balanço de pagamentos – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Mon, 17 Nov 2014 13:03:22 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Como fazer um ajuste fiscal no Governo Federal? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2337&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=como-fazer-um-ajuste-fiscal-no-governo-federal https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2337#comments Mon, 17 Nov 2014 12:22:56 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2337 O Governo Federal está com grande desequilíbrio em suas contas. De janeiro a setembro de 2014 o setor público (União, Estados e Municípios) acumulou um déficit primário de R$ 15,3 bilhões, quando a meta fiscal para o ano era de superávit  de R$ 99 bilhões. Temos, portanto, uma brecha de R$ 114,3 bilhões (aproximadamente 2% do PIB) entre a intenção e a realidade. O déficit nominal (aquele que inclui as despesas com juros) já chegou a 4,9% do PIB, mais que o dobro dos 2,43% do PIB observados a menos de dois anos, em janeiro de 2013. A dívida bruta do governo geral, que era de 56,7% do PIB em dezembro de 2013,  pulou para 61,7% do PIB em setembro de 2014 (5 pontos percentuais do PIB em menos de um ano!)1.

O desequilíbrio fiscal deve ser considerado o problema número um a ser enfrentado pelo Governo. O objetivo do presente texto é apresentar as linhas gerais do ajuste de que necessita o país.

Deve-se observar, desde já, que não necessariamente o ajuste aqui proposto representará sacrifício à parcela mais pobre da sociedade. É equivocada a associação entre racionalização de gastos públicos e perdas para os mais pobres. Na verdade, como se verá adiante, boa parte do ajuste diz respeito a gastos públicos que beneficiam os segmentos mais ricos da sociedade. Há espaço para um ajuste que não agrave a nossa elevada desigualdade de renda ou que piore os indicadores de pobreza.

A deterioração da qualidade de vida dos pobres e miseráveis ocorrerá, isto sim, se não for feito qualquer ajuste. A alta inflação e o crescimento econômico próximo a zero já estão mostrando seus efeitos sobre essa parcela da sociedade: o número de pessoas extremamente pobres parou de cair e já mostra inflexão positiva (eram 10,08 milhões em 2012 e passaram a 10,45 milhões em 2013). O mesmo está ocorrendo com a desigualdade de renda, que interrompeu sua trajetória de queda e está estacionado em nível ainda alto (índice de Gini de distribuição da renda domiciliar per capital em torno de 0,53 desde 2011)2.

Antes de listar as propostas de um ajuste fiscal, é preciso compreender por que ele tem importância vital para a retomada do crescimento e o controle da inflação. São vários os canais pelos quais o desequilíbrio das contas públicas prejudica a economia:

  • Não havendo ajuste fiscal, as agências de avaliação de risco retirarão do país a classificação de “grau de investimento”. Este “selo de qualidade” indica que é desprezível o risco de o governo não pagar sua dívida. Se o Brasil perder este certificado de qualidade, grandes investidores mundiais (entre eles os fundos de pensão) ficarão proibidos, por seus estatutos, de investir no país, o que representará forte queda da entrada de investimentos externos. Isso não só terá impacto negativo no crescimento, mas também no nosso balanço de pagamentos. Atualmente temos déficit de 3,72% do PIB em transações correntes (negociações de bens e serviços com o exterior), que é coberto por entrada de capitais via investimentos e financiamentos da ordem de 4,65% do PIB. Escasseando a entrada de capitais, sofreremos rápida redução de nossas reservas e o real se desvalorizará frente ao dólar. A desvalorização cambial aumentará a inflação. Com menos reservas no Banco Central, será mais arriscado para investidores estrangeiros investir no país, pois pode haver falta de dólares na hora em que eles desejarem levar seus capitais de volta ao país de origem. Em suma: aumenta a inflação, cai o nível de investimento e diminui o ritmo de crescimento econômico.3
  • O desequilíbrio fiscal também exerce pressão sobre a inflação por meio de outro mecanismo: o aumento da demanda agregada. Com o governo gastando acima do que arrecada, ele coloca na economia mais dinheiro (via gastos) do que retira (via tributos). Com isso, além do efeito direto do consumo do governo, há aumento do consumo das famílias (aqueles que recebem do governo – funcionários públicos, fornecedores, beneficiários de programas sociais, etc – terão mais dinheiro no bolso para consumir). Ocorre que a economia brasileira enfrenta diversas barreiras para aumentar a oferta de bens para atender essa maior demanda: baixo investimento (devido a incertezas, como será explicado a seguir), deficiências de infraestrutura, baixa poupança para financiar investimentos, entre outras. Com maior demanda e oferta restrita, o resultado é o aumento dos preços.
  • Os agentes econômicos desconfiam fortemente da capacidade do governo para controlar suas contas, não só em função dos maus resultados recentes, mas também pelo esforço feito pela atual administração para esconder a situação através de expedientes de contabilidade criativa (sobre contabilidade criativa ver neste site o texto O que é contabilidade criativa?). Por isso, a perpetuação e agravamento do desequilíbrio fiscal representará desestímulo ao investimento, levando a baixo crescimento da economia nos próximos anos;
  • As despesas do governo com juros tendem a aumentar agravando ainda mais o déficit público, pois o Banco Central tende a combater a maior inflação por meio do aumento dos juros. Além disso, o aumento da dívida pública (decorrente dos déficits sucessivos) aumenta a base sobre a qual os juros devidos são calculados. O setor público já gasta a elevada quantia de 5,5% do PIB com juros todos os anos, e essa conta tende a aumentar.4
  • Em um contexto de desajuste fiscal torna-se impossível aprovar uma reforma tributária que reduza o impacto negativo do atual sistema sobre a eficiência e a produtividade da economia. Qualquer reforma que racionalize o sistema tributário implicará perda de receita, o que não é fácil de suportar em momento de crise fiscal. Em consequência se perpetua o bloqueio que o sistema tributário ineficiente exerce sobre o crescimento econômico;
  • A deterioração nos indicadores de inflação, crescimento, balanço de pagamentos e rating de crédito realimentarão o desequilíbrio fiscal pois, com a economia crescendo menos, o governo arrecada menos. Cria-se uma espiral de más notícias que só será rompida com a mudança do regime fiscal.

Não se pode, portanto, brincar com desequilíbrio fiscal no nível em que ele se encontra. É preciso lançar medidas de reequilíbrio das contas públicas. Acredito que um programa de ajuste deveria se apoiar em três pilares, que devem ser apresentados em conjunto (como um pacote) e postos em prática simultaneamente:

  • Recuperação da credibilidade do governo na gestão fiscal;
  • Ajuste de curto prazo;
  • Ajuste de médio e longo prazo.

RECUPERAÇÃO DA CREDIBILIDADE

Esta dimensão do programa de ajuste consistiria em acabar com a contabilidade criativa e dar transparência à real situação financeira do setor público. Algumas das medidas listadas a seguir agravariam os dados oficiais no curto prazo, simplesmente porque há déficit escondido nas contas públicas. Mas uma política fiscal crível deve resistir à tentação de produzir estatísticas que não reflitam a real situação fiscal, sob pena de não conquistar o apoio dos agentes econômicos. O simples fato de se anunciar o fim de procedimentos nocivos ao equilíbrio fiscal – e atuar de acordo! – ainda que não represente melhora nas contas no curto prazo, já cria expectativa positiva em relação ao futuro.

As principais medidas nessa área seriam:

  1. Suspensão dos empréstimos do Tesouro ao BNDES e redução gradualmente da carteira de empréstimos desse Banco. Caso sejam necessários aportes residuais para cumprir contratos em andamento, eles devem ser registrados como despesa primária do Tesouro, sendo contabilizados como inversão financeira no Banco. Essas operações geram elevado custo de juros para o Tesouro (da ordem de R$ 30 bilhões ao ano) e não têm sido eficaz em atingir seu principal objetivo, que seria o estímulo ao investimento privado.
  2. Fixação, por lei, do montante máximo de dividendos que as empresas públicas podem pagar ao Tesouro a cada ano. Tal medida visa impedir que o Tesouro, ansioso por fechar suas contas, force as empresas a pagar dividendos excessivos, que levem à descapitalização das empresas e à necessidade de, no futuro, o próprio Tesouro ter que fazer aporte de capital para recuperá-las. Os dados mostram evidente aumento de pagamentos de dividendos ao Tesouro: entre 2000 e 2008 tais pagamentos foram equivalentes a 0,26% do PIB ao ano, e entre 2009 e 2014 eles saltaram para 0,55% do PIB.5
  3. Acerto de contas do Tesouro com as empresas, fundos e bancos públicos que, na condição de agentes pagadores de programas do governo, detêm créditos junto ao Tesouro em função de atrasos de pagamentos. Essas chamadas “pedaladas” orçamentárias precisam ser explicitadas e ter um cronograma claro de redução ao longo do tempo. Somente com o FGTS, o Tesouro Nacional tem dívida de R$ 17,7 bilhões6, havendo ainda passivos junto à Caixa Econômica, Banco do Brasil e BNDES, cujos números não são claramente divulgados.
  4. Interrupção do lançamento de sucessivos programas de parcelamento de débitos fiscais. Esses programas, conhecidos como REFIS, têm por objetivo facilitar o pagamento de débitos dos contribuintes inadimplentes, gerando uma entrada extra no caixa. Ocorre que a sua repetição, ano após ano, induz o contribuinte a não pagar regulamente suas obrigações, esperando pelo parcelamento em condições facilitadas. Há evidente desmoralização do fisco e queda na arrecadação regular de tributos. Entre os anos 2000 e 2013 foram abertos nada menos que sete programas de parcelamento e refinanciamento de débitos. Os sinais de esgotamento desse mecanismo já são claros. Em 2014 a arrecadação esperada por meio do refinanciamento era de R$ 13 bilhões, mas teve que ser minorada e agora está entre R$ 7 e R$ 9 bilhòes.7
  5. Suspensão de todas as operações entre o Tesouro e empresas públicas ou de economia mista cuja finalidade seja a antecipação da entrada de recursos no Tesouro, como por exemplo, a venda de direitos de royalties de Itaipu para o BNDES ou a venda de direito de exploração de petróleo diretamente à Petrobras, sem a realização de leilão aberto a outras empresas.
  6. Contabilização em separado das receitas de concessão e venda de ativos públicos, apresentando-se o resultado primário com e sem essas receitas não recorrentes. O resultado primário nos últimos anos tem ficado cada vez mais dependente de receitas não-recorrentes, ou seja, receitas que não pertencem ao fluxo regular de arrecadação de tributos, tais como vendas de ativos ou recebimento de dividendos em valores acima do que se observa no mercado; o que indica fragilidade das contas públicas. É preciso mostrar, separadamente, o superávit/déficit advindo dos fluxos regulares de despesas e receitas e aqueles decorrentes de eventos extraordinários. Em 2013, por exemplo, de um superávit primário de 1,9% do PIB, nada menos que 0,9% do PIB resultaram de receitas não recorrentes.8
  7. Definição de um cronograma multianual de redução dos “restos a pagar”, que são despesas orçamentárias feitas no ano “t” cujo pagamento é adiado para o ano “t+1”. Tais adiamentos têm criado uma bola de neve. Em 2004 os restos a pagar (inscritos menos os cancelados) no Orçamento Geral da União equivaliam a 0,7% do PIB. Em 2014 já alcançava 3,4% do PIB.
  8. Apresentação ao Congresso Nacional de proposta orçamentária com base em projeções realistas (de crescimento econômico, inflação, etc.), evitando-se a superestimação das receitas e enfatizando-se o difícil quadro fiscal de curto prazo (a recente propostas apresentada ao Congresso de se ampliar a maquiagem do déficit, por meio de desconto de investimentos e desonerações tributárias é condenável e vai na direção contrária do que está sendo aqui proposto). Em especial é preciso evitar o já “manjado” jogo de cena, feito ao longo dos últimos anos, em que se aprova um orçamento com receitas e despesas irrealistas e, em seguida, faz-se um contingenciamento (sempre com o número mágico de R$ 50 bilhões) que, na verdade, representa cortar despesas que não seriam realizadas, pois não haveria receitas para financiá-las.

AJUSTE DE CURTO PRAZO

As medidas de curto prazo são aquelas voltadas a produzir aumento de receita e redução de despesa com reflexo imediato nas contas governamentais:

  1. Reverter a chamada “desoneração da folha de pagamento”, não só porque ela gera significativa perda de arrecadação (R$ 20 bilhões ou aproximadamente 0,4% do PIB)9 como também cria problemas relativos à eficiência da economia (a esse respeito ver, neste site, o texto “O que é desoneração da folha de pagamento e quais são seus possíveis efeitos?”).
  2. Reverter a redução de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) concedida a vários produtos, pois ela representa perda de arrecadação (no mínimo R$ 7 bilhões por ano) e estímulo ao consumo em um momento de inflação em alta.
  3. Enfrentar a grande pressão por aumento de gastos de pessoal, que vem sobretudo do Poder Judiciário, sob a forma de: criação de adicional de tempo de serviço não sujeito ao teto remuneratório constitucional (PEC 63/2013 – custo de até R$ 10 bilhões ao ano para a União e R$ 14 bilhões para os estados10); introdução de auxílio moradia para juízes e procuradores (demanda já aprovada no STF e que deve ser enfrentada na esfera judicial – custo estimado em R$ 1,5 bilhão por ano11); forte aumento do teto remuneratório proposto pelo STF (de R$ 29,4 mil para R$ 35,9 mil – acréscimo de 22%, que levaria a aumento de despesa de R$ 1,4 bilhão em 201512). Esses aumentos rapidamente repercutem na remuneração do restante do funcionalismo, desencadeado reajustes em cascata e demandas por realinhamento de remuneração entre carreiras, o que pode aumentar ainda mais o custo estimado da medida. São nocivos não apenas pelo desarranjo fiscal que provocam, mas também por serem fator de concentração de renda, visto que os servidores públicos (em especial os do Judiciário) estão no topo da pirâmide de renda.
  4. Também no STF está tramitando causa relativa ao chamado direito de “desaposentadoria” que, de forma resumida, pode ser descrito como a elevação dos benefícios recebidos pelas pessoas que se aposentaram, mas continuaram no mercado de trabalho. Se aprovada tal possibilidade, haverá um custo de, no mínimo, R$ 70 bilhões com possibilidade de se multiplicar ao longo dos anos (sobre esse ponto ver neste site O que é desaposentadoria e qual o seu impacto? e Por que o julgamento do STF sobre desaposentadoria é importante?)
  5. Suspender a determinação governamental e os estímulos regulatórios voltados a expandir o crédito ao consumo, ofertado pelos bancos públicos. A forte expansão desse crédito em passado recente (o saldo das operações com pessoas físicas passou de 13% do PIB em 2007 para 26% do PIB em 2014)13, associada ao baixo ritmo de crescimento da economia, tende a aumentar o potencial de inadimplência da carteira de crédito dos bancos públicos. Isso representará perda patrimonial e futura necessidade de aporte de recursos do Tesouro àquelas instituições. Foi anunciado recentemente, por exemplo, uma transferência de créditos “podres”da Caixa Econômica para a Empresa Gestora de Ativos (Engea), da ordem de R$ 5 bilhões. A Engea é uma espécie de agência para lidar com créditos de instituições públicas de difícil cobrança 14.
  6. Reverter a política recentemente adotada pelo Tesouro Nacional de facilitar a tomada de empréstimos por estados e municípios. Esses governos subnacionais têm seus limites de endividamento controlados pelo Tesouro, em conformidade com regras estipuladas pelo Senado. Se as regras forem cumpridas à risca, os estados e municípios têm que obter superávit primário para pagar seus débitos vincendos. Quando se abre aos estados e municípios a possibilidade de tomar novos empréstimos, deixa de ser necessário fazer superávit para pagar suas dívidas. Basta fazer dívida nova para pagar dívidas antigas. O resultado foi a queda do superávit fiscal de estados e municípios, que deteriora a situação fiscal agregada do setor público. O superávit primário de estados e municípios caiu de 1,15% do PIB em 2008 para 0,34% do PIB em 2013.

AJUSTE DE LONGO PRAZO

  1. Não há dúvida de que o ajuste de longo prazo mais importante é a retomada da reforma da previdência. Esse é o maior item de despesa do orçamento (consumindo quase 40% de toda a receita primária do Tesouro, com gastos anuais de R$ 350 bilhões ou 7,3% do PIB em 201315). É também a categoria de despesa que tem maior potencial de crescimento, seja devido às regras benevolentes de concessão de benefícios, seja pelo rápido envelhecimento da população, que afetará não só o lado do gasto, mas também o lado da receita, pela diminuição da parcela da população participante no mercado de trabalho e contribuinte para a previdência. As pessoas com mais de 65 anos de idade eram 7% da população em 2012 e serão 22% em 205016. Por isso, faz-se necessário, pelo menos: instituir idade mínima para aposentadoria no Regime Geral de Previdência Social (RGPS), aumentar o tempo de contribuição necessária para que se pleiteie aposentadoria por idade, rever o instituto das aposentadorias especiais, rever o tempo reduzido de aposentadoria para mulheres, reduzir a benevolência dos benefícios associados à pensão por morte.
  2. A segunda prioridade também é a previdência! Isso porque tramitam no Congresso mais de uma centena de projetos que aumentam benefícios, concedem novas aposentadorias especiais, propõem a institucionalização da desaposentadoria e/ou reduzem exigências para gozo de benefícios existentes. Olhando-se isoladamente cada um desses projetos, eles parecem inofensivos em termos fiscais. Muitos se baseiam em argumentos meritórios. Porém, quando analisados em conjunto, têm potencial explosivo sobre os custos da previdência. A cada ano alguns desses projetos são aprovados e sancionados, cavando um pouco mais o poço do déficit previdenciário (sobre esse ponto será futuramente publicado texto específico neste site). É preciso instituir um mecanismo de avaliação do impacto fiscal desses projetos, e dar a eles atenção redobrada durante sua tramitação no Congresso.
  3. Logo após à previdência, o segundo maior item de despesa é a folha de pessoal do Governo Federal (R$ 221 bilhões ou 4,6% do PIB)17. Como já afirmado acima, esta tende a crescer em função da pressão do Judiciário por aumento de remuneração. Além disso, a política de pessoal do setor público brasileiro é ineficiente e dispendiosa, pagando remunerações elevadas e contratando acima da necessidade, além de garantir estabilidade no emprego de forma generalizada. Um ponto fundamental a ser mudado na política de pessoal diz respeito aos direitos e deveres dos servidores em relação à greve. Atualmente há um desequilíbrio: os servidores podem fazer greve, mas não há instrumentos para punir greves abusivas, não há corte de remuneração dos dias parados nem a possibilidade de demissão. Isso estimula a realização de greves e coloca o poder público contra a parede, resultando em remunerações elevadas e perda de qualidade dos serviços públicos em função de sucessivos movimentos paredistas. A aprovação de uma lei de greve que equilibrasse direitos e deveres contribuiria tanto para conter o peso fiscal da folha de pagamento, quanto para recuperar a qualidade dos serviços prestados.
  4. Ainda em relação ao serviço público, é preciso rever regras de contratação, remuneração e promoção visando criar incentivos para o bom desempenho, assim como conter a contratação em excesso (propostas nesse sentido estão no texto O que fazer para melhorar a eficiência dos servidores públicos e reduzir as despesas de pessoal do governo?). De especial interesse seria a adoção de modelos alternativos de prestação de serviços públicos, como a atuação de organizações sociais mediante contrato de gestão na área de saúde, ou a adoção (mediante avaliação de seus efeitos) de políticas de voucher escolar e terceirização de gestão das escolas públicas.
  5. As políticas de assistência social (Bolsa Família, Abono Salarial, Seguro Desemprego, Benefício de Prestação Continuada – BPC, aposentadorias rurais) têm apresentado peso crescente na despesa pública (elas consumiam 6,2% da receita primária em 2004, pulando para 10,3% em 2013 – em reais foram R$ 182 bilhões ou 3,7% do PIB). Embora algumas dessas políticas representem importante contribuição à redução da pobreza e da desigualdade, outras não são tão eficazes e devem ser descontinuadas. É preciso focar os benefícios nos mais pobres, para ter o máximo de resultado ao menor custo possível. Essa foi a chave do sucesso do Bolsa Família, um programa barato e eficaz. Sob essa ótica, o Abono Salarial é um candidato a ser extinto, o que representaria economia de R$ 19 bilhões em 201518. O seguro desemprego tem sido objeto de fraudes, e precisa passar por mudanças nas suas regras e mecanismos de fiscalização. O valor do salário mínimo, que rege o reajuste do BPC e o piso das aposentadorias, deveria passar a ser corrigido pela inflação adicionada de um índice de produtividade (ou, para facilitar, a taxa de crescimento do PIB per capita). Isso garantiria a manutenção do poder de compra dos benefícios (agregado a um ganho real) em ritmo compatível com o crescimento da economia e da capacidade fiscal. A regra atual de elevação do salário mínimo é mais benevolente, porém sacrifica as contas públicas e tira dos pobres, via inflação, o que lhes dá por meio do reajuste dos benefícios.
  6. Na área de educação é preciso tomar a decisão de focar a ação do setor público na pré-escola e no ensino básico, revendo-se a prioridade até hoje conferida ao ensino superior, em especial à injustificável gratuidade do ensino superior para estudantes de famílias que podem pagar pelo serviço.
  7. É essencial que se instaure no Estado brasileiro mecanismos de avaliação das inúmeras políticas públicas em execução. Os programas são criados e perpetuam-se sem que se avalie se eles geram mais benefícios do que custos. Algumas perguntas básicas devem ser respondidas sobre cada programa público: a quem beneficiam? Qual o custo per capita? Há programas alternativos que beneficiariam mais gente ao mesmo custo? Há necessidade de intervenção do governo ou o problema que se quer resolver pode ser solucionado pelo livre funcionamento de mercado (ou seja, há falhas de mercado envolvidas?)? Qual o impacto sobre a distribuição de renda e redução da pobreza? Quais os efeitos colaterais positivos e negativos que os programas geram para a sociedade?
  8. A criação de uma instituição fiscal independente (ver sobre isso, neste site, no texto “O que são instituições fiscais independentes?”) ou a criação de programas de avaliação de impacto no âmbito do Poder Executivo (já há iniciativa nesse sentido no âmbito da Secretaria de Assuntos Estratégicos) ajudaria a colocar luz sobre programas públicos ineficientes, que devem ser descontinuados ou reformados, bem como indicar quais são as experiências bem-sucedidas que devem ser replicadas e ampliadas.
  9. Reavaliação do modelo de investimento público. O famoso PAC é um programa baseado na ideia de “quanto mais investimentos melhor”. Ele reuniu e embrulhou em um só pacote diversos projetos que existiam e estavam a espera de financiamento, sem uma avaliação da qualidade e oportunidade desses projetos. E, sobretudo, sem se fazer uma escala de prioridades. Ocorre que o país não tem recursos fiscais nem capacidade gerencial para tocar um grande número de projetos ao mesmo tempo. Acabam ocorrendo casos de projetos mal executados ou inadequados (desconsiderando-se outras opções mais baratas e eficientes), obras interrompidas por falta de recursos, estouro de orçamento em função de mau planejamento. Nesse sentido, seria necessário criar uma agência (ou dar atribuição a um órgão já existente) que centralizasse o planejamento dos investimentos públicos, buscando a sinergia entre diferentes projetos, e definindo com clareza quais seriam objeto de concessão, parceria público-privada ou investimento público direto.
  10. Ainda sobre os investimentos em infraestrutura, é preciso mudar a política adotada naqueles destinados ao modelo de concessão. Não se pode usar a concessão como uma forma de trazer o investidor privado para trabalhar pelo governo, submetendo-o a uma remuneração inferior ao seu custo de capital. Ou seja, medidas populistas, voltadas a reprimir o preço das tarifas pagas pelos usuários, acabam levando a baixa qualidade dos serviços ou relações espúrias entre prestador de serviço e governo, que passam a buscar meios de remuneração menos transparentes (via subsídios extraorçamentários, subsídios cruzados, etc.). O custo para o contribuinte e as distorções de preços relativos e perda de eficiência da economia acabam sendo maiores que a economia no preço do serviço. Em segundo lugar, não se pode usar os programas de concessão tendo por objetivo principal maximizar a receita fiscal obtida nos leilões. Isso porque para maximizar tal receita, o poder público acaba tendo que permitir que o concessionário preste um serviço de pior qualidade (e tenha menor custo e maior lucro), em troca de um pagamento inicial mais polpudo. O ganho fiscal de curto prazo acaba gerando perda de qualidade, e portanto de produtividade, no longo prazo.

CONCLUSÕES

Os pontos aqui esboçados, se adotados em conjunto, dariam aos agentes econômicos uma perspectiva de equilíbrio, eficiência e transparência das contas públicas no longo prazo. Isso atuaria no sentido de conter a inflação e o déficit no balanço de pagamentos. Estimularia os investimentos, permitiria a redução da taxa de juros de equilíbrio e resultaria em maior crescimento econômico.

Resta, como desafio, argumentar que este não seria um “pacote de arrocho” com consequências negativas aos mais pobres.

Uma breve revisão das principais medidas propostas permite constatar que muitas delas, na verdade, desconcentram a renda. É o caso das políticas que visam restringir as altas remunerações do Poder Judiciário, e praticar uma política salarial no setor público mais próxima do que se paga no setor privado. Conter a expansão do efetivo de servidores públicos também atuará no sentido da redistribuição. Parte significativa do funcionalismo está entre os 5% mais ricos do país.

A adoção de políticas voltadas a estimular os servidores públicos a serem mais eficientes, bem como os modelos alternativos de prestação de serviços de saúde e educação, resultaria em melhores serviços prestados aos mais pobres, que são os maiores usuários desses serviços, visto que os mais ricos há muito migraram para os serviços privados.

Igual efeito terá a reforma da previdência, pois em sua conformação atual, o sistema de benefícios é apropriado majoritariamente pela classe média, em detrimento dos mais pobres. Os projetos de mudanças avulsas no sistema previdenciário (na direção contrária à do ajuste das contas), que aos poucos vão sendo aprovados no Congresso, também são, muitas vezes, direcionados a grupos de pressão de classe média, tendo um custo equivalente ao necessário para tirar um grande contingente de famílias da miséria.

A focalização das políticas sociais também seria um instrumento de fazer mais e melhor em favor dos mais pobres, eliminando-se os “vazamentos” de benefícios que hoje vão para a classe média.

Também no caso dos investimentos em infraestrutura é possível buscar um enfoque pró-pobre. Um adequado planejamento e hierarquização de prioridades levaria ao aumento de investimentos em áreas como saneamento básico, remoção de habitações de áreas de risco para conjuntos habitacionais populares e melhorias nos investimentos e gestão do transporte público. São evidentes os benefícios aos mais pobres e à classe média.

A adoção de monitoramento e avaliação de programas públicos de forma sistemática deixaria claro para a sociedade os programas que, embora aparentem gerar muitos benefícios, têm custos elevados. Se submetidas a avaliações desse tipo, iniciativas do chamado Sistema S, que consomem em torno de R$ 15 bilhões por ano, provavelmente se mostrariam caras e ineficientes. O uso dos recursos do imposto sindical e dos programas de treinamento financiados pelo Ministério do Trabalho também ficaria mais claro, podendo-se aferir até que ponto são os trabalhadores ou uma elite sindical que se beneficia dos recursos.

A contenção no ritmo de crescimento do salário mínimo não pode ser vista como uma medida de “arrocho” contra os pobres. Afinal, em algum momento do tempo o salário mínimo terá que parar de subir acima dos demais salários. Do contrário, no longo prazo ele se tornará um “salário máximo”. Os ganhos em termos de redução da pobreza e da desigualdade, decorrentes do reajuste do salário mínimo acima da inflação tendem a ser cada vez menores. Primeiro, porque passarão a pressionar a inflação e retirar renda dos mais pobres.Segundo, porque esse salário passará a ser cada vez mais pesado para as empresas, desestimulando a contratação de trabalhadores pobres menos qualificados (com produtividade abaixo da remuneração mínima). Ademais, a medida proposta não é de redução do valor real do salário mínimo, e sim de moderação na sua taxa de crescimento real.

Por fim, mas não menos importante, o fim dos bilionários subsídios concedidos pelo Tesouro a grandes empresas, por meio de financiamentos do BNDES e o fim dos subsídios implícitos nas desonerações de IPI e folha de pagamentos deixarão de carrear bilhões de reais para o topo da pirâmide de renda.

____________________

1 Fonte dos dados: Banco Central do Brasil, Nota para a Imprensa, out 2014.
2 Fonte de dados: www.ipeadata.gov.br
3 Fonte dos dados: Banco Central do Brasil. Nota para a Imprensa, out. 2014.
4 Fonte dos dados: Banco Central do Brasil. Nota para a Imprensa, out. 2014.
5 Fonte dos dados: Secretaria do Tesouro Nacional. Resultado do Tesouro – Série histórica.
6 Valor Econômico, 17/11/2014.
7 http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,arrecadacao-do-refis-frustra-governo-e-deixa-meta-fiscal-mais-distante-imp-,1555788
8 Fontes: Banco Central do Brasil e Banco Itaú (2013). “Contas públicas: dimensionando o impacto das operações não recorrentes”.
9 Fonte: Receita Federal do Brasil – Desonerações instituídas.
10 Fonte: Valor Econômico, 2/6/14.
11 Fonte: O Globo 7/10/14.
12 Fonte: Folha de S. Paulo 5/11/14.
13 Fonte: www.ipeadata.gov.br
14 Fonte: http://epocanegocios.globo.com/Informacao/Acao/noticia/2014/11/caixa-repassa-r-5-bilhoes-em-creditos-podres.html
15 Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional. Resultado do Tesouro Nacional
16 Estimativas de Marcelo Caetano, com base em dados do IBGE.
17 Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional. Resultado do Tesouro Nacional
18 Fonte: Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias 2015.

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As contas externas do Brasil estão se deteriorando? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1878&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=as-contas-externas-do-brasil-estao-se-deteriorando https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1878#comments Tue, 11 Jun 2013 14:14:31 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1878 As contas externas de um país estão retratadas no seu balanço de pagamentos, registros das transações econômicas entre residentes e não residentes. O balanço é dividido em duas partes principais. A primeira retrata as transações com bens e serviços, inclusive os juros e lucros pagos por investimentos feitos por estrangeiros. A segunda parte reflete as transações financeiras, entre as quais as entradas e saídas de investimentos diretos, empréstimos bancários e investimentos em carteira, que são operações com ações e títulos de empresas e do governo.

À exceção do modelo asiático, os países em desenvolvimento, a exemplo do Brasil, costumam ter déficit nas transações com bens e serviços, também conhecidas como transações correntes, e superávit nas transações financeiras. Assim, as aquisições líquidas de bens e serviços do exterior são financiadas com as entradas líquidas de investimentos estrangeiros, seja diretamente nas empresas (investimentos diretos), seja por meio dos empréstimos bancários e das aquisições de ações e títulos das empresas e do governo.

Esse mecanismo de financiamento externo pode ser útil ao esforço do país em desenvolvimento, normalmente caracterizado por escassez de capital, mas está sujeito também à instabilidade, por vezes pronunciada, como se viu em várias experiências de crise internacional nas duas últimas décadas. Nesses casos, os residentes encontram dificuldades para pagar seus compromissos externos, em geral pagos em dólar, moeda emitida apenas pelos Estados Unidos, gerando crise cambial, espécie de crise de liquidez do país.

Diante dos riscos, o desejável é que o país utilize o financiamento externo de modo adequado e parcimonioso, o que decorre da qualidade da política econômica do país receptor. Disso dependerá a intensidade dos efeitos internos em caso de mudanças abruptas do cenário internacional.

Feita essa introdução, cabe analisar a evolução das contas externas do Brasil nos últimos anos, com base nas estatísticas do balanço de pagamentos divulgadas pelo Banco Central do Brasil (Bacen)1.

No que tange às transações correntes, no período 2003 a 2006, o Brasil apresentou superávit entre 1% e 2% do PIB, média anual de US$ 13,1 bilhões, situação pouco usual em seu histórico. Tal fato refletiu o descompasso entre o aumento das exportações de bens, impulsionadas pela valorização das commodities exportadas pelo Brasil, em relação às importações de bens e serviços, contidas por conta da defasagem entre o crescimento econômico do Brasil e da economia mundial.

Em 2007, o superávit nas transações correntes foi praticamente eliminado e, no biênio 2008-2009, transformou-se em déficit de cerca de 1% do PIB, média anual de US$ 26,2 bilhões. No triênio 2010-2012, o déficit subiu ainda mais e ficou um pouco acima de 2% do PIB, média anual de US$ 51,3 bilhões. A evolução do déficit se deveu ao forte aumento das compras externas de bens e serviços, inclusive transporte, viagem e aluguel de equipamentos cujos gastos somados chegaram a US$ 55,2 bilhões em 2012.

Esse patamar de déficit não chega a ser preocupante. Ocorre que, desde setembro de 2012, a tendência pendeu para os 3% do PIB. No primeiro quadrimestre de 2013 houve surpreendente déficit na balança comercial por conta da redução das exportações de bens, enquanto as importações de bens e serviços mantiveram o ritmo anterior de aumento. O déficit de US$ 33,2 bilhões nas contas correntes do primeiro quadrimestre de 2013 foi 91% superior a igual período de 2012 e correspondeu a 61% do déficit acumulado nos doze meses do ano passado.

É cedo ainda para dizer para qual patamar caminhará o déficit em conta corrente, mas com certeza sua evolução é mais um sinal de alerta na economia brasileira. Vale observar que o déficit não superou os 4,55% do PIB entre 1999 e 2002, anos em que o Brasil passou por grandes dificuldades nas contas externas. A exemplo do cenário atual,

naquele período havia instabilidade no mercado financeiro internacional, trazendo muita incerteza acerca das condições do financiamento externo das economias deficitárias.

Outra dificuldade é o cenário macroeconômico atual da economia brasileira, no qual convivem baixo crescimento e inflação elevada. A eventual necessidade de ajustamento da economia por conta de falta de financiamento externo poderia piorar esse quadro, pois o ajuste normalmente requer desaceleração da economia e desvalorização cambial para conter as importações e elevar as exportações.

O assunto envolve ainda outras duas complicações. Uma é o efeito da desaceleração da economia chinesa sobre os preços e quantidades exportadas de commodities pelo Brasil. É sabido que boa parte do forte aumento das vendas externas brasileiras ao longo da década passada se deveu à crescente importância da China na economia mundial. Outra complicação é a reduzida capacidade competitiva do Brasil que se reflete não apenas na concentração das exportações em commodities de baixo valor agregado, como também na crescente importância das importações na economia brasileira, as quais não parecem arrefecer nem mesmo com o lento crescimento do país.

Como visto, o déficit nas transações correntes é financiado pelas entradas de capital no país. Se as condições do financiamento são favoráveis, abre-se espaço para que correções por ventura necessárias sejam feitas gradualmente e com menor custo para o país. Do contrário, o ajustamento pode ser traumático. Cabe, portanto, analisar a evolução nos últimos anos da parte do balanço de pagamentos que registra as transações financeiras entre residentes e não residentes no Brasil.

A principal marca dessas transações a partir de 2007 foi a forte entrada líquida de investimentos estrangeiros, tanto os investimentos diretos em empresas, como os investimentos em títulos e ações. O fluxo líquido de capital superou em larga medida o déficit das transações correntes, o que também traz dificuldades.

Em situações como essa, a política econômica se vê diante do seguinte dilema: deixar ou não que os efeitos da abundância de dólares se propaguem pela economia, a começar pela valorização do real e seu impacto sobre as exportações e as importações.

A resposta está em larga medida na avaliação que se faz da qualidade do financiamento externo. Em geral, os investimentos diretos são considerados financiamento de boa qualidade, já que ao implicarem envolvimento com o processo produtivo, não são facilmente revertidos, sugerindo compromisso de longo prazo com a economia brasileira. Os investimentos diretos brutos no Brasil (inclusive empréstimos intercompanhias) subiram da média anual de US$ 17,3 bilhões no triênio 2004-2006 para a média anual de US$ 47,7 bilhões no período 2007-2012. O aumento a partir de 2007 se deu em boa hora, pois, como visto, nesse ano, o saldo da conta corrente transitava para o déficit. Desde então, ou os investimentos diretos líquidos superaram o déficit em conta corrente ou financiaram boa parte dele.

Há duas dúvidas a respeito desses investimentos cujas respostas fogem ao escopo deste artigo. A primeira refere-se à continuidade ou não no futuro dos elevados fluxos de recursos dirigidos ao Brasil nos últimos anos, questão que ganha importância com o aumento do déficit nas contas correntes.

A segunda questão está relacionada com o efeito posterior desses investimentos sobre as contas externas do país. Há o efeito positivo decorrente do esperado incremento da produtividade da economia brasileira. Entretanto, há também o efeito sobre as transações correntes, por meio da remessa de lucros para o exterior, à medida que os investimentos entram em operação. Segundo o Bacen, o estoque de investimentos diretos no Brasil chegou a US$ 750,9, em abril de 2013, 366% a mais que o saldo existente no final de 2004. É claro que esse último efeito pode ser compensado pelo incremento na capacidade produtiva de setores exportadores ou que substituam importações. Entretanto, é preciso verificar se os investimentos diretos vêm sendo preponderantemente atraídos para esses setores, dados os incentivos econômicos vigentes nos últimos anos.

Já os investimentos em carteira, que são aplicações em ações e títulos das empresas e do governo, foram também bastante elevados desde 2007, excetuados os meses que se seguiram ao início da crise internacional, em setembro de 2008. A partir de 2011, entretanto, esses investimentos desaceleraram, sem dar mostras de que retornarão ao ritmo anterior. Considerando-se os valores médios anuais em cada período, os investimentos brutos em carteira de estrangeiros no Brasil foram de US$ 3,9 bilhões, US$ 40,3 bilhões e US$ 17,5 bilhões, respectivamente, nos períodos 2004-2006, 2007-2010 e 2011-2012.

Ainda que esses investidores levem em conta as perspectivas de longo prazo da economia receptora, predomina na sua avaliação o retorno esperado dos papéis adquiridos, relativamente ao retorno esperado nos demais países, notadamente nas grandes economias dos Estados Unidos e da União Européia. Os investidores também cotejam o diferencial de retorno com o risco da aplicação no país hospedeiro, especialmente quanto à mudança da taxa de câmbio no horizonte de cálculo, pois ela afeta o retorno em dólar do investimento.

Como os investimentos em carteiras, em geral, podem ser desfeitos com baixos custos, qualquer alteração no retorno esperado ou no risco, tanto no país receptor, como nas localidades alternativas, provoca ajustes rápidos na direção e intensidade dos fluxos de capital. Em situações mais graves, os fluxos líquidos de entrada podem ficar negativos, desequilibrando as contas externas, mesmo com investimentos diretos elevados.

Entre 2007 e 2010, excetuando-se os meses que se seguiram ao início da crise internacional, as condições foram muito atrativas para os investimentos em títulos e ações no Brasil. Em meados de 2007, a taxa de juros nos EUA caiu de forma acentuada, fato que se reproduziu na economia européia no ano seguinte. No Brasil, embora a tendência da taxa de juros tenha sido de queda, o processo se deu com idas e vindas. Houve ainda a melhora na percepção internacional do risco da economia brasileira, culminando na reclassificação do país para grau de investimentos pela agência classificadora de crédito Standard & Poor’s, em abril de 2008, seguidas de outras agências nos meses seguintes.

A reação das autoridades econômicas aos abundantes fluxos de capital foi um meio termo entre deixar o real se valorizar e acumular elevados montantes de reservas internacionais, por meio das intervenções do Bacen no mercado de câmbio, adquirindo o excesso de dólares.

A taxa de câmbio efetiva real calculada com base no IPA-DI valorizou-se entre 2005 a 2011. Ao final de 2004, alcançou o nível anterior às crises de 2001 e 2002, cerca de 90% do valor verificado em junho de 1994. Em meados de 2011, o percentual estava abaixo de 60%. A valorização cambial ajudou a compor o quadro negativo da evolução das exportações e das importações apontado anteriormente. Entretanto, a valorização teria sido ainda maior se as reservas internacionais não tivessem subido acentuadamente de US$ 62,7 bilhões em junho de 2006 para US$ 378,7 bilhões em abril de 2013.

Alguns estudos feitos com base em análises de custo-benefício, usuais na literatura econômica, entendem que tal montante de reservas supera o nível ótimo. Os custos são evidentes, tendo em vista que, no Brasil, a aquisição de reservas é financiada pelo aumento do caro endividamento interno do governo. Esse procedimento não afeta imediatamente a dívida líquida do setor público, mas o faz posteriormente por conta do aumento dos juros líquidos devidos. O custo fiscal no final dependerá da taxa de câmbio com que as reservas internacionais forem vendidas.

Entretanto, o problema não está no acúmulo de reservas em si. Dada a forte entrada de capitais, a opção faz sentido, pois o acúmulo reduz o risco de crises cambiais e, caso elas ocorram, o uso das reservas amortece os efeitos sobre a economia . A crítica que pode ser feita é a incapacidade da política econômica em evitar que o país atraia capitais em excesso. O controle da entrada ajuda, mas apenas acessoriamente, até que medidas mais eficazes surtam efeito.

A partir de 2011, os investimentos em carteira no Brasil desaceleraram, ao contrário dos investimentos diretos, que continuaram vindo ao país em ritmo ainda mais intenso do que o verificado nos anos anteriores. Inicialmente, a desaceleração decorreu de medidas internas então adotadas, mas, posteriormente, ganharam importância a deterioração dos indicadores da economia brasileira e a evolução da economia internacional.

No que tange às medidas internas, não propositalmente dirigidas à redução dos fluxos de capital, o Bacen passou a reduzir a taxa Selic a partir de maio de 2011 até baixá-la ao nível inédito de 7,25% ao ano em setembro de 2012. Outra decisão, aí sim propositalmente dirigida à redução da entrada de recursos, foram os sucessivos aumentos da alíquota de IOF, notadamente ao final de 2010, sobre as aquisições por estrangeiros de papéis privados de renda fixa, aqui ou no exterior. A política já havia sido utilizada entre março e setembro de 2008, mas foi abandonada com o início da crise internacional.

Resultado da desaceleração da entrada de capitais, e da já apontada elevação do déficit nas transações correntes, a tendência de valorização da taxa de câmbio foi revertida a partir do segundo semestre de 2011. Daí em diante, a taxa de câmbio chegou a patamares de desvalorização que não alcançava desde meados de 2009, período em que os efeitos da crise internacional ainda estavam bem presentes. É claro que a nova situação elevou as incertezas acerca do retorno esperado em dólar da aplicação estrangeira no país, criando desestímulo extra aos investimentos em carteira.

Em anos anteriores, com a abundância de capital, a desvalorização cambial só seria possível a custa de forte intervenção do Bacen no mercado de câmbio, tendo como resultado colateral o aumento ainda maior do saldo das reservas internacionais. Entretanto, desde meados de 2011, mesmo com a desvalorização cambial, as reservas deixaram de crescer no ritmo dos anos anteriores. Na verdade, após os US$ 353,4 bilhões alcançados em agosto de 2011, as reservas se mantiveram relativamente estáveis, a exceção dos meses de março e abril de 2012. Entre abril de 2013 e o mesmo mês de 2012, as reservas subiram apenas 1,2%.

O risco para o país agora é a possível transição de uma situação de abundância de capital que inclusive trouxe problemas para a gestão da política econômica, para outra de escassez, algo ainda mais problemático, levando-se em conta o já apontado desempenho recente das transações correntes do país.

A existência de reservas externas de quase US$ 380 bilhões representa um seguro importante, conforme já apontado. Já os investimentos diretos no Brasil têm se mantido em patamares elevados. Há ainda dois instrumentos que podem ser usados para atrair o investimento estrangeiro em carteira: a redução da alíquota de IOF aplicada sobre eles e a elevação da taxa Selic, que já voltou a subir em abril de 2013 por conta da inflação, estando agora em 8% ao ano.

Em que pese esses fatores, em alguns cenários possíveis para a economia internacional esses instrumentos podem ser insuficientes. Além da já citada desaceleração da economia chinesa com seus impactos sobre as exportações brasileiras, uma possibilidade cada vez mais concreta é a da reversão da política monetária americana fortemente expansionista iniciada em 2007, caso a recuperação da economia se consolide e a taxa de desemprego baixe para padrões mais aceitáveis.

Uma eventual elevação da taxa de juros oficial nos EUA atrairá pelo menos parte do capital que emigrou nos últimos anos em busca de melhor rentabilidade. Na verdade, as taxas de juros dos títulos do governo americano já vêm aumentando, diante da expectativa de alguma inflexão importante na política do banco central dos EUA. Ao final de maio e início de junho de 2013, quando esse artigo estava sendo concluído, o preço do dólar em relação a diversas moedas subiu fortemente. O real foi uma das moedas mais afetadas. Como resposta, o governo brasileiro reduziu a zero a alíquota do IOF sobre investimentos estrangeiros em papéis de renda fixa no Brasil. Vale lembrar que tal medida já havia sido adotada nos meses que se seguiram ao início da crise internacional, em setembro de 2008, período de severa escassez de capitais externos. O Bacen também passou a intervir mais no mercado de câmbio para conter a desvalorização cambial. As medidas foram em parte neutralizadas pelo anúncio da Standard & Poor’s de que a perspectiva da nota do Brasil é de baixa.

Tais riscos ao equilíbrio das contas externas do país não estão devidamente considerados nos usuais indicadores de endividamento externo divulgados pelo Bacen. Mais reveladoras são as informações sobre a posição internacional de investimentos do país, também divulgadas pela Autarquia.

Ao final de abril de 2013, os estrangeiros tinham aplicado no Brasil US$ 172,4 bilhões em títulos de renda fixa e US$ 235,9 bilhões em ações, enquanto os empréstimos externos estavam em US$ 197,7 bilhões. Apenas a soma dos dois primeiros valores já resulta em valor superior ao saldo das reservas no mesmo mês. Há que se considerar ainda a possibilidade de que os próprios residentes remetam capital ao exterior. Trata-se de algo esperado quando os estrangeiros estão retirando capital do país, já que o raciocínio econômico de ambos os grupos de investidores é essencialmente o mesmo.

Dito tudo isso, cabe sintetizar uma resposta para a pergunta feita no título deste artigo. De fato, em geral, os números do balanço de pagamentos estão piorando e a questão do equilíbrio das contas externas retorna ao centro das atenções nos noticiários e debates econômicos. Entretanto, ainda não se pode dizer que o país caminha inequivocamente para uma crise cambial. Há alguns sinais contraditórios. O déficit em conta corrente está subindo, mas, como proporção do PIB, ainda não está fora de controle. As entradas líquidas dos investimentos em carteira estão caindo, mas os investimentos diretos permanecem elevados. É muito difícil prever as trajetórias desses três agregados, pois, como expressões das relações econômicas entre residentes e não residentes, dependem simultaneamente da evolução da economia interna e internacional. O pior cenário para o Brasil, caso o déficit em conta corrente se situe acima de 3% do PIB, é a desaceleração do investimento direto estrangeiro no país conjugada à concretização de cenários externos desfavoráveis, notadamente no que tange à China (desaceleração econômica) e aos EUA (aumento de taxa de juros).

__________________

1Todos os dados utilizados neste artigo foram retirados da página eletrônica da Autarquia, mais exatamente das séries temporais e tabelas especiais relativas ao setor externo (https://www3.bcb.gov.br/sgspub/localizarseries/localizarSeries.do?method=prepararTelaLocalizarSeries)

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Por que a produção industrial não cresce desde 2010? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1420&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-a-producao-industrial-nao-cresce-desde-2010 https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=1420#comments Mon, 27 Aug 2012 12:44:08 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=1420 O objetivo deste trabalho é explicar porque a produção mensal da indústria de transformação está estagnada desde o início de 2010. Para dar uma resposta temos que pensar em uma economia com dois setores. O primeiro é o de serviços, com as características: a) de ser grande no mercado de mão de obra e ter elevada participação no PIB; e b) de ser fechado ao comércio internacional, operando como um “fixador de preços”. O segundo é o industrial, que é bem menor no mercado de mão de obra e também no PIB, mas é muito aberto ao mercado internacional, operando em uma situação próxima à de um “tomador de preços”.

A reação do governo à crise de 2008 foi provocar a redução da taxa de juros e dos superávits primários, ao lado da expansão do crédito por parte de bancos públicos, visando estimular a demanda agregada, que é a soma das demandas por serviços e por produtos industriais. A expansão da demanda do setor de serviços elevou a demanda de mão de obra, que foi a grande responsável pela queda acentuada da taxa de desemprego, provocando o crescimento dos salários reais. Mas no caso da indústria, o aumento da demanda por produtos industriais não levou à expansão da produção. Embora a taxa real de juros tenha caído o suficiente para que, tudo o mais mantido constante, tivesse ocorrido o aumento da utilização de capacidade, retirando o hiato da produção industrial do território negativo e ampliando a produção, o que ocorreu foi o contrário. A elevação dos salários combinada com a estagnação da produtividade do trabalho na indústria levou a um aumento do custo unitário do trabalho, que foi suficiente não somente para anular o estímulo vindo da queda da taxa real de juros, como para levar à ampliação do hiato negativo de produto e à queda da utilização de capacidade instalada.

E para onde foi a demanda de produtos industriais que não pode ser atendida pelo aumento da produção? Como a indústria é um setor muito aberto ao comércio internacional, seu destino foi o aumento das importações líquidas. Ao vazar para o

exterior na forma de importações líquidas, essa ampliação da demanda retirou parte do crescimento do PIB, contribuindo para a desaceleração do crescimento econômico.

Com esse modelo simples explicamos vários “puzzles” da economia brasileira atual. Como foi possível, por exemplo, a ocorrência simultânea de queda do nível de emprego na indústria com a elevação dos salários pagos pelo setor, levando ao aumento do custo unitário do trabalho? Como foi possível ter ao mesmo tempo uma economia com pleno emprego (ou acima dele) no mercado de mão de obra, ao lado de uma queda na utilização de capacidade na indústria?

O curioso é que a nossa explicação para o que ocorreu não faz qualquer menção à valorização cambial. Não que ela não tenha ocorrido. Primeiro, porque somente foi possível realizar uma expansão tão forte da absorção em relação ao produto devido aos ganhos de relações de troca, o que leva à valorização do câmbio real. Segundo, porque com o mercado de trabalho operando próximo de uma situação de pleno emprego, ocorreu o crescimento dos salários reais, elevando os preços dos bens “domésticos” relativamente aos bens “internacionais”, ou seja, valorizando o câmbio real. Terceiro, porque após a depreciação ocorrida em 2008, o câmbio nominal voltou a se apreciar, devido ao rápido retorno dos ingressos de capitais.

A força dos ingressos de capitais pode ter levado a uma apreciação do câmbio real maior do que a decorrente do crescimento da absorção; dos ganhos de relações de troca; e da elevação dos salários reais, mas mesmo na sua ausência, o câmbio real teria se valorizado. As evidências empíricas apresentadas neste trabalho mostram que não é preciso usar o argumento de uma valorização cambial determinada exogenamente para explicar o que se passou com a indústria brasileira.

Nas próximas seções detalhamos como tudo isso foi possível.

A REAÇÃO À CRISE DE 2008

Na crise de 2008 o Brasil teve uma recessão que foi profunda, porém curta e concentrada no setor industrial. Enquanto o PIB da indústria por dois trimestres consecutivos mostrou quedas que ocorreram a taxas anualizadas superiores a 20%, a contração no setor de serviços ocorreu à taxa anualizada de 10% por apenas um trimestre. O governo reagiu à crise estimulando o crescimento da demanda. A taxa SELIC caiu de 13,75% em janeiro de 2009 para 8,75% em julho, levando as taxas reais de juros de mercado para pouco acima de 4% ao ano no mês de outubro de 2009; o crédito de bancos oficiais se expandiu a uma taxa de 12 meses que superou 30% em 2009; foram cortados impostos e ampliados os gastos públicos, reduzindo o superávit primário em 2 pontos porcentuais do PIB.

Com estes estímulos, a economia saiu rapidamente da recessão, e em pouco tempo a produção mensal da indústria de transformação já havia voltado ao pico prévio. Porém, superada a fase das políticas contracíclicas, o governo continuou estimulando a expansão da demanda, e em 2010 colheu um crescimento do PIB de 7,5%. A maior ampliação da demanda veio da expansão do consumo. Medido a preços constantes do ano 2000, o consumo das famílias passou de uma média próxima de 63% do PIB em 2006 e 2007, para perto de 66% no período de 2009 a 2012, como mostra o gráfico 1. Mas ocorreu também uma elevação da formação bruta de capital fixo, que voltou a oscilar entre 19% e 20% do PIB depois de encolher para 16% no auge da recessão. Por algum tempo, a indústria de transformação elevou a produção, respondendo à ampliação de demanda, mas a partir do início de 2010 não mais conseguiu crescer.

Gráfico 1 – Consumo/PIB e Investimentos/PIB – a preços constantes do ano 2000

No gráfico 2 estão superpostas a produção industrial mensal e uma proxy mensal do PIB estimada pelo Banco Central (o IBC-Br). Há algum tempo a indústria vem perdendo participação no PIB, mas com base nestas duas séries em uma amostra de janeiro de 2003 a novembro de 2008 rejeita-se a hipótese de uma quebra de estrutura. Estes dados mostram que até novembro de 2008 há uma relação muito estável entre o crescimento da indústria e o crescimento do PIB. A quebra de estrutura somente ocorreu na crise de 2008, e daí em diante o PIB persistiu se elevando, ainda que a taxas mais baixas do que no período encerrado em 2008, mas a produção da indústria de transformação manteve-se estagnada desde o início de 2010, caindo nos últimos meses.

Gráfico 2 – Produção Industrial e proxy do PIB estimada pelo BC

EMPREGO, SALÁRIOS REAIS E O CUSTO UNITÁRIO DO TRABALHO

O peso do setor de serviços no mercado de mão de obra é muito maior do que o da indústria. Em 2009, a indústria contratava perto de 20 milhões de trabalhadores, e o setor de serviços contratava 60 milhões, com a proporção de 1 para 3 mantendo-se ao longo dos anos, como é mostrado na tabela 1. Os dados do CAGED mostram que os fluxos de contratação de mão de obra pelo setor de serviços sempre se mantiveram bem acima dos fluxos de contratação por parte da indústria. Foi devido ao vigor da demanda de mão de obra por parte do setor de serviços que a taxa de desemprego declinou.

Tabela 1 – Pessoal empregado (em milhões de trabalhadores)

Depois de um crescimento durante a crise de 2008, que é muito pequeno em proporção à profundidade da recessão vivida pela indústria, a taxa de desemprego desabou em 2010 e caiu abaixo de 6% em 2011, situando-se em torno de 6% quando corrigida pelas variações na taxa de participação, como é mostrado no gráfico 3. Em 2012, a taxa de desemprego estimada com base em uma taxa de participação constante caiu ainda mais. Os dados do IBGE mostram, também, que os salários reais médios vêm crescendo. Desemprego baixo e cadente, ao lado de salários reais crescentes, é indicativo de uma economia próxima (ou talvez acima) do nível de pleno emprego.

Gráfico 3 – Taxas de desemprego

Contrariamente à afirmação frequente de que “é a indústria que paga os salários mais elevados”, os dados do IBGE mostram uma clara tendência à equalização de salários. Na tabela 2 mostramos os salários anuais médios da indústria e do setor de serviços medidos a preços correntes. Não esperaríamos uma equalização perfeita, porque há diferentes composições nos graus de treinamento, idade, sexo e qualificação da mão de obra. Mas a proximidade dos salários médios dos dois setores indica que no agregado aquelas são diferenças que se diluem, havendo um grau suficientemente elevado de mobilidade da mão de obra que força na direção da equalização. Não surpreende, portanto, que um aumento na demanda de mão de obra por um setor que é o grande empregador no mercado brasileiro de trabalho produza um crescimento nos salários reais médios em outro setor, que é menor tanto na sua participação no PIB, quanto no mercado de mão de obra.

Tabela 2 – Salário médio anual a preços correntes

O resultado é a elevação contínua do salário médio real na indústria. Isto não seria um problema se a produtividade média da mão de obra na indústria estivesse crescendo à uma taxa próxima à de elevação dos salários, como ocorria entre 2004 e 2007, mantendo o custo unitário do trabalho na indústria flutuando em torno de um patamar estável. Mas a partir do início de 2010 há uma queda gradual da produtividade média da indústria, que coincide com a paralização da produção industrial, e que ocorre ao lado da elevação dos salários reais, como se vê no gráfico 4.

Gráfico 4 – Salários médios e produtividade média do trabalho na indústria

Durante a fase aguda da crise, ao final de 2008, ocorreu uma implosão da produtividade média do trabalho. A produção caiu mais do que o nível de emprego, e segundo a PIMES ocorreu um ajuste pequeno nas horas trabalhadas por trabalhador. O colapso temporário do crédito que se seguiu à quebra do Lehman Brothers explica porque a queda da produção e da produtividade por trabalhador foi tão intensa e tão rápida. Quem continuou trabalhando manteve os salários reais, em parte devido à pequena variação das horas trabalhadas por trabalhador, mas em parte porque o setor de serviços sofreu muito pouco durante a crise, mantendo o nível de emprego e impedindo o crescimento maior da taxa de desemprego. Ao longo desse curto ciclo de queda da produção e da produtividade os salários reais não declinaram. A restauração do crédito e dos pagamentos na economia global removeram a restrição à continuidade da produção, o que ao lado das medidas contracíclicas empurraram a produção e a produtividade da indústria brasileira para níveis “normais” em um período muito mais curto do que nos demais países.

O comportamento do custo unitário do trabalho é visto no gráfico 5. De fato, entre 2004 e a segunda metade de 2008, o custo unitário do trabalho oscilou em torno de um patamar estável. Por um breve momento, no auge da crise, o custo unitário do trabalho explodiu, mas isso foi devido à implosão da produtividade média da mão de obra. A rapidez da recessão logo corrigiu esse comportamento. A partir do início de 2010, o custo unitário do trabalho já se eleva fortemente, saindo de uma média de 0,95 em torno do início de 2010, para próximo de 1,05 no último mês disponível.

Gráfico 5 – Custo unitário do trabalho na indústria

Qual foi o efeito dessa elevação na produção industrial? Para dar uma resposta vamos trabalhar com dois modelos: um explicativo do hiato da produção industrial; e outro explicativo do hiato do nível de utilização da capacidade instalada (estimado pela FGV) na indústria. Ambos são definidos como os desvios com relação ao respectivo filtro HP. Há duas variáveis independentes de natureza doméstica: a taxa real de juros de mercado (os swaps de 360 dias deflacionados pela taxa de inflação esperada 12 meses à frente); e o custo unitário do trabalho, além de duas variáveis dummy para captar movimentos exacerbados em dois meses durante o auge da queda da produção, e da própria variável endógena defasada de um período para captar a dinâmica do ajuste. Incluímos, também, uma medida do hiato da produção industrial mundial, para captar o contágio de ciclos externos. Os resultados estão na tabela 3.

Tabela 3 – Modelos explicativos dos hiatos da produção e do NUCI

Notas: estimativas realizadas com base em dados mensais, de janeiro de 2002 a março de 2012. Os números entre parênteses abaixo dos coeficientes são as estatísticas t de Student.

Independentemente de qual seja a variável endógena escolhida, e independentemente de incluirmos ou não as dummies e o hiato do resto do mundo, o custo unitário do trabalho e a taxa real de juros mostram sempre coeficientes negativos que diferem significativamente de zero, com probabilidade nula de serem obtidos ao acaso. Uma queda da taxa real de juros atua (com defasagens) elevando a utilização de capacidade e elevando a produção relativamente à sua tendência, com o aumento do custo unitário do trabalho produzindo o efeito contrário. Como a taxa real de juros caiu nos meses após a crise, a utilização de capacidade teria que ter se elevado, e o hiato (negativo) da produção industrial teria que ter se reduzido, mas a elevação do custo unitário do trabalho atuou na direção contrária.

No gráfico 6 comparamos os valores observados do hiato da produção com as projeções dinâmicas, quer incluindo, quer excluindo o hiato do resto do mundo. Nas projeções dinâmicas os valores estimados não são obtidos usando os valores efetivamente observados da variável endógena em t-1, mas sim os seus valores estimados pelo próprio modelo. Os dados indicam que as projeções traçam muito bem a fase de estagnação ocorrida depois do início de 2010.

Gráfico 6 – Hiato da produção industrial – valores observados e projeções dinâmicas

Se a indústria fosse um setor fechado ao comércio internacional, atuando como “fixador de preços”, como é predominantemente o caso do setor de serviços, o aumento de custos representado pela elevação do custo unitário do trabalho poderia ter sido (pelo menos parcialmente) repassado para os preços. A magnitude do repasse dependeria da elasticidade preço da demanda. Mas a indústria de transformação é um setor aberto, e se não for exatamente um “tomador de preços” está muito próximo dessa situação. Isto significa que a elevação do custo unitário do trabalho leva ao estreitamento das margens, o que desestimula a produção, e produz o comportamento observado do hiato da produção.

A expansão forte da demanda agregada de bens (domésticos e internacionais) elevou a demanda de mão de obra e os salários reais. No entanto, atuou desestimulando a produção industrial.

AUMENTO DA ABSORÇÃO E DAS IMPORTAÇÕES LÍQUIDAS

Desde 2005, a absorção vem se expandindo a uma velocidade superior à do PIB. O crescimento das importações líquidas foi temporariamente interrompido durante a recessão de 2008, mas de 2009 em diante ocorreu um crescimento muito forte. Avaliadas a preços constantes do ano 2000, as importações líquidas passaram de perto de 1% do PIB, no início de 2009, para mais de 6% do PIB, da metade de 2011 em diante (gráfico 7).

Gráfico 7 – Absorção, PIB e Importações líquidas a preços constantes do ano 2000

Como ficou evidente da observação dos dados mostrados anteriormente no gráfico 1, a aceleração no crescimento da absorção em relação ao PIB não veio apenas da expansão do consumo das famílias, mas também, ainda que em menor escala, da formação bruta de capital fixo. A expansão da absorção em relação ao PIB também coincide com a aceleração dos ganhos de relações de troca. Desde 2005 há um movimento de elevação das relações de troca, mas esse crescimento se acelerou em 2010 (gráfico 8).

Gráfico 8 – Relações de troca

A mudança de preços relativos permitiu que a preços constantes a absorção atingisse 6% do PIB, enquanto que a preços correntes elevou-se apenas para 1,5% do PIB em 2010 e 2011. Os ganhos de relações de troca abriram o espaço para que pudesse ocorrer uma forte ampliação da absorção relativamente ao PIB. No gráfico 9 comparamos as importações líquidas a preços correntes e a preços constantes. Entre 2000 e 2005 praticamente não ocorreram ganhos de relações de troca, mantendo as importações líquidas a preços constantes e correntes flutuando em torno do mesmo valor. Em 2005 se iniciam os ganhos de relações de troca, e a aceleração das importações líquidas a preços constantes coincide com esses ganhos.

Gráfico 9 – Importações líquidas a preços correntes e a preços constantes

Entre 2009 e 2010/11 as importações líquidas elevaram-se em 5 pontos porcentuais do PIB, e este aumento foi suportado quase que exclusivamente pela indústria. Nem o setor de serviços, com um valor adicionado de 67,5% do PIB em 2009, nem o setor de construção, cujo valor adicionado em 2009 representava 5,3% do PIB (tabela 4), operam com uma proporção significativa de bens “internacionais”. A agricultura, por outro lado, foi o grande beneficiário dos ganhos de relações de troca, gerando elevadas exportações líquidas. Dessa forma, o peso de um aumento de cinco pontos porcentuais nas importações líquidas avaliadas a preços constantes foi suportado quase que exclusivamente pela indústria de transformação.

Tabela 4 – Proporção do valor adicionado no PIB (%)

Duas são as consequências deste elevado grau de abertura da indústria. A primeira é que impede que a indústria repasse para preços os aumentos do custo unitário da mão de obra, o que se transforma em queda de margens, desestimulando a produção. A segunda é que a demanda que não é atendida pela produção industrial vaza para o exterior na forma de importações líquidas, cuja elevação não leva a um déficit elevado nas contas correntes devido aos ganhos de relações de troca.

CÂMBIO REAL, RELAÇÕES DE TROCA E POUPANÇAS DOMÉSTICAS

Com o encerramento da fase aguda da recessão, ao final de 2009, e a forte expansão monetária promovida pelo crescimento dos ativos de vários bancos centrais no mundo, os ingressos de capitais retornaram e o câmbio nominal se valorizou. Embora seja frequente atribuir à China a força que leva ao aumento dos preços de commodities, não se pode ignorar que o aumento de liquidez que se seguiu à expansão dos ativos dos bancos centrais foi uma força adicional elevando preços de commodities.

Nos 12 meses que se encerram na metade de 2011, tivemos ingressos de investimentos estrangeiros diretos de mais de US$ 60 bilhões, com ingressos em portfólio de renda variável de mais de US$ 40 bilhões, e em portfólio de renda fixa de mais de US$ 20 bilhões. Esses ingressos foram mais do que suficientes para financiar o déficit nas contas correntes, que se ampliou com a elevação das importações líquidas, e apesar da acumulação de reservas, de perto de US$ 50 bilhões dentro do ano de 2011, o câmbio nominal se valorizou.

Essa valorização também ocorreu no câmbio real. O câmbio nominal é o preço de um ativo, sendo influenciado pelos ingressos e saídas de capitais, e o câmbio real é um preço relativo, entre bens domésticos e internacionais. A longo prazo, o câmbio real depende apenas de variáveis reais, e retorna à sua média (o câmbio real de equilíbrio), mas se desvia dessa média por períodos longos quando é submetido a choques no câmbio nominal, como são os choques gerados por variações nos ingressos de capitais. As economias são caracterizadas por um elevado grau de rigidez de preços, e o Brasil não é uma exceção. É isso que está por trás da correlação positiva entre o câmbio nominal e o câmbio real (gráfico 10). Contudo, os efeitos desses “choques” não são permanentes. As evidências empíricas sobre a paridade de poder de compra para um número enorme de países, inclusive o Brasil, mostram que quando ocorre um choque ele não se incorpora permanentemente ao câmbio real, dissipando-se. Mas essa dissipação é muito lenta. Ou seja, o câmbio real tem uma componente autorregressiva positiva, o que gera persistência, mas tem uma raiz fora do círculo unitário.

Gráfico 10 – Câmbio nominal e câmbio real

A parada de ingressos de capitais em 2008 provocou a depreciação do câmbio nominal e do câmbio real naquele ano, e o retorno dos ingressos de capitais levou à valorização do câmbio nominal e do câmbio real. Foram movimentos de natureza semelhante aos que ocorreram nas paradas bruscas de ingressos de capitais, que levaram à depreciação dos câmbios nominal e real durante a crise de confiança de 2002, e durante a crise internacional de 2008. O retorno dos ingressos de capitais tem um papel importante na explicação da valorização cambial ocorrida em 2010 e grande parte de 2011. Mas se o câmbio nominal não tivesse se valorizado, existiriam forças que levariam à valorização do câmbio real, ainda que em uma velocidade menor. Neste caso a valorização ocorreria com uma inflação maior.

A primeira destas forças vem dos ganhos de relações de troca. A associação entre as variações nas relações de troca e o câmbio real está longe de ser perfeita, mas há uma clara correlação inversa, como se vê no gráfico 11. A partir de 2010, o Brasil conheceu um ciclo de ganhos de relações de troca cuja intensidade somente se compara à ocorrida em torno da reforma monetária do plano Real, e em ambos os casos ocorreram valorizações do câmbio real.

Gráfico 11 – Câmbio real e relações de troca

A segunda é a condição que foi analisada ao longo deste trabalho, ou seja, em uma situação próxima do pleno emprego, a elevação da demanda doméstica gera a elevação dos salários reais, e valoriza o câmbio real.

A terceira vem do fato de que no Brasil as poupanças domésticas são baixas, e para financiar os investimentos o país precisa absorver importações líquidas. No gráfico 12 superpomos a formação bruta de capital fixo e as importações líquidas medidas em proporção ao PIB e avaliadas a preços constantes do ano 2000. É clara a correlação inversa entre estas duas séries, mostrando que maiores taxas de investimento requerem importações líquidas mais elevadas. No auge da recessão, os investimentos declinaram para perto de 16% do PIB, provocando uma pequena redução nas importações líquidas, mas desse ponto em diante os investimentos voltaram a se elevar, contribuindo para o aumento das importações líquidas. As políticas contracíclicas levaram também ao aumento do consumo das famílias, reduzindo as poupanças das famílias. Investimentos excedendo poupanças significa absorção excedendo o PIB, e o aumento da absorção eleva as demandas de bens “domésticos” e “internacionais”, mas como os bens domésticos são produzidos a custos marginais crescentes, isto conduz ao crescimento dos preços relativos dos bens domésticos. A valorização do câmbio real é a consequência da necessidade de elevar as importações líquidas para absorver poupanças externas. A solução deste problema requer o aumento das poupanças domésticas, e está no domínio da política fiscal.

Gráfico 12 – Exportações líquidas e formação bruta de capital fixo

A combinação destas três forças leva a uma valorização do câmbio real. Mas esta é uma consequência dos ganhos de relações de troca; da elevação dos salários reais; e das baixas poupanças externas. À exceção dos ganhos de relações de troca, que são um “choque exógeno” imposto ao país, as outras duas são forças que derivaram da ampliação da demanda agregada, que em uma situação próxima do pleno emprego levou simultaneamente à estagnação da produção industrial e ao aumento das importações líquidas, com grande parte da valorização do câmbio real sendo uma consequência, e não a causa, desses movimentos.

CONCLUSÕES

A letargia na qual a indústria entrou a partir do início de 2010 é uma consequência da forma como o governo reagiu à crise iniciada em 2008. A proposição de que o remédio keynesiano da política fiscal expansionista levaria à recuperação era válida durante a recessão, mas era totalmente inadequada de 2010 em diante, quando já estávamos em uma situação próxima do pleno emprego no mercado de mão de obra. A partir daquele ponto, a demanda agregada não se expandiu enfrentando uma oferta agregada infinitamente elástica. As elevações de salários reais, combinadas com as transferências de renda e com uma expansão acentuada do crédito, estimulariam ainda mais o consumo. O governo expandiu os gastos correntes e as famílias expandiram o consumo, contribuindo para elevar a absorção.

A elevação dos salários reais acima da produtividade média do trabalho na indústria atuou impedindo uma maior utilização de capacidade na indústria, e como esta é aberta ao comércio internacional, foi fácil direcionar o excesso de demanda gerado pelas políticas fiscal e monetária expansionistas para o aumento das importações líquidas. Os ganhos das relações de troca permitiram que não ocorresse um desequilíbrio externo preocupante, o que permitiu que se prosseguisse com a intensa expansão da absorção.

Em nenhum momento o governo se preocupou em corrigir o rumo da política econômica, e a perplexidade com relação ao aumento das importações de bens industrializados, combinada com a letargia da indústria, levou a uma crítica exacerbada à valorização do real. O câmbio nominal se valorizou, e o governo reagiu com intervenções no mercado de câmbio. Talvez até pudesse até ter feito mais neste campo, evitando que o real se fortalecesse tanto quanto de fato se fortaleceu. Neste ponto, no entanto, limitou-se aos brados contra a “guerra cambial”, à qual atribuía a letargia da indústria, que era provocada por ele mesmo.

Mas mesmo que tivesse evitado uma valorização maior do câmbio nominal, enfrentaria a valorização do câmbio real. Primeiro, porque com a insuficiência das poupanças domésticas, a elevação da formação bruta de capital fixo, que esteve longe de ser excessiva, teria contribuído para que o câmbio real se valorizasse. Segundo, porque ao continuar expandindo fortemente a demanda em uma situação na qual o mercado de mão de obra estava extremamente aquecido, provocou a elevação dos salários reais, o que trouxe duas consequências: o aumento do preço relativo dos bens “domésticos” relativamente aos bens “internacionais”; e a elevação do custo unitário do trabalho na indústria, que apesar dos estímulos da queda da taxa real de juros levaram a um hiato negativo de produto crescente ao lado de uma queda na utilização de capacidade.

Os erros de política econômica, mais do que a valorização cambial, estão por trás da letargia da indústria no período de 2010 em diante.

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Como o gasto público elevado desequilibra a economia brasileira? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=643&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=como-o-gasto-publico-elevado-desequilibra-a-economia-brasileira https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=643#comments Mon, 04 Jul 2011 16:37:32 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=643 Em comparação internacional, há argumentos para mostrar que o gasto público brasileiro é alto. Utilizando dados da Penn World Table (uma confiável fonte de informação comparada de contas nacionais) acerca do consumo dos governos[1], é possível estimar qual seria o excesso/insuficiência de consumo governamental de cada país em relação à média internacional.

Foram realizadas nove diferentes estimações[2]. Elas mostraram que o Brasil teria um excesso de gastos entre 14% e 26%. Tal excesso o colocaria próximo ao topo do ranking de países com maior excesso de gastos. Na média das nove estimações realizadas, o Brasil fica em 13º lugar em um conjunto de 103 países. Portanto, entre os 13% que mais gastam. A Tabela 1 apresenta o ranking dos 20 países com maior excesso de gastos nas estimações realizadas.

Se olharmos em uma perspectiva temporal, também constataremos que o gasto público tem crescido de forma consistente no Brasil. A despesa do governo federal passou de 19% para 30% do PIB entre 1995 e 2009[3].

.

O gasto público elevado e crescente gera um ciclo vicioso retratado na Figura 1 a seguir. Para manter o equilíbrio das contas públicas, em um contexto de gastos não-financeiros crescentes, e atingir a meta de superávit primário, o governo aumenta tributos (seta nº 1) e corta investimento público (seta nº 2), o que acaba desestimulando o investimento privado (seta nº 3): a maior carga tributária reduz a rentabilidade líquida dos empreendimentos privados e a queda do investimento público gera deterioração da infra-estrutura de transportes, aumentando o custo final da produção. Essa redução no investimento privado e em outros componentes da despesa agregada sempre que o Estado aumenta a despesa pública é conhecido na literatura econômica como efeito crowding-out.

Tabela 1 –  Posição dos países no ranking de excesso de gasto (valor observado menos valor estimado) em cada uma das nove estimações

País I II III IV V VI VII VIII IX Média das posições no ranking Desvio Padrão das posições no ranking
1 Cuba 1 11 1 1 5 2 1 1 4 3.0 3.4
2 Niger 2 1 18 4 1 7 10 8 6 6.3 5.4
3 Netherlands 9 25 7 8 11 6 2 3 2 8.1 7.1
4 Mali 5 7 20 5 2 8 20 16 17 11.1 7.1
5 South Africa 4 26 4 10 12 4 15 12 16 11.4 7.2
6 Botswana 36 15 14 3 6 5 8 5 23 12.8 10.8
7 Denmark 7 10 2 13 16 46 6 7 30 15.2 14.1
8 Hungary 11 29 5 14 17 13 17 17 20 15.9 6.6
9 Venezuela 8 28 17 25 22 20 12 13 10 17.2 7.0
10 India 40 57 35 2 3 1 7 10 7 18.0 20.5
11 Sweden 22 41 6 12 14 27 9 11 22 18.2 11.0
12 Japan 19 39 30 31 38 9 5 6 1 19.8 15.0
13 Brazil 12 32 19 20 28 12 21 21 14 19.9 6.8
14 France 27 43 21 15 18 22 13 15 12 20.7 9.7
15 Czech Republic 23 40 22 16 24 10 23 23 15 21.8 8.4
16 Bulgaria 25 33 23 17 26 15 25 24 24 23.6 5.2
17 Colombia 6 18 8 18 23 16 42 43 46 24.4 15.3
18 Finland 18 12 11 24 30 43 26 28 40 25.8 11.1
19 Sierra Leone 53 8 49 6 4 3 38 34 38 25.9 20.5
20 United Kingdom 33 52 26 21 27 33 16 18 13 26.6 11.9

Fontes: Estimações do autor. Dados originais:

Alan Heston, Robert Summers and Bettina Aten, Penn World Table Version 6.3, Center for International Comparisons of Production, Income and Prices at the University of Pennsylvania, August 2009. http://pwt.econ.upenn.edu/php_site/pwt_index.php).

https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/

http://stat.wto.org/StatisticalProgram/WSDBStatProgramHome.aspx

http://www.indexmundi.com/trade/exports/

http://www.associatedcontent.com/article/56207/list_of_socialist_countries_with_individual.html?cat=37

http://www.oecd.org/document/9/0,3343,en_2649_39263238_41266761_1_1_1_1,00.html

A queda dos investimentos público e privado, por sua vez, reduz o potencial de crescimento da economia: reduz-se o PIB potencial do país, aquele que pode ser atingido sem que haja pressão inflacionária (seta nº 4)[4].

Com um baixo crescimento potencial do PIB, a estreita margem de crescimento não inflacionário da economia leva o Banco Central a manter juros reais elevados pois, se por um lado, o PIB potencial é reduzido, por outro o crescimento do gasto do governo pressiona a demanda agregada (seta nº 5).

A taxa de juros elevada, que é eficiente para manter a taxa de inflação sob controle no curto prazo, acaba por se constituir em mais um fator de desestímulo ao investimento privado (seta nº 6). E isso realimenta o baixo potencial de crescimento do produto a médio prazo. Com o potencial de crescimento do produto tendo sido reduzido, nos próximos anos será necessário manter a taxa de juros elevada, pois o gasto corrente do governo continua crescendo e pressionando a demanda; enquanto a oferta agregada não consegue acompanhar o aumento da demanda, devido à repressão aos investimentos público e privado.

Ou seja, configura-se um modelo em que o equilíbrio se dá com gasto público elevado e crescente, juros reais elevados e baixo potencial de crescimento da economia.

Esse modelo também tem reflexos no lado externo, sendo seu principal efeito a valorização da taxa de câmbio real. Ela ocorre por dois efeitos paralelos: o ingresso de capitais via investimento financeiro e a mudança de preços relativos entre bens não-comercializáveis e comercializáveis.

O primeiro efeito ocorre porque a taxa de juros real elevada atrai capitais externos para investimentos financeiros no país (títulos públicos e privados) (seta nº 7). A entrada de capitais não apenas valoriza a taxa de câmbio real, mas também a torna bastante volátil, variando ao sabor do humor dos mercados financeiros internacionais, com rápidas mudanças no movimento de entrada e saída de capital (seta nº8).

O segundo efeito sobre a taxa de câmbio real é uma relação direta entre o aumento do gasto público e a valorização do câmbio (seta nº 9). Ele ocorre porque a expansão do gasto público eleva o poder de compra posto nas mãos do consumidor. Isso resulta em aumento de demanda por bens e serviços. Ocorre, então, um aumento nos preços dos bens não-comercializáveis – tais como construção e serviços – (que não sofrem a concorrência de produtos importados) em relação aos bens comercializáveis (cujo aumento de demanda pode ser rapidamente suprido via importações). Há, portanto, uma mudança de preços relativos (o preço dos não-comercializáveis aumenta e o preço dos comercializáveis, dado pelo mercado internacional, se mantém constante). A taxa de câmbio real, definida como a taxa nominal (R$/US$) vezes a relação “preços externos / preços internos” cai, representando um aumento do poder de compra real da moeda nacional em relação ao Dólar.

A valorização cambial desestimula as exportações e estimula as importações (setas nº 10). E a volatilidade do câmbio real reduz a capacidade de previsão e planejamento do empresariado, o que mais uma vez desestimula o investimento privado, em especial (mas não exclusivamente) no setor exportador da economia. Há uma ampla literatura econômica que associa alta volatilidade de variáveis chaves (como câmbio e preços) a baixo crescimento econômico[5].

Figura 1 – Ciclo Vicioso


Outro forte desestímulo às exportações provém da redução do investimento público em infraestrutura de transportes e portos (seta nº 11). Maurício Moreira Mesquita[6] e Fernando Lagares Távora[7] já mostraram, em trabalhos distintos, que a deficiência de infraestrutura é muito mais prejudicial ao comércio exterior brasileiro que o protecionismo dos países desenvolvidos ou a falta de acordos gerais de comércio.

O impacto desse modelo sobre o produto é dúbio: por um lado, o barateamento das importações dos bens comercializáveis facilita a importação de máquinas e equipamentos, barateando os investimentos; mas, por outro lado, o desestímulo às exportações e a baixa previsibilidade e alto risco gerados pela volatilidade do câmbio reduzem o potencial de crescimento (seta nº 12).

Há ganhos no controle da inflação pela via da contenção dos preços dos bens comercializáveis (seta nº 13).

O balanço de pagamentos se equilibra via conta de capitais. Ou seja, a acumulação de reservas ocorre principalmente em função da entrada dos investimentos externos financeiros (seta nº 14), em especial, de entrada de capital de curto prazo, que tem por objetivo aproveitar o diferencial entre a taxa de juros doméstica e internacional.

É uma posição arriscada, que depende da mudança de humor dos investidores internacionais e pode ser revertida rapidamente, dada a grande abertura da conta de capitais. Por isso, é preciso acumular muitas reservas no Banco Central (seta nº 15), o que gera custo fiscal elevado (diferença de custo entre a dívida pública emitida para comprar reservas e a rentabilidade das reservas), reduzindo a disponibilidade de recursos para investimentos públicos (seta nº 16) e, portanto, realimentando o ciclo vicioso.

Esse modelo básico tornou-se menos ruim nos últimos anos devido à forte expansão do volume exportado e dos preços das commodities, o que permitiu, mesmo com valorização cambial, manter as exportações em alta e gerar um efeito positivo sobre o PIB potencial (as importações de equipamentos ficaram mais baratas, estimulando o investimento privado, e as receitas de exportação cresceram pelo efeito preço, impulsionando o PIB).

Mas o resultado básico permanece: temos um equilíbrio de taxa de juros real alta e gastos correntes crescentes; inflação sob controle, taxa de câmbio valorizada e volátil e necessidade de um custoso seguro contra volatilidades da conta de capital. Observe-se que a manutenção desse ciclo vicioso depende da disponibilidade de financiamento externo que, por sua vez, depende, além de fatores associados à liquidez internacional, da percepção de que a relação dívida/PIB não irá explodir.

No segundo semestre de 2009 vivemos outra fase da crise: o efeito colateral do remédio aplicado pelo Banco Central norte-americano. A grande liquidez injetada pelo FED, a custo zero, na economia internacional, tem migrado para os países emergentes, em busca de rentabilidade mais elevada. É um “oceano” de liquidez que, somado à promoção do Brasil a grau de investimento, provoca forte entrada de capitais e forte valorização cambial[8].

À parte do episódio de crise internacional, e tendo em conta que pouco podemos fazer em relação ao excesso de liquidez internacional, o desequilíbrio principal desse modelo (no que diz respeito aos pontos sobre os quais o governo tem poder de ação) vem da expansão dos gastos correntes do governo. E novos desafios se impõem:

  • Não há mais como comprimir o investimento público, sob pena de jogar na ruína toda infraestrutura pública; na verdade o investimento tem começado a crescer nos últimos anos, e continuará a crescer em função do PAC, da Copa do Mundo e das Olimpíadas; logo, se o gasto corrente não for contido, a taxa de crescimento do gasto público total será ainda maior;
  • A sociedade resiste cada vez mais à ampliação da carga tributária;
  • Mudanças no mercado de crédito, como a criação do crédito consignado, ampliaram o potencial de consumo, elevando a taxa de juros real de equilíbrio necessária para conter a inflação, caso não se contraia o gasto corrente;
  • A redução das oportunidades de ganho financeiro ao redor do mundo, em função da crise mundial, colocou o Brasil em posição de destaque na rentabilidade dos investimentos de renda fixa e variável, aumentando o influxo de capitais e intensificando a valorização e volatilidade da taxa de câmbio; isso requer uma redução da taxa interna de juros, que só poderá ocorrer de maneira segura (com baixo risco de inflação) se o governo reduzir a sua pressão sobre a demanda agregada.

Para enfrentar esses desafios é preciso conter o gasto corrente do governo e colocar a economia em um ciclo virtuoso, que nada mais é que o funcionamento “inverso” do ciclo vicioso apresentado na Figura 1, iniciado por uma redução do gasto público.

O crescimento real do gasto do governo é o principal e básico desequilíbrio da economia brasileira. Não adianta interferir em outro ponto do processo (reduzir juros na marra, tributar investimento estrangeiro em bolsa, criar barreiras legais ao crédito, criar barreiras a importações, subsidiar exportações, etc.), pois os efeitos serão temporários ou nulos, e gerarão custos de ineficiência.

O controle do gasto (que não precisa ser corte, mas apenas um crescimento mais lento, abaixo do crescimento do PIB), viabilizaria: aumento do investimento público, redução da carga tributária e redução dos juros reais de equilíbrio. Isso elevaria a taxa de investimento da economia, elevando o PIB potencial e, portanto, a oferta agregada futura. Por isso, haveria, nos próximos anos, mais espaço para crescimento sem inflação, conduzindo a uma taxa de juros de equilíbrio menor.

No front externo, a redução da taxa de juros desestimularia a entrada de capital para investimento financeiro. E o maior vigor da economia real estimularia o aumento do investimento direto estrangeiro. A substituição de capital financeiro por capital produtivo diminuiria a volatilidade do câmbio, visto que este último tem menor mobilidade e maior prazo de maturação. Além disso, o maior investimento direto estrangeiro estimularia a expansão do PIB potencial, reforçando o movimento de queda da taxa de juros real de equilíbrio.

Com relação à valorização do câmbio, haveria dois efeitos em sentido inverso. Por um lado, o efeito de valorização do câmbio em função da entrada de capitais externos se manteria, apenas com a substituição de capital financeiro por investimento direto. Por outro lado, o efeito direto do gasto público sobre o câmbio real faria com que houvesse uma desvalorização cambial (menor pressão sobre a demanda agregada, menor pressão sobre os preços dos bens não-comercializáveis, desvalorização do câmbio real). Além disso, é preciso atentar para o detalhe de que o investimento direto estrangeiro, ao promover ganhos de capacidade produtiva e de produtividade no setor de bens não-comercializáveis expandiria a capacidade deste para reagir a aumentos na demanda agregada. Assim, o impacto de aumentos da demanda sobre os preços de não- comercializáveis seria menor, com menor impacto sobre a taxa de câmbio real.

Essa taxa de câmbio menos valorizada e mais estável permitiria que o Balanço de Pagamentos se equilibrasse através da Balança Comercial e não da conta de capitais[9].

Havendo espaço para o aumento do investimento público em infraestrutura de transportes, haveria mais um reforço às exportações.

O equilíbrio externo via balança comercial é mais seguro para o País, reduzindo os riscos de crise cambial. O efeito direto da desvalorização cambial sobre o PIB potencial é incerto (queda de importação de máquinas e equipamentos vs. aumento e diversificação das exportações).  Haveria impacto inflacionário da desvalorização cambial, porém compensável pelo maior espaço para crescimento da economia via expansão do PIB potencial e pela maior produtividade decorrente do aumento de investimento externo direto. A menor volatilidade cambial e dos investimentos financeiros internacionais exigiriam nível menor de reservas, com menor custo fiscal, reduzindo a pressão das contas públicas sobre a demanda agregada e aumentando a capacidade de poupança e investimento do setor público.

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Para ler mais sobre o tema:

Mendes, M. (2010) Controle do gasto público: reformas incrementais, crescimento e estabilidade macroeconômica. CLP Papers nº 4. São Paulo. Centro de Liderança Pública.


[1] O consumo final do governo representa os serviços individuais e coletivos prestados de forma gratuita (ou parcialmente gratuita) por todas as esferas de governo (União, estados e municípios). Ele é medido pela remuneração dos servidores públicos, mais o consumo final de bens e serviços pelo governo (por exemplo, o pagamento a um hospital privado que presta serviços ao SUS, o giz para sala de aula ou os canapés de uma recepção oficial), e pela depreciação do capital fixo do governo. É importante observar que esse conceito não inclui as despesas de transferências (juros, aposentadorias e pensões, seguro-desemprego, bolsa-família). Também não estão incluídas as empresas estatais (de economia mista ou 100% pública). Somente as empresas dependentes de verbas dos tesouros federal, estadual e municipal são consideradas. Ademais, o consumo do governo restringe-se ao gasto corrente, não incluindo o investimento público. É, portanto, grosso modo, a despesa corrente de manutenção da máquina pública (salários mais consumo final de bens e serviços).

[2] Detalhes das estimações podem ser solicitadas ao autor.

[3] Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional.

[4] A idéia keynesiana clássica de que os gastos do governo alavancam o crescimento econômico aplica-se a situações de forte ociosidade do sistema produtivo em uma perspectiva de curto prazo e desconsiderando as questões de solvência e liquidez do setor público. Quando saímos dessa situação especial, a aceleração dos gastos públicos tem efeitos dinâmicos perversos sobre o crescimento econômico no médio e longo prazos, na linha descrita no presente texto. Vide, a esse respeito, Rocha, F. (2006)  Ajuste fiscal, composição do gasto público e crescimento econômico In: Mendes, M. (Org.) Gasto público eficiente: 91 propostas para o desenvolvimento do Brasil. Topbooks.

O uso do gasto público como instrumento de política anti-cíclica, em um contexto típico keynesiano, também enfrenta dificuldades no campo da economia política: quando a economia cresce de forma acelerada e a arrecadação fiscal gera excedentes (momento em que não é necessário acelerar os gastos) surgem incentivos para se gastar mais, dada a maior disponibilidade de receita pública; e nos momentos em que se faz necessária a ação do estado, para retirar a economia de uma recessão, a arrecadação fiscal está em baixa e a restrição orçamentária do governo se faz muito mais forte. Em países que sofrem grande risco de iliquidez e insolvência do setor público, fica muito restrito o espaço para política fiscal anti-cíclica em momentos de crise.

[5] Ver, por exemplo, a literatura citada em Hausmann, R. e Rigobon, R. (2003) An alternative interpretation of the “resource curse”: theory and policy implications. In: Davis, J.M. et all (Eds) Fiscal policy formulation and implementation in oil-producing countries. IMF Publication Service.

[6] Moreira, M.M., Volpe, C., Blyde, J.S. (2008) Desobstruindo as Artérias: o impacto dos custos de transporte sobre o comércio exterior da América Latina e Caribe. Banco Interamericano de Desenvolvimento. Harvard University Press. Disponível em http://idbdocs.iadb.org/wsdocs/getdocument.aspx?docnum=1662398

[7] Távora, F.L (2008) Developments in the World Soybean Market: a Partial Equilibrium Trade Model. Wageningen University – Holanda. Tese de Mestrado

[8] Vide, a esse respeito, o artigo de Nouriel Roubini “Quanto maior a bolha atual, maior será o inevitável estouro” – Folha de S. Paulo, 3 de novembro de 2009.

[9] Uma forma alternativa de ver este ponto é perceber que a poupança do governo aumentaria com a redução dos gastos, o que exigiria um menor volume de poupança externa (déficit em transações correntes) para financiar um dado nível de investimentos.

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Por que o real se valoriza em relação ao dólar desde 2002? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=620&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-o-real-se-valoriza-em-relacao-ao-dolar-desde-2002 https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=620#comments Mon, 20 Jun 2011 12:15:05 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=620 Este texto é uma resenha do estudo “O câmbio no Brasil: perguntas e respostas”, de autoria de Affonso Celso Pastore e Maria Cristina Pinotti, apresentado no XXIII Fórum Nacional, promovido pelo Instituto Nacional de Altos Estudos – INAE. O texto resenhado pode ser obtido na íntegra, em versão pdf,  no endereço: http://www.forumnacional.org.br/sec.php?s=400&i=pt . A publicação da presente resenha em www.brasil-economia-governo.org.br foi autorizada pelos autores e pelo INAE.

Por que o câmbio no Brasil se valoriza continuamente desde 2002? Não há uma causa única, mas uma explicação muito importante está associada a uma característica dominante da economia brasileira, que é o nível baixo das poupanças domésticas – pública e privada. Isto torna o crescimento econômico dependente da absorção de poupanças externas, na forma de importações líquidas, cujo aumento ocorre através da valorização do câmbio real. Se todas as demais causas apontadas para a valorização do real não existissem, essa dependência com relação às poupanças externas já seria suficiente para transformar o real em uma moeda forte.

O propósito deste trabalho é enfatizar a importância desse efeito, bem como indicar caminhos para superar a limitação que ele impõe ao crescimento econômico. Mas antes de atingir esse ponto é preciso avaliar as outras forças por trás do comportamento da taxa cambial. Para fazê-lo há que se responder a cinco perguntas.

i)                    qual é o verdadeiro regime cambial brasileiro?

ii)                  o que está por trás da contínua valorização do real desde 2002?

iii)                por que cresceram as pressões para a valorização do real a partir de 2010?

iv)                por que mesmo diante das intervenções e de controles aos ingressos de capitais o câmbio real se valoriza?

v)                  como os ganhos de relações de troca afetam as exportações de commodities e de produtos manufaturados, e que consequências isto acarreta sobre as importações?

Após responder a essas cinco questões, na última seção o trabalho discute as sugestões sobre como reagir à nova realidade externa. Não há controvérsias sobre as reações aos movimentos de curto prazo, que temporariamente valorizam o real: usam-se os instrumentos das intervenções e de taxações sobre os ingressos de alguns tipos de capitais. A controvérsia está no que fazer para evitar forças que a longo prazo tornam o real uma moeda mais forte. A primeira ação deveria ser a promoção de reformas que levem à elevação das poupanças domésticas, tornando o crescimento econômico menos dependente da absorção de poupanças externas.

I – QUAL É O REGIME CAMBIAL BRASILEIRO?

O Brasil aderiu à flutuação cambial no início de 1999. Mas se caracterizarmos o regime cambial brasileiro não pelo comportamento da taxa cambial, e sim pela intensidade das intervenções, desde janeiro de 2006 o Brasil vem praticando um regime cambial muito distante do câmbio flutuante puro.

Quando a trajetória do câmbio é pré-fixada (assim como no regime de câmbio fixo), o Banco Central tem que estar pronto a comprar ou a vender quaisquer que sejam os fluxos cambiais de entrada e de saída para manter o câmbio preso àquela trajetória. Já no regime puro de câmbio flutuante, o Banco Central nem compra, nem vende: o aumento de fluxos de entrada leva à valorização do câmbio, e o aumento dos fluxos de saída leva à sua desvalorização.

Desde a implementação do Plano Real, podemos identificar três períodos no que diz respeito ao comportamento do Banco Central no mercado de câmbio. Durante o período de câmbio com trajetória pré-fixada (1994-1999), eram frequentes as intervenções de compra e venda. Já no regime de câmbio flutuante, após 1999, há dois períodos distintos. No primeiro, entre 1999 e o final de 2005, as intervenções eram muito pequenas. Havia nesse período uma flutuação cambial quase pura. Já a partir de 2006, as intervenções são mais intensas do que no período entre 1994 e 1999. Por esse critério, o regime cambial recente se assemelha ao que existia quando o real seguia uma trajetória pré-fixada. Entretanto, contrariamente ao que ocorria entre 1994 e 1999, apesar da intensidade das intervenções, o câmbio não deixou de se valorizar. Também contrariamente ao que ocorria entre 1994 e 1999, quando havia uma alternância de compras e vendas, neste período mais recente, em quase todos os meses (a exceção são os quatro meses mais agudos da crise mundial de 2008), somente ocorreram compras. Foram compras tão intensas que, de janeiro de 2006 até o presente, o Brasil acumulou um adicional de mais US$ 274 bilhões de reservas.

Qual o motivo dessas intervenções intensas? A explicação oficial é que com isso buscava-se a acumulação de reservas. Esse é, de fato, um objetivo de política econômica, mas não era o único. O outro, não declarado, é a busca de, pelo menos, evitar uma valorização mais intensa do real.

II – O QUE ESTÁ POR TRÁS DA CONTÍNUA VALORIZAÇÃO CAMBIAL DESDE 2002?

Não há uma única causa por trás da contínua valorização cambial desde 2002, mas uma delas, muito importante, é o aumento progressivo da demanda por ativos brasileiros a partir de 2002, derivada da adesão do país à disciplina macroeconômica, junto com a melhora do cenário internacional.

A grande queda da percepção de riscos macroeconômicos ocorreu quando o governo Lula, logo no seu início, se comprometeu a manter o mesmo tripé implantado no governo anterior: superávits fiscais primários; metas de inflação; e flutuação cambial. Buscava, com isso, a redução da dívida publica; a sua desdolarização; o controle da inflação; e o aumento da liquidez externa do país. A percepção da seriedade do compromisso com esses objetivos reduziu drasticamente a percepção de riscos, elevando a demanda por ativos brasileiros.

O aumento da demanda no mercado financeiro internacional eleva os preços dos bônus brasileiros no mercado secundário, o que reduz seus rendimentos (yelds) e, consequentemente, o prêmio de risco[1]; e o aumento da demanda no mercado financeiro por parte de estrangeiros eleva o ingresso de dólares para permitir as compras, valorizando o real. Ou seja, a queda na percepção de riscos macroeconômicos produz, ao mesmo tempo, uma baixa dos prêmios de risco e uma valorização cambial: é a melhoria da percepção de riscos, por sua vez decorrente de uma maior disciplina macroeconômica, que permite queda no prêmio de risco e apreciação da taxa de câmbio.

Há quem argumente que a forte demanda por ativos brasileiros decorre das altas taxas de juros. É verdade que em todo este período há ingressos de capitais de curto prazo, mas há, também, um forte ingresso de capitais de longo prazo, que não são diretamente estimulados pelo diferencial de taxa de juros. Por exemplo, nos doze meses encerrados em maio de 2011, a entrada de investimentos estrangeiros diretos e em portfólios, que não é induzida pelo diferencial de juros, atingiu em torno de US$ 100 bilhões. São capitais atraídos pelas boas perspectivas econômicas do Brasil, em um contexto de abundante liquidez no mercado financeiro internacional.

III – POR QUE A PARTIR DE 2010 CRESCEU A PREOCUPAÇÃO COM A VALORIZAÇÃO?

Em 2010 o Federal Reserve iniciou Quantitative Easing 2 – QE2, um programa de recompra de títulos de longo prazo do Tesouro dos Estados Unidos que aumentou a quantidade de dólares em circulação. Isso acentuou a desvalorização do dólar com relação a praticamente todas as moedas, inclusive o real.

Uma primeira reação do governo brasileiro a essa valorização foi retomar os controles nos ingressos de capitais, elevando para 6% o IOF para os ingressos em portfólio de renda fixa. Em segundo lugar, intensificaram-se as intervenções no mercado à vista, tendo as compras no primeiro quadrimestre de 2011 atingido a média de US$ 7,3 bilhões por mês.

IV – POR QUE APESAR DO ESFORÇO CONTRÁRIO O CÂMBIO REAL SE VALORIZA?

Essa valorização é uma consequência de duas forças. A primeira são os ganhos de relações de troca. A segunda é o fato de que o Brasil é um país no qual o aumento dos investimentos depende da complementação de poupanças externas, porque as poupanças domésticas são baixas. A absorção de poupanças externas se faz com o aumento das importações líquidas, mas, para tanto, é necessário que se tornem mais baratas, o que exige a valorização do câmbio real.

Olhemos primeiramente para as relações de troca, mas antes de analisar o caso brasileiro, concentremo-nos por um momento no comportamento do dólar australiano, que foi a moeda que mais se valorizou depois de implantado o QE2. Não se pode atribuir a apreciação do dólar australiano ao diferencial de juros, simplesmente porque a taxa de juros daquele país é muito próxima da dos Estados Unidos. O canal de transmissão relevante, no caso da Austrália, foi a elevação dos preços de commodities.

Os ganhos de relação de troca, ao estimular as exportações e ampliar a oferta de divisas, tendem a valorizar o câmbio real em países cujas exportações de commodities são elevadas. No caso brasileiro, tanto quanto no caso da Austrália, ganhos de relações de troca ocorrem quando os preços das commodities se elevam. A partir de 2009, o Brasil teve ganhos de relações de troca da ordem de 30%.

Olhemos agora para o fato de que no Brasil as poupanças domésticas são baixas, e que os investimentos dependem da absorção de poupanças externas, na forma de aumento das importações líquidas. Contabilmente um déficit nas contas correntes (exportações líquidas negativas) é o excesso de importações sobre exportações de bens e serviços, mas economicamente ela pode ser vista: ou como o excesso da absorção (a soma da formação bruta de capital fixo e dos consumos das famílias e do governo) sobre a renda; ou como a escassez das poupanças totais domésticas para financiar os investimentos[2]. Outra forma de entender a dependência de nossa economia pela poupança externa é constatar que o aumento dos investimentos provoca o crescimento da absorção acima do PIB, porque não ocorre nem uma queda suficientemente grande do consumo das famílias, nem do consumo do governo, que provocariam a elevação das poupanças domésticas. É necessária então a poupança externa para completar o financiamento do investimento doméstico. Com isso fica estabelecido o fato empírico de que no Brasil o aumento dos investimentos requer a complementação de poupanças externas. Mas por que isso levaria á valorização do câmbio real?

O câmbio real é um preço relativo, entre bens tradables e non-tradables[3], e o aumento da absorção relativamente à renda provoca a sua apreciação. Para mostrar esse ponto partimos de uma situação inicial na qual os investimentos são iguais às poupanças domésticas (a absorção é igual à renda), com importações líquidas nulas. Admitamos que a partir desse ponto a absorção doméstica se eleva acima da renda (os investimentos crescem acima das poupanças domésticas), levando a um aumento nas importações líquidas. Expansão da demanda doméstica significa um aumento quer da demanda por bens tradables, quer da demanda por bens non-tradables. Mas com um dado valor do câmbio nominal o preço nominal dos bens tradables não se altera (ele é o produto do câmbio nominal pelo preço internacional, e lembremos que este último não se altera, porque o Brasil é um “tomador de preços” no mercado internacional). Em contrapartida, o aumento da demanda de bens non-tradables leva a um aumento de seu preço relativo (os salários, por exemplo), e, como o câmbio real é o preço relativo entre bens tradables e non-tradables, este se valoriza. A valorização do câmbio real é necessária para levar ao aumento das importações líquidas, que conduzem ao aumento da taxa de investimentos.

Por que canais essa valorização ocorre? Ela pode ser tanto decorrente de uma apreciação do câmbio nominal sem que os preços dos bens non-tradables se alterem no mercado doméstico; quanto de uma elevação dos preços dos bens non-tradables, isto é, através de uma inflação. Observem que em ambos os casos os bens non-tradables tornam-se mais caros em relação aos bens tradables.

Desde 2002 tem ocorrido apreciação do câmbio real. Em grande parte, essa apreciação é explicada pela apreciação do câmbio nominal. Mas a inflação (de bens non-tradables) também teve a sua parte, especialmente depois de 2010, quando se intensificaram as intervenções do Banco Central no mercado à vista, buscando evitar uma apreciação do real com relação ao dólar. Ou seja, nesse período mais recente, a tentativa de impedir uma apreciação do câmbio nominal tem feito com que a apreciação do câmbio real necessária para equilibrar o excesso de absorção doméstica em relação ao produto tenha de ser obtida por meio de maior inflação de non-tradables, como os serviços.

V – COMO AS RELAÇÕES DE TROCA AFETAM AS EXPORTAÇÕES E IMPORTAÇÕES?

Para as exportações como um todo, a valorização do câmbio real com relação à cesta de moedas é compensada pela elevação dos preços das exportações medidos em dólares. Mas os preços dos produtos manufaturados cresceram menos do que os preços dos produtos básicos. Quanto isso representa em termos de perdas de competitividade?

A resposta obviamente não pode ser dada olhando apenas para o câmbio real. Uma medida mais precisa é dada computando-se o produto do câmbio real pelos preços em dólares de manufaturados, semimanufaturados e básicos. Em relação ao câmbio real, podemos tomar como referência o dólar, se considerarmos que as exportações são predominantemente direcionadas para os Estados Unidos ou para países com moedas presas ao dólar (como a China), ou ter como referência uma cesta de moedas, se houver maior diversificação no destino de nossas exportações.

Em relação aos produtos básicos, verificamos que nos últimos anos suas exportações tornaram-se extremamente mais competitivas, pois a elevação de preços de commodities mais do que compensou a valorização das duas medidas de câmbio real. Já para os exportadores de produtos manufaturados para os Estados Unidos e para países com moedas atreladas ao dólar norte americano, a perda de competitividade vem ocorrendo continuamente. Mas ela é bem menor do que a estimada pela valorização do real, e é ainda menor caso se exporte para países cujas moedas também estão em processo de valorização.

O caso das importações é semelhante ao das exportações de produtos manufaturados. Importações provenientes dos Estados Unidos ou de produtos cotados em dólares têm seus preços convertidos em reais mostrando uma queda contínua.

QUAIS SÃO OS CAMINHOS?

Em situações de valorizações transitórias excessivas, como a que vem ocorrendo em resposta à crise internacional, o governo reage intervindo mais pesadamente e/ou “colocando areia nas rodas” dos ingressos de capitais, evitando uma sobrevalorização. A grande maioria dos países lança mão desses instrumentos. O que nos interessa mais de perto, diante da análise exposta neste trabalho, é como reagir ao movimento permanente de valorização do real.

A primeira providência é elevar as poupanças totais domésticas, de forma a tornar o crescimento econômico menos dependente da absorção de poupanças externas. Para isso é necessário redefinir completamente os objetivos da política fiscal. Há alguns anos, quando o Brasil sofria do problema da não sustentabilidade da dívida pública, tinha que gerar superávits primários suficientemente grandes para, dadas a taxa real de juros e a taxa de crescimento econômico, produzir o declínio da relação dívida/PIB. Agora teria que dar um passo além, cortando gastos de custeio em relação às receitas de forma a elevar simultaneamente suas poupanças e os seus investimentos.

A segunda providência é tomar medidas no campo tributário para elevar a competitividade das exportações. É preciso, primeiro, que os impostos sobre o valor adicionado permitam a total isenção nas exportações, o que não existe atualmente com o ICMS. É necessário reformar completamente o ICMS, mantendo as receitas nos Estados, mas com legislação federal, de forma a tolher o poder dos Estados na concessão de incentivos e isenções. O ICMS também teria que ser recolhido de acordo com o princípio do destino, e não da origem, de forma a eliminar o problema da não utilização dos créditos tributários. Também são necessárias uma desoneração da tributação sobre a folha de pagamento e uma queda drástica de impostos sobre energia elétrica e bens de capital.

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[1] O yield corresponde ao rendimento de um título, que pode ser expresso pela soma do rendimento de um título sem risco (o que usualmente é aproximado pela taxa de juros de títulos do governo norte-americano para títulos com características semelhantes aos nossos) com o prêmio de risco. Se o rendimento cai e a taxa de juros sem risco não se altera, isso implica redução do prêmio de risco.

[2] Para simplificar admitimos nula a renda líquida enviada ao exterior. A oferta total de bens e serviços é obtida somando o produto, Y, às importações, M, e a demanda agregada de bens e serviços é  obtida somando o consumo das famílias, C, aos investimentos, I, ao consumo do governo, G, e às exportações, X (a demanda externa). O equilíbrio impõe a igualdade Y+M=C+I+G+X, ou (X-M)=Y-(C+I+G), onde as exportações líquidas, (X-M), são iguais ao saldo nas contas correntes (a renda enviada ao exterior é nula), e (C+I+G) é a absorção. Somando e subtraindo a arrecadação tributária, T, obtemos (Y-T)-C – I+(T-G)=(X-M), onde (Y-T) é a renda disponível. A diferença entre a renda disponível e o consumo é a poupança das famílias, e a diferença entre a arrecadação tributária e o consumo do governo é a poupança do setor público. Ou seja a poupança das famílias é St =(Y-T)-C, e a poupança pública é (T-G)=Sp, e fazendo S=St+Sp obtemos S-I=X-M, ou seja, as exportações líquidas (o superávit nas contas correntes) é o excesso das poupanças sobre os investimentos.

[3] Bens tradables, ou comercializáveis, são bens que são fáceis de serem exportados ou importados. Já bens non tradables são bens que apresentam maior dificuldade de comercialização no mercado internacional (seja para exportação ou para exportação). Podemos aproximar, grosseiramente, bens tradables como commodities e manufaturados, e non-tradables como serviços. Câmbio real depreciado significa, portanto, que os bens comercializáveis estão relativamente caros. Quando o câmbio real se aprecia, o preço dos serviços e outros bens não comercializáveis tende a ficar relativamente mais caro.

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