Belo Monte – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Mon, 05 Mar 2012 11:49:01 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 O que são usinas hidrelétricas “a fio d’água” e quais os custos inerentes à sua construção? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1111&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-que-sao-usinas-hidreletricas-a-fio-d%25e2%2580%2599agua-e-quais-os-custos-inerentes-a-sua-construcao https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1111#comments Mon, 05 Mar 2012 11:49:01 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1111 Usinas hidrelétricas “a fio d’água” são aquelas que não dispõem de reservatório de água, ou o têm em dimensões menores do que poderiam ter. Optar pela construção de uma usina “a fio d’água” significa optar por não manter um estoque de água que poderia ser acumulado em uma barragem. Esta foi uma opção adotada para a construção da Usina de Belo Monte e parece ser uma tendência a ser adotada em projetos futuros, em especial aqueles localizados na Amazônia, onde se concentra grande potencial hidrelétrico nacional. Aliás, as usinas Santo Antonio e Jirau, já em construção no rio Madeira, são exemplos dessa tendência.

Quais as consequências e custos inerentes a essa opção? Quais serão os problemas futuros que a decisão de abrir mão de reservatórios com efetiva capacidade de regularização de vazões poderá criar?

Primeiramente, deve-se considerar que a energia “gerada” por uma hidrelétrica resulta da transformação da “força” do movimento da água. Transforma-se, assim, em energia elétrica, a energia cinética decorrente da ação combinada da vazão de um rio e dos desníveis de relevo que ele atravessa. Desse modo, não restam dúvidas de que, para o processo, guardar água significa guardar energia.

Os sistemas de captação e adução levam a água até a casa de força, estrutura na qual são instaladas as turbinas. As turbinas são equipamentos cujo movimento giratório provocado pelo fluxo d’água faz girar o rotor do gerador, fazendo com que o deslocamento do campo magnético produza energia elétrica. O vertedouro, por sua vez, permite a saída do excesso de água do reservatório, quando o nível ultrapassa determinados limites. Outros aspectos e outros equipamentos são, também, importantes, mas, em qualquer caso, estaremos diante de uma busca por queda e vazão – a primeira, fixa, e a segunda, variável.

Nesse processo de transformação, a geração de energia elétrica é limitada pelo produto entre vazão e altura de queda, pois a energia obtida é diretamente proporcional ao resultado dessa conta. A barragem interrompe o curso d’água e forma o reservatório, regulando a vazão. Em uma usina com reservatório, essa variável pode ser controlada pelos administradores da planta. Em uma usina a fio d’água, fica-se refém dos humores da natureza, ainda que com menor dependência que as eólicas. Hidrelétricas com reservatórios próprios são capazes de viabilizar a regularização das vazões. Devido à sua capacidade de armazenamento (em períodos úmidos) e deplecionamento (em períodos secos), elas atenuam a variabilidade das afluências naturais.

Deve-se considerar, também, que esse mesmo efeito pode ser obtido com a construção de usinas “rio acima” – ou “a montante”, conforme o jargão técnico. Hidrelétricas instaladas em um mesmo curso hídrico podem atuar de forma integrada. Usinas localizadas “rio acima” – a montante, no jargão técnico – podem usar seus reservatórios para regular o fluxo de água utilizado pelas usinas localizadas “rio abaixo” – a jusante.

A usina binacional Itaipu, por exemplo, por ser a última rio abaixo – a jusante, no jargão técnico – da Bacia do Rio Paraná, é considerada como a fio d’água. Ocorre que se a gigantesca hidrelétrica pode utilizar toda a água que chega ao reservatório, mantendo apenas uma reserva mínima para garantir a operacionalidade, tal diferencial se deve, direta ou indiretamente, à existência de dezenas de barragens a montante.

O conjunto formado pelos potenciais hidráulicos da margem direita do rio Amazonas é considerado como uma rara e poderosa combinação de queda e vazão nos estudos de inventário hidrológicos de bacias brasileiras. A Volta Grande do Xingu, por exemplo, onde está sendo construída a hidrelétrica Belo Monte, apresenta uma queda de cerca de 90 metros entre dois pontos muito próximos de um rio cuja enorme vazão resulta de um percurso de milhares de quilômetros, iniciado no Planalto Central.

Em geral, usinas a fio d’água têm baixos “fatores de capacidade”. O fator de capacidade é uma grandeza adimensional obtida pela divisão da energia efetivamente gerada ao longo do ano – em geral, medida em MWh/ano – pela energia máxima que poderia ser gerada no sistema.[1] Trata-se, portanto, de uma medida da limitação da usina no que diz respeito à sua capacidade de gerar energia.

Na Europa, esse fator situa-se entre 20% e 35%, em média, sendo um pouco maior na China e chegando a valores próximos a 45% nos EUA[2]. Em média, as hidrelétricas brasileiras têm fator de capacidade estimado em valores situados entre 50% e 55%. A regularização de vazões por meio do uso de reservatórios faz com que essa média suba significativamente, embora essa não seja, em muitos casos, a única responsável por isso. No rio São Francisco, por exemplo, esse número para Sobradinho é 51%, e para Xingó, mais a jusante, é 68%. No rio Madeira, a usina Jirau tem fator de capacidade próximo de 58%, e o número para a usina Santo Antônio é de 68%. Não por acaso, a vantagem relativa de Santo Antonio guarda forte correspondência com o fato de ser um projeto situado a jusante de Jirau. Pelas razões já apontadas, é possível compreender o magnífico número de 83% para Itaipu.

No caso de Belo Monte a potência total instalada é de 11.233,1 MW e a geração anual média é de 4.571 MW, o que resulta em um fator de capacidade pouco maior do que 40%. Esse tem sido um dos pontos mais criticados pelos opositores ao empreendimento, que afirmam que a usina irá “gerar pouca energia”. Mas os argumentos utilizados, em geral, não levam em consideração dois pontos essenciais: os valores médios do fator de capacidade das hidrelétricas brasileiras e a principal razão pela qual o projeto de Belo Monte teve esse valor diminuído.

Ainda que se considerasse Belo Monte como um projeto com fator de capacidade muito distante das médias das usinas brasileiras, deve-se levar em conta que o mesmo não ocorreria ao se compará-lo com aqueles situados na Amazônia e com as de outros países. Em Tucuruí, por exemplo, no rio Tocantins – diga-se de passagem, dispondo da regularização de usinas a montante –, esse valor é de aproximadamente 49%.

O reservatório projetado para Belo Monte foi diminuído, bem como inviabilizada a capacidade de regularização das vazões afluentes às suas barragens, em razão de argumentos de natureza ambiental.  Além disso, houve a decisão de se elaborar um hidrograma denominado “de consenso”, com o objetivo de garantir que, a jusante do barramento, fossem asseguradas boas condições de pesca e de navegação às comunidades indígenas, entre outros aspectos.

Evidentemente, regularizar ou não a vazão de um curso d’água é uma decisão que, necessariamente, deve incorporar a dimensão ambiental – numa escolha entre alternativas que devem ficar absolutamente claras para a sociedade. Entretanto, essa decisão vem sendo tomada sem o necessário amadurecimento, sem uma discussão ampliada, baseada em estudos objetivos dos benefícios e custos associados a tal escolha, com um exagerado receio de desagradar a grupos de pressão específicos e visando a uma boa imagem do governo na mídia.

Aliás, justamente nos diversos meios de comunicação é possível encontrar os maiores disparates sobre o assunto. Nas informações divulgadas nesses meios há boas doses de lirismo, relacionado com a eventual substituição dos projetos de hidrelétricas, nomeadamente aqueles que preveem grandes reservatórios, em benefício de outras formas de transformação de energia – como as eólicas, por exemplo.

Informações de baixa qualidade técnica, inclusive relacionadas à possibilidade de substituição de energia hidrelétrica por eólica, encontram eco entre os mais diversos operadores do direito e resulta em uma posição defensiva dos técnicos governamentais, tanto da área de energia quanto da área ambiental. Alguns dos argumentos mais utilizados nessa judicialização calcada na subjetividade são fundamentados no chamado “Princípio da Precaução”, que pode ser definido como de natureza filosófica, política, doutrinária, religiosa ou ideológica – mas, jamais como de natureza científica.

O Princípio da Precaução é, essencialmente, um preceito que, se aplicado ao pé da letra, inviabilizaria o desenvolvimento, justificando a inação diante da ameaça de danos sérios ao ambiente, mesmo sem que existam provas científicas que estabeleçam um nexo causal entre uma atividade e os seus efeitos. Impõem-se, nesses casos, todas as medidas necessárias para impedir tal ocorrência.

Pode-se dizer que há em tal raciocínio uma quase paródia do pensamento de Leibniz, pois em vez de se supor que nada acontece sem que haja uma causa ou razão determinante, a mera suposição causal (de um dano ambiental, nesse caso) determina que nada deva acontecer.

Como acreditar que seja possível definir ameaça de danos sérios ao ambiente sem uma abordagem científica? Como definir ameaça, danos e sérios sem recorrer à ciência? Lamentavelmente, muitos atores políticos e operadores do direito crêem ser capazes de fazê-lo. No mundo real, a adoção rigorosa do princípio da precaução implicaria fechar todos os laboratórios científicos mundo afora. No Brasil, atualmente, sua aplicação faz com que um empreendedor tenha que provar que as intervenções previstas não trarão impactos, mitigáveis ou não, ao meio considerado, o que é virtualmente impossível.

A militância radical, sustentada no Princípio da Precaução, está se utilizando de um raciocínio de mão única. A usina a fio d’água desperdiça a chance de se guardar energia da forma mais barata e da única forma que permite múltiplas utilizações da água armazenada como a criação de peixes, o turismo e a contenção de cheias, por exemplo.

Em um pensamento predominantemente ideológico não há espaço para que sejam debatidas questões fundamentais acerca da opção única por usinas “a fio d’água” ou com reservatórios subdimensionados. Em primeiro lugar, deve-se considerar que o desperdício de capacidade produtiva de energia a montante da usina a fio d´água é praticamente irreversível. Em segundo lugar, a decisão por um caminho praticamente sem volta foi tomada sem o devido e necessário debate técnico e político acerca de um tema que afetará as próximas gerações. Não seria este o caso de se utilizar o princípio da precaução, evitando-se tomar uma decisão irreversível e de provável impacto ambiental negativo, visto que será necessário, no futuro, recorrer a fontes mais poluentes de energia para substituir a capacidade hidrelétrica desperdiçada?

No Brasil, a capacidade de armazenamento de energia em reservatórios é intensamente beneficiada pela diversidade de ciclos pluviométricos das bacias brasileiras, um diferencial notável em relação a outros países. A otimização desses reservatórios passa pelas linhas de transmissão, que, na prática, funcionam como vasos comunicantes, transportando, em vez de água, energia de uma bacia hidrográfica que esteja em um momento de abundância de água, para outra, onde haja necessidade de se economizar água escassa. Desse modo, Belo Monte não pode ser entendida como uma usina isolada e, sim, como virtuosa e hidricamente intercomunicada – por ser interligada eletricamente – com o resto do País. Uma vez que o rio Xingu tem suas cheias quase dois meses depois das cheias dos rios das regiões Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste, a possibilidade de armazenamento em Belo Monte diminuirá fortemente os riscos de carência de energia – no jargão técnico, o risco de déficit.

Os estudos de um projeto hidrelétrico incluem a análise do comportamento das estruturas, simulando a passagem de uma vazão superior a cheia decamilenar, ou seja, uma cheia de tempo de retorno de 10.000 anos. É tranquilizador saber que a margem de segurança de uma barragem é tão significativa. Todavia, esse cálculo não guarda qualquer relação com a segurança de vazões suficientes para fazer frente à influência da economia sobre a demanda por energia. Nesse caso, utilizam-se os cenários econômicos para estimar a demanda.

Como a matriz de geração elétrica no Brasil há forte predominância hidrotérmica, os cenários começam a sinalizar a crescente necessidade de uso de energia de fonte térmica, mais cara e mais poluidora que a hidrelétrica.

E o pior: “ovos de Colombo”, como a repotenciação e a modernização de hidrelétricas, ainda que totalmente defensáveis, não são processos capazes de garantir o acréscimo anual de 3.300 MW médios de energia que o Ministério de Minas e Energia considera necessário para fazer face às projeções de crescimento econômico para o Brasil. Difundir informações de que a implantação desses processos evitaria, por exemplo, a construção das usinas do rio Madeira não tem qualquer cabimento. O mesmo se pode dizer quanto à possibilidade de eólicas serem capazes de evitar a construção de novas hidrelétricas.

Concordemos, então: a energia eólica é uma beleza, o Brasil deve investir cada vez mais nessa opção, há quem ache lindos os cata-ventos e os zingamochos – embora haja dúvidas quanto à reação da população de cidades que tenham que conviver próximas aos geradores, enfrentando a poluição visual e a descaracterização urbanística. Entretanto, essa não é uma opção para a base da matriz elétrica de qualquer país. Eólicas não são feitas para a geração de base, pois exigem complementação por meio de outras fontes, como hidrelétricas e termelétricas. Com fator de capacidade menor do que a média das hidrelétricas brasileiras, as usinas eólicas dependem fortemente dos ventos, pois essa opção tecnológica não permite armazenar a energia produzida.

O crescimento do mercado consumidor de energia combinado com a implantação de usinas sem reservatórios diminui a confiabilidade do sistema, veda o aproveitamento múltiplo dos lagos das hidrelétricas e obriga o Operador Nacional do Sistema (ONS) a fazer um gerenciamento ano a ano dos estoques de água nas usinas. Como se sabe, sistemas elétricos imunes a defeitos ou a desligamentos imprevistos são modelos teóricos. Os 100% de confiabilidade no sistema elétrico ou “risco zero” de falhas implicaria elevar os custos, que tenderiam ao infinito. E o consumidor teria que pagar por isso, o que implicaria tarifas proibitivas. Assim, no mundo todo, algum risco de falha no sistema é aceito. Mas a redução no nível de confiabilidade do sistema interligado não é desprezível quando se reduz a capacidade de armazenamento de um sistema predominantemente hidrotérmico como o brasileiro.

Quem deveria decidir se a opção pela construção de usinas a fio d’água é a melhor alternativa? Trata-se de um risco para o sistema, um erro inclusive do ponto de vista socioambiental e uma opção praticamente irreversível. Logo, constitui matéria a ser objeto de discussão por ampla representação da sociedade, e não apenas por ativistas ambientais, sociais, ideológicos ou do direito.

Parece que alguém se esqueceu do art. 20, inciso VIII, da Constituição Federal, segundo o qual os potenciais hídricos são bens da União e não de meia dúzia de agentes públicos assustados com as ONGs, com a mídia e com os “achistas” de plantão. Se essa é uma discussão a ser feita pela sociedade e como seria inviável – embora defensável e desejável – a realização de um plebiscito acerca do tema, a democracia representativa tem a única resposta legítima para esse desafio: o Congresso Nacional.

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Para saber mais sobre o tema:

Abbud, O. e Tancredi, M.  Transformações Recentes na Matriz Brasileira de Geração de Energia Elétrica: Causas e Impactos Principais. Texto para Discussão nº 69. Núcleo de Estudos e Pesquisas do Senado, Senado Federal. Disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD69-OmarAbbud_MarcioTancredi.pdf

Montalvão, E.  (2011). Ambiente e energia: crença e ciência no licenciamento ambiental, parte I. Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal. Texto para Discussão nº 93. Disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD93-EdmundoMontalvao.pdf

Faria, I.D.  (2011). Ambiente e energia: crença e ciência no licenciamento ambiental, parte II. Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal. Texto para Discussão nº 94. Disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD94-IvanDutraFaria.pdf

Faria, I.D.  (2011). Ambiente e energia: crença e ciência no licenciamento ambiental, parte III. Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal. Texto para Discussão nº 93. Disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD99-IvanDutraFaria.pdf

Abbud, O. ; Faria, I.D. e Montalvão, E.  (2011). Ambiente e energia: crença e ciência no licenciamento ambiental, parte IV. Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal. Texto para Discussão nº 107.

http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD107-EdmundoMontalvao-IvanDutra-OmarAbbud.pdf.

Faria, I.D.  (2011). Entrevista à TV Senado (2011). http://www.senado.gov.br/noticias/tv/videos/cod_midia_64264.flv


[1] Essa energia é calculada por meio do produto Potência Nominal X 8760 h. Por sua vez, o número de horas anuais é calculado pelo produto 24h X 365 dias, ou seja, 8760 h. Não se deve confundir Fator de Capacidade com Fator de Carga, que é a razão entre a demanda média de energia elétrica, durante um determinado intervalo de tempo, e a demanda máxima registrada no mesmo período. Quanto maior esse índice, mais adequado é o uso da eletricidade.

[2] Os valores médios de fatores de capacidade, em geral, não são muito precisos em razão da dinâmica do processo de implantação de novas usinas em cada país. Por exemplo, a entrada em operação ou a ampliação de um empreendimento pode alterar esses valores. Desse modo, os números aqui apresentados têm função apenas ilustrativa, visando a uma comparação que, de resto, é pertinente, uma vez que as possíveis variações não alteram substantivamente as possíveis conclusões.

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Belo Monte deve ou não deve ser construída? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=939&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=belo-monte-deve-ou-nao-deve-ser-construida https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=939#comments Mon, 12 Dec 2011 11:11:42 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=939 A resposta a quem examina racionalmente a questão, exclusivamente do ponto de vista dos interesses da população brasileira, é uma só: sim. Para entender o porquê, vamos examinar os questionamentos que vêm sendo urdidos em torno de Belo Monte, muitos dos quais absolutamente desconhecidos pela sociedade brasileira. Os principais são o desmatamento da Floresta Amazônica, o desalojamento dos ribeirinhos e supostos prejuízos à população indígena.

Antes, porém, é preciso estabelecer de plano uma verdade: não existe geração de energia elétrica sem impacto ambiental, o que não é diferente no caso da geração de origem hidráulica, eólica ou solar. Dito isso, vamos aos fatos. De acordo com dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), todas as hidrelétricas construídas e a construir na Amazônia – Belo Monte entre elas – ocupariam apenas 0,16% de todo o bioma amazônico, uma área de 10.500 km², algo como duas vezes o território do Distrito Federal, para se ter um elemento de comparação.

Na série de registros de desmatamentos feitos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), entre 1988 e 2010[1], o ano em que menos se desmatou a Amazônia foi o de 2010, quando se consumiu uma área de 7.000 km². Isso significa que a área total a ser ocupada pelos reservatórios de todas as usinas instaladas e potencialmente instaláveis na Amazônia brasileira é inferior à área desmatada em pouco mais de um ano! Ao que tudo indica, portanto, parece mais racional e razoável combater o desmatamento que a construção de hidrelétricas, se o objetivo for preservar a floresta.

O desalojamento de populações ribeirinhas é também um problema importante a ser examinado. Desde que conduzida adequadamente, a remoção dessas populações não deve representar problema. Na maioria dos casos, inclusive, os ribeirinhos vivem em condições miseráveis, em razão do que sua mudança para habitações dotadas de melhor padrão construtivo e sanitário significará uma melhora efetiva das suas condições de vida. Trata-se, neste caso, da remoção dos moradores atingidos pelo projeto, ação que precisa ser corretamente executada pelos empreendedores e tempestivamente fiscalizada pelo poder público.

Pedido recente do Ministério Público Federal para que o Ministério de Minas e Energia ampliasse o prazo de consulta pública do Plano Decenal de Expansão de Energia 2020 baseou-se, entre outros argumentos, no fato de que 113.502 pessoas serão afetadas pelo conjunto de empreendimentos hidrelétricos constantes do Plano, entre os quais a Usina Belo Monte.

Considerando que a energia produzida somente por Belo Monte tem potencial proporcionalmente muito maior – suficiente, por exemplo, para atender a 18 milhões de residências, ou cerca de 60 milhões de pessoas, para ficarmos somente no paralelo residencial –, não seria o caso de se avaliar, com prudência e profundidade, se o Brasil pode prescindir dessa e de outras usinas hidrelétricas apenas para não se ter que realocar, adequadamente, os ribeirinhos atingidos?

Por último, mas não menos importante, vem o tema das terras indígenas,  que são protegidas pela Constituição Federal. Mas, por mais que algumas lideranças indígenas da Amazônia estejam envolvidas na oposição a Belo Monte, o projeto não afeta qualquer reserva indígena, até porque, se assim fosse, não poderia ter sido licenciado. A Funai estava entre os órgãos ouvidos pelo Ibama para o licenciamento da usina e se manifestou favoravelmente à concessão da licença.

Examinemos agora a questão dos pontos de vista econômico e da segurança do abastecimento. A energia elétrica gerada por fonte hídrica é a de melhor relação custo-benefício existente, inclusive do ponto de vista ambiental. Ela praticamente não gera emissões de gases de efeito estufa (GEE) e oferece sub-produtos econômicos importantes: reservação de água para irrigação e consumo, piscicultura, turismo e controle da vazão dos rios, o que evita inundações a jusante das barragens.

As usinas de geração térmica, em contrapartida, não oferecem quaisquer externalidades positivas no seu processo produtivo e são, além disso, grandes emissoras de GEE. As térmicas nucleares, hoje já bastante mais seguras graças aos avanços da tecnologia, embora não sejam grandes emissoras de GEE, ainda precisam resolver o problema da disposição dos resíduos. Mesmo assim, são apontadas pelo cientista e ambientalista James Lovelock[2], criador da Teoria de Gaia, como uma alternativa melhor que as térmicas convencionais.

Examinemos a tabela a seguir, com os preços de geração de energia elétrica por fonte:

Preço de geração de energia elétrica por fonte (R$/MWh) [3]

Fonte Custo fixo CVU(R$/MWh)² Preço final
Hidrelétrica de grande porte 84,58 84,58
Eólica 99,58 99,58
Hidrelétrica de médio porte 147,46 147,46
Pequena Central Hidrelétrica 158,94 158,94
Térmica nuclear 148,79 20,13 168,92
Térmica a carvão 159,34 169,09 328,43
Térmica a biomassa 171,44 167,23 338,67
Térmica a gás natural 166,94 186,82 353,76
Térmica a óleo combustível 166,57 505,76 672,33
Térmica a óleo diesel 166,57 630,29 796,86
Solar Fotovoltaica Não disponível

Fontes: Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) e Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS)

Como se vê, os custos da geração hidrelétrica são altamente competitivos. E, neste particular, Belo Monte é especialmente competitiva: vai gerar energia elétrica a R$ 77,97/MWh, valor ainda menor que a média das hidrelétricas de grande porte.

Destaca-se na tabela acima o preço competitivo das geradoras eólicas, atualmente favorecido por uma específica combinação de fatores conjunturais, da qual constam a baixa cotação do dólar, incentivos e condições especiais de financiamento, e os efeitos da crise econômica nos Estados Unidos e na Europa, fenômeno que reduziu dramaticamente a demanda por aerogeradores e tornou o Brasil virtualmente seu único demandante mundial, reduzindo-lhes o custo a níveis bastante baixos.

A fonte eólica, em conjunto com a fotovoltaica de origem solar, é comumente citada como a solução mais responsável, do ponto de vista ecológico, para a geração de energia elétrica. Sim; é verdade que a fonte eólica é uma fonte extremamente limpa; e que, além disso, vem apresentando custos contingencialmente mais baixos. Nada a obstar, portanto, que seu uso se intensifique, mantidas as condições atuais. Mas, neste ponto, é preciso acrescentar à análise de conjunto o fator da segurança do abastecimento.

O sistema brasileiro é fundamentalmente hidrotérmico. As razões para isso são várias. Em primeiro lugar, o Brasil está em terceiro lugar entre os países que dispõem dos maiores potenciais de aproveitamento de energia hidráulica, com 10% da disponibilidade mundial. Vem atrás da China, que dispõe de 13% do total, e da Rússia, que tem 12%. Após o Brasil, vêm o Canadá, com 7%; o Congo e a Índia, com 5%, cada; e os Estados Unidos, com 4%[4]. Nenhum país deixou de usar esses potenciais, e os que puderam já o aproveitaram todo, dada a sua relação custo-benefício.

As usinas hidrelétricas possuem, em geral, reservatórios que permitem a acumulação de água durante as chuvas, para que se possa gerar energia elétrica no período da estiagem. Mas a acumulação de água nem sempre é suficiente para atender a demanda nacional por energia elétrica. Assim, são necessários recursos complementares para assegurar o abastecimento nessas ocasiões, o que é mais adequadamente proporcionado por fontes térmicas.

Embora mais cara e mais poluente, a geração térmica garante a continuidade do abastecimento: basta acionar a usina termelétrica e tem-se a energia necessária no preciso momento em que ela é demandada. Isso já não ocorre com as geradoras eólicas: o vento venta quando venta, e não quando precisamos dele. Como se vê, ainda que a fonte eólica seja limpa e barata, ao menos nas condições atuais, ela somente tem uso como fonte complementar, permitindo poupar água nos reservatórios das hidrelétricas para os períodos de estiagem.

E já que se está falando de reservatórios, há outro ponto importante a ser abordado em relação à construção de novas hidrelétricas, Belo Monte à frente. O projeto dessa usina foi alterado, de modo a reduzir a área alagada pelo reservatório, em função principalmente das fortes objeções de caráter ambiental que enfrentou desde sua origem.

Em razão disso, Belo Monte acabou por tornar-se uma usina a fio d’água, ou seja,  sem reservatório, o que contribuiu fortemente para que sua potência média tenha caído para 4.571 MW, embora ela tenha turbinas capazes de gerar uma potência total de 11.233 MW. No projeto original, Belo Monte geraria 9.600 MW, em média, para uma área inundada de 1.300 km², mais que o dobro do previsto no projeto atual (516 km²). Um reservatório maior permitiria que a usina operasse em maior escala na seca, mais que dobrando sua produção energética média. Agora, os mesmos grupos de pressão que forçaram essa alteração, acusam o projeto de ineficiência, porque só irá gerar a metade do que poderia, uma vez mantidas as condições do projeto original!

Mas a questão dos reservatórios não se restringe a Belo Monte. Em função desse tipo de pressão, outras usinas vêm sendo projetadas sem reservatórios, a fio d’água, contrariando – além do bom senso e do aproveitamento ótimo desse imenso patrimônio nacional – a Lei nº 9.074, de 1995. Isso se converteu no que foi chamado, em outra ocasião, de “política pública de fato”[5].

A Lei nº 9.074/95, em seu art. 5º, § 3º, conceitua de forma precisa aproveitamento ótimo como “todo potencial definido em sua concepção global pelo melhor eixo do barramento, arranjo físico geral, níveis d’água operativos, reservatório e potência, integrante da alternativa escolhida para divisão de quedas de uma bacia hidrográfica.”. O § 2º do mesmo artigo determina que nenhum aproveitamento hidrelétrico poderá ser licitado sem a definição do aproveitamento ótimo pelo poder concedente, no caso, a União.

O inciso 3º do art. 3º da Lei nº 9.427, de 1996, conferia à Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) a atribuição de definir o “aproveitamento ótimo”, em nome da União. Contudo, esse dispositivo foi revogado pela Medida Provisória nº 144, de 11 de dezembro de 2003 (convertida na Lei nº 10.848, de 15 de março de 2004). Posteriormente, essa competência foi de novo delegada à ANEEL por meio do Decreto nº 4.970, de 30 de janeiro de 2004 (art. 1º, inciso II).

Os inventários das bacias hidrográficas podem ser feitos por quaisquer agentes privados ou pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), mediante registro junto à ANEEL, que autoriza a sua realização por despacho. Cabe, também, à Agência, como dispõe mencionado Decreto, a aprovação dos inventários realizados, o que inclui, por óbvio, a verificação do atendimento do requisito aproveitamento ótimo.

Essa “política pública de fato” precisa ser interrompida imediatamente, para evitar um dano irreversível ao patrimônio nacional. Essas decisões equivocadas, na fase de projeto, se transformam em empreendimentos que não exploram plenamente os potenciais hidrelétricos, com grave prejuízo para o País.

Para finalizar, não parece difícil concluir – se o critério de avaliação for o interesse nacional – que Belo Monte deve ser construída, e não apenas ela! Sem desprezar quaisquer outras formas de geração de energia elétrica – cuja oportunidade de uso tem que ser sempre avaliada por critérios econômicos e ambientais responsáveis –, devemos priorizar a construção de usinas hidrelétricas, de modo a manter nossa matriz de geração entre as mais limpas e mais baratas do mundo. Nesse quesito, o Brasil se mostra, uma vez mais, um país rico: seu potencial hidrelétrico inexplorado está estimado em cerca de 130 mil MW, maior que todo o parque gerador brasileiro hoje em operação, com cerca de 116.500 MW instalados.

Cabe à sociedade brasileira – sem prejuízo da questão ambiental, e a partir de informação completa e imparcial – decidir sobre a conveniência dos novos projetos hidrelétricos, porque seguirá sendo necessário obter energia barata e limpa. Precisamos dessa energia para que possamos viver com dignidade, produzir em condições competitivas e, com isso, construir um futuro melhor.

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Para saber mais sobre o tema:

Abbud, Omar e Tancredi, Márcio – Transformações Recentes na Matriz Brasileira de Geração de Energia Elétrica: Causas e Impactos Principais – Texto para Discussão nº 69, Núcleo de Estudos e Pesquisas do Senado, Senado Federal, disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD69-OmarAbbud_MarcioTancredi.pdf

Montalvão, E.  (2011). Ambiente e energia: crença e ciência no licenciamento ambiental, parte I. Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal, Texto para Discussão nº 93. Disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD93-EdmundoMontalvao.pdf

Faria, I.D.  (2011). Ambiente e energia: crença e ciência no licenciamento ambiental, parte II. Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal, Texto para Discussão nº 94. Disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD94-IvanDutraFaria.pdf

Faria, I.D.  (2011). Ambiente e energia: crença e ciência no licenciamento ambiental, parte III. Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal, Texto para Discussão nº 93. Disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD99-IvanDutraFaria.pdf

Vídeo no Youtube: http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=feG2ipL_pTgP


[1] http://www.obt.inpe.br/prodes/

[2] James Lovelock, Ph.D. em medicina e químico de formação, um dos precursores do movimento ambientalista mundial. Membro da Real Sociedade da Inglaterra e autor de mais de 200 artigos científicos, Lovelock registrou mais de 50 patentes, algumas das quais têm sido usadas pela NASA para a exploração planetária.

[3] Os custos fixos de geração da tabela são preços médios dos Leilões de Energia Nova do período de 2005 a 2010, com exceção do custo da energia eólica, que é o valor alcançado no Leilão de 17/08/2011, primeiro leilão de que participaram as eólicas.

O custo fixo de geração de térmica nuclear é o valor da tarifa estabelecida pela ANEEL para as Usinas Angra I e II em revisão feita em novembro de 2011.

Os valores de CVU (custo variável de geração quando a térmica é chamada a gerar) são médias dos custos variáveis das térmicas utilizados pelo ONS para elaboração da Revisão 3 do Plano Mensal de Operação do mês de setembro de 2011(semana operativa de 17 a 23/09/2011).

[4] Atlas de Energia Elétrica do Brasil, 3ª. ed., 2008, Agência Nacional de Energia Elétrica.

[5] Abbud, Omar e Tancredi, Márcio – Transformações Recentes na Matriz Brasileira de Geração de Energia Elétrica: Causas e Impactos Principais – Texto para Discussão nº 69, Núcleo de Estudos e Pesquisas do Senado, Senado Federal, disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD69-OmarAbbud_MarcioTancredi.pdf

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