda. Houve aumento real da folha de pessoal da União da ordem de 8% ao ano naquele período4, com posterior estabilização ao longo do Governo Dilma.

De acordo com o texto de Souza e Medeiros (2013), acima citado, entre 2003 e 2009 quase toda a redução de desigualdade promovida pelo Bolsa Família (12%) foi desfeita pelo aumento da remuneração dos servidores públicos, que aumentou a desigualdade em  10%. Note-se que também nesse caso houve deterioração das contas fiscais e necessidade de aumento de impostos e juros, com prejuízo para o crescimento da economia.

Em quarto lugar, duas políticas públicas fundamentais para melhorar as condições de vida da população e ao mesmo tempo elevar a produtividade dos trabalhadores, têm apresentado pouco progresso ou estagnação. Trata-se do saneamento e da saúde.

No caso do saneamento, IPEA (2013, p. 7) apresenta a  informação de que “o percentual de pessoas que tiveram acesso simultaneamente a energia elétrica, coleta de lixo, esgotamento sanitário adequado e acesso adequado à rede geral de água aumentou 1 ponto percentual em 2012, atingindo o universo de 59,2%”. Este é um dado muito ruim: 40,8% da população brasileira não têm acesso a serviços públicos básicos.

É relevante ressaltar que enquanto houve farta distribuição de desonerações tributárias nos últimos anos, as empresas de saneamento básico continuaram a ser taxadas integralmente pelo PIS/COFINS e CSLL, a despeito de haver no Congresso diversos projetos propondo tal isenção.

Na saúde, conforme registra Médici (2011)5, houve descontinuidade de importantes políticas de ampliação de atenção à saúde dos mais pobres. Entre 1992 e 2002 a cobertura do Programa Saúde da Família expandiu-se a uma taxa anual de 25,5%, depois, entre 2002 e 2009, essa taxa reduziu-se para 8% a.a.. A mesma desaceleração foi verificada no Programa de Agentes Comunitários de Saúde, que crescia a 72,6% ao ano entre 1994 e 2002 e desacelerou para 2,5% ao ano no período 2002-2009.

Também foi interrompido o processo de organização da rede de atendimento ambulatorial de forma regionalizada. Por esse meio, postos de atendimento básico filtravam os pacientes mais graves para unidades capacitadas para atendimento mais complexo, geridas pelos estados e cobrindo vários municípios. O sistema regrediu para o modelo anterior de hospitais municipais pequenos, sem economia de escala, baixa capacidade operacional e alta ociosidade.

Pouca ênfase foi dada às experiências de gestão hospitalar por Organizações Sociais, em contratos de gestão mais flexíveis que, comprovadamente, reduzem o custo e aumentam a resolutividade e qualidade dos atendimentos.

Ainda na saúde interrompeu-se a implantação do Cartão SUS, que agregaria qualidade ao atendimento, ao armazenar o histórico clinico dos pacientes. Ao mesmo tempo, o Cartão permitiria a criação de uma câmara de compensação financeira, para que os estados e municípios que prestassem o atendimento fossem por ele remunerados, além de permitir a cobrança, junto a planos de saúde, pelo atendimento de seus clientes que viessem a ser atendidos pelo SUS.

Tais medidas, se levadas adiante, reduziriam a iniquidade no atendimento à saúde, melhorariam a gestão, a produtividade e a qualidade dos serviços prestados. Em última instância, elevariam a capacidade laboral do trabalhador, sua produtividade e as perspectivas de crescimento da economia.

Ou seja, com políticas mais focadas na população pobre teria sido possível diminuir a pobreza e a desigualdade de forma mais intensa do que realmente aconteceu. Esse tipo de aperfeiçoamento da política social se torna cada vez mais importante, pois há motivos para se crer que o atual conjunto de política tende a ter menor efeito sobre a desigualdade nos próximos anos, uma vez que os resultados mais fáceis já foram obtidos. Isso porque:

a) o Bolsa Família e os demais programas sociais estão próximos de esgotar o seu processo de expansão (praticamente toda clientela elegível já é atendida pelos programas) e só continuarão a ter efeito redistributivo se houver aumento real no valor dos benefícios, o que se defronta com a delicada situação fiscal do país;

b) o processo de elevação do valor real do salário-mínimo parece já ter chegado a um ponto de esgotamento, tanto por produzir aumentos artificiais de salários, reduzindo a competitividade das empresas, quanto pela pressão que exerce nas contas públicas via previdência social.

c) Segundo Ferreira et al (2013)6, 32% da população brasileira, em 2009, podia ser classificada como “vulnerável”. Essas pessoas deixaram de ser pobres, mas têm razoável chance de voltar a sê-lo. Uma desaceleração da economia pode levar parte desse grande contingente de volta à pobreza, com possível ampliação dos  índices de desigualdade.

Para evitar que a desigualdade e a pobreza parem de cair é preciso ir além dos ajustes nas políticas sociais referidos ao longo desse texto (inclusive nos setores de saúde e saneamento). Deve-se fazer uma reforma da previdência social que, ao mesmo tempo, reduza a iniquidade daquele sistema e promova ajuste estrutural das contas públicas, o que elevará a poupança agregada e, consequentemente, o potencial de crescimento da economia. Portanto, a reforma da previdência combinaria queda de desigualdade com aumento do crescimento.

Da mesma forma, é fundamental dar prioridade à melhoria da qualidade da educação que é o meio mais garantido de gerar, simultaneamente, redução de desigualdade e crescimento econômico no longo prazo. A oferta de educação de qualidade faz com que o futuro das crianças deixe de depender do nível sócio-econômico dos pais. Um sistema educacional equitativo cria igualdade de oportunidades e promove mobilidade social de uma geração para outra. Sem investimentos em educação as famílias podem até melhorar de vida, mas seus horizontes estarão limitados pelo histórico familiar, pois as suas oportunidades de educação tendem a ser similares ou pouco melhores do que as que seus pais tiveram.

Políticas públicas e reformas que combinem redução da desigualdade com remoção de barreiras ao crescimento devem ser as prioridades governamentais.

__________

1 IPEA (2013) “Duas décadas de desigualdade e pobreza no Brasil medidas pela Pnad/IBGE” – Comunicados do IPEA nº 159, de 2013

2 Souza, P.H.G.F, Medeiros, M. (2013) The Decline in Inequality in Brazil in 2003-2009: the role of the State. Universidade de Brasilia. Economics and Politics Working Paper 14/2013.

3 IPEA (2012) A Década Inclusiva (2001-2011): desigualdade, pobreza e políticas de renda. Comunicado IPEA nº 155, de 2012.

4 Fonte: Boletim Estatístico de Pessoal, mar. 2013. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.

5 Médici, A. (2011) Propostas para Melhorar a Cobertura, a Eficiência e a Qualidade no Setor Saúde. In: Bacha, E.L. e Schwartzman, S. (Orgs.) Brasil: a nova agenda social. LTC editora.

6 Ferreira, F.H.G. et al (2013) Economic Mobility and the Rise of Latin American Middle Class. Banco Mundial.

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A desigualdade de renda parou de cair? (Parte II) https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2021&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-desigualdade-de-renda-parou-de-cair-parte-ii https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2021#comments Mon, 21 Oct 2013 11:58:52 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2021 No texto publicado na semana passada chamou-se atenção para o fato de que o Índice de Gini de distribuição de renda no Brasil parou de cair em 2012, interrompendo uma trajetória descendente que vem desde meados dos anos 90. Pode ser que isso seja apenas um dado isolado, que não revele uma nova tendência de interrupção da queda da desigualdade. Mas também pode ser um sinal de que os fatores que levaram à queda da desigualdade estão se estagnando. Isso seria preocupante, pois a desigualdade no Brasil ainda é alta.

A literatura especializada já vem apontando há alguns anos que será cada vez mais difícil manter a redução da desigualdade1. Para sabermos o motivo, é preciso entender quais foram as causas da queda recente da desigualdade.

Esse texto vai se concentrar nos fatores que afetam a desigualdade no mercado de trabalho. Na próxima semana serão analisadas as políticas sociais do governo.

I – A mudança no perfil de demanda de mão-de-obra

A forte queda da desigualdade não ocorreu apenas no Brasil. Como mostram inúmeros estudos, entre eles o artigo Deconstructing the Decline of Inequality in Latin America2, houve generalizada queda de pobreza e desigualdade na maioria dos países da América Latina. O estudo mostra que, dos 17 países estudados, nada menos que 12 tiveram significativa queda de desigualdade.

Essa causa comum parece ser o boom no mercado internacional de commodities, que favoreceu todos os países da região, tipicamente exportadores desse tipo de mercadoria. Esse boom ocorreu exatamente a partir de 2002/2003, quando a desigualdade começou a cair de forma mais intensa. Mas qual seria o mecanismo que transformaria os ganhos no comércio internacional em redução da desigualdade?

Em primeiro lugar é preciso ficar claro que o aumento de preços no mercado internacional dos produtos exportados pela América Latina e a queda dos preços dos produtos de alta tecnologia por ela importados aumentou fortemente o poder de compra dos países da região. Para que se tenha ideia da dimensão desse fenômeno, basta notar quem em 2005 um navio carregado de minério de ferro tinha valor equivalente a 2.200 TVs de tela plana, em 2010 a mesma carga valia o equivalente a 22.000 TVs3.

Mas como esse maior poder de compra passou da mão dos exportadores para o restante da população? E como gerou redução da desigualdade de renda?

A maior renda obtida com exportações ativa a economia como um todo. Passa a haver, por exemplo, maior disponibilidade de divisas, a taxa de câmbio valoriza-se, e as empresas podem importar mais máquinas e equipamentos, enquanto os consumidores podem consumir bens importados a custo menor. As empresas exportadoras depositam seus superávits financeiros nos bancos, que emprestam os recursos para outros setores da economia, aumentando a taxa de investimento e crescimento. O maior investimento aumenta a taxa de crescimento e a demanda por trabalhadores.

Os ganhos nas relações de troca internacional são, portanto, uma bênção, e devem ser aproveitadas ao máximo pelo país. No entanto, embora aumentem a renda e a poupança disponível para financiar investimentos, eles não são suficientes para desencadear o desenvolvimento de todos os setores da economia.

Isso porque o Brasil (assim como boa parte dos países latino-americanos) tem diversos outros problemas que retiram competitividade da economia: a infraestrutura de transportes e comunicações é ruim; a energia é cara; a economia é fechada à concorrência internacional e à importação de insumos e serviços de qualidade; o grau de instrução da mão-de-obra é baixo; o sistema tributário é pesado e distorce os preços; a regulação econômica e a defesa da concorrência são frágeis. Por todos esses motivos o Brasil não consegue competir com outros países no mercado de bens e serviços mais sofisticados.

Quando vem um estímulo externo como o boom de commodities, os setores da economia brasileira que conseguem crescer são aqueles ligados aos serviços de menor conteúdo tecnológico. Esses setores tendem a contratar trabalhadores pouco qualificados. Com maior procura por trabalhadores pouco qualificados, os salários desse grupo cresceram em relação aos demais trabalhadores: daí a redução nas desigualdades salariais.

O raciocínio é o seguinte: o boom de commodities provocou a valorização das moedas dos países exportadores desses produtos, enquanto o aumento da renda se refletiu em maior consumo. Com um câmbio valorizado, o consumo de bens industrializados, disponíveis no mercado internacional (chamado de “bens comercializáveis”), passou a ser atendido por importações, como as TVs de tela plana do exemplo acima. Elas mais baratas e de melhor qualidade que os bens industriais produzidos nos países latino-americanos que, devido aos problemas de má infraestrutura e outros acima listados, não têm produtividade e competitividade para competir com os importados).

Já o aumento do consumo de bens não disponíveis no mercado internacional (serviços em geral, construção civil, produtos perecíveis) –  conhecido como “não-comercializáveis” – teve que ser atendido pelos produtores internos. Isso fez o preço dos serviços e demais bens não comercializáveis disparar em relação ao preço dos bens importados. O preço dos bens importados não subiu, pois o aumento de demanda pode ser atendido por importações crescentes. Já o preço dos bens e serviços não disponíveis para importação subiu, porque a oferta ficou limitada ao que é produzido dentro do país, não dando conta de atender a expansão da demanda.

Ocorre que o setor de serviços utiliza majoritariamente trabalhadores menos qualificados e de menor escolaridade que a indústria. Ou seja, subiu a demanda por trabalhadores menos qualificados no mercado de trabalho e caiu (ou cresceu mais lentamente) a demanda por trabalhadores mais qualificados. Adicionalmente, o próprio setor de commodities, em especial, das commodities agrícolas, é intensivo em mão de obra de menor qualificação. Em consequência, elevaram-se os salários dos menos qualificados em relação aos mais qualificados.

Os países latino-americanos, e o Brasil em particular, criaram mais empregos de balconista, cabeleireiro, trabalhador rural e atendente de call center, e menos vagas de operadores de equipamentos industriais robotizados, designers ou especialistas em telecomunicações.Isso explicaria a redução das desigualdades salariais no mercado de trabalho e a desigualdade de renda.

Note-se que tal distorção não é “culpa” do setor de commodities que, na verdade, é competitivo e gera grande benefício ao país. O problema está na má infraestrutura, no fechamento da economia à competição internacional, no sistema tributário caótico, na frágil regulação de setores oligopolizados, etc. Países como Canadá, Estados Unidos e Austrália, fortes exportadores de commodities, não sofrem o mesmo problema de competitividade do Brasil, pois têm políticas de comércio exterior mais aberta, melhor regulação, melhor infraestrutura, etc.

A história contada acima indica que a queda da desigualdade não é portadora apenas de boas notícias. Ela pode ser sintoma da incapacidade da economia de desenvolver setores de maior tecnologia e maior sofisticação. Com isso, o país perde empregos no segmento mais competitivo. Graças ao boom de renda vindo do exterior, esses empregos são substituídos por outros, menos produtivos, concentrados nos serviços de menor sofisticação. No curto prazo, observamos queda de desigualdade. Mas no longo prazo observaremos menor capacidade de crescimento econômico.

E o que é pior, como o ganho de renda vindo das commodities está fora do controle do governo, por ser determinado no mercado internacional, a reversão dessa tendência pode fazer murchar também o ímpeto do setor de serviços, o que fará com que o baixo crescimento passe a ser acompanhado, também, da interrupção da queda da desigualdade.

Esse pode ser um fator por trás da interrupção da queda da desigualdade em 2012 em relação a 2011. Ao decompor as fontes de variação desse índice, IPEA (2013) constata que no período 2011-2012 as rendas do trabalho deixaram de ser um fator de queda da desigualdade tendo, pelo contrário, levado a pequeno aumento do indicador.

Ou seja, a redução da desigualdade nas remunerações no mercado de trabalho, que foi o carro chefe da queda da desigualdade no período 2002-2011, não ocorreu em 2011-2012. Esse pode ser um indicador de que a dinâmica da expansão dos serviços esteja se esgotando. O fato de que os ganhos de renda vindo das commodities estão se estabilizando pode ser uma das causas dessa reversão.

Esse tipo de raciocínio ajuda a entender também porque a desigualdade não teria caído fortemente ao longo da década de 1990. Em primeiro lugar, porque naquele período, em vez de um choque favorável nos preços das commodities, o mercado internacional impunha ao Brasil e à América Latina um ambiente instável de crises financeiras internacionais e aumentos de juros, que reduziam a renda dos países da região.

Em segundo lugar, houve no Brasil uma série de reformas favoráveis ao crescimento econômico, tais como as privatizações e a abertura comercial com o exterior, que permitiram a entrada de tecnologias de ponta no país. Em um primeiro momento, essas reformas tendem a ter efeito concentrador de renda: elas aumentam a demanda por trabalho mais qualificado em áreas de maior tecnologia (basta imaginar a quantidade de novos engenheiros decorrente da expansão das telecomunicações nos anos 90). Porém, no longo prazo elas abrem caminho para a geração de empregos e o crescimento econômico, espalhando o benefício por toda a economia. Tome-se como exemplo os ganhos de renda que pequenos agricultores e profissionais autônomos tiveram a partir da disponibilidade de telefones celulares.

Em suma, parte significativa da queda da desigualdade a partir de 2002 “caiu do céu”: um presente para a América Latina, sob a forma de alta nos preços das commodities. Esse presente se converteu em queda da desigualdade devido, em parte, à incapacidade dos países da região, e do Brasil em particular, em oferecer às empresas condições de competitividade (infraestrutura, sistema tributário adequado, etc.), o que levou a expansão da economia a ser conduzida pelo setor de serviços de menor conteúdo tecnológico, menos produtivo e demandante de mão-de-obra menos qualificada. Nesse sentido, a queda da desigualdade seria um subproduto positivo gerado por uma fragilidade econômica do país.

II- A mudança no perfil de oferta da mão-de-obra

Outro fator de redução da desigualdade, que também parece ter atuado no sentido de reduzir as diferenças de remuneração no mercado de trabalho, foi o aumento da escolaridade da população. De fato, a média de anos de estudo da população brasileira subiu bastante desde meados da década de 1980. Entre 1950 e 1980 a média de anos de estudo no país cresceu apenas 1,07 anos, passando de 1,5 anos para 2,57 anos. Entre 1980 e 2010 houve crescimento contínuo e um salto de quase 5 anos na média, que passou a ser de 7,55.4

Essa maior quantidade de trabalhadores com mais escolaridade aumentou a oferta de trabalho qualificado e diminuiu a oferta de trabalho pouco qualificado (na suposição de que a escola pública agrega alguma qualificação efetiva ao trabalhador, apesar da sua baixa qualidade). Em consequência, aumentou o preço do trabalho menos qualificado (agora mais escasso) e caiu o preço do trabalho mais qualificado (agora mais abundante).

Note-se que o nível geral de educação (tanto em termos de anos de estudo quanto em termos da qualidade dessa educação) ainda é bastante baixo no país. Mas a evolução observada  teria sido suficiente para amenizar as fortes desigualdades de remuneração no mercado de trabalho.

Ocorre que os ganhos mais fáceis, obtidos pela simples inclusão das crianças na escola, já foi obtido. Daqui para frente, para que o aumento de escolaridade continue a pressionar para baixo a desigualdade e a pobreza, serão necessários avanços na melhoria da qualidade do ensino e aumento na taxa de escolarização de jovens, visto que o ensino fundamental já está universalizado desde meados da década de 1990.

Em especial, é preciso avançar em quantidade e qualidade no ensino médio. Como chama atenção Fernando Veloso em entrevista à Folha de S. Paulo5, ainda é baixo o percentual de jovens entre 15 e 17 anos frequentando a escola (84% segundo a PNAD 2012) e o currículo do ensino médio é ruim e divorciado da necessidade das empresas. Os jovens não chegam ao mercado de trabalho equipados para lidar com procedimentos intensivos em alta tecnologia. Isso significa que uma retomada do crescimento pode levar ao aumento da desigualdade, pois aumentará a demanda por trabalho mais qualificado, e os jovens mais pobres não têm tal qualificação, que não lhes é provida pela escola pública.

Lustig et al (2013) chegam a levantar a hipótese de que parte da queda do diferencial de salários entre pessoas com maior e menor escolaridade vem da deterioração da qualidade do ensino médio. Dado que o conteúdo aprendido pelos alunos desse nível de ensino não teria serventia para as empresas, elas se tornariam indiferentes entre contratar pessoas com ou sem ensino médio completo.

III – O papel do salário-mínimo

Um terceiro mecanismo que pode estar por trás da queda da desigualdade de salários no mercado de trabalho é a ativa política de elevação do valor real do salário-mínimo, perseguida pelo governo desde o segundo mandato de FHC, com intensidade acentuada a partir do primeiro governo Lula.

O salário-mínimo na década de 1990 era muito baixo e havia espaço para a sua elevação, sem prejudicar a rentabilidade das empresas. Porém, após seguidos anos de elevação acima da inflação, o salário-minimo real de 2013 é quase o dobro do seu valor em 1995.

É sabido que o salário-mínimo funciona como uma referência para a fixação de remunerações na base da pirâmide salarial. É comum tomá-lo como referência e reajustar remunerações superiores ao mínimo pelo mesmo índice de correção deste. O resultado é que variações no mínimo impactam fortemente salários maiores que o mínimo e, em cadeia, promovem aumentos das remunerações mais baixas.

Se por um lado isso reduz a desigualdade de remunerações (e faz a desigualdade no país cair), por outro lado acaba afetando o custo do trabalho para as empresas, que perdem lucratividade e competitividade.

A redução da desigualdade no curto prazo, por meio da elevação do salário-mínimo, se faz à custa de perdas de oportunidade de crescimento e geração de renda para todo o país no médio e longo prazos. Mais uma vez temos uma situação em que a queda da desigualdade não é apenas portadora de boas notícias. Há que se considerar, ainda, a possibilidade de os efeitos adversos do salário mínimo sobre a geração de emprego e estímulo ao investimento anularem o efeito redistributivo do aumento da remuneração daqueles que permanecerem empregados.

IV – A desigualdade parou de cair?

Tendo em vista os três fatores acima analisados (mudanças na demanda e na oferta de mão-de-obra e elevação real do salário-mínimo), cabe perguntar se eles continuarão a pressionar a desigualdade para baixo nos próximos anos.

Como já antecipado acima, o papel do boom de commodities sobre a demanda de mão-de-obra tende a arrefecer em função do esfriamento de tal mercado. Ademais, há que se levar em conta que esse não é o melhor caminho para se reduzir a desigualdade, afinal ele passa pela desindustrialização do país e pelo aumento de importância de setores de baixa produtividade, o que reduz o potencial de crescimento e geração de renda futura. Obviamente não se está sugerindo que o governo desestimule a exportação de commodities ou subsidie o setor industrial. O melhor a fazer é aproveitar o bom momento da economia internacional, porém consciente de que é preciso melhorar as condições de produção do Brasil, por meio de expansão da infraestrutura, melhoria na qualidade da educação, controle dos gastos públicos, racionalização do sistema tributário, entre outras medidas que aumentem a produtividade e viabilizem a diversificação da produção no Brasil, aumentando seu conteúdo tecnológico e diminuindo nossa dependência em relação ao comércio internacional de commodities.

Já do lado da oferta de trabalho, a maior escolaridade só continuará a reduzir a desigualdade se houver progressos na melhoria da qualidade da educação; em especial no ensino médio.

No que se refere ao papel do salário-mínimo, é preciso considerar que a política de elevação desse salário acima da inflação tem forte impacto sobre as despesas do governo. Em especial, sobre as contas da previdência social, cujos benefícios são indexados àquela remuneração básica. Assim, parece que em função de esgotamento fiscal não será possível manter tal política por muito tempo, a menos que se jogue para o alto qualquer intenção de manter o equilíbrio fiscal e a inflação sob controle. Mas se a inflação voltar, certamente o quadro distributivo se deteriorará, pois como todos sabem, a inflação é fortemente concentradora de renda.

Ainda que fosse possível aguentar por mais alguns anos o peso fiscal dos reajustes do salário-mínimo, seria preciso julgar se essa seria a melhor opção, tendo em vista as distorções introduzidas no mercado de trabalho, em especial o desestímulo à contratação de pessoal pouco qualificado, cuja produtividade tende a ser inferior ao salário-mínimo.

Em suma, não se pode dizer, ainda, que a parada na queda do Índice de Gini observada em 2012 é uma nova tendência de estabilidade da desigualdade, mesmo porque outros indicadores mantêm a tendência de queda. Mas não faltam motivos para se acreditar que isso seja possível. Ademais, o texto procurou deixar claro que a queda da desigualdade pode não ser portadora apenas de boas notícias. Ela pode ser resultado de fragilidades e desajustes econômicos que têm como custo a menor capacidade de crescimento e de geração de emprego no futuro.

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1 O presente texto está baseado nas seguintes referências bibliográficas:

Lustig, N., Lopez-Calva, L. e Ortiz-Juarez, E. (2013) Deconstructing the Decline of Inequality in Latin America. Banco Mundial. Policy Research Working Paper nº 6552, julho de 2013.

Banco Mundial (2012). The Labor Market Story behind Latin America’s Transformation.

Souza, P.H.G.F, Medeiros, M. (2013) The Decline in Inequality in Brazil in 2003-2009: the role of the State. Universidade de Brasilia. Economics and Politics Working Paper 14/2013.

Azevedo et all (2013) Fifteen Years of Inequality in Latin America. Banco Mundial, Policy Research Working Paper 6384.

Barros, R.P. et al (2009) Markets, the State and the Dynamics of Inequality: Brazil’s case study. UNDP. Research for Public Policy Inclusive Development 14-2009.

Ferreira, F.H.G. et al (2013) Economic Mobility and the Rise of Latin American Middle Class. Banco Mundial.

Lustig, N. et al (2011) The Decline in Inequality in Latin America: How Much, Since When and Why. Tulaine Economics Working Paper Series 1118.

Banco Mundial (2011) A Break of History: Fifteen Years of Inequality Reduction in Latin America.

IPEA (2012) A Década Inclusiva (2001-2011): desigualdade, pobreza e políticas de renda. Comunicado IPEA nº 155, de 2012.

IPEA (2013) “Duas décadas de desigualdade e pobreza no Brasil medidas pela Pnad/IBGE” – Comunicados do IPEA nº 159, de 2013.

2 Lustig, N., Lopez-Calva, L. e Ortiz-Juarez, E. (2013) Deconstructing the Decline of Inequality in Latin America. Banco Mundial. Policy Research Working Paper nº 6552, julho de 2013.

3 http://www.smh.com.au/business/world-business/heavenly-ironore-prices-bound-for-purgatory-as-china-reforms-20130730-2qvoz.html. Agradeço a Marcos Kohler pela indicação dessa estatística comparativa.

4 Fonte: Barro, R. e Lee, J-W (2010) A New Dataset of Educational Attainment in the World, 1950-2010. NBER Working Paper, nº 15.902.

5 “Desigualdade pode voltar a crescer, diz pesquisador” – Folha de S. Paulo, 12/10/2013.

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A desigualdade de renda parou de cair? (Parte I) https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2010&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-desigualdade-de-renda-parou-de-cair-parte-i https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2010#comments Wed, 16 Oct 2013 15:16:36 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2010 O governo tem comemorado, ano após ano, a redução da desigualdade de renda no país. O Índice de Gini, uma das formas de mensurar tal desigualdade, tem caído sistematicamente desde o início da década de 2000, como pode ser visto no Gráfico 1. Criou-se um forte discurso oficial em torno da melhoria desse indicador: política social inclusiva, entrada dos pobres na classe média, expansão da classe C, crescimento da renda dos mais pobres em ritmo chinês, etc. Não seria exagero dizer que a queda da desigualdade é um dos carros-chefes da popularidade dos presidentes Lula e Dilma.

Usar o Índice de Gini tem sido muito útil para fins de propaganda oficial, pois a queda da desigualdade, medida por esse índice, aproximadamente coincide com a entrada do Partido dos Trabalhadores no governo. Essa coincidência temporal se torna uma importante ferramenta de propaganda do tipo “antes” e “depois”. Mostra-se o Gráfico 1 e fala-se: antes de o PT entrar no governo a desigualdade não se mexia; depois que o PT entrou no governo a desigualdade começou a cair.

Gráfico 1 – Evolução da Desigualdade de Renda no Brasil (Índice de Gini para a renda domiciliar per capita): 1977-2012

A Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (PNAD) de 2012, contudo, traz um dado preocupante. Pela primeira vez em mais de dez anos não há redução no Índice de Gini, que ficou praticamente estagnado. Em 2011 registrou o valor de 0,527 e em 2012 ficou em 0,526, como pode ser visto no Gráfico 1.

Em anos anteriores, quando o Índice de Gini caía fortemente, o governo se apressava a divulgar a boa nova, por meio de comunicados técnicos. Mais recentemente essa tarefa tem ficado a cargo do IPEA que, em 2012, analisando o resultado da PNAD 2011, publicou o Comunicado nº 155 (A Década Inclusiva: desigualdade, pobreza e políticas de renda), que centrou toda sua análise da evolução da desigualdade no Índice de Gini, comemorando os resultados virtuosos.

Curiosamente, agora que tal índice parou de cair, o IPEA mudou seu enfoque. No novo documento Comunicado IPEA nº 159 (Duas décadas de desigualdade e pobreza no Brasil medidas pela PNAD/IBGE), aquele órgão técnico coloca a análise do Índice de Gini em segundo plano, e passa a avaliar outras medidas de desigualdade que, ao contrário do Gini, continuaram a cair em 2012.

O IPEA passa a olhar para outros índices, como o de Theil ou a razão de 20% mais ricos em relação aos 20% mais pobres, que apresentaram queda de 2011 para 2012. Com base nisso, passa a adotar um tom otimista, de que a desigualdade continuou a cair e o sol continua a brilhar.

Não há nenhum problema em se avaliar a evolução de vários índices para se aferir com mais certeza a trajetória da desigualdade. Ademais, o fato de o Índice de Gini ter se estabilizado em um ano não quer dizer que ele não volte a cair mais adiante.

Contudo, ao adotar índices alternativos, o governo perde o discurso de que a desigualdade começou a cair quando o PT chegou ao poder, pois os demais índices de desigualdade já estavam caindo desde pelo menos meados da década de 1990. O Gráfico 2 mostra que entre o início e final dos anos 1990 houve uma queda significativa no Índice de Theil, e não tão acentuada no Índice de Gini. Além disso, já a partir dos últimos anos daquela década observa-se uma nítida tendência de queda para o Índice de Theil, e uma não tão nítida tendência de queda para o Gini.

Outro problema que distorce os resultados é escolher um ano base inadequado para comparação. Especificamente, o Comunicado Ipea usou o ano de 1992 como base para o cálculo da evolução da desigualdade no período pré-PT (vide Tabela 3, à pg. 11 do Comunicado IPEA nº 159). Com isso, aquele documento argumenta que a desigualdade teria crescido antes de 2003.

Ocorre que, como pode ser visto nos Gráficos 2 e 3, abaixo, o ano de 1992 representou um ponto de abrupta queda em todos os indicadores de desigualdade (vide pontos indicados por uma seta nos gráficos abaixo), que logo no ano seguinte voltou a subir.

Assim, se tomarmos 1992 e compararmos com 2002, teremos a impressão que houve aumento da desigualdade no período 1992-2002, como quer fazer crer o documento do IPEA, pois em 1992 ela era muito baixa. Mas 1992 não é um ponto representativo. Se mudarmos a base de comparação para o ano seguinte (1993) veremos que a desigualdade, em vez de subir, teve expressiva queda na comparação de 1993 com 2002 em todos os quatro índices apresentados nos Gráficos 2 e 3.

Usar o ano de 1992 como base leva, portanto, à errônea conclusão de que a desigualdade não caiu até 2002, antes de o PT chegar ao poder.

Gráfico 2 – Índices de Desigualdade no Brasil: Gini vs. Theil (1981-2009)

Gráfico 3– Índices de Desigualdade no Brasil: Razão entre 10% mais ricos e 40% mais pobres vs. Razão 20% mais ricos e 20% mais pobres (1981-2009)

Mas, por que não devemos utilizar 1992 como ano base? As melhores práticas nos ensinam que não se deve usar um ponto atípico como base de comparação. Nota-se, nos dois gráficos acima, forte oscilação das diferentes medidas de desigualdade ao final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Isso parece ser resultado de erros de medida na estatística. Com a inflação em níveis elevadíssimos, ficava difícil mensurar com precisão a renda das pessoas, em uma pesquisa como a PNAD que simplesmente pede aos entrevistados que lembrem, de cabeça, qual a sua renda no mês de referência. Como para 1992 a desigualdade é significativamente inferior à dos anos que o antecederam e que o sucederam, sem haver qualquer fator real que nos levasse a justificar sua queda, reforça-se a hipótese de erro de mensuração.

A Tabela 1, abaixo, coloca a questão em números. Ela mostra que na comparação de 1992 com 2002, todos os índices de desigualdade subiram, a exceção da relação entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres, com o que o IPEA conclui que a desigualdade antes de o PT assumir o governo estava em tendência de alta.

Porém, se mudarmos a base de comparação para 1993 veremos que a desigualdade caiu em todos os índices.

Tomar como base um ano atípico, dentro de um período cuja estatística tem baixa qualidade, parece ser um procedimento pouco ortodoxo. Por isso, nem 1992, nem 1993, são bases adequadas de comparação. O mais prudente é tomar como base um ano após o fim da hiperinflação. Assim, a Tabela 1 adota como bases tanto o ano de 1995, quanto o de 1996. Nos dois casos temos que, para todos os índices, a desigualdade era menor em 2002 do que nos respectivos anos de comparação.  Note, ainda, que, coincidentemente, o Índice de Gini, até recentemente o preferido do governo, foi justamente aquele que menos melhorou antes de 2002.

Tabela 1 – Variação nos índices de desigualdade de renda em diferentes períodos de comparação

É verdade que a queda da desigualdade foi mais intensa a partir de 2002/2003 do que no período anterior. Isso não se discute. Porém tal queda não foi integralmente decorrente de políticas do governo. Segundo cálculos do próprio IPEA, a dinâmica da economia privada, em grande parte impulsionada pela alta internacional no preço das commodities, foi responsável por mais da metade da queda da desigualdade. Ademais, quando as políticas de governo influenciaram na queda da desigualdade, criaram efeitos colaterais negativos, reduzindo o crescimento da economia.

Esse, porém, é um assunto que será tratado em outro texto, a ser publicado na próxima semana.

Por ora, resta lamentar que, diante da importância do Índice de Gini para avaliar a distribuição de renda, o Comunicado nº 159, do IPEA, não tenha analisado se a estagnação daquele índice é um sinal preocupante ou se está ocorrendo somente um simples desvio de percurso Lamenta-se também a mudança de enfoque, do Índice de Gini para outros indicadores de distribuição de renda, com o uso de uma base de comparação conveniente à conclusão que se desejava chegar. Isso só reforça a hipótese de que tal mudança foi motivada para sustentar o discurso político do governo.

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Como anda a desigualdade de gênero no Brasil? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=846&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=como-anda-a-desigualdade-de-genero-no-brasil https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=846#comments Mon, 14 Nov 2011 04:01:57 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=846 Desde 2006, o Fórum Econômico Mundial divulga anualmente o Global Gender Gap Index (GGI), que quantifica a magnitude da desigualdade de gênero em mais de 100 países. Em 1º de novembro, foi publicado o GGI de 2011, que classificou o Brasil como 82º dentre 135 países no ranking.

Apesar de índices internacionais tenderem a formas quantitativas de mensuração, o GGI é inovador por combinar dados quantitativos aos qualitativos, estes obtidos pela Executive Opinion Survey do Fórum Econômico Mundial. Além disso, o GGI é o mais robusto dos indicadores de desigualdade de gênero, medindo as disparidades entre homens e mulheres em quatro dimensões, no total de 14 subíndices, de acordo com a tabela I a seguir.

Após serem calculadas as razões, ocorre a normalização dos subíndices por meio da equalização de seus desvios padrões. Os subíndices são então somados, gerando um número para cada dimensão. Posteriormente, é calculada a média das quatro dimensões e esta será igual à pontuação final do país, que pode variar entre 1(igualdade) e 0 (máxima desigualdade).

Em 2006, foram analisados 20 países a menos do que em 2011, e o Brasil, com uma pontuação igual a 0,6543, foi classificado como o 67º país dentre os 115 mensurados. Caso o número de países se mantivesse o mesmo em 2011, a pontuação brasileira, igual a 0,6679, classificaria o País na 76ª posição. Outrossim, nos dois períodos, o Brasil ficou abaixo do índice médio dos 115 países, igual a 0,6617 em 2006 e 0,6824 em 2011.

De 2006 a 2011, o crescimento médio dos índices foi de 4,03%, enquanto o Brasil apresentou uma pequena melhora de 2,1%. É um avanço realmente modesto quando comparado ao Lesotho e a Nicarágua, que aumentaram seus índices em 12,6% e 10,3% respectivamente. Mas é um progresso na busca da igualdade de gênero que não deixa de ser positivo, ao contrário de El Salvador, por exemplo, que viu seu índice diminuir em 3,9%.

O avanço concentrou-se no índice de participação econômica e oportunidades. Mas, apesar da maior inserção da mão de obra feminina no mercado de trabalho em comparação aos anos anteriores, a participação das mulheres ainda é aproximadamente 25% menor em relação à dos homens e a remuneração de homens e mulheres continua consideravelmente desigual.

O subíndice de igualdade salarial classifica o Brasil no último decil do ranking como o 124º país. Já o subíndice de profissionais técnicos, que mensura a mão de obra qualificada, surpreendentemente apresenta razão maior do que 1, o que significa maior quantidade de profissionais femininos do que masculinos, mesmo que, no geral, a taxa de desemprego de mulheres adultas seja 11%  e a dos homens adultos, 5%. No total, considerando a média dos subíndices, o desempenho brasileiro na dimensão econômica obteve a pontuação 0,6490, ocupando a 68ª posição.

Entretanto, é necessário ressaltar que o GGI não quantifica o trabalho informal e/ou doméstico, o que denota falta de representatividade do índice para países que, como o Brasil, tem parte expressiva de sua renda vinculada à economia informal. Infelizmente, nenhum outro índice em voga preenche essa lacuna. O índice de desenvolvimento humano (IDH) elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) não desagrega seus subíndices por sexo.  O Gender-Related Development Index (GDI) também criado pelo PNUD é considerado indicador de desenvolvimento e não de desigualdade, por não ter razões entre mulheres e homens como sua base de cálculo. O Social Institutions and Gender Index (SIGI) da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD) aborda o aspecto institucional da desigualdade de gênero e o Gender Equity Index (GEI) da organização Social Watch estuda o poder político, a educação e a participação econômica, mas não analisa a esfera da saúde, como faz o Global Gender Gap Index.

A dimensão concernente à saúde é a de melhor performance nacional no GGI, repetindo o que já havia sido observado em 2010, pois o Brasil obteve novamente a pontuação máxima, garantindo a 1ª posição junto a mais 37 países. Mas, isso não significa que o sistema de saúde brasileiro tenha qualidade satisfatória – o GGI não é um índice de desenvolvimento, mas de desigualdade de gênero. Logo, a pontuação representa apenas que há condições de igualdade entre homens e mulheres nessa esfera.

Também a educação brasileira é bem avaliada quanto à igualdade de gênero, mantendo-se a pontuação de 2010, igual à 0,990, sendo classificado como o 66º país nesse índice. A taxa de alfabetização é a mesma para homens e mulheres, havendo uma pequena prevalência masculina no ensino fundamental. Contudo, no ensino médio e no superior, as mulheres são mais numerosas do que os homens.

A dimensão política é a de pior desempenho do Brasil nos seis anos analisados, sendo classificado em 2011 como o 114º, com uma pontuação igual a 0,053, atrás de países como Chade, Mali e Azerbaijão. Esse cenário, contudo, apresenta-se melhor do que o do ano anterior, quando o índice político brasileiro obteve pontuação igual a 0,049. Vale ressaltar que o poder político tende a ser a dimensão mais desigual em todos os países analisados, mas a representatividade das brasileiras na política é ínfima e realmente alarmante, apesar da eleição da presidente Dilma Rousseff e das tentativas de se implementar uma política eleitoral efetiva de cotas para mulheres desde 1995.

As regras sobre a participação política feminina estabelecem apenas uma reserva partidária de vagas que, muitas vezes, acabam por não ser preenchidas, devido a uma gama de fatores culturais, sociais, econômicos, psicológicos e institucionais. E mesmo que as vagas sejam preenchidas, isso não significa necessariamente que haverá um maior número de mulheres eleitas.

Vários países latino americanos foram classificados de forma significativamente superior ao Brasil no quesito político. A Argentina, por exemplo, possui a 20ª colocação nesse índice, próxima do Chile na 22ª. Também no ranking geral, ambos estão melhor que o Brasil – o Chile está na 46ª posição e a Argentina na 28ª, a melhor classificação da América do Sul, enquanto na região, o Brasil é o último colocado, devido principalmente ao seu péssimo desempenho na política, atrás de vizinhos como Paraguai, Bolívia e Peru.

O desafio brasileiro, portanto, consiste em estender os bons resultados da educação para a economia e para a política. A qualificação profissional feminina deve servir de base para maior participação das mulheres no mercado de trabalho formal e para remuneração salarial igualitária, além de uma representação política, no mínimo, mais expressiva.

As mensurações fornecem subsídio para mover o debate analítico sobre a igualdade de gênero de uma postura passional para um posicionamento concreto baseado em argumentos objetivos, pois o que é medido e documentado é mais facilmente combatido. Assim, dar visibilidade ao posicionamento desigual de homens e mulheres na sociedade é fundamental para desconstruir o caráter estrutural da desigualdade de gênero, um dos mais persistentes eixos de desigualdade.

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Para ler mais sobre o tema:

http://reports.weforum.org/global-gender-gap-2011/

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