Covid-19 – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Thu, 16 Dec 2021 17:33:52 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Covid 19 – Comparação de mortes no Brasil e outros países https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3542&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=covid-19-comparacao-de-mortes-no-brasil-e-outros-paises Thu, 16 Dec 2021 17:33:52 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3542 Covid 19 – Comparação de mortes no Brasil e outros países

 

Por Roberto Macedo* 

 

Quando a epidemia da Covid-19 começou a se espalhar, em março de 2020, passei a seguir o desenvolvimento dela entre países e regiões por meio de um gráfico que o jornal britânico Financial Times oferece diariamente. O gráfico tem várias opções para o leitor, e passei a seguir mais o que permite examinar a média móvel de sete dias de mortes (por 100 mil habitantes), para os países e regiões de meu interesse, sempre incluindo o Brasil.

Neste artigo, depois de alguns meses sem examinar esses dados e, estimulado pelo noticiário recente sobre o assunto, que indica forte queda dessas mortes no Brasil e aumentos em alguns países e na União Europeia, ainda que de menor dimensão que no passado, resolvi rever esse gráfico. Desta vez cobrindo todo o período desde o início da pandemia até o início de dezembro deste ano, conforme dados do Financial Times do último dia 13 de dezembro. O novo gráfico vem a seguir.

Média móvel dos últimos sete dias

Atribuídas à Covid-19, na União Europeia (EU), nos Estados Unidos (US), 
Reino Unido (UK), Itália(It) e Brasil (BR)

O gráfico cobre dados da União Europeia, Estados Unidos, Reino Unido, Itália e Brasil, assim ordenados conforme as curvas de cada caso, na ordem em que aparecem, de cima para baixo, nos últimos pontos de cada linha no canto inferior direito do gráfico.

A referência a esse canto, de antemão, já significa que no final do gráfico essa região e esses países apresentam valores menores do que os alcançados no início e no meio do gráfico.

O mais interessante é que o Brasil está na melhor posição de todo o grupo nesse final do gráfico, o que vem sendo atribuído ao sucesso mais recente de seu programa governamental de vacinações e do empenho com que a população busca esse programa. Pelo gráfico, nota-se que a pandemia demorou um pouco a atingir taxas mais altas no Brasil, mas no início de 2021 era o país que tinha piores números e só não foi recordista porque a Itália mostrou uma taxa pior uns três meses antes. Enquanto isso, pela televisão, recentemente vi que em alguns países, que não o Brasil, ainda ocorrem manifestações de grandes grupos contrários à vacinação.

Outro desenvolvimento recente foi o surgimento da variante Ômicron, que reacendeu um sinal de alerta quanto à possibilidade de o mundo enfrentar nova onda de agravamento da pandemia. No caso brasileiro esse alerta tem particular importância, pois o sucesso que o gráfico mostra quanto ao nosso país poderia ensejar danos ao empenho no programa de vacinação, tanto pelo governo como por segmentos da população.

Como no início da pandemia, não há alternativa: o remédio consiste em insistir em vacinação, vacinação e vacinação!

 

* Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP, consultor da Fundação Espaço Democrático e membro do Instituto Fernand Braudel.

Artigo publicado no site da Fundação Espaço Democrático em 14 de dezembro de 2021.

 

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Epidemiologia econômica: uma nova ferramenta para lidar com as epidemias https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3448&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=epidemiologia-economica-uma-nova-ferramenta-para-lidar-com-as-epidemias Tue, 25 May 2021 13:25:53 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3448 Epidemiologia econômica:

uma nova ferramenta para lidar com as epidemias

Por Araceli Hubert Ribeiro* e Giácomo Balbinotto Neto**

O objetivo deste artigo é falar sobre um novo campo da economia da saúde, a epidemiologia econômica, a qual busca estudar as doenças infecciosas do ponto de vista do comportamento dos indivíduos com o intuito de avaliar epidemias e sua trajetória com base no comportamento humano e nos custos diretos e indiretos destas doenças, assumindo o pressuposto de um comportamento racional [Becker (1976)].  Aqui iremos apresentar, brevemente, os principais fundamentos desta área, que apesar de estar em sua infância, tem se mostrado ser muito promissora, tanto em termos teóricos como empíricos, bem como relevante para os formuladores de políticas públicas em saúde.

A epidemiologia econômica é a relação entre o comportamento preventivo e a prevalência da doença, focada nas causas econômicas e consequências epidemiológicas da disseminação de doenças infecciosas que afetam a saúde púbica, ou seja, como o comportamento econômico dos indivíduos afeta o curso de uma doença infecciosa em uma população, podendo trazer consequências indesejadas ao nível individual e coletivo.

As doenças infecciosas merecem um estudo a parte da economia de saúde pública. Isto se dá em razão de uma característica única das doenças infecciosas que as tornam particularmente difíceis de analisar: o fato de elas serem transmitidas de pessoa para pessoa. Com isto, o comportamento individual se torna um aspecto central dentro da epidemiologia econômica, especialmente pelo fato de que as escolhas individuais feitas sobre tratamento e prevenção impactam outros indivíduos, gerando externalidades. O impacto das escolhas individuais em outros indivíduos é um conceito muito utilizado na economia, conhecido como externalidade e, em razão desse conceito tão central na economia do bem-estar, a abordagem econômica tem o potencial de contribuir muito para a compreensão de como o comportamento humano afeta as doenças infecciosas e qual é o papel governamental no controle destas doenças.  Um exemplo clássico na área de economia da saúde são as vacinas.

A área da epidemiologia econômica começou a ser desenvolvida juntamente com a pandemia de HIV/AIDS, na década de 1980, quando uma dimensão econômica foi adicionada aos modelos epidemiológicos clássicos utilizados para traçar o curso de um surto viral. Como o HIV se espalha principalmente por meio de relações sexuais, as decisões das pessoas em relação ao contato sexual têm um impacto claro na propagação do HIV, assim como na propagação de outras doenças sexualmente transmissíveis. Os indivíduos tomam diversas decisões que podem impactar a propagação de doenças, como por exemplo, o quão frequentemente lavam as mãos, se evitam sair de casa, se evitam o contato com pessoas possivelmente infectadas, se se testam para determinadas doenças, se usam ou não preservativos, dentre outros.

Segundo Phillipson e Posner (1993, p.3), a ideia de que uma doença contagiosa pudesse ser abordada do ponto de vista econômico havia recebido pouca atenção até o início dos anos 1980. Assim, a abordagem econômica das doenças contagiosas busca examinar as respostas públicas e privadas referentes a doenças contagiosas, de um ponto de vista do comportamento racional, enfatizando principalmente as respostas do comportamento humano a mudanças nos incentivos e a prevalência da doença.

Este ponto com relação ao comportamento racional merece ser mais detalhado. Aqui seguimos a argumentação de Phillipson e Posner (1993, pp. 1-10). Assim, para melhor compreendermos a epidemiologia econômica, parece ser plausível assumirmos que a “escolha racional” não implica necessariamente um comportamento consciente, deliberado ou informado. Na maioria das versões, segundo eles, uma escolha é racional se ela maximizar a utilidade esperada, onde a utilidade diz respeito ao bem-estar subjetivo do indivíduo, e esperado, graças à presença da incerteza, a qual faz com que a escolha possa ser possivelmente ruim. Segundo eles, a racionalidade implicaria que os meios se adequariam aos fins (suiting means to ends), quaisquer que sejam estes fins. Assim, devemos ter claro, segundo os autores, que a teoria econômica da escolha racional seria uma fonte de explicações e predições referentes ao comportamento, que incluiria o comportamento com relação aos perigos de uma doença contagiosa.

A epidemiologia econômica se apoia no comportamento racional das pessoas que buscam maximizar o bem-estar individual com base em incentivos, restrições e informações que chegam a elas. A importância disto, dada a dinâmica do comportamento humano dentro de uma epidemia, traz novas explicações para o entendimento de doenças infecciosas. Como destacaram Phillipson e Posner (1993, p.7), a epidemiologia econômica, busca também ilustrar o poder da análise econômica para iluminar o comportamento não mercado, que é um pouco afastado dos objetos de análise convencional da economia. Segundo Phillipson e Posner (1993, p.8), os modelos epidemiológicos padrões, de um modo geral, exageravam em suas previsões sobre o crescimento das doenças contagiosas, tais como a AIDS, a qual é transmitida principalmente através do comportamento voluntário. Assim, a economia pode ser utilizada para aumentar o poder preditivo e explanatório de tais modelos.

O principal ponto e crítica aos modelos epidemiológicos convencionais é que aqueles modelos falhavam em não considerar a importância dos incentivos na modelagem das respostas privadas tanto com relação às doenças comunicáveis, como com relação aos programas que buscam controlá-las. A razão disto, por exemplo, com relação à AIDS, era a falha em reconhecer que o aumento na prevalência de uma doença é (com certas qualificações) o equivalente a um aumento no preço do comportamento que cria o risco de contrair a doença, induzindo a uma resposta comportamental que iria limitar uma maior disseminação da mesma.

O estudo das epidemias, segundo Phillipson e Posner (1993, p.5), está baseado no pressuposto de que o mercado para atividades que criam o risco de contrair uma doença infecciosa (como o contato com uma pessoa infectada) é muito semelhante a outros mercados que os economistas estudam. Aqui, as trocas de contato são referidas no sentido econômico padrão na qual uma atividade é tomada como sendo mutuamente benéfica para as pessoas nela engajadas. Assim, no caso das doenças contagiosas, é assumido, também, que as pessoas iriam tomar medidas para se ajustar ao risco da infecção, especialmente com relação à prevalência da doença. Ainda segundo eles, os epidemiologistas, por exemplo, na predição do crescimento futuro ou no declínio de uma doença, abstraem o elemento de vontade (volitional element) – qual seja, a decisão de se engajar ou não num comportamento potencialmente transmissível, que os economistas, por sua vez, esperam que venha a ter um aspecto central no crescimento ou declínio até uma vacina ou cura ser desenvolvida. Assim, o modelo econômico das epidemiologias, chamado também de modelo de epidemia racional, implica estimativas menos alarmantes com relação ao futuro do crescimento das doenças contagiosas do que assumido pelos modelos epidemiológicos convencionais, dado que um crescente risco de infecção levaria os indivíduos racionais a substituir as atividades ariscadas, fazendo então, com que a doença fosse autolimitante.

 A epidemiologia econômica considera a possibilidade de a demanda por autoproteção contra uma doença ser sensível à prevalência da doença que é a proporção da população acometida por uma doença específica em um período determinado. Desta maneira, haveria uma relação recíproca entre autoproteção e a prevalência da doença, criando, assim, um loop de resposta como podemos ver na figura 1. A compreensão desta relação auxilia a identificação destes períodos durante o curso de uma epidemia e a resposta subsequente que os indivíduos possam vir a ter em relação à doença.

Figura 1: Relação recíproca entre autoproteção e prevalência da doença

Fonte: Adaptação de Bhattacharya et al., (2013, p. 453).
(1) autoproteção limita o crescimento da doença;
(2) baixa taxa de prevalência acarreta menos autoproteção.

Esta abordagem difere da abordagem epidemiológica tradicional, onde uma maior proteção acarreta um menor crescimento da doença, terminando a relação sem considerar que ela funcionaria como um ciclo e, portanto, não considera a resposta comportamental dos indivíduos que cria esse loop de resposta à prevalência da doença. A análise epidemiológica tradicional certamente discute como vários padrões de comportamento afetam a ocorrência da doença, porém ela não analisa as implicações de como o comportamento se modifica em resposta aos novos incentivos criados pelo crescimento de uma doença, nem analisa os efeitos dessas mudanças nas medidas de saúde pública (Bhattacharya et al., 2013).

Sob o ponto de vista econômico, se uma doença se tornar mais disseminada na população, a demanda por proteção privada (individual) aumenta em resposta. Os meios pelos quais as medidas preventivas aumentam em resposta ao surto da doença podem diferir entre as doenças. Por exemplo, para doenças evitáveis por vacina, estes meios podem representar o número de vacinações adicionais induzidas por cada nova infecção, enquanto para doenças sexualmente transmissíveis pode representar o aumento na correspondência de parceiros sexuais que têm o mesmo status de infecção (Philipson, 2000).

A sensibilidade à prevalência é chamada de elasticidade prevalência da demanda privada por prevenção contra doenças (elasticidade-prevalência). Como mencionado anteriormente, muitos modelos epidemiológicos não consideram que a demanda por proteção reaja à prevalência da doença, e com isso, acabam assumindo, mesmo que implicitamente, que a elasticidade-prevalência é igual a zero (Bhattacharya et al., 2013). Este ponto será aprofundado nos parágrafos a seguir.  Folland et al., (1994), explica mais detalhadamente a questão de intervenções serem ou não autolimitantes, e como isso pode ser identificado. O autor utiliza a equação 1 para apresentar a maneira que a autoproteção está relacionada com a prevalência:

Se Ep é baixo, zero, ou perto de zero, as pessoas demandarão pouca prevenção, resultando, desta forma, em maior prevalência futura. Ao contrário, se Ep é alto, muito maior que zero, então será demandada uma quantidade maior por prevenção, como, por exemplo, vacinas. Assim, existirá uma baixa prevalência futura. Estas demandas por prevenção, de acordo com o autor, alteram a taxa de prevalência da doença.

A elasticidade-prevalência é considerada uma grande contribuição da epidemiologia econômica para a compreensão da propagação de doenças infecciosas. Como explicado anteriormente, a demanda por autoproteção varia de acordo com a prevalência da doença na população, presumindo uma elasticidade-prevalência positiva, ao contrário da visão epidemiológica que assume uma elasticidade-prevalência zero. Além da prevalência, os indivíduos também reagem a outras medidas se percebidas como ameaças como, por exemplo, a taxa de mortalidade (Folland et al., 1994).

De acordo com modelos epidemiológicos, com a elasticidade-prevalência igual a zero, significa que com o aumento da prevalência de uma doença na população, a incidência também cresce, pois os indivíduos não são sensíveis ao surto da doença. Porém, se a elasticidade-prevalência for considerada positiva, enquanto uma doença se propaga, pessoas não infectadas buscam se proteger. Com isso, é possível que a incidência irá permanecer estável ou declinar enquanto a prevalência aumenta (Bhattacharya et al., 2013). A elasticidade-prevalência positiva assume, de acordo com a teoria da epidemiologia econômica, uma relação inversa entre prevalência e incidência.

Pode-se verificar esta relação em epidemias passadas, como, por exemplo, o caso do HIV nos Estados Unidos, mais precisamente, na cidade de São Francisco, que na década de 1980 representava 12,5% dos casos de HIV nos Estados Unidos.

 Algumas evidências empíricas relacionadas à epidemiologia econômica, a fim de exemplificar a sua aplicação direta com base em dados reais, têm indicado como os conceitos desta  nova área da economia da saúde podem ajudar na identificação do problema e nas suas possíveis soluções.

Uma diferença considerável entre modelos epidemiológicos e o modelo apresentado pelos autores é a suposição de que os indivíduos escolham seus parceiros sexuais de acordo com as probabilidades de infecção. Os modelos epidemiológicos descartam esta probabilidade de escolha e assumem uma escolha aleatória. Uma relação sexual que tem o potencial de transmissão de doença ocorre apenas quando parceiros potenciais decidem se relacionar sexualmente. Esta escolha, que é guiada por incentivos, é considerada não aleatória pelo modelo estudado. Esta ênfase nos incentivos, mencionada anteriormente, é a principal diferença para modelos epidemiológicos, neste caso.

A epidemiologia não é uma ciência social, portanto, não incluiu as respostas comportamentais e as preferências humanas individuais nos seus modelos. Como foi argumentado acima, o comportamento cria um efeito de feedback, relacionado à responsividade à prevalência, que tem a capacidade de causar um impacto substancial na propagação de doenças infecciosas. As preferências individuais, isto é, o comportamento individual necessita ser incorporado aos modelos de transmissão de doenças infecciosas, dado que a presença de externalidades implica que o comportamento individual é amplificado devido às consequências que pode ter para outros indivíduos.

Em resumo, modelos econômicos e as evidencias empíricas disponíveis têm mostrado que a demanda por prevenção é elástica à prevalência. Se a demanda for altamente elástica, é visto um declínio percentual na prevalência que levará a um declínio percentual maior nos esforços de prevenção dos indivíduos. Consequentemente, será cada vez mais caro atingir reduções adicionais na prevalência. Estimativas precisas da magnitude da elasticidade são, portanto, cruciais para prever o efeito das escolhas individuais e a necessidade de intervenção governamental.

Este breve artigo teve o objetivo de mostrar como as doenças infecciosas podem ser avaliadas sob a ótica das ciências econômicas. Esta análise não procurou diminuir a importância de outras abordagens, mas sim, ressaltar as recentes contribuições teóricas e empíricas que podem ser feitas pela economia e que não receberam, ainda, a devida atenção pelos epidemiologistas e pelos formuladores de políticas públicas em saúde. O ponto fundamental que buscamos destacar foi que a incorporação dos aspectos comportamentais nos modelos epidemiológicos tradicionais a fim de se ter uma melhor compreensão de como estes comportamentos afetam a trajetória de epidemias e, também, as políticas públicas adotadas para contê-las. Todos estes pontos se mostram críticos para avaliarmos a real eficiência das políticas públicas para doenças infecciosas.

Com o avanço da pandemia do novo coronavírus, esta área está obtendo notoriedade dentro da comunidade dos economistas. Estão sendo feitos diversos esforços para entender o comportamento de diferentes populações e políticas públicas frente à pandemia e o que pode ser feito para mudar os incentivos e restrições individuais para promover uma melhoria na saúde pública. A compreensão do que faz as pessoas tomarem decisões referentes a doenças específicas faz com que se abra um leque de opções e possibilidades de conter a propagação e o agravamento de doenças infecciosas, além de auxiliar o enfrentamento de possíveis epidemias futuras.

A epidemiologia econômica, seus modelos, implicações e evidências empíricas ainda se encontram na fase inicial do seu desenvolvimento, na sua infância para assim dizer, não sendo ainda completamente explorada em termos de implicações e políticas públicas em saúde que afetam o bem-estar de todos os agentes envolvidos.

Com a pandemia da Covid-19 vemos o quanto o comportamento humano tem o poder de alterar a trajetória de uma doença infecciosa. Isto apenas reforça a necessidade de explorarmos ainda mais o campo da epidemiologia econômica como uma forma de melhorarmos a nossa resposta a doenças infecciosas, procurando atingir um bem-estar coletivo. Este tema necessita ainda ser mais detalhado e refinado teoricamente, bem como testado com base em dados reais, especialmente em países que sofrem tanto com doenças infecciosas. Enfim, a epidemiologia econômica constitui-se em um importante tópico de pesquisa, não somente para os economistas, mas também para os profissionais da área da saúde e formuladores de política econômica.

 

Bibliografia

BECKER, G. S. The Economic Approach to Human Behavior. Chicago: University of Chicago Press, 1976.

BHATTACHARYA, J.; HYDE, T.; TU, P. Health Economics. Macmillan International Higher Education, 2013.

BONITA, R.; BEAGLEHOLE, R.; KJELLSTRÖM, T. Epidemiologia Básica. 2. ed. São Paulo: Grupo Editorial Nacional, 2010.

FOLLAND, S.; GOODMAN, A.; STANO, M. The economics of health and healthcare. 7. ed. New Jersey: Prentice Hall, 1994.

GEOFFARD, P. Y.; PHILIPSON, T. Rational epidemics and their public control. International Economic Review, Vol. 37, N. 3, pp. 603-624, Agosto 1996. Disponível em https://www.jstor.org/stable/2527443?seq=1.

GEOFFARD P. Y.; PHILIPSON, T. Disease Eradication: Private versus Public Vaccination. The American Economic Review, Vol. 87, N. 1, pp. 222-230, Março 1997. Disponível em https://wwwjstor.org/stable/2950864.

GERSOVITZ, M.; HAMMER, J. S. Infectious diseases, public policy, and the marriage of economics and epidemiology. World Bank Research Observer, Vol. 18, N. 2, pp. 129–157, Setembro 2003. Disponível em https://doi.org/10.1093/wbro/lkg011.

GERSOVITZ, M.; HAMMER, J. S. The economical control of infectious diseases. The Economic Journal, Vol. 114, pp. 1–27, Janeiro 2004.

PHILIPSON, T. The Welfare Loss of Disease and the Theory of Taxation. Journal of Health Economics, Vol. 14, pp. 387–395, 1995.

PHILIPSON, T. Private vaccination and public health: an empirical examination for U.S. measles. Journal of Human Resources, Vol. 31 N. 3, pp. 611-30, 1996.

PHILIPSON, T. Economic epidemiology and infectious diseases. Handbook of Health Economics, Vol. 1, pp. 1761-1799. Amsterdam: Elsevier, 2000.

PHILIPSON, T.; POSNER, R. A. Private Choices and Public Health: The AIDS Epidemic in an Economic Perspective. Cambridge: Harvard University Press, 1993.

TASSIER, T. The Economics of Epidemiology. Berlin: Springer-Verlag, 2013.

 

*Araceli Hubert Ribeiro é aluna do curso de graduação em Economia da UFRGS.

** Giácomo Balbinotto Neto é professor do PPGE/UFRGS – Economia Aplicada e IATS/UFRGS.

 

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Vacinas? Independência ou mortes! https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3437&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=vacinas-independencia-ou-mortes Fri, 07 May 2021 13:03:09 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3437 Vacinas? Independência ou mortes!

Dependência de importações vem prejudicando a imunização no Brasil

Por Roberto Macedo

O panorama da vacinação contra a Covid-19 no País é claramente insatisfatório e lamentável. Faltam muitas vacinas, o Brasil não se preveniu para comprá-las em meados do segundo semestre do ano passado, com destaque para a recusa das fabricadas pela Pfizer. Depois veio a segunda e mais forte onda da pandemia e a dificuldade de aquisição foi muitíssimo agravada. É preciso implorar aos fabricantes, a governos de outros países e a instituições internacionais, mas não há como atender rápida e satisfatoriamente à demanda de um país tão grande e populoso como o Brasil.

A Fiocruz e o Instituto Butantan vêm fazendo grande esforço para ampliar sua produção, mas esbarram numa dificuldade paralela: a também escassa disponibilidade do IFA, o insumo farmacêutico ativo, principal ingrediente das vacinas, não produzido no Brasil, que vem da China. Juntamente com as vacinas, tem altos custos de transporte aéreo. Tanto a Fiocruz como o Butantan estão construindo novas plantas para produzir o IFA, mas isso toma um tempo que mantém o atual caminho definido por séria escassez de vacinas e muitas mortes.

Por essas e outras razões apresentadas mais à frente, esse quadro de muitas dificuldades aponta na direção de que o Brasil, além de produzir o IFA para as duas vacinas oferecidas pelas instituições citadas, apoie mais iniciativas de fabricar imunizantes totalmente nacionais, na sua concepção e nos insumos utilizados, e também mais voltadas para variantes surgidas no País ou aqui mais atuantes. Segundo Januario Montone, consultor de projetos na área de saúde, é provável que a pandemia tenha vindo para ficar e, mesmo se aliviada, poderá exigir revacinação periódica. E podem surgir outros vírus.

Fiocruz e Butantan desenvolvem suas próprias vacinas, a Butanvac no segundo caso, e são iniciativas dignas de apoio, dada a competência dessas duas instituições. Vou me referir a outras iniciativas, menos conhecidas, que também parecem merecedoras de apoio.

A Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto tem um projeto que seria apoiado pelo governo federal. A vacina já tem até nome, Versamune, e o ministro Marcos Pontes, da Ciência, Tecnologia e Inovação, anunciou-a como 100% brasileira. Na lei do orçamento federal de 2021, aprovada pelo Congresso Nacional, receberia R$ 200 milhões, mas foram vetados pelo presidente Bolsonaro ao sancionar a lei. Esta teve de abrir mais espaço para as abjetas emendas parlamentares, cujos projetos não têm, de longe, a mesma prioridade das vacinas.

Conforme O Estado de S. Paulo de 27 de abril, a Universidade Federal do Paraná também desenvolve sua própria vacina, que está em fase de testes. Recebeu apoio do governo do mesmo Estado, que investiu R$ 700 mil nas pesquisas, mais R$ 250 mil em bolsas para doutorandos ligados ao projeto. Esse primeiro valor não será suficiente para toda a fase de testes e outros custos envolvidos.

Outro projeto é o da Universidade Federal de Minas Gerais, a prefeitura de Belo Horizonte decidiu financiá-lo, investindo cerca de R$ 30 milhões na produção do imunizante, que serão usados para o teste de sua segunda fase. Mas também aí serão necessários recursos para a terceira fase e outros custos envolvidos.

Esses valores são muito díspares e não tenho condições de avaliar as efetivas necessidades, o que deveria ser parte do processo de apoiá-las. E há outros projetos em andamento. Segundo o jornal O Globo de sábado passado, conforme informação do Ministério da Saúde, o País tem hoje ao menos 17 vacinas contra a Covid-19 em estudo, mas a reportagem não teve acesso à lista delas. Creio que o setor público não deve apoiar todas, e para evitar politicagens deveria criar uma comissão de alto nível, inclusive ético, para selecionar algumas para apoio.

Cabe também pensar em parcerias entre esses projetos e com o setor privado, que, além da parte de gestão e tecnologia, poderia ajudar também em áreas como a do marketing, até mesmo pensando em exportar após atendidas as necessidades nacionais. Segundo Edward Luce, jornalista do Financial Times, em artigo no jornal Valor de sexta-feira passada, as vacinas Pfizer e Moderna receberam recursos para pesquisas, do governo dos Estados Unidos.

Olhando ainda mais à frente, pode-se pensar ainda num programa de ajuda a países muito pobres e pequenos, para vários dos quais as vacinas hoje não passam de uma miragem, o que poderia também ajudar a melhorar a imagem internacional do Brasil, que está péssima.

Em síntese, nosso país está sendo atropelado pela pandemia, o governo federal está mais voltado para CPI do Senado e, no caso das vacinas, bate cabeça para corrigir seus gravíssimos erros. Mas é bom saber que dentro e fora dele há iniciativas que, se adequadamente incentivadas, poderão superar a dependência do Brasil das indústrias farmacêuticas de outros países. Os depósitos e prateleiras dessas indústrias não estão em condições de atender a todos os que as procuram.

 

 Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 6 de maio de 2021.

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Por que não vacinas para a Covid-19 fora do SUS? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3400&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-nao-vacinas-para-a-covid-19-fora-do-sus Wed, 03 Feb 2021 15:50:43 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3400 Por que não vacinas para a Covid-19 fora do SUS?

Por César Mattos[1]e Cleveland Prates[2]

“Um comerciante é um homem que  …não dá nem toma o imerecido”

Ayn Rand – A Virtude do Egoísmo

 

  1. Introdução

Com a aprovação de duas vacinas no Brasil, Astrazeneca e Coronavac, entrou definitivamente no debate nacional a oferta privada de vacinas contra a Covid-19, como uma complementação à aquisição realizada pelo Estado via SUS.

No entanto, já apareceram reações negativas, até mesmo de onde não se esperava. O pPresidente médico do Hospital Albert Einstein de São Paulo, por exemplo, declarou que “Não acho correto vender vacina no setor privado enquanto estiver faltando na rede pública. Estamos vivendo uma pandemia, não podemos privilegiar quem pode pagar pela vacina.”[3].

Em matéria no Nexo, Bortoni afirmou que “a possibilidade de que empresas comprem vacinas e imunizem seus funcionários é vista por alguns especialistas como imoral, pois pessoas saudáveis estariam passando na frente das que mais necessitam[4]. Na mesma matéria, é citado o professor de bioética Alcino Eduardo Bonella, da Universidade Federal de Uberlândia, que “disse ser condenável do ponto de vista ético que clínicas privadas pudessem vender os imunizantes “sem que exista no setor público a vacina disponibilizada para todo mundo”. Gonzalo Vecina Neto, ex-presidente da ANVISA também se manifestou dizendo que a “compra de vacina contra o coronavírus pelo setor privado não é proibida, mas é antiética”.[5]

Em entrevista a Renata Lo Prete no G1, o médico sanitarista Adriano Massuda, pesquisador do Centro de Estudos em Planejamento e Gestão de Saúde da FGV, por sua vez, até reconhece que a vacina fornecida pelo setor privado, com fins comerciais, pode ter um “efeito coletivo”, mas que não justificaria o “efeito negativo sobre a inequidade” do acesso às vacinas, o que se constituiria em um problema moral e ético[6].

Mesmo o economista Armínio Fraga se posicionou contrariamente à provisão privada de vacinas pois não seria “justo alguém entrar num leilão [de vacinas] para algo que é um bem público”[7]. Ademais, o economista seria contrário “devido ao temor de que ela pudesse inflacionar o mercado (já que as empresas pagariam muito mais pelas doses)”, o que acreditamos que seria a única motivação plausível, mas neste caso equivocada.

Nosso objetivo aqui é expor porque estas reservas em relação à provisão privada e comercial da vacina não fazem sentido e mostrar a razão da utilização de mecanismos de mercado se constituir em uma ação complementar fundamental na estratégia de vacinação.

Do ponto de vista econômico, há de fato sentido no Estado entrar e até mesmo assumir a liderança na distribuição de vacinas, especialmente em uma pandemia como a da Covid-19, dado que, como veremos mais à frente, estamos tratando de um caso clássico de geração de externalidades positivas. Não obstante, esta conclusão não autoria afirmar que o setor privado deva ser excluído deste processo. Ao contrário, ele poder ser fundamental na elevação da oferta no país e agilizar o fim da pandemia.

Visando dar maior clareza à linha de argumentação aqui desenvolvida, decidimos segmentar em oito tópicos os principais aspectos desta discussão, conforme pontuado ao longo da continuação do texto.

  1. Vacina como uma forma de gerar externalidades positivas

Vacinas são um exemplo clássico de um bem que gera o que se denomina em economia, de externalidade positiva. Mais precisamente, qualquer um que se vacina se torna um canal de transmissão a menos do vírus, o que beneficia todo o resto da sociedade. Em outras palavras, o ato de se vacinar afeta positivamente todos os demais indivíduos (gera externalidades positivas), mesmo àqueles que ainda não se vacinaram. Entretanto, o benefício gerado (a externalidade) não é internalizada por todo mundo, o que até poderia criar um incentivo para que algumas pessoas não se vacinem, caso tenham que pagar por isso. Portanto, há sentido que o Estado corrija esta “falha do mecanismo de mercado” induzindo a esta “internalização”, por cada pessoa, dos benefícios coletivos gerados pela imunização.

Em outras palavras, o mecanismo de mercado, de forma isolada, geraria uma quantidade de vacinação inferior ao socialmente desejável. Isso, no entanto, não quer dizer que a alternativa ao mercado seja uma imunização exclusiva pelo Estado. Ao contrário, o argumento da externalidade positiva não internalizada apenas aponta que o mecanismo de mercado sozinho não é suficiente, mas não implica que ele não seja útil e nem relevante na estratégia global de vacinação.

Tomando por base esta discussão inicial, a conclusão óbvia é que quanto mais vacinas conseguirmos trazer para o país, mais rapidamente ampliaremos o número de pessoas vacinadas e mais a coletividade se beneficiará do aumento marginal da quantidade de pessoas vacinadas.

  1. Vacina é um bem privado sob o ponto de vista econômico

Algumas pessoas têm usado o argumento de que as vacinas seriam bens públicos e que, portanto, deveriam ser fornecidas exclusivamente pelo Estado. A definição clássica e econômica de bem público pressupõe dois critérios: (i) não rivalidade no consumo; e (ii) não exclusão. A não rivalidade no consumo implica afirmar que o consumo de um bem ou serviço por uma pessoa não impede que outra pessoa também consuma o mesmo produto. Já o critério de “não exclusão” indica que qualquer um que crie um determinado produto não tem condições de impedir que terceiros também façam uso dele. Neste sentido, se alguém, por exemplo, tiver intenção de investir no desenvolvimento de um dado bem ou serviço, não terá como impedir que outros “peguem carona” no seu investimento. O grande dilema que se forma, portanto, é que todos gostariam de ter disponível este produto ou serviço, mas ninguém individualmente estaria disposto a investir na sua consecução, uma vez que teriam como impedir que outros usufruíssem dele sem pagar para assim recuperar o investimento realizado. Neste sentido, só o Estado teria condições de prover ou coordenar o provimento deste serviço. São exemplos clássicos, iluminação pública, exército e justiça.

Note-se, entretanto que as vacinas não preenchem os dois critérios aqui descritos. Em primeiro lugar porque o consumo de uma dose por uma pessoa compromete o consumo da mesma dose por outra pessoa, ou seja, a vacina é um bem que envolve “rivalidade no consumo”. No mesmo sentido a vacina não atende ao critério da “não-excludabilidade”. Se o detentor do produto desejar excluir quem não pagar no consumo, ele pode fazê-lo sem qualquer dificuldade.

Em realidade, as vacinas assumem interesse público pelo efeito sobre um bem vital, que é a saúde da população, e mais ainda pela questão da externalidade positiva acima apontada. Mas a vacina não é um “bem público”.

A questão que resta, portanto, é se a vacina privada e paga por meio do mecanismo denominado “mercado” reduziria a quantidade de vacina disponível para a rede pública dentro do mecanismo “fila” ou se ela se tornaria mais uma opção para a população brasileira, contemplando, inclusive, as preferências dos vários grupos da sociedade.

  1. Há heterogeneidade do produto pelo lado da demanda e da oferta

Nas discussões públicas apontadas até o momento passou despercebido o fato de que há diferenças consideráveis tanto pelo lado da demanda quanto pelo lado da oferta.

Visto pelo lado da demanda, as pessoas têm preferências próprias ou temores específicos com relação ao processo de vacinação. Existem grupos que simplesmente não pretendem se vacinar (os negacionistas). Há outros cuja opção por vacinar pode ser deixada de lado ao longo do tempo, principalmente sabendo-se que o benefício marginal pode se reduzir na medida em que mais gente vacinada pode reduzir o número de contaminados e tornar-se algo menos preocupante para alguns. Há ainda outros que mesmo pretendendo vacinar, têm medo de ter alguma reação adversa com um tipo ou outro da vacina disponibilizada. Em outras palavras, a preferência individual de cada pessoa pode não coincidir com as escolhas do governo, sendo que algumas delas podem estar dispostas a pagar para ter acesso a algo que o Estado não fornecerá.

A preferência do consumidor pode ainda estar associada à urgência que gostaria de tomar a vacina. Pessoas que não necessariamente estão em algum grupo de risco ou aquelas que estão, mas em um lugar na fila pública mais atrás, podem estar dispostas a tomar a vacina antes por qualquer razão que seja. Uma delas, e bastante razoável inclusive sob o ponto de vista público, é o caso de pessoas que têm que sair par trabalhar todos os dias e tem maior probabilidade de contrair a doença, seja no caminho do trabalho, seja no próprio ambiente de trabalho. Como é de conhecimento público, não há como se prever, com certeza absoluta, a reação de cada pessoa à doença e pessoas mais avessas ao risco podem estar dispostas a pagar para não ter que passar por isso.

Neste aspecto, é interessante perceber que o Estado, ao arbitrar a construção da fila, se preocupou com pessoas de mais idade (plenamente justificável pelo risco do agravamento), mas deixou de lado o risco de que profissionais que trabalhem em setores de maior risco (vide o caso dos frigoríficos em Santa Catarina[8]) possam contrair a doença e morrer, deixando desamparadas crianças cujo sustento e futuro possa se comprometer substancialmente por essa perda familiar. A questão posta é: será que esta fila arbitrada como está representa de fato as preferências individuais e principalmente da sociedade como um todo?

Podemos ainda estender este argumento para o caso no qual os demandantes sejam empresas que pretendam comprar a vacina para proteger seus funcionários. Algumas delas podem entender (por ter um conhecimento mais claro do seu negócio) que o risco de manter as pessoas no ambiente de trabalho é elevado e/ou que mantê-las em casa implique perda de produtividade elevada com impacto sobre seus resultados. Quanto mais isso for verdade, mais dispostas essas empresas estarão em pagar pela vacina e reduzir as perdas incorridas, que envolve não só a questão financeira, como também a vida de seus funcionários.

O que parece que também não está sendo visto nesta discussão é que a redução da atividade econômica associada à pandemia e à falta de vacinação implica perdas de emprego e elevação da pobreza, que traz consigo outras doenças e também perdas de vidas. Fato é que o Estado não tem condições de gerenciar e arbitrar todos os casos que podem ser encontrados em nossa sociedade, por se tratar de uma situação de “preferência revelada” (preferência dos consumidores), que só pode ser resolvida pelos mecanismos de mercado via ajuste de preços.

Este aspecto se soma ainda à heterogeneidade pelo lado da oferta. É fato que estamos tratando de um mercado oligopolístico com diferenciação de produtos. As vacinas têm, muitas vezes, processos de produção diferentes, com nível distinto de eficácia e efeitos adversos, além de preços variando de laboratório para laboratório. E tudo isso nos dias de hoje é claramente entendido pela sociedade, sendo que muitas pessoas poderiam se sentir mais confortáveis em tomar uma vacina de um laboratório e não de outro. Se lembrarmos que as compras do governo brasileiro estão concentradas em apenas duas vacinas (a Coronavac e a da Astrazeneca), a possibilidade do setor privado trazer novos tipos de vacina, longe de atrapalhar as compras governamentais, será uma forma de atender às diferentes preferências das pessoas e acelerar o processo de vacinação.

  1. A entrada do setor privado não restringirá a oferta do setor público brasileiro

Principal argumento para não permitir que o setor privado compre vacinas neste momento é o de que há uma forte restrição de oferta neste momento e que isso traria uma questão ética no sentido de quem o Estado brasileiro teria menos condições de elevar a oferta e que as pessoas que teriam dinheiro se vacinariam antes. Em nosso entender esta é uma não discussão pelos condicionantes observados neste mercado.

Em primeiro lugar, há que se destacar que os laboratórios que estão desenvolvendo as vacinas não têm uma “quota” fixa por país. O número de vacinas disponível para os setores público e privado conjuntamente no Brasil, portanto, não pode ser tomado como constante. Ou seja, não é um “jogo soma zero” entre vacinas SUS e vacinas setor privado, ainda que reconhecendo haver uma restrição global momentânea de oferta.

Astrazeneca e Pfizer recentemente anunciaram que ainda não iriam disponibilizar vacinas para o setor privado neste momento da pandemia. Mas isso não implica que elas sempre recusariam ou recusarão o “cliente” no setor privado, mas sim que já fizeram acordos com vários “clientes governos” pelo mundo afora. Ademais, só há muito pouco tempo as vacinas começaram a ser liberadas pelos respectivos órgãos reguladores, o que constitui um risco próprio de Estado, dado requerer ação de governo.

Mas será que o setor privado estaria disputando com o setor público brasileiro neste momento de escassez global de oferta de vacinas? Não há dúvida de que, considerando o mercado mundial como um todo, no presente momento, já existe uma disputa ocorrendo. Mas ela não é entre setor público e privado de cada país, mas sim entre países (incorporando a soma de setor público e privado para cada país), mas apenas em relação ao que ainda não foi contratado pelos vários governos dos vários países. Ou seja, pela oferta futura ainda não contratada.

A grande parte dos países desenvolvidos já contrataram até mais do que precisavam para imunizar toda a sua população. Para esta parcela já contratada não há mais disputa entre setor público e privado nem no plano global.

Reforce-se, o que existe hoje é uma disputa entre países. A Astrazeneca há pouco tempo, por exemplo, avisou que não iria cumprir o cronograma de liberação das vacinas e a presidente da Comissão Europeia (CE), Ursula von der Leyen, afirmou em 26/01/21[9] no Fórum de Davos, que os laboratórios devem honrar os compromissos assumidos pela Europa, que investiu “bilhões para desenvolver as primeiras vacinas contra a Covid-19”.

A Presidente da CE chegou a ponderar que “a aliança Covax, a UE, junto com 186 Estados, garantirá milhões de doses para países de baixa renda”. No entanto, deixou também claro que o mecanismo “fila” priorizará naturalmente, em primeiríssimo lugar, os cidadãos europeus. Não à toa, Von der Leyen asseverou que “por isso, vamos montar um mecanismo de transparência nas exportações de vacinas”, visando a identificar as entregas fora da UE de doses produzidas na Europa[10]. Ou seja, nada diferente de mais uma aplicação do “farinha pouca, meu pirão primeiro”.

Assim, a disputa “estado x estado” é, muito de longe, a restrição relevante para definir a restrição de oferta de vacina que o Brasil enfrentará; principalmente se compararmos a uma eventual disputa com o setor privado brasileiro ou estrangeiro, que por um acaso deseje ofertar comercialmente a vacina aqui dentro do país.

De qualquer forma, a população mundial hoje é de 7,8 bilhões de pessoas, com a população brasileira representando cerca de 2,7% deste total. Ou seja, o Brasil representa menos de 3% da demanda global pela vacina em um mercado que é mundial. Não há qualquer sentido em se afirmar que é a demanda do setor privado brasileiro que fará faltar o produto “vacina para covid-19” para o setor público brasileiro, mas sim a pressão dos outros mais de 97% de demanda que ocorre agora no mundo, e tudo isso fortemente concentrado nos clientes “governos”. Mesmo para aqueles que argumentam que preço se elevaria para o governo, a entrada do setor privado brasileiro seria muito residual para encarecer o produto; sem falar que os preços já foram previamente definidos pela, respectivas indústrias farmacêuticas.

  1. A irrazoabilidade dos argumentos apontando sobre a falta de ética

Há especialistas da área de saúde fazendo alegações de que a entrada do setor privado representaria um problema de ordem ética. O médico Adriano Massuda, por exemplo, chegou a fazer o paralelo da fila da vacina contra o covid-19 com a fila de transplantes de órgãos em que a alocação é regida exclusivamente pelo mecanismo “fila”, respeitando as compatibilidades entre doador e recebedor[11]. Em sua visão, o processo de vacinação deveria seguir o mesmo rito.

Nada mais falacioso. A oferta de órgãos não ocorre pela decisão voluntária de um empresário produzir, mas sim pelo acaso da morte de alguém, o que não pode ser comparado com o mercado mundial da vacina da covid-19, mesmo sob um ambiente de restrição de oferta.

Há pouco tempo houve revolta na mídia acerca da requisição do Supremo Tribunal Federal (STF) para a Fiocruz em priorizar os funcionários do Tribunal. Começavam ali as tentativas de “fura-fila”. A Fiocruz felizmente recusou esta priorização e o próprio STF voltou atrás, inclusive com punição do servidor requisitante, que nunca ficou claro se agiu sozinho ou com a “benção” de cima.

A resposta da Fiocruz se baseou na ordem de prioridade estabelecida pelo Ministério da Saúde. Como o objetivo principal da estratégia de vacinação é minimizar o número de pessoas que pegam a doença e, principalmente, o número de mortes, o Ministério da Saúde concentrou a sua estratégia em vacinar “profissionais de saúde da linha de frente” (que têm naturalmente maior chance de serem contaminados e de transmitirem a doença para seus pacientes), “idosos com mais de 75 anos ou institucionalizados”, com mais chances de efeitos severos e morte na população[12], indígenas e quilombolas[13].

De fato, é eticamente questionável que um grupo qualquer passe na frente dos outros quando há um mecanismo de “fila” com priorização definida por “chance de pegar” e “morbidade” adotado pelo Ministério da Saúde em um contexto momentâneo de restrição de oferta. Mas aqui, repita-se, estamos falando do mecanismo “fila”, e não do mecanismo “mercado”. Daí que cabe indagar se o mesmo argumento utilizado para negar aos servidores do STF a vacina gratuita intermediada pelo SUS poderia ser utilizado para negar a vacina a quem pode e deseja pagar pela vacina paga e intermediada pelo setor privado?

Aqui, novamente, há que se entender que não está se verificando disputa neste momento entre setor público e privado brasileiros. A importação do setor privado para comercialização não ocorrerá se não for permitido o “mecanismo mercado”, o que infelizmente poderá implicar perda de oportunidade para o setor público (que poderia até economizar neste processo) e de bem-estar para a população.  Isto porque, por exemplo, cidadãos brasileiros mais ao final da fila, mas dispostos a pagar, simplesmente vão perder a oportunidade de se vacinar mais rapidamente, sem que isso afete aqueles cidadãos brasileiros que estão no início da fila do Estado e continuarão a ser igualmente vacinados.

Ficam piores também os próprios cidadãos que foram considerados prioritários, que têm mais risco de se contaminar ou morrer, porque eles podem ser contaminados por aqueles que foram impedidos de pagar para se vacinar. Ou seja, é o Estado impedindo o setor privado de, além de vacinar mais pessoas, acelera o processo de geração de externalidades positivas da vacina, inclusive para os que considera prioritários.

Daí se tem o argumento pretensamente ético da “iniquidade” que distingue “quem pode pagar” de “quem mais precisa”. Qualquer mecanismo via mercado, fora da fila, seria “injusto”, “antiético” e “egoísta”? Ora, por que pagar por uma vacina no setor privado, que não diminuirá a oferta disponível para o setor público, apresenta tais adjetivos?

  1. Eficiência pública e privada e questões de ordem prática

Em economia, é conhecido o critério de bem-estar de Pareto: Se você pode melhorar alguém, sem piorar outrem, por que não fazê-lo? É precisamente o mesmo caso aqui. Mais do que isso, se alguém está em 5º na fila e opta por não esperar e pagar para vacinar, ele sai da fila e a vacina chega mais rápido para todos na fila do 6º em diante.

Ademais, o Estado gasta menos com a mesma política pública. É o mesmo que temos hoje entre a população que paga um plano de saúde e não entra nas filas do (ou recorre bem menos ao) SUS. Resolve o seu problema mais rápido e desafoga o sistema para os mais pobres. Será que há um problema ético também em se pagar um “plano de saúde” para si mesmo e sua família?

E isto é completamente distinto de agentes públicos aproveitarem sua posição para conseguir a vacina de graça ou mesmo por um preço menor do que seria no mercado, além de passar na frente de todos dentro da “fila”. O fato de se estar disposto a pagar o que o mercado está pedindo e de isso não reduzir a quantidade de vacina para a “fila” do setor público afasta plenamente o argumento de “injustiça”, falta de ética ou o que for.

Resta aos defensores da tese da “iniquidade” o mesmo argumento que Margaret Thatcher chamava à atenção no parlamento britânico quando um membro do partido trabalhista a questionou sobre o “aumento da desigualdade”, ainda que reconhecendo os efeitos positivos da política econômica sobre o crescimento econômico e redução da pobreza: “As pessoas em todos os níveis de renda estão melhores do que estavam em 1979”. O honorável cavalheiro está dizendo que ele preferiria que os pobres estivessem mais pobres, desde que os ricos estivessem menos ricos. Dessa forma, nunca seria gerada riqueza para melhores serviços sociais como nós temos hoje. Que política?”[14]

Mas a situação está bem pior na prática. Um conjunto de 72 empresas estavam negociando aquisição da vacina da Astrazeneca com o objetivo de conseguir 33 milhões de doses, sendo que 50% seriam doadas ao SUS e 50% ficariam com as empresas participantes, que poderiam imunizar seus empregados. Com a resistência assinalada acima que também resultou em divergências quanto ao percentual a ser doado ao SUS, várias empresas parecem estar dispostas a sair da iniciativa[15]. Ou seja, se já seria um absurdo impedir que empresas privadas comprem vacinas já autorizadas pela Anvisa para imunizar seus empregados e a quem mais desejassem, imagine-se havendo qualquer percentual de doações para o mecanismo “fila” do próprio Estado!?

Outro ponto relevante da hesitação do setor privado em fechar negócios com os laboratórios estrangeiros nas novas vacinas, pelo menos no caso brasileiro, é que, tal como ocorreu com equipamentos para tratamento da pandemia como respiradores, agulhas e seringas, havia (como ainda há) grande probabilidade de expropriação pelos governos nos três níveis da federação. Se o próprio governo federal cogitou fazer isso com as vacinas em relação ao governo paulista (com atitude bem bloqueada pelo STF), mais provável seria isso ocorrer com as empresas privadas. Ou seja, qualquer iniciativa do setor privado em ofertar vacinas tem que ser muito conversada com os governos antes, para evitar que haja este tipo de expropriação.

De outro lado, a Associação Brasileira das Clínicas de Vacina (ABCVAC) e a importadora Precisa Medicamentos fecharam cinco  milhões de doses da vacina Covaxin, desenvolvida pelo laboratório indiano Bharat Biotech contra a Covid-19, a serem destinadas às clínicas privadas no Brasil. Esta vacina, no entanto, ainda está realizando testes na fase 3 e precisa passar pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que têm demandado testes em brasileiros, o que já tem atrasado desnecessariamente a aprovação da Pfizer e Sputinik Russa[16].

  1. Considerações finais

Conforme apontamos ao longo deste texto, parece haver um equívoco consolidado na opinião pública de que a provisão de vacina pelo setor privado implicaria uma competição indesejável com o setor público. Em nossa visão, este equívoco está associado a uma intepretação equivocada, principalmente de profissionais da área saúde, de que o Estado é a única forma de prover um bem que eles consideram “público” em um ambiente de restrição de oferta.

O que procuramos demonstrar aqui foi que apesar de estarmos tratando de uma questão pública de saúde, a vacina, em si mesma, não deve ser entendida como um bem público no sentido clássico econômico. Reforçamos que ela pode e deve ser ofertada pelo Estado não só por uma questão de imunização individual, mas também e principalmente pela externalidade positiva que gera, na medida em que cada indivíduo a mais vacinado reduz o risco dos demais de contrair a doença.

Não obstante, a entrada do setor privado brasileiro, conforme apontamos ao longo do texto, longe de competir com o setor público nacional, só elevará a quantidade de vacina disponível no Brasil e acelerará o processo em curso. Isto porque a competição na realidade já vem ocorrendo entre países e não entre setor público e privado. Vale destacar ainda que muito da demanda dos países desenvolvidos já foi contratada e que estamos tratando de uma oferta futura ainda não disponibilizada e negociada.

A possibilidade de que novas vacinas de outros laboratórios sejam também trazidas para o país é um argumento a mais a favor da atuação do setor privado, na medida em que a diversificação (além da ampliação) da oferta poderá contemplar demandas específicas.

Desta forma, consideramos que neste momento de escassez, em que urge uma rápida resposta de incremento de oferta interna, os mecanismos “fila” e de “mercado” devem caminhar juntos. Renegar o mecanismo de mercado terá seu custo medido em mais vidas desnecessariamente perdidas.

 

[1] Doutor e em Economia e consultor da Câmara dos Deputados.

[2] Economista especializado em regulação, defesa da concorrência e áreas correlatas. Atualmente é sócio-diretor da Microanalysis Consultoria Econômica, coordenador do curso de regulação da Fipe e professor de economia da FGV-Law/SP.

[3]https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/01/27/nao-podemos-privilegiar-quem-pode-pagar.ghtml.

[4]https://www.nexojornal.com.br/expresso/2021/01/26/A-corrida-por-fora-de-empres%C3%A1rios-pela-vacina-contra-a-covid-19.

[5] https://www.fm.usp.br/fmusp/noticias/compra-de-vacina-contra-coronavirus-pelo-setor-privado-nao-e-proibida-mas-e-antietica.

[6] https://g1.globo.com/podcast/o-assunto/noticia/2021/01/27/o-assunto-377-publico-x-privado-fila-paralela-da-vacina.ghtml.

[7]https://valor.globo.com/live/noticia/2021/01/28/busca-de-vacinas-pelo-setor-privado-e-compreensivel-mas-nao-acho-boa-ideia-diz-arminio.ghtml.

[8]https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/bbc/2020/07/22/covid-19-se-alastra-em-frigorificos-e-poe-brasileiros-e-imigrantes.htm.

[9]https://veja.abril.com.br/mundo/uniao-europeia-cobra-que-pfizer-e-astrazeneca-entreguem-vacinas-sem-atraso/

[10] Von der Leyen inclusive encrencou com as vacinas a serem destinadas ao Reino Unido. Ver https://veja.abril.com.br/blog/mundialista/fiasco-total-a-chefona-da-europa-queima-largada-na-guerra-das-vacinas/

[11] O que não implica que não se poderia melhor otimizar o mecanismo “fila”, introduzindo-se princípios de mercado sem que seja requerida qualquer transação financeira. O prêmio Nobel Alvin Roth explica no capítulo 3 “Trocas que salvam Vidas” em seu livro “Como funcionam os mercados: a nova economia das combinações e do desenho de mercado” Porfolio Penguin, 2016 como as filas de transplantes podem ser aprimoradas para ampliar a oferta de órgãos para pacientes à espera de transplantes.

[12]Em reportagem de 19/12/20, o Poder360 (https://www.poder360.com.br/coronavirus/pandemia-volta-a-ter-mais-mortes-mas-faixa-etaria-da-letalidade-se-mantem/#:~:text=A%20maior%20propor%C3%A7%C3%A3o%20de%20v%C3%ADtimas,13%2C6%25%20da%20popula%C3%A7%C3%A3o) mostra que as pessoas com mais de 60 anos representavam 74% do total de mortos pela pandemia, mesmo sendo apenas 13,6% da população.

[13] Dependendo da localização, estes dois grupos podem ter, de fato, mais ou menos acesso aos recursos do SUS. A depender do grau de integração de aldeias e comunidades com pessoas de fora, também têm menos contato com pessoas contaminadas, reduzindo sua vulnerabilidade. Também não encontramos evidência de que tais grupos seriam realmente mais vulneráveis que outros grupos de cidadãos pobres, especialmente nos aglomerados urbanos das grandes cidades brasileiras. Particularmente as pessoas que utilizam transporte coletivo nas cidades devem ter uma chance de pegar e de transmitir maior (e sua vacinação gerar mais externalidades positivas) que estes grupos teoricamente mais isolados.

[14] https://blog.acton.org/archives/53033-what-margaret-thatcher-understood-about-income-inequality.html

[15] https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/01/28/empresas-reveem-posicao-sobre-negociacao-para-compra-de-vacina.ghtml

[16] https://oglobo.globo.com/sociedade/vacina/covid-19-clinicas-privadas-fecham-acordo-por-5-milhoes-de-doses-de-vacinas-da-india-diz-valor-24857066

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