Aposentadoria – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Wed, 07 Feb 2018 17:45:30 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 O fator e o favor previdenciário https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3161&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-fator-e-o-favor-previdenciario Wed, 07 Feb 2018 17:45:30 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3161 Em 6 de dezembro, o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), José Robalinho Cavalcanti publicou no JOTA o artigo Previdência: prendam os suspeitos de sempre. Contrário à reforma da Previdência discutida atualmente no Congresso, Robalinho reconhece que há um ‘problema’ previdenciário no País, mas ele estaria no Regime Geral (INSS).

O artigo critica as medidas que afetam os servidores públicos, especialmente os que ingressaram antes de 2003, já que reformas anteriores já teriam deixado a trajetória do Regime Próprio da União equilibrada no longo prazo. Assim, para Robalinho, os servidores teriam sido escolhidos como “espantalho” pelo governo, que desejaria criar um “inimigo externo”. O procurador também acusa o objetivo das medidas de irem “muito além da previdência”, uma vez que afetariam servidores de carreiras de estado que investigam forças políticas: teria a reforma da Previdência, portanto, “o objetivo final de manter o sistema político corrompido”.

Apesar de algumas considerações apropriadas – especialmente em relação à ausência dos militares da proposta -, há muito que ressaltar no texto do presidente da ANPR. Se é verdade que a situação futura do Regime Geral é muito mais grave do que a do Regime Próprio da União, também é verdade que os regimes próprios dos servidores dos entes subnacionais – na ausência de reformas – vão transformar vários Estados brasileiros em novos “Rios de Janeiros” nos próximos anos.

Igualmente, se é verdade que o menor desequilíbrio em longo prazo entre todos os regimes é mesmo o do Regime Próprio dos servidores da União, também é verdade que reformas anteriores ainda levarão tempo para surtir efeitos – o que diante do teto de gastos ameaça diversos investimentos e políticas públicas do governo federal. Os efeitos regressivos do ponto de vista da distribuição de renda também continuarão existindo por muito tempo: embora alcance poucas famílias, os regimes próprios seriam sozinhos responsáveis por 7% de toda a desigualdade de renda do país, segundo Pedro Souza e Marcelo Medeiros, os pesquisadores que estão na fronteira desta linha de pesquisa.

Para que o leitor entenda com mais clareza quais são as regras atuais do Regime Próprio (RPPS) dos servidores e como elas mudam na reforma, contemos a história de Antônio e Victor. Consideremos Antônio e Victor “gêmeos” para todos os fins: são trabalhadores que ingressaram no mercado de trabalho com a mesma idade, com uma mesma qualificação e em uma mesma profissão, receberam sempre a mesma remuneração, contribuíram sobre iguais valores e se aposentaram na mesma data: aos 55 anos, com 35 de contribuição.

Adicionalmente, suponha também o leitor que a média salarial ao longo da carreira de Antônio e Victor tenha sido de R$ 3 mil, e o último salário, de R$ 4 mil. Agora, suponha uma única diferença entre Antônio e Victor: Antônio trabalhava na iniciativa privada e está sujeito às regras do Regime Geral, Victor trabalhava no setor público e está sujeito às regras do Regime Próprio.

Antônio estará sujeito ao fator previdenciário, que aplicado a sua média salarial de R$ 3 mil, resultará em uma aposentadoria de cerca de R$ 2 mil1. Victor estará sujeito ao favor previdenciário, chamado de “integralidade”: se aposentará com os R$ 4 mil de último salário.

A integralidade ignora a média salarial de R$ 3 mil e a expectativa de sobrevida contida no fator previdenciário. Note que o termo integralidade pode confundir: ao contrário do que os segurados do INSS estão acostumados, o “integral” aqui se refere ao último salário, não à média salarial: com efeito, a aposentadoria não é a média integral, mas um valor maior do que a média.

No exemplo simples colocado, as regras diferentes entre os regimes levam a uma redução de R$ 1 mil sobre a média salarial de Antônio e um aumento de R$ 1 mil na média salarial de Victor, resultando em uma aposentadoria com o dobro do valor. Ressaltemos: Victor e Antônio sempre tiveram os mesmos salários e contribuíram sobre os mesmos valores.

A integralidade, ou o favor previdenciário como chamamos neste texto, é a principal fonte de iniquidade entre os regimes, e de pressão no gasto público. Contrariamente ao que algumas corporações veicularam nas redes sociais na última semana, o fato de servidores mais bem remunerados contribuírem sobre salários acima do teto do INSS não gera a contrapartida proporcional à integralidade. Se Victor ganhasse R$ 10 mil ou R$ 20 mil, certamente contribuiria com mais do que Antônio, mas o favor continuaria embutido.

Voltando à opinião de Robalinho, é verdade que servidores que ingressaram depois de 2003 não tem direito à integralidade, e os que ingressaram depois de 2013 (na União) possuem regras inclusive mais restritivas do que as do INSS (mesmo teto, idade mínima maior). O desafio é que o contingente de servidores com direito a esta vantagem – que o governo e os jornais chamam de privilégio – ainda é e será muito significativo, especialmente na próxima década. Em 2015, 93% dos servidores que se aposentaram na União tinham integralidade.

Diante do teto de gastos (Emenda Constitucional no 95, de 2016), os altos gastos com aposentadorias e pensões do Regime Próprio comprimem despesas de políticas públicas e investimentos na União, inclusive os voltados à população mais pobre – ainda que a tendência partir da década de 2030 tenda ao equilíbrio. Frisa-se que diante do teto e sem reformas, o próprio reajuste do funcionalismo de servidores ficará pressionado, o que adiciona complexidade à atuação corporativa de entidades como a ANPR: os interesses de servidores pré-2003 definitivamente se conflitam com os dos que ingressaram posteriormente.

Neste sentido, é pertinente olhar os indicadores de deficit atuarial dos diversos regimes.  O resultado atuarial – superavit ou deficit – é considerado o indicador mais relevante para a saúde de um regime previdenciário. Ele se contrapõe ao resultado financeiro, que é um indicador corrente, do presente; enquanto o resultado atuarial indica o equilíbrio futuro. Simplificadamente, este é a soma dos fluxos futuros de receitas e despesas, trazidas a valor presente. Em um sistema estritamente equilibrado, não há deficit (ou superavit) atuarial.

O deficit atuarial do regime próprio na União é de R$ 1,4 trilhão. Observe que enquanto Robalinho tem razão de que a trajetória no Regime Geral (INSS) é muitíssimo pior (R$ 7,9 trilhões!), o valor não é nada desprezível. Em especial, o Regime Próprio da União possui as mesmas regras dos regimes próprios de Estados e Municípios, com deficits atuariais somados de R$ 5,4 trilhões, em entes que não podem emitir moeda e tem restrições a se endividar.

A alarmante situação previdenciária dos Estados é parcialmente explicada pela integralidade, conjugada com regras especiais de aposentadoria que afetam a maior parte dos funcionários, como professores, policiais e profissionais de saúde. Segundo o Banco Mundial, mesmo o rico Estado de São Paulo terá ao redor de 2030 o mesmo comprometimento da receita com previdência que o Rio, falido, tem hoje. Os Estados – e a prestação de serviços básicos à população – não resistirão a mais uma década com as atuais regras previdenciárias. Não há sentido em se opor a esta reforma porque haverá equilíbrio nos regimes próprios em 2035 ou 2040.

Então o que muda na polêmica versão atual da proposta? A mudança é simples. Servidores que ainda têm direito ao favor previdenciário, a integralidade, continuarão tendo direito a ela – desde que esperem até os 65 anos de idade (homem) e 62 anos (mulher) para se aposentar. Podem se aposentar antes disso? Sim, mas sem a integralidade. Neste caso, este servidor leva “só” 100% da média salarial.

Voltando ao exemplo de Antônio e Victor, Victor continuaria tendo direito à integralidade se esperasse até os 65 anos. Se ainda quisesse se aposentar antes disso, teria direito a 100% da sua média, de R$ 3 mil. O valor é certamente inferior ao último salário (R$ 4 mil), mas ainda muito acima do da aposentadoria de Antônio (R$ 2 mil). Por quê? Se não incide mais o favor previdenciário aumentando a média, tampouco incide algo parecido com o fator previdenciário: pode-se levar 100% dela.

Note que é, portanto, absolutamente falsa a afirmação de Robalinho em seu texto de que não há regra de transição para servidores (“quer-se que a nova idade mínima seja fixada no dia seguinte à eventual promulgação”). Sustenta o presidente da ANPR, antes de concluir com a frase “prendam-se os suspeitos de sempre” que batiza o artigo, que haveria um tratamento diferenciado e desrespeitoso com o servidor que tornaria a proposta inconstitucional. Perceba: só é necessário continuar contribuindo até os 65/62 anos para manter a integralidade. Isso não é necessário para quem quiser sair antes levando 100% da média.

Agora imagine Victor, chateado com a proposta, explicando para Antônio a injustiça de levar como aposentadoria sua média salarial, sem fator previdenciário ou qualquer outro índice que considere sua (longa) expectativa de sobrevida. Ademais, a possibilidade de aposentadoria com 100% da média só existirá para servidores que ingressaram antes de 2003 – uma clara concessão a quem já foi afetado por reformas anteriores e feito seu planejamento familiar de acordo com elas –, enquanto os servidores que ingressaram posteriormente ficam sujeitos ao mesmo cálculo que valerá para os trabalhadores do INSS.

Há outros pontos a discordar no artigo aqui comentado. De menos relevante, soa incorreta a afirmação que “na verdade, é banal e intuitivo que a despesa previdenciária é anticíclica”: ela parece acíclica, pois cresce vigorosamente independentemente da atividade econômica. Talvez alguns ainda a considerem prócíclica, porque os reajustes do salário mínimo (o valor da maior parte dos benefícios) são influenciados pelo crescimento do PIB, mas com uma defasagem de mais de 1 ano. Anticíclica dificilmente ela é – como podem ser benefícios da Seguridade como o Bolsa Família e o seguro-desemprego –, se não se reduziria quando o PIB voltasse a crescer, o que coadunaria com o argumento de Robalinho de que os deficits altos são conjunturais.

De mais relevante, é extremamente controversa a afirmação de que “o governo mente quando diz que a reforma não atinge os mais necessitados” e que irá “reduzir em 40% a aposentadoria dos que chegarem aos requisitos com o tempo mínimo de contribuição (15 anos)”. De fato isso seria extremamente preocupante, porque possui razão o procurador quando diz que os trabalhadores mais pobres têm dificuldade de comprovar tempo de contribuição.

No entanto, a proposta atual, contrariamente à versão original, mantém o mínimo atual de 15 anos de contribuição, não mudando em nada o requisito para estes trabalhadores. Principalmente, a PEC não propõe a desvinculação do piso previdenciário do salário mínimo. Esta vinculação faz com que a maior parte dos beneficiários da Previdência, especialmente os mais pobres, recebam como valor do benefício mais do que a média salarial com que contribuíram. Para eles, é irrelevante a fórmula de cálculo do benefício, pois sempre tende a estar abaixo do salário mínimo atual – o piso previdenciário pela Constituição – que foi muito valorizado nos últimos 20 anos, especialmente nos governos do Partido dos Trabalhadores.

Ilustrativamente, um trabalhador que tenha recebido sempre o salário mínimo desde os anos 90, e contribuído sobre ele, teria média salarial atualizada em 2017 de pouco mais de R$ 600. Qualquer fórmula de cálculo de aposentadoria, seja a da reforma ou seja a vigente, leva a um valor inferior ao salário mínimo atual. Com 15 anos, o menor tempo de contribuição exigido para aposentadoria, ele já tem a média salarial integral como benefício, ou mais que integral, uma vez que o piso previdenciário é de R$ 937. Quase 70% dos benefícios do INSS são de 1 salário mínimo.

Desta forma, a tese do presidente da ANPR em relação aos trabalhadores pobres do INSS não apenas contrasta com o fechamento de seu artigo (“É no regime geral que está o problema”), como não tem amparo à luz da PEC e da realidade previdenciária.

Finalmente, chama atenção o argumento de que objetivo final da reforma da Previdência é manter o sistema político corrupto, uma vez que ela afeta servidores de carreiras que “investigam, fiscalizam, processam, incomodam as forças políticas que estão no poder”.  Não seria o caso então de possibilitar logo a aposentadoria destes servidores, permitindo a corruptos que se livrem de seus investigadores? Grandes personagens da luta recente contra a corrupção no País estão se aposentando pelas regras atuais, como o delegado ex-diretor da Polícia Federal Leandro Daiello (51 anos), o procurador da Lava Jato Carlos Fernando dos Santos Lima (53 anos, que anunciou aposentadoria para o ano que vem), e o próprio ex-Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot (61 anos) que se aposentadoria após deixar o cargo.

Ademais, a estranha lógica que relaciona a reforma da Previdência com o combate à corrupção poderia induzir o leitor menos esclarecido a inferir como corolário –equivocadamente – que ações anticorrupção são usadas contra a reforma: um infeliz argumento que já foi usado por opositores da Lava Jato.

A lembrança do ex-PGR Rodrigo Janot, aliás, é oportuna para encerrarmos este texto. Em agosto, o PGR ajuizou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 476, relativa ao Plano de Seguridade Social dos Congressistas (também afetado pela atual reforma). Esta previdência parlamentar, que contrariamente ao senso comum exige tempo de contribuição de 35 anos, possui na prática idade mínima maior do que a do Regime Próprio dos servidores e não conta com integralidade, pagando valores médios que são pouco mais da metade das aposentadorias do Regime Próprio no Judiciário, no MP e no Legislativo. Ressalta-se que a ação do PGR não se refere ao Instituto de Previdência dos Congressistas (IPC), este sim com regras mais vantajosas, mas extinto em 1997.

Os argumentos trazidos na ADPF são extremamente pertinentes na discussão da reforma que aproxima o favor previdenciário do Regime Próprio ao fator previdenciário do Regime Geral. Peço licença ao leitor para encerrar o texto reproduzindo três trechos, convidando-o a refletir se os argumentos se mantêm se substituirmos os termos “agentes políticos” por “servidores”.

  1. “Além de igualdade de oportunidades, o princípio republicano busca assegurar tratamento igualitário a todos os cidadãos e repudia privilégio ou regalia que beneficie, sem fundamento jurídico suficiente, determinado grupo ou classe em detrimento dos demais. É refratário à instituição de privilégios, pois se baseia no
    reconhecimento da igual dignidade de todos os cidadãos, donde a temporariedade do exercício do poder, precisamente para impedir perpetuação de privilégios.”
  2. “Concessão de benefícios previdenciários com critérios especiais distingue indevidamente determinados agentes políticos dos demais cidadãos e cria espécie de casta, sem que haja motivação racional – muito menos ética – para isso”.
  3. “Os princípios republicano e da igualdade exigem que, ao final do exercício de cargo eletivo, seus ex-ocupantes sejam tratados como os demais cidadãos, sem que haja razão para benefícios decorrentes de situação pretérita, muito menos de forma vitalícia. Mesmo durante a ocupação de cargos é desejável que os mandatários do povo sejam tanto quanto possível tratados com direitos e deveres idênticos aos de seus compatriotas”.

Publicado originalmente no JOTA em 11 de dezembro de 2017.

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1 R$ 2.124, com o fator previdenciário de 0,708.

 

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Por que os advogados estão entre os mais afetados pela reforma da Previdência? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3022&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-os-advogados-estao-entre-os-mais-afetados-pela-reforma-da-previdencia Wed, 16 Aug 2017 15:51:42 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3022 A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) divulgou uma contundente carta contrária à reforma da Previdência, que seria “fundamentada em premissas equivocadas” e conteria “inúmeros abusos contra diretos sociais”. A esta carta, seguiram diversas outras manifestações da Ordem. É pertinente fazer uma provocação. Embora muitas categorias se sintam prejudicadas pelas novas regras de aposentadoria, como policiais e professores, há uma categoria do qual pouco se fala e que é vigorosamente afetada pela reforma: os advogados.

A ambiciosa proposta do governo de reforma da Previdência tem o potencial para reduzir sobremaneira a judicialização no INSS, o maior litigante do Brasil. No início desta década, havia tantos processos do INSS na Justiça quanto paraguaios no Paraguai: cerca de 6 milhões. Conhecendo as particularidades do sistema judicial brasileiro, não é possível descartar que, em número de causas, o INSS seja até mesmo um dos maiores litigantes do mundo, se não o maior.

Essa grande quantidade de ações movimenta milhares de advogados. Das dezenas de bilhões de reais que anualmente o INSS despende por decisões judiciais, pelo menos alguns milhões revertem em honorários para o conjunto desses advogados. Várias dessas causas estão ameaçadas com a reforma da Previdência. É evidente que a entidade de classe que representa esses advogados deve se pronunciar veemente contra mudanças que os prejudiquem.

Uma busca rápida na Internet dá a dimensão do mercado: uma empresa vende mais de 1.200 modelos de petições para advogados previdenciários. Em um jornal, um especialista propagandeia a área como cada vez mais promissora por conta do envelhecimento populacional. Em um site especializado, proclama-se, com algum exagero, que a advocacia previdenciária é a área mais lucrativa de 2016 e que “o leque de atividades é tão grande quanto lucrativo”. Entendamos então como a reforma da Previdência pode mudar esta realidade.

Aposentadoria rural

De cada 100 aposentadorias rurais, 30 são concedidas judicialmente. De maneira geral, esse benefício não exige contribuição. O advogado atua principalmente para comprovar que um segurado trabalhou por pelo menos 15 anos no campo. A reforma altera este desenho para que esta comprovação seja feita periodicamente mediante o pagamento de uma contribuição, e não no momento de pedir o benefício com a ajuda de um advogado. A demanda por advogados também tende a se reduzir uma vez que as exigências de idade e tempo de contribuição convergiriam para as da aposentadoria urbana, deixando o benefício menos atraente para trabalhadores urbanos.

Aposentadoria especial

De cada 100 aposentadorias especiais, 70 são concedidas judicialmente. Esta é uma modalidade similar à aposentadoria por tempo de contribuição, sem idade mínima, que exige apenas 25, 20 ou 15 anos de contribuição, para quem esteve exposto a agentes nocivos no trabalho. Além da possibilidade de se aposentar antecipadamente, o benefício é vantajoso por ser integral, sem a aplicação do fator previdenciário.

O advogado atua principalmente para comprovar o tempo de exposição a esses agentes. A reforma afetará duplamente a judicialização deste benefício: restringe as formas de comprovação e reduz significativamente a demanda por ele ao torná-lo menos vantajoso. Em relação ao primeiro ponto, a reforma veda a comprovação apenas pelo pertencimento a uma categoria profissional. Em relação ao segundo ponto, cria uma idade mínima de 55 anos, altera o tempo mínimo de contribuição para 20 anos e o valor do benefício, que será proporcional ao tempo de contribuição. Novamente, é evidente que assim menos pessoas recorrerão a advogados, e as que recorrerem terão menor chance de sucesso.

Aposentadoria por invalidez

De cada 100 aposentadorias rurais por invalidez, 70  também são concedidas judicialmente. Em geral, o advogado questiona perícias do INSS que negam o benefício ou busca expandir a lista de doenças que dão direito ao benefício independentemente de contribuição, bem como tenta contornar a lentidão da fila das perícias. Medida Provisória anterior à reforma já obrigava os juízes a estimarem o prazo para cessação do auxílio-doença, eliminando uma das vantagens do pleito judicial deste benefício (o recebimento por tempo indefinido).

A aposentadoria por invalidez também não prevê a aplicação do fator previdenciário (benefício integral), e inclusive permite um adicional de 25% para o beneficiário que necessitar de cuidador, ainda que o valor ultrapasse o teto de benefícios – o que só existe nesta modalidade de aposentadoria. A reforma também altera o valor deste benefício, que passaria a ser proporcional ao tempo de contribuição. A demanda por advogados tende a diminuir se esta modalidade de aposentadoria pagar um valor menor do que o segurado receberia se trabalhasse mais alguns anos, se aposentando pela modalidade comum.

A princípio, a afirmação anterior pode parecer por demais fria: afinal, as pessoas procuram este benefício porque estão incapacitadas para o trabalho, e não porque o montante a ser recebido é maior. Entretanto, as situações destes segurados são muito heterogêneas, e os incentivos da legislação desempenham sim um papel importante na demanda pela aposentadoria por invalidez. Ilustrativamente, após a 2ª reforma da Previdência, quando a aposentadoria por invalidez do servidor público deixou de ser integral e passou a ser proporcional ao tempo de contribuição, a sua participação no total de aposentadorias concedidas caiu de 30% em 2004 para apenas 4% em 2016. Em que pese as diferenças na realidade do servidor e do trabalhador do INSS, é provável que a demanda administrativa e judicial pelo benefício se reduza com a reforma.

Benefício de Prestação Continuada

De cada 100 Benefícios de Prestação Continuada (BPC) concedidos, 25 são concedidos judicialmente. Formalmente assistencial, mas materialmente previdenciário, este é um benefício pago à pessoa com deficiência e ao idoso em situação de comprovada pobreza. Cabe ao advogado batalhar pelo benefício para a família que não cumpra os requisitos legais de pobreza, pleiteando, por exemplo, que outros benefícios assistenciais e previdenciários sejam excluídos do cálculo da renda familiar ou que se desconsidere a parcela desta renda gasta com medicamentos. Desconhecem-se ações judiciais semelhantes para o Bolsa Família, apesar da linha de corte mais rígida, provavelmente porque o benefício é muitíssimo menor.

A reforma coloca no texto constitucional a previsão de que a renda familiar seja considerada na totalidade, e que lei disponha sobre outros requisitos do BPC.  Boa parte das ações que hoje são bem sucedidas podem não mais o ser. Adicionalmente, a reforma inicialmente previa que o BPC teria um valor menor do que o das aposentadorias, o que pode também desestimular a procura deste benefício, inclusive pela via judicial.

Desaposentadoria

Por fim, a reforma é a pá de cal na desaposentadoria, talvez a grande causa dos escritórios de advogados previdenciários. A desaposentadoria, que não foi reconhecida pelo Supremo em 2016, é a tese de que aposentados que continuam trabalhando e contribuindo para a Previdência merecem o recálculo dos benefícios como se jamais tivessem se aposentado. Ao afetar principalmente os segurados que podem se aposentar por tempo de contribuição, de maior renda, tratava-se de ações de valor maior.  Ocorre que a desaposentadoria era corolário da própria ausência de idade mínima, que gerava uma grande quantidade de aposentados-contribuintes. Com a idade mínima, este pleito não faz mais sentido.

Se por um lado uma ampla reforma como a proposta pelo governo pode gerar inúmeros questionamentos jurídicos, fica claro que a atividade das bancas previdenciárias não será mais como hoje se a reforma passar. Este é o possível conflito de interesse que a OAB possui, como representante desses advogados, e que não é explicitado quando se posiciona de maneira tão contundente contra a reforma da Previdência.

Em um interessante caso de lobby destes profissionais, uma emenda substitutiva à reforma foi apresentada com o timbre de entidades de advogados previdenciários que contam com o apoio da OAB. A proposta chega ao extremo de proibir o Congresso Nacional de fazer reformas por 20 anos, mesmo por Emenda Constitucional, entre outros dispositivos que causam perplexidade por terem sido avalizados por operadores do Direito.

É importante ressaltar que isso não significa que não exista por parte da Ordem uma genuína apreensão quanto às mudanças propostas, até porque o discurso da OAB é compartilhado por várias outras entidades da sociedade civil. Entretanto, é justamente para a sociedade que precisa ficar claro que, neste estratégico debate nacional, os objetivos da OAB podem não ser os mesmos do conjunto da sociedade. Na reforma da Previdência, a atuação da Ordem é marcadamente diferente da sua reconhecida atuação em outros momentos da vida nacional, como as Diretas Já ou o impeachment do Presidente Collor. Como responsável pela defesa da classe dos advogados, prejudicados pela reforma, o provável conflito de interesse está colocado.

Ademais, é oportuno salientar que uma reforma da Previdência pode ser defendida justamente com os argumentos contrários a ela colocados por membros da advocacia nacional nas últimas semanas. O princípio da proteção à confiança deveria nos inspirar a garantir um sistema previdenciário sustentável, que não venha no futuro a cortar aposentadorias como no Rio, em Portugal ou na Grécia, rasgando promessas feitas a idosos em um momento em que eles mais nada podem fazer. Já o princípio da proibição de retrocesso social deveria nos motivar a olhar com mais carinho para as políticas públicas que serão comprimidas com o crescimento de uma despesa que ocupa 57% do orçamento federal e passará a ocupar 80% em cerca de 10 anos. E o retrocesso social na saúde, no saneamento básico, na educação?

Como garantir o direito ao emprego com os empreendimentos sufocados pelos juros estratosféricos decorrentes do crescimento acelerado da despesa pública? Como garantir o direito à vida em uma sociedade em que o Estado não tem dinheiro para pagar policiais ou médicos na quantidade necessária? É preciso ficar claro que vários dos direitos individuais e sociais previstos pela nossa Constituição não poderão ser efetivados em um Estado sem recursos e em uma economia no chão, e não podem ser judicializados como os direitos previdenciários podem ser. Não existe ação judicial factível para garantir um emprego, a construção de uma estrada ou o patrulhamento de uma rua.

Os advogados previdenciários prestam um serviço essencial no país, garantindo amparo a famílias necessitadas quando esbarram na lentidão da burocracia ou no desconhecimento do legislador. Muitas vezes não são somente uma opção, mas a última opção.  Todavia, o Estatuto da Advocacia é claro em seu art. 44 que a OAB tem a finalidade não só de defender a Constituição, os direitos humanos e a justiça social (inciso I), como também de promover a representação e a defesa dos advogados em toda a República Federativa do Brasil (inciso II). No debate da reforma da Previdência, o melhor para o país é que a entidade que ele tanto admira e confia admita o conflito entre os dois incisos.

Este texto foi originalmente publicado no JOTA em 6 de abril de 2017, sob o título “Reforma da Previdência e conflito de interesse da OAB”.

 

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O que a mulher que mais sofre com a tripla jornada ganha da Previdência? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3000&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-que-a-mulher-que-mais-sofre-com-a-tripla-jornada-ganha-da-previdencia https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3000#comments Mon, 26 Jun 2017 15:58:03 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3000 Deodorina chegou atrasada ao trabalho. A patroa, Dona Carmen, não deu atenção: estava vidrada na TV, atenta ao jornal. Reclamou da retirada de direitos na Previdência, mas percebeu que a reforma não a afetava tanto. Carmen terá de adiar em 6 meses os seus planos de se aposentar ano que vem, aos 52 anos.

Servidora pública, Carmen receberá para todo o sempre o maior salário da sua vida, ainda que não tenha feito contribuições no montante correspondente, e terá aumentos reais sempre que os funcionários da ativa tiverem1. Ficou com pena de seu filho, também funcionário público, porque ele não vai receber nada disso e ainda se aposentará mais tarde que a mãe: vai trabalhar até morrer, diz ela. Carmen acha um retrocesso, e se queixa da reforma: “imagina como fica o pobre”.

Carmen defende ser um absurdo a aposentadoria para homens e mulheres na mesma idade, porque sabe que os compromissos da casa e com o filho sempre sobraram mais para ela do que para o marido.  Felizmente, Carmen teve condições financeiras para continuar trabalhando, 30 anos seguidos, sem precisar largar o emprego para cuidar da criança. Usou parte do seu salário para pagar uma creche, e depois sempre pôde contar com a ajuda de mulheres como Deodorina, sua empregada.

Deodorina também completará 52 anos, mas não vai se aposentar ano que vem. Tampouco nos seguintes. Embora trabalhe desde a adolescência, não vai conseguir juntar os 15 anos de contribuição que o INSS exige para uma aposentadoria. Durante as últimas décadas, conseguiu por poucos anos ter a carteira assinada. Por um período ficou desempregada, por outro precisou ficar em casa cuidando dos seus cinco filhos.

Deodorina quase sempre buscou emprego. Sem diploma, praticamente só conseguia fazer diárias, como na casa de Dona Carmen. Foi difícil, mas ela conseguiu criar as cinco crianças. Deodorina não sabe o que significa tripla jornada, mas não vai receber nenhuma compensação da Previdência pelas suas décadas como profissional, mãe e dona de casa. Resta a ela pedir um benefício assistencial, na mesma idade de seu marido, aos 65 anos.

Carmen recebeu uma ligação do sindicato da sua carreira para uma manifestação. Ficou animada e irá protestar com seu filho contra a perda de direitos, contra retrocessos sociais e pela dignidade da pessoa humana.            Na passeata falarão de isonomia, paridade e integralidade.

Deodorina não pertence a nenhuma carreira, e, portanto, a nenhum sindicato. No protesto que Carmen vai participar, ninguém irá reclamar que o benefício com que Deodorina contava ficou mais difícil de se obter. Ela tem a mesma idade de Dona Carmen e trabalhou até por mais tempo do que ela, mas por ser “informal” não terá a mesma regra de transição e não estará isenta de mudanças2.

Deodorina teme ter que chegar atrasada de novo no serviço amanhã. Ela levava duas horas pra chegar ao trabalho, mas a obra do BRT que iria melhorar o seu deslocamento está parada, e até piorou o trânsito. O governo estadual, que mal consegue pagar os salários em dia, diz não ter dinheiro para terminar a obra. Carmen diz não haver déficit na Previdência.

Para piorar, Deodorina ainda terá de arranjar tempo para levar o neto na UPA. Desde que o menino se mudou para a sua casa, após o pai ser demitido no ano passado, a criança passou a ter diarreias e febres frequentes. Deodorina acha que tem a ver com o esgoto, mas precisa perguntar ao doutor. Ela não irá encontrar pediatra amanhã, nem um médico pra falar sobre as dores que vem sentindo. Carmen diz que o governo desvincula o dinheiro da Previdência para pagar outras coisas.

Foi o filho de Deodorina, desempregado, que pediu a ela pra levar o garoto no médico, porque tem uma entrevista de emprego amanhã. A empresa vai gostar dele, mas perceberá que os juros no banco estão proibitivos e desistirá de pegar um empréstimo para sua expansão. O banco considera mais conveniente aplicar seu dinheiro em títulos do Tesouro do que no negócio desta empresa. Carmen diz que em vez de fazer reforma o governo deveria é gastar mais, para aquecer o consumo.

Com o filho e o neto em casa, Deodorina está com dificuldade de fazer a feira do mês. Ela não sabe, mas parte do seu salário gasto no supermercado servirá para pagar “contribuições sociais”. Este dinheiro não pode ir para a obra do seu BRT, mas poderia ir para o saneamento da sua rua ou para contratar médicos para a UPA. Carmen não sabe, mas quando protestar contra a reforma dizendo não haver déficit na Previdência porque “a seguridade precisa ser analisada como um todo” estará dizendo que sua empregada deve gastar mais no supermercado para pagar a sua aposentadoria.

Deodorina e Carmen são apenas personagens ilustrativos dos conflitos embutidos na discussão sobre a reforma da Previdência. A reforma tem potencial para reduzir as desigualdades de acesso aos benefícios entre os mais ricos e os mais pobres. Os mais pobres atualmente financiam um sistema previdenciário a que tem acesso limitado, enquanto sofrem com o ônus do baixo investimento público (como em mobilidade ou saneamento), da carga tributária crescente (que incide sobre as compras do mês) e dos juros altos (que desemprega os jovens).  Sem reforma, este ônus tende a aumentar.

Estes personagens ilustram ainda a miopia em relação à discussão sobre as mulheres na reforma da Previdência.  São as mulheres mais pobres quem têm maior taxa de fecundidade, e é evidente que maior número de filhos torna a parte doméstica da jornada ainda mais difícil.  É evidente também que a mulher mais pobre, menos escolarizada, tem também menos acesso a emprego formal, bem como que a mulher com mais filhos ficará mais ausente do mercado de trabalho.

Esta mulher mais pobre tem menos recursos financeiros e é mais dependente dos serviços públicos, enfrentando dificuldade de colocar seus filhos em creches ou em educação integral. Ela também tende a morar mais longe do trabalho e a perder mais tempo com deslocamentos na sua tripla jornada. Se esta mulher não completa 15 anos de contribuições à Previdência, ela não se beneficia do diferencial de 5 anos na idade. Se não completar 30 anos, não se beneficia do diferencial no tempo de contribuição.

Neste sentido, o foco da preocupação com a mulher neste debate não deveria ser o fim das diferenças nas regras entre homens e mulheres, tema mais caro às mulheres mais bem posicionadas na distribuição de renda. Na aposentadoria por tempo de contribuição, apesar do diferencial de 5 anos para mulheres, 67% dos benefícios concedidos são para homens.

O que é de fato relevante para as que mais sofrem com a tripla jornada, merecendo maior discussão, é o aumento do tempo mínimo de contribuição, de 15 para 25 anos, e, especialmente, da idade mínima para o Benefício de Prestação Continuada, de 65 para 68 anos. No Benefício de Prestação Continuada, apesar de não haver diferencial de gênero, 58% dos benefícios concedidos são para mulheres.

De resto, a reforma é essencial para viabilizar a solvência do Estado e permitir uma disponibilidade maior de recursos para políticas voltadas à trabalhadora pobre e sua família, como investimentos em saneamento básico, creches, educação básica e nas transferências de renda voltadas a este grupo, como o Bolsa Família. Ela é essencial também para que a carga tributária e os juros altos não estrangulem o crescimento da economia, facilitando a incorporação no mercado de trabalho das famílias hoje mais excluídas dele, justamente as mais pobres.

Carmen é uma boa pessoa, e acredita que também está defendendo os mais pobres. A pauta de seu sindicato, porém, não levanta os aspectos sensíveis da atual proposta da reforma que realmente podem prejudicar pessoas como Deodorina. Se a agenda das corporações continuar predominando neste debate, será preciso proteger os mais pobres de seus defensores.

Versão deste texto foi originalmente publicada no NEXO Jornal, em 28 de fevereiro de 2017.

______________

1 Conforme o texto original da PEC nº 287, de 2016, mas não conforme o Substitutivo aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados. Todavia, a imprensa tem noticiado que a situação de pessoas como Carmen deve continuar como está no texto (direito à integralidade e à paridade).

2 Vide nota anterior.

 

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Por que o fator previdenciário não adia as aposentadorias? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2761&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-o-fator-previdenciario-nao-adia-as-aposentadorias https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2761#comments Thu, 24 Mar 2016 12:48:32 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2761 Em 2002, o israelense Daniel Kahneman foi o primeiro psicólogo a receber o prêmio Nobel em Economia, por “integrar insights da psicologia à ciência econômica1. Kahneman, é a principal referência do campo conhecido como “Economia Comportamental”, área “proveniente da incorporação, pela economia, de desenvolvimentos teóricos e descobertas empíricas no campo da psicologia”2. O enfoque da economia comportamental vai ao sentido de aprimorar a concepção do ser humano tido como “excessivamente” racional na teoria econômica tradicional, concepção que é pejorativamente conhecida como “homo economicus”.

Mais recentemente, a economia comportamental saiu da academia e chegou aos governos, orientando em muitos países a implantação de políticas públicas (conforme discutido no blog aqui).  Uma questão que é especialmente relevante para a economia comportamental é a aposentadoria. Segundo Sunstein (2013):

de acordo com a teoria econômica padrão, as pessoas irão considerar tanto o curto prazo quanto o longo prazo. Nós temos em conta as incertezas; nós sabemos que o futuro é imprevisível e que grandes mudanças podem acontecer.

No entanto, o que se verifica frequentemente segundo Sunstein (2013) são escolhas por opções com “benefícios líquidos de curto prazo e custos líquidos de longo prazo”. Segundo o autor, decisões “míopes” e curtoprazistas ocorrem em parte porque as pessoas simplesmente não conseguem considerar interesses futuros como sendo de fato seus.

Por sua vez, Hershfield et. al (2011) realizaram experimento usando “realidade virtual imersiva”3, em que parte dos participantes eram inseridos em um avatar, uma representação visual de seus corpos e rostos no futuro: observou-se que aqueles que se “visualizaram” no futuro exibiram tendência maior de aceitar recompensas financeiras posteriores ao invés de recompensas imediatas. Os pesquisadores defendem que a dificuldade de os indivíduos se visualizarem aposentados seria responsável por uma crise de poupança para aposentadoria nos Estados Unidos, relacionada à inclinação das pessoas de colocar maior peso na gratificação de curto prazo em relação aos ganhos de longo prazo.

Ariely (2008) avalia ser uma fraqueza humana comum ceder a “impulsos” durante a consecução de objetivos de longo prazo, dificuldade que estaria na raiz de problemas tão diversos quanto se manter em uma dieta ou conseguir uma aposentadoria satisfatória. O fracasso — repetidamente — em alcançar esses objetivos seria a fonte de boa parte da “miséria” humana: “temos problemas com autocontrole, relacionados à gratificação imediata e (gratificação) postergada”.

Decisões como a da aposentadoria parecem ser de interesse especial para a economia comportamental por envolver uma das questões que mais lhe é cara: a distribuição de ganhos e perdas de uma decisão no curto e no longo prazo. Ariely (2008), que observa que a decisão de aposentadoria é sensível no mundo todo, contrasta a abordagem da economia comportamental com a da teoria econômica tradicional nesta questão. Na concepção tradicional, um benefício de aposentadoria insatisfatório seria decorrente de decisões racionais de um indivíduo, o que teria de pressupor que “não ligamos para o futuro, (…) aguardamos experenciar a pobreza quando aposentados, (…) esperamos que nossos filhos cuidem de nós, (…) ou temos esperança de ganhar na loteria”. A provocação evidencia que a racionalidade como concebida na teoria econômica tradicional, embora extremamente útil para várias abordagens, não parece se adequar a (más) decisões de aposentadoria.

 

A aposentadoria por tempo de contribuição no Brasil e a economia comportamental

A escolha de quando se aposentar no Brasil pode estar especialmente sujeita aos vieses que a economia comportamental diagnostica, por conta da existência do benefício de aposentadoria por tempo de contribuição (ATC), sem idade mínima. Este tipo de aposentadoria do Regime Geral de Previdência Social é a principal modalidade de aposentadoria da classe média no país (excluídos os servidores públicos). Não havendo um limite mínimo de idade obrigatório na aposentadoria por tempo de contribuição, os trabalhadores têm uma amplitude de tempo ainda maior para decidir quando devem parar de trabalhar.

Este espaço de tempo abre um leque de escolhas também por conta da existência do fator previdenciário: criado para contornar a ameaça à sustentabilidade da Previdência Social devido à ausência da idade mínima, o fator calcula o benefício da aposentadoria por tempo de contribuição de acordo com a expectativa de sobrevida do segurado (quanto maior, menor o benefício) e com o próprio tempo de contribuição (quanto maior, maior o benefício). Assim, cumpridos os requisitos de 35 anos de tempo de contribuição para homens e 30 para mulheres, o trabalhador pode continuar trabalhando ou, a qualquer tempo, pedir a aposentadoria. Ainda, é possível que o trabalhador opte pelas duas coisas: continuar trabalhando e receber a aposentadoria — o que não é proibido e de fato é muito comum.

 

A decisão de se aposentar na teoria econômica tradicional

A teoria econômica tradicional, baseada na já discutida noção de racionalidade, teve dificuldade em lidar satisfatoriamente com o problema da decisão da aposentadoria. Em verdade, a percepção da importância de itens como a educação previdenciária para os cidadãos precede a ascensão da própria economia comportamental4. Este campo se mostrou relevante mais por identificar com clareza — empiricamente  —  os vieses que afetam decisões como esta e por sua prescrição de instrumentos (como os nudges, discutidos aqui), e não por reconhecer pioneiramente que, na prática, decisões sobre aposentadoria não são completamente racionais (na acepção da teoria econômica).

Por exemplo, Tafner, Botelho e Erbisti (2015) argumentam que a própria intervenção dos governos em prover previdência pública, de uma maneira mais ampla, já se basearia no diagnóstico de alguma deficiência. Os autores enfatizam deficiências de informação e de capacidade de decisão neste processo. Diz Oliveira (1982 apud TAFNER, BOTELHO e ERBISTI 2015):

A decisão de quanto, quando e como poupar (…) de modo a garantir um fluxo de rendas suficientes durante o período de inatividade é, certamente, muito complexa. O indivíduo deveria ter disponível um conjunto de informações extremamente amplo e preciso sobre seus futuros riscos.

Oliveira inclui entre esses riscos possíveis doenças, suas durações e custos, bem como as expectativas de vida do segurado e de seus dependentes “Mesmo que essas informações fossem disponíveis, a análise (…) seria tarefa árdua para uma equipe de atuários e de analistas de investimento”.

No entanto, a abordagem tradicional da “economia da aposentadoria” se baseia na racionalidade de um agente. Leonesio (1996) descreve estes modelos como partindo de modelos de escolha entre trabalho e lazer, onde se incluiria também a decisão de aposentadoria: “todos (são) partes de um problema mais geral de decidir como usar o tempo”. Em geral, estes modelos partiriam da noção de que um indivíduo tomaria uma decisão racional maximizando sua “satisfação” (função utilidade), baseada em quantidades de consumo, lazer e em sua “taxa de preferência temporal” (que pondera o valor dessas variáveis no presente e no futuro). Este processo de maximização se sujeitaria a uma restrição orçamentária também intertemporal. Com base nesses parâmetros, o indivíduo tomaria a decisão ótima referente ao número de anos que deve trabalhar e quanto deve poupar ao longo de sua vida laboral. Ao leitor interessado em conhecer mais sobre os modelos de aposentadoria na teoria econômica tradicional, consultar Nery (2016).

 

A decisão de se aposentar na economia comportamental

De acordo com as pesquisas da ciência comportamental, decisões como a da aposentadoria poderiam sofrer variadas influências não captadas pela teoria tradicional. Entre essas influências, se encontram heurísticas, “regras de bolso” que simplificam a tomada de decisões complexas, e vieses cognitivos, os erros sistemáticos de decisão resultantes do uso de heurísticas5.

Cabe notar que essas influências e conceitos discutidos pela economia comportamental, que se contrapõem a modelos mais formalizados, como os citados anteriormente, e que serão apresentadas nesta subseção, se aplicam de maneira ampla ao problema de aposentadoria e de formação de poupança como um todo, e não especificamente apenas ao caso brasileiro.

Conceitos destacados para a economia comportamental para melhor compreender problemas com as decisões de aposentadoria e poupança incluem:

  • Desconto hiperbólico: a ideia que “recompensas recebidas no presente pesam mais do que recompensas futuras”, e, em especial, que os “valores atribuídos a recompensas decrescem rapidamente para pequenos períodos de adiamento” (Samson, 2015).
  • Viés do presente: relacionado ao item anterior, “refere-se à tendência de dar um peso maior a recompensas que estão mais próximas do tempo presente quando consideramos os trade-offs entre dois momentos futuros” (Samson, 2015).
  • Escolhas com inconsistência temporal (ou dinâmica): escolhas a partir das ideias anteriores, que ocorrem quando as “pessoas são desproporcionalmente atraídas por gratificações disponíveis imediatamente” e que não teriam sido feitas se fossem contempladas por uma “perspectiva desapaixonada” segundo Hoch e Loewenstein (1991).
  • Autocontrole: diferentemente das ideias anteriores, seria para Nunes, Rogers e Cunha (2015), “a capacidade de executar planos anteriormente definidos e, portanto, realizar escolhas intertemporais consistentes”. Por sua vez, Rick e Loewenstein (2015) enfatizam que “além de reconhecer e dar atenção às consequências futuras das nossas ações presentes, também precisamos ser capazes de controlar nosso comportamento de forma a implementar a linha de comportamento desejada”, o que poderia ser chamado também de “força de vontade”.
  • Viés de otimismo (ou otimismo irrealista): segundo Samson (2015), seria a tendência de superestimar a probabilidade de cenários positivos e de subestimar a de cenários negativos (por exemplo, o de ter um câncer no futuro).

 

Complexidade e insatisfação na aposentadoria por tempo de contribuição

Fica claro que a decisão de pedir o benefício da aposentadoria por tempo de contribuição, frente aos incentivos colocados pelas fórmulas do fator previdenciário e a da fórmula 85/95 móvel, é especialmente complexa. Nos veículos de comunicação, as dúvidas em relação à aposentadoria aparecem com frequência. Há profusão de reportagens em jornais buscando orientar os cidadãos sobre o funcionamento da previdência no país e sobre como decidir qual “o melhor momento de se aposentar”.  Diversos sites da internet disponibilizam ainda simuladores de aposentadoria, frequentemente ligados a sindicatos. Dados dos primeiros meses de vigência da fórmula 85/95 mostram que os segurados têm se dividido entre as duas formas de cálculo, ou seja, as decisões em relação à fórmula de cálculo do benefício não têm sido uniformes (pelo menos a princípio).

A complexidade percebida pelos segurados não é o único problema: um contingente significativo daqueles que se aposentam por tempo de contribuição consideram insatisfatório o valor de seus benefícios.  Muitos se arrependem da data em que se aposentaram, sendo esta, porém, uma decisão irrevogável. Como reflexo, o Congresso Nacional recebe muitas demandas para conceder aumentos reais aos benefícios  e para permitir a desaposentadoria (recálculo das aposentadorias dos trabalhadores que continuaram trabalhando, em geral sem devolução dos benefícios já recebidos). Esta última seria objeto também de mais de 120 mil ações no Judiciário segundo a Advocacia-Geral da União (AGU). Em verdade, no ano de 2015, duas medidas provisórias foram aprovadas no Congresso Nacional com emendas atendendo estes dois pleitos (reajustes reais para todos os benefícios e desaposentadoria), vetadas posteriormente pela Presidência.

Entre outras demandas que resultam em projetos de lei ou emendas parlamentares estão também a extinção definitiva do fator previdenciário ou a fixação de parâmetros de seu cálculo que sejam mais favoráveis aos segurados (ex: não atualizar a expectativa de sobrevida após satisfeitos os requisitos de 35/30 anos de contribuição).  A título de ilustração, estudo da Consultoria Legislativa do Senado mostrou que em dezembro de 2014 tramitavam no Congresso Nacional 223 proposições acerca de benefícios previdenciários, sendo que 78% na direção de aumentar os benefícios recebidos6. Da mesma forma, outro estudo apontou que entre 1.048 emendas apresentadas às quatro Medidas Provisórias que tratavam de benefícios da Seguridade em 2015, 73% também objetivavam aumentar as despesas previdenciárias7.

Essa relativa complexidade e a insatisfação podem estar associadas às idades precoces praticadas na aposentadoria por tempo de contribuição. A percepção de complexidade pode ajudar a explicar a miopia dos segurados em se aposentar cedo, apesar do cálculo do benefício com o fator previdenciário ser muito mais favorável com alguns anos de espera. Por sua vez, os valores “baixos” recebidos por conta do fator previdenciário que incide com a idade e tempo de contribuição menores podem ajudar a explicar a enorme insatisfação dos beneficiários.

Os dados apresentados por Pereira (2013) coadunam com esta noção. Mesmo doze anos depois da criação do fator, os pedidos de ATC parecem “não obedecer” à sua lógica: em 2012 essas aposentadorias se deram em média com apenas cinco meses além do requisito mínimo de 35 anos no caso dos homens (35,44) e dois meses além do requisito mínimo de 30 anos no caso das mulheres (30,2 anos)8. Menos de um terço dos benefícios dos homens e apenas cerca de um quarto dos benefícios das mulheres foram concedidos com pelo menos um ano de contribuição adicional além do mínimo de 35/30.

Ilustrativamente, um homem de 55 anos que se aposentasse naquele ano com os 35,44 anos de contribuição correspondentes à média teria um benefício apenas 1,5% maior do que o que teria com o mínimo de 35 anos exatos. No mesmo sentido, uma mulher de 50 anos que se aposentasse com os 30,2 anos de contribuição da média daquele ano teria um benefício menos de 1% maior do que o que receberia com apenas 30 anos, o que evidentemente é uma vantagem ainda muito pequena. Uma das possibilidades constantemente usada para explicar este fenômeno de aposentadorias precoces perante o fator previdenciário seria a percepção, bastante difundida, de que o cálculo do fator “piora” anualmente por conta da revisão da expectativa de sobrevida da população, o que tornaria prudente pedir o benefício o quanto antes9 10.

Sunstein (2013) avalia que a “complexidade pode ter sérios efeitos não intencionais, incluindo (gerar) indiferença (…) e confusão” nos cidadãos. A complexidade da decisão referente à ATC no Brasil, conjugada com a insatisfação em relação aos benefícios, pode dar ensejo ao uso de nudges para melhorar a tomada de decisão daqueles que pedem esse benefício, a partir do uso das principais descobertas da economia comportamental, ajudando-os a escolher quando se aposentar.

Esta pode ser uma tentativa de abordar o “paradoxo” das aposentadorias por tempo de contribuição: elas têm regras consideradas ao mesmo tempo pouco generosas pelos segurados que as recebem e muito generosas pelos especialistas que analisam as contas da Previdência. Este “empurrão” seria uma intervenção simples, focada em melhorar o planejamento dos segurados e reduzir as resistências aos benefícios, com sorte atenuando a judicialização de questões previdenciárias e a pressão política por aumento de gastos.

Um nudge tem o objetivo de superar vieses inconscientes usados em decisões que não são consideradas racionais, “reenquadrando” as escolhas possíveis. Esta “arquitetura da escolha” não obriga ninguém a escolher alguma alternativa específica, nem proíbe qualquer opção. Um nudge também não altera a estrutura de incentivos econômicos existentes. Segundo Thailer e Sunstein (2008):

As pessoas irão precisar de nudges para decisões que são difíceis e raras, para quais elas não recebem pronto feedback, e quando elas têm problema em traduzir aspectos da situação em termos que elas consigam facilmente entender (…) para escolhas que têm efeitos postergados; as que são difíceis, infrequentes, e oferecem feedback pobre; e para aquelas em que a relação entre escolha e experiência é ambígua.

Estas características parecem estar presentes no caso do benefício da aposentadoria por tempo de contribuição (ATC). Como em outros países, esta é uma decisão obviamente rara e infrequente (uma mesma pessoa não se aposenta diversas vezes na vida). No Brasil, pode ser especialmente difícil por conta do cálculo a ser feito em relação à fórmula do fator previdenciário, que já chegou a ser considerada até em uma decisão da Justiça Federal como “extremamente complexa – (de) complexidade absurda11. Como vimos, a complexidade do cálculo do benefício foi significativamente aumentada em 2015 após a aprovação da fórmula 85/95 móvel para o cálculo da aposentadoria por tempo de contribuição (que, cabe observar, não extinguiu o fator).  A coexistência dessas duas formas de cálculo torna mais complicada a tarefa das pessoas de traduzir aspectos da situação em termos que elas consigam facilmente entender.

Ainda em relação às características listadas por Thaler e Sunstein, esta é uma decisão em que não se recebe um pronto feedback, que tem efeitos postergados, e em que a relação entre escolha e experiência é ambígua. Estes três aspectos se aplicariam especialmente ao caso da aposentadoria por tempo de contribuição no Brasil por duas características peculiares do benefício no país já citadas: i) a inexistência da idade mínima, que gera aposentadorias em idades precoces (média de 55 anos para homens, 52 para as mulheres); e ii) a possibilidade de acúmulo das rendas do trabalho e da aposentadoria. Essas duas características fazem com que haja frequentemente um grande distanciamento da experiência de viver de fato como idoso e de receber como renda de fato apenas a aposentadoria em relação à realidade imediatamente posterior à escolha de pedir o benefício (ao redor dos 54 anos e talvez acumulando outras rendas).

No caso aqui analisado, nudges poderiam consistir na apresentação, para o segurado que deseja se aposentar por tempo de contribuição, de maneira clara e intelegível, de informações tais como12:

  • Valor estimado do benefício para cada ano adicional de contribuição além dos mínimos de 35/30;
  • Data estimada em que seria possível se aposentar com a fórmula 85/95 móvel;
  • Data estimada em que o valor do benefício calculado pelo fator previdenciário seria maior do que o calculado pela fórmula 85/95 móvel (fator previdenciário maior que 1);
  • Diferenças (“perdas”) entre o valor do benefício calculado naquela data e os valores referentes aos itens anteriores;
  • Alerta de que a aposentadoria é irrenunciável;
  • Alerta de que contribuições adicionais do aposentado que continua em atividade não aumentam o valor do benefício;
  • Dados sobre a satisfação de beneficiários que se aposentaram em condições semelhantes.

Estas informações poderiam melhorar a tomada de decisão do segurado de quando se aposentar diante da coexistência das duas fórmulas de cálculo, inclusive uma delas com regra de transição (a da 85/95). Note ainda que os últimos dois itens informariam sobre a impossibilidade de obter a desaposentadoria (pelo menos por via administrativa). Informações como essas poderiam melhorar o entendimento do segurado sobre o sistema, garantir que sua decisão sobre quando se aposentar seja sólida e contribuir para que sua escolha não resulte em um benefício que ele venha a considerar insatisfatório no futuro.

Conceitos da economia comportamental que se relacionam com a proposta acima incluem efeitos de enquadramento ou contexto; ancoragem; aversão à perda; disponibilidade; saliência; alertas; e influências sociais13.

Thaler e Sunstein (2008) advogam pelos nudges: “um bom sistema de arquitetura da escolha ajuda as pessoas a aprimorar suas capacidades de planejar e consequentemente de escolher opções que as farão ficar em situação melhor”. No mesmo sentido, as diretrizes do decreto assinado em 2015 pelo presidente Barack Obama sobre o uso da economia comportamental no governo americano recomendam que gestores encorajem ou facilitem que os cidadãos tomem ações específicas como poupar para a aposentadoria, e, ao fazê-lo, considerem como o timing, a frequência, a apresentação ou outros incentivos podem de modo mais efetivo e eficiente promover este tipo de ação.

 

Ressalvas

Cabe ressaltar, porém, que, conforme discutido anteriormente, a pertinência do nudge proposto será menor com o eventual advento de uma idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição, já que é justamente a inexistência da idade mínima que cria um amplo espaço de possibilidades para a decisão relativa à ATC. A idade mínima foi publicamente defendida pela Presidenta Dilma Rousseff em 2016[14]. No entanto, a idade mínima por si não retira a importância de nudges nos moldes sugeridos, já que ela poderá vir com regras de transição, manter a possibilidade de aposentados continuarem trabalhando e manter as formas de cálculo do benefício (inclusive o fator previdenciário) – todos itens que complicam a decisão para o segurado, mesmo na presença de uma idade mínima.

Outra observação relevante é que este tipo de nudge correria o risco de ser mal interpretado pelo segurado, que pode ser levado a crer que tem algum direito adquirido em relação a valores futuros do benefício. As estimativas se baseariam em uma inserção contínua no mercado de trabalho formal, o que não é a realidade de parcela significativa dos segurados. Os valores de fato calculados no futuro dependerão do emprego e do salário do segurado no período, e podem ser inferiores ao inicialmente estimado. Assim, um desafio seria ressaltar o caráter de estimativa que as informações possuiriam, não vinculando o valor do benefício em nenhuma data. Este desafio não é trivial, já que um nudge deve ser simples e claro como os exemplos apresentados, e não denso como um contrato cheio de cláusulas: quanto maior a quantidade de observações e ressalvas apresentadas, menor será a sua eficácia.

 

Considerações finais

A popularidade dos nudges em governos de países desenvolvidos passou até a gerar preocupações sobre um possível excesso. George Loewenstein e Peter Ubel, alguns dos mais eminentes pesquisadores da área, alertaram no The New York Times que “a economia comportamental está sendo usada como um expediente político, permitindo aos formuladores de políticas públicas evitar soluções dolorosas, porém mais efetivas baseadas na economia tradicional15.

Richard Thaler, porém, considera que intervenções paliativas baseadas na economia comportamental podem ser válidas quando a resistência a remédios mais tradicionais for grande, citando o caso do jurista Cass Sunstein quando chefiou um importante órgão do governo americano: na impossibilidade política de criar um imposto sobre o petróleo, medidas amparadas na economia comportamental foram usadas para melhorar a eficiência energética de combustíveis16. Nesse sentido, cabe ressaltar que as graves questões conhecidas em relação à Previdência no Brasil certamente exigem medidas impopulares, aprovação de leis e de emendas à Constituição. Por mais meritórios e eficazes que possam ser, cabe ressaltar que nudges não têm potencial para mudar a dramática trajetória do país nesta questão.

 

Este texto é baseado no Texto para Discussão no 188 da Consultoria Legislativa do Senado Federal (“Errar é Humano: economia comportamental aplicada à aposentadoria”). Disponível em: http://www.senado.gov.br/estudos.

 

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______________

1Formalmente o “Prêmio de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel”.
2Definição da recém-lançada versão do Guia de economia comportamental e experimental em português (organização de Flávia Ávila e Ana Maria Bianchi). Disponível em:  http://www.economiacomportamental.org/guia-economia-comportamental.pdf.
3Immersive virtual reality.
4Sobre educação previdenciária e educação financeira como um todo ver, entre outros, Giambiagi (2014, 2015).
5O termo heuristic (heuristics) também é traduzido como heurístico (heurísticos), no masculino.
6Texto para Discussão nº 164, de 2014 (“Projetos de iniciativa parlamentar sobre Previdência Social: uma avaliação qualitativa de impacto fiscal”). Disponível em: http://www.senado.leg.br/estudos.
7São elas às MPs nºs 664, 665, 672 e 676. Ver Boletim Legisativo nº 33, de 2015 (“A visão das agências internacionais de classificação de risco sobre o Congresso Nacional”). Disponível em: http://www.senado.leg.br/estudos.
8Cabe ressaltar, porém, que o contingente de aposentadorias especiais, como o de professores, pode reduzir essa média, por serem exigidos menos anos de tempo de contribuição.
9É pertinente notar que, embora a Tábua de Mortalidade do IBGE que fornece a expectativa de sobrevida usada no cálculo do fator de fato seja atualizada anualmente, com o passar dos anos a própria idade do segurado, além de seu tempo de contribuição, aumentam, o que tende a tornar o cálculo do benefício mais favorável. Ainda, quanto maior a idade, menor tenderá a ser a expectativa de sobrevida de uma pessoa, melhorando ainda mais a conta do fator previdenciário. Por isso, via de regra, faria pouco sentido a lógica de que quem trabalhar mais terá uma aposentadoria menor.
10 Outras possibilidades mais de acordo com o conceito de racionalidade seriam a de pedir a aposentadoria esperando judicialmente conseguir um benefício maior no futuro, ou ainda esperando que o mercado de trabalho seja desproporcionalmente desfavorável a pessoas mais velhas. Ainda, o segurado que recebe ao redor de um salário mínimo pode considerar que pouco adianta contribuir mais se a aposentadoria será eventualmente maior de qualquer jeito com aumentos reais ao salário mínimo (que é também o piso da Previdência).
11 Processo nº 0009542-49.2010.403.6183 da Justiça Federal em São Paulo.  Íntegra da decisão disponível em: http://www.jfsp.jus.br/assets/Uploads/administrativo/NUCS/decisoes/2010/101202fatorprevidenciario.pdf
12O Projeto de Lei de Conversão no 4, de 2015, aprovado pelo Congresso Nacional, acatava a Emenda no 50, da  Senadora Lúcia Vânia, à Medida Provisória no 676, com conteúdo semelhante.  Tal dispositivo foi vetado pela Presidência, por impor ao INSS “a necessidade de significativa realocação de recursos humanos e materiais”.
13Ver Samson (2015).
14`Vamos encarar a reforma da Previdência`, afirma Dilma. Folha de São Paulo, 7 de janeiro de 2016. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/01/1726862-ajuste-e-prioridade-e-inflacao-ficara-dentro-da-meta-em-2016-afirma-dilma.shtml.
15 Economics behaving badly. The New York Times, 14 de julho de 2014. Disponível em: http://www.nytimes.com/2010/07/15/opinion/15loewenstein.html?_r=0
16 Behavioural economics and public policy. Financial Times, 14 de março de 2014.  http://www.ft.com/intl/cms/s/2/9d7d31a4-aea8-11e3-aaa6-00144feab7de.html.

 

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Fórmula 85/95: que Estados pagam o fim do fator previdenciário? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2552&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=formula-8595-que-estados-pagam-o-fim-do-fator-previdenciario https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2552#comments Mon, 06 Jul 2015 14:51:03 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2552 1. Introdução: do que trata a MP nº 676/2015?

Durante a votação da Medida Provisória nº 664/20141, na Câmara dos Deputados, foi aprovada a Emenda nº 45, inserindo a “fórmula 85/95”, sem regra de progressividade. Esse dispositivo foi vetado pela Presidência da República, e a MP nº 676/2015 foi editada como alternativa, com uma progressão dos valores dessa fórmula.

A Medida Provisória nº 676, de 2015, permite a opção, para fins de aposentadoria, de não haver incidência do fator previdenciário no valor da aposentadoria, caso em que ela seria integral, se a soma da idade ao tempo de contribuição do segurado atingir os valores 85, para as mulheres, e 95, para os homens. Segundo a MP, esses valores serão aumentados anualmente em um (1) ponto a partir de 2017 e até 2022, com exceção do ano eleitoral de 2018, conforme a seguinte Tabela 1.

Tabela 1 – Fórmula 85/95 progressiva

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2. Qual a diferença da fórmula 85/95 em relação ao fator previdenciário?

Para fins de comparação com o fator previdenciário, tomemos o exemplo da mulher de 55 anos com 30 de contribuição (somando 85) e do homem de 60 anos com 35 de contribuição (somando 95). Ambos satisfazem os critérios da fórmula 85/95 para aposentadoria integral (100% do salário-de-contribuição).

De acordo com a fórmula do fator previdenciário vigente hoje para aposentadoria por tempo de contribuição, a mulher de 55 anos com 30 de contribuição teria direito a uma aposentadoria no valor de 70% do salário-de-contribuição, enquanto o homem de 60 anos com 35 de contribuição teria direito a uma aposentadoria de 85%.  Esse resultado é apresentado na Tabela 2, abaixo.

Tabela 2 – Comparação do valor da aposentadoria em relação ao salário-de-contribuição2

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Para obter o benefício de 100% pelas regras atuais, esta mesma mulher teria de continuar trabalhando e contribuindo por mais quase 6 anos (perto dos 61, com 36 de contribuição), quando o equilíbrio atuarial pelo fator previdenciário seria atingindo. No caso do homem, seriam necessários quase 3 anos a mais (perto dos 63, com 38 de contribuição). No jargão da fórmula 85/95, para esses dois exemplos, a aposentadoria integral conforme o equilíbrio do fator previdenciário é obtida pela soma 97/101 (61+36 e 63+38).

Essa comparação evidencia o impacto financeiro nas contas do governo da adoção da fórmula 85/95. A expectativa de sobrevida da mulher brasileira de 55 anos, usada no exemplo, é de 28 anos. Assim, o tempo esperado de usufruto da aposentadoria (28) é apenas ligeiramente menor do que o tempo de contribuição ao sistema (30). Entretanto, pela fórmula 85/95 a aposentadoria tem o valor integral do salário-de-contribuição (100%), mais de três vezes maior do que a alíquota de contribuição (31%, somadas contribuições da trabalhadora e do empregador), o que ilustra o desequilíbrio nas contas da Previdência (que mesmo o fator previdenciário não é capaz de compensar integralmente).

Assim, cumpre ressaltar que, embora a apresentação das contas gere a impressão de que o fator previdenciário causa “perda”, em verdade o fator tenta evitar qualquer perda (ou ganho) em termos de valor esperado do fluxo de pagamento de contribuições e do fluxo recebimento da aposentadoria. A impressão de perda existe pela “ancoragem” no valor do salário-de-contribuição, que é tomado como referência pelo segurado e por um imaginário social de que 30 anos de trabalho para uma mulher e 35 anos para o homem é muito tempo, que deveria ser suficiente para a pessoa se aposentar.

3. Comparação internacional: fator previdenciário ou fórmula 85/95?

Muitos países passaram ou passam pela transição demográfica que o Brasil vem enfrentando de forma cada vez mais acentuada: o aumento da expectativa de sobrevida da população conjugado à redução nas taxas de natalidade da população (envelhecimento). Como a previdência pública opera pelo regime de repartição, em que as contribuições dos trabalhadores da ativa financiam as aposentadorias dos inativos, os sistemas de previdência ficam comprometidos à medida que se amplia o contingente de benefícios pagos e se reduz o contingente de contribuições feitas.

Assim, em se tratando de fenômeno que não é exclusivo do Brasil, é pertinente fazer uma análise comparada. Que tipo de regras adotam para financiar os seus sistemas os países desenvolvidos (substancialmente mais ricos que o Brasil) e os países emergentes (de perfil demográfico mais próximo ao brasileiro)? Qual regra é mais usada: a do fator previdenciário ou a da fórmula 85/95?

A resposta é nenhuma das duas. A regra, tanto em países ricos quando em emergentes, é o estabelecimento de uma idade mínima para aposentadoria, inexistindo a possibilidade de aposentadoria apenas por tempo de contribuição (evidentemente que existem requisitos de tempo de contribuição, além da idade mínima, além de haver previsão para aposentadoria por invalidez). A idade mínima não existe no Regime Geral da Previdência Social (o operado pelo INSS), mas vigora para novos entrantes do serviço público desde a primeira reforma da Previdência (Emenda Constitucional nº 20, de 1998).

A Tabela 3 apresenta as regras de aposentadoria por idade mínima em países da América do Sul, do G20 e do Brasil.

Tabela 3 – Idade mínima para aposentadoria – América do Sul, G20 e Brasil

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No Brasil, onde não existe a idade mínima, calculamos que a média das aposentadorias por tempo de contribuição no meio urbano se dá aos 53 anos e 11 meses, sendo de 54 anos e 10 meses para os homens e 52 anos para as mulheres3. Como evidencia a comparação com a Tabela, tais idades não permitiriam aposentadoria nem em países com baixa expectativa de vida, como a Índia ou a Indonésia.

Cumpre destacar algumas informações da Tabela comparativa. Mesmo países latino-americanos como a Argentina, México, Chile e Peru exigem idade mínima de 65 anos para a aposentadoria dos homens, bem acima da idade média praticada no Brasil. Observa-se também que muitos países, tanto sul-americanos como participantes do G20, vêm reduzindo ou mesmo extinguindo as diferenças para concessão das aposentadorias de homens e mulheres, por conta de a expectativa de vida feminina ser mais alta e pela mudança da sua participação no mercado de trabalho.

 4. Como a Previdência é afetada pela transição demográfica (envelhecimento da população)?

A transição demográfica já consistia em uma grave preocupação, mesmo com a presença do fator previdenciário. O Tribunal de Contas da União (TCU) estima, com o fator, um déficit atuarial do RGPS de incríveis R$ 3 trilhões para o ano de 20504. Por sua vez, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento (OCDE) estima que nas próximas décadas a expectativa de sobrevida do idoso brasileiro deverá até superar a do americano, a do dinamarquês e do cidadão da União Europeia5.

Esse envelhecimento da população pode ser visualizado nas Figuras 1 a 3, que apresentam a pirâmide etária do país em 2015 e também 35 anos atrás, em 1980, e a projetada para daqui a 35 anos, em 2050. As pirâmides evidenciam as dificuldades da Previdência: ela opera pelo regime de repartição, em que as parcelas mais jovens da população (as faixas inferiores das pirâmides), no mercado de trabalho, financiam as aposentadorias das parcelas mais idosas (as faixas superiores das pirâmides). No mesmo sentido, a Figura 4 mostra a evolução do contingente de brasileiros acima de 60 anos, entre 1980 e 2050.

Mesmo atualmente, em que a transição está longe de ser completada (conforme as figuras abaixo), o RGPS, que não inclui servidores civis e militares, ostentou um déficit de cerca de R$ 57 bilhões em 2014, mais de duas vezes o custo anual do Programa Bolsa Família.

Figuras 1 a 3 – Transição demográfica e envelhecimento da população: pirâmide etária do Brasil em 1980, 2015 e 2050 (projetada)

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Figura 4 – Contingente de brasileiros acima de 60 anos entre 1980 e 2050 (projeção)

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O envelhecimento da população é normalmente entendido de maneira errônea, apenas como o fato de os brasileiros estarem vivendo mais. Na verdade, ele se refere ao aumento da composição de idosos na população, que deve também, em boa parte, pela redução da taxa de natalidade no país.

Trata-se da redução de nascimentos na população e, portanto, a médio prazo, de população economicamente ativa (PEA), apta a trabalhar e financiar a Previdência. Este é um fenômeno mundial, que também ocorre no Brasil há muitos anos, sendo inexorável e não podendo ser revertido por meio de políticas públicas. Segundo o IBGE, atualmente existem cerca de 7 trabalhadores para cada aposentado. Em poucas décadas, chegaremos ao número de 2 para cada um.

5. A fórmula 85/95 reduz ou aumenta a desigualdade de renda?

Cabe observar que a fórmula 85/95 atinge os beneficiários do RGPS mais bem posicionados na distribuição de renda. Isso porque o fator previdenciário respeitou o piso de um salário mínimo, e porque as aposentadorias por tempo de contribuição são substancialmente maiores que a aposentadoria por idade e que outros benefícios. A aposentadoria por idade exige apenas 15 anos de contribuição, atingindo os segurados que não conseguiram por tanto tempo uma colocação no mercado de trabalho formal.

Em março de 2015, mesmo com a incidência do fator previdenciário, a média das aposentadorias por tempo de contribuição concedidas estava bem acima da média dos outros benefícios concedidos pela Previdência: 92% acima sobre a média das aposentadorias por idade, 51% acima sobre as pensões por morte, 50% acima sobre as aposentadorias por invalidez e 133% acima sobre o valor do Benefício de Prestação Continuada (BPC, destinado ao idosos pobres que não tem aposentadoria)6, conforme o Gráfico 1.

Gráfico 1 – Comparação do valor médio da aposentadoria por tempo de contribuição e de outros benefícios

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No âmbito da Previdência Social e da Seguridade Social como um todo, a fórmula 85/95 é mais regressiva em relação ao fator previdenciário, ou seja, efetivamente concentra mais renda.

6. O conflito federativo na Previdência: quem paga o custo da nova fórmula?

Embora pareça benéfica para todos os segurados do País, a fórmula 85/95 atinge apenas o benefício da aposentadoria por tempo de contribuição, que é concentrado de maneira desproporcional em algumas regiões do país. Isso ocorre porque i) a composição demográfica é diferente no país, com alguns estados tendo população mais idosa do que outros e; ii) a aposentadoria por tempo de contribuição exige o mínimo de 30/35 anos de carteira assinada, que muitos trabalhadores de regiões pobres não puderam atingir.

Por isso, enquanto nas regiões mais pobres predominam os benefícios da aposentadoria por idade, o benefício rural ou o Benefício de Prestação Continuada (BPC, assistencial) — concentrados na faixa de um salário mínimo —, nas regiões mais ricas há maior incidência da aposentadoria por tempo de contribuição, que tende a ter um valor maior.

Gráfico 2 – Valor anual médio (per capita) recebido em cada Estado e região por aposentadoria por tempo de contribuição

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O Gráfico 2, acima, detalha, por Estado, os gastos com a aposentadoria por tempo de contribuição, per capita, evidenciando a regressividade regional da Previdência urbana:

Entretanto, como a Previdência opera no regime de repartição, em que as contribuições dos mais jovens financiam as aposentadorias dos mais velhos, os Estados mais pobres, de população mais jovem, financiam indiretamente os benefícios dos Estados mais ricos, de população mais idosa. Ainda, por ser o INSS deficitário e coberto por recursos do Tesouro, a conta da Previdência é paga com recursos que poderiam ser direcionados para as regiões mais carentes, via educação, saúde ou saneamento básico, por exemplo.

Essa situação de subsídios cruzados na Federação tende a se agravar com a alternativa proposta ao fator previdenciário, já que apenas a aposentadoria por tempo de contribuição é afetada por ela, não havendo qualquer reajuste adicional para os outros benefícios, como o rural ou o BPC.

O mais grave, quando os Estados pobres envelhecerem, a fórmula já vai ser insustentável e boa parte dos trabalhadores dessas regiões inevitavelmente irá se aposentar sob regras muito mais duras do que as vigentes hoje para os benefícios que eles ajudaram a financiar, já que eles chegarão “atrasados” na transição demográfica. O Amapá, por exemplo, recebe cerca de 14 vezes menos, per capita, do que Estados como São Paulo ou Rio Grande do Sul.

7. Considerações finais

Cumpre ressaltar que mesmo o fator previdenciário, embora mais sustentável do que a fórmula 85/95 (progressiva ou não), ainda não seria suficiente para equilibrar a Previdência no futuro.

O problema é que a fórmula proposta pelo governo parte de um ponto de partida relativamente baixo (85 pontos para mulher, 95 pontos para homem), bem como termina a progressão de maneira muito rápida (90 pontos para mulher, 100 pontos para homem). Ainda, em virtude da maior expectativa das mulheres, o diferencial de 10 pontos terá, inevitavelmente, de ser revisto no futuro.

Diante do exposto, especialistas têm apontado que a fórmula proposta configura uma “contrarreforma” da Previdência, podendo causar o rebaixamento da nota de crédito do país pelas agências de risco internacionais e o consequente aumento da taxa de juros do Brasil7. Essa nova fórmula é apresentada como “benéfica” para os segurados da Previdência, mas o que mostramos aqui é que esse benefício, assim como o custo, não são uniformes entre as regiões e podem representar um custo excessivamente elevado para a população jovem do país.

______________

1    Projeto de Lei de Conversão (PLV) nº 4, de 2015.
2 Valores até o teto do INSS.
3 Cálculos baseados no Anuário Estatístico da Previdência Social de 2013 (p. 53). Disponível em: http://www.previdencia.gov.br/estatisticas/.
4 Pacto pela Boa Governança – Um Retrato do Brasil. Disponível em: http://portal.tcu.gov.br/retratodobrasil/
5 Pensions at Glance – 2013: OECD and G20 indicators. Disponível em: http://www.oecd.org/els/public-pensions/
6 Boletim Estatístico da Previdência Social v. 20, no 3. Março de 2015. Disponível em: http://www.previdencia.gov.br/estatisticas/
7 Ver, entre outros, http://oglobo.globo.com/economia/miriam/posts/2015/06/19/contrarreforma-568396.asp

 

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É verdade que as aposentadorias e pensões acima de um salário mínimo estão perdendo valor? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2346&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=e-verdade-que-as-aposentadorias-e-pensoes-acima-de-um-salario-minimo-estao-perdendo-valor https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2346#comments Mon, 01 Dec 2014 15:23:03 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2346 As aposentadorias e pensões do INSS receberam nos últimos anos aumentos em ritmos muito diferentes. Enquanto o piso dos benefícios da Previdência acompanhou os ganhos reais dados ao salário mínimo, os benefícios superiores a um salário mínimo tiveram aumentos reais muito menores, na maioria dos anos acompanhando apenas a inflação. Assim, os segurados que têm benefícios maiores do que um salário mínimo se queixam da perda de valor de suas aposentadorias ou pensões. A questão que discutimos aqui é a seguinte: houve, realmente, perda para esses beneficiários?

A compreensão de que existe uma perda incita pleitos para que as aposentadorias e pensões sejam majoradas, o que incentivou a apresentação de dezenas de projetos de lei no Congresso Nacional nesse sentido1. Há dois tipos principais de reivindicações: i) que o benefício tenha valor proporcional à razão entre o seu valor inicial e o salário mínimo (piso do INSS) à época de concessão do benefício, ou, pelo menos, que cada benefício receba anualmente aumentos proporcionalmente iguais aos do salário mínimo; ou ii) que o  benefício tenha valor proporcional à razão entre o seu valor inicial e o teto do INSS na época de concessão do benefício2.

Analisemos mais detidamente as fórmulas de reajuste segundo o salário mínimo e segundo o teto:

Reajuste pelo salário mínimo

De acordo com algumas das fórmulas propostas, os benefícios de todos os segurados passariam a ser proporcionais ao salário mínimo, de acordo com a proporção existente entre o benefício e o salário mínimo na ocasião da concessão do benefício. Por exemplo, um benefício que, quando foi concedido, tinha valor equivalente ao de três salários mínimos deveria ser reajustado para que mantivesse essa equivalência.

Outras fórmulas preveem que, daqui em diante, aumentos dados ao salário mínimo sejam reproduzidos nos benefícios (aposentadorias e pensões) de valor maior. Ou seja, se em 2016 o aumento do mínimo for de 10%, também deveria ser aplicado um aumento de 10% a todos que recebem mais do que um salário mínimo.

O objetivo dessas fórmulas seria manter o poder aquisitivo dos segurados nos mesmos patamares da época de concessão dos benefícios.  Argumenta-se que essa perda de poder aquisitivo aconteceu porque os reajustes concedidos aos benefícios com valores superiores aos de um salário mínimo foram inferiores aos reajustes concedidos aos benefícios que correspondiam ao valor de um salário mínimo, o que trouxe perdas aos aposentados e pensionistas que recebiam os benefícios previdenciários com valores acima do mínimo.

Entretanto, a atual fórmula de reajuste dos benefícios contida no art. 41-A do Plano de Benefícios da Previdência Social (Lei nº 8.213, de 1991), já garante a manutenção do poder aquisitivo dos aposentados e pensionistas que recebem benefícios com valores maiores que um salário mínimo. Exatamente com o intuito de preservar o poder de compra desses beneficiários, o referido dispositivo define que os benefícios da Previdência Social sejam reajustados com base no Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), calculado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

Cumpre esclarecer que o INPC é considerado o índice que melhor reflete o poder compra dos domicílios com rendimento na faixa de um a oito salários mínimos, faixa que contempla a quase totalidade dos segurados do Regime Geral de Previdência Social. Destaca-se ainda que o seu uso foi fruto de acordo entre entidades que representam aposentados e pensionistas e o Governo Federal.

Assim, as referidas fórmulas não trariam como consequência a recuperação do poder aquisitivo dos beneficiários em relação à época de concessão do benefício, mas sim aumentos reais para boa parte dos beneficiários. Isso porque, desde o Plano Real, o governo executou uma política de forte valorização do salário mínimo, principalmente na última década. Pelas fórmulas propostas, o ganho real do salário mínimo seria repassado para os outros benefícios.

Como ilustração, analisemos um benefício fictício de R$ 1.000 concedido em 2004. Aplicando o INPC a esse valor, conforme a lei, chegamos dez anos depois, em 2014, ao valor de R$ 1.673. Assim, teria havido um aumento nominal de 67,3% e nenhuma perda real.

A impressão de que houve perda ocorre quando se compara o aumento desse benefício com os aumentos dados ao salário mínimo. No Brasil, o piso previdenciário (e também o piso assistencial) é vinculado ao salário mínimo. Nos últimos dez anos, por conta da deliberada intenção de valorizá-lo, seu crescimento nominal foi de 178,5%, com grande ganho real, já que a inflação foi de 67,3%. Inicialmente, o benefício de R$ 1.000 equivalia a cerca de quatro salários mínimos (precisamente 3,85) e em 2014 ele equivalia a cerca de dois salários mínimos (2,31).

É essa a comparação feita por quem argumenta que houve perda. Entretanto, a queda na razão benefício/salário mínimo é uma consequência óbvia da valorização do mínimo, e não implica perda real para os segurados que ganham mais do que ele – como vimos, o poder aquisitivo se manteve igual por conta dos reajustes que levaram em conta a inflação.

O gráfico abaixo mostra as duas séries:

Gráfico 1 – Benefício e salário mínimo entre 2004 e 2014

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Fonte: Elaboração própria.

 

É possível ver no gráfico que tanto o benefício quanto o salário mínimo aumentaram entre 2004 e 2014: apesar de o ritmo do aumento do mínimo ter sido maior, diminuindo o hiato entre as duas séries, não houve perda de poder aquisitivo. Cabe salientar que, apenas para simplificar a análise e focá-la no valor real do benefício, consideramos um benefício reajustado somente pelo INPC. Na verdade, aumentos reais são esporadicamente dados aos benefícios maiores do que um salário mínimo, como, por exemplo, em 2010.

A redução da distância entre esses valores, e assim da razão entre os benefícios maiores e o salário mínimo, pode ser considerada um efeito intencional e desejável da política de valorização do salário mínimo, que, entre outros motivos, visava à redução da desigualdade de renda no país. Não apenas os benefícios da Previdência, mas também outros valores da economia cresceram em ritmo menor do que o salário mínimo, o que é natural se a intenção do governo e da sociedade era valorizá-lo.

Como uma simples ilustração, consideremos que uma economia em que existem apenas cinco salários: 1.000 (o mínimo), 2.000, 3.000, 4.000 e 5.000. Cada um desses salários é recebido por 20% da população. O índice de Gini, que mede a desigualdade, seria de 0,27 (quanto maior o índice, pior a distribuição de renda).

Se nessa sociedade todos os salários crescerem em substanciais 50%, mas com uma valorização maior do mínimo para 100%, teríamos os valores de 2.000, 3.000, 4.500, 6.000 e 7.500. Assim, o índice de Gini cairia para 0,20, indicando uma melhora na distribuição de renda. Todos tiveram aumento e não houve perda para as camadas superiores, apesar do ganho maior dos mais pobres. Se, no entanto, todos os salários aumentassem na mesma proporção que o mínimo, teríamos os valores de 2.000, 4.000, 6.000, 8.000 e 10.000. Todos ganhariam, mas a desigualdade ficaria nos mesmos 0,27 iniciais.

É comum também o argumento de que a grande valorização do mínimo aumenta o custo de vida nas cidades (por exemplo, serviços mais intensos em mão de obra ficam mais caros e o mercado consumidor como um todo se amplia e pressiona os preços). Assim, haveria perda do poder aquisitivo, dando ensejo a aumentos para as aposentadorias e pensões maiores que o salário mínimo. Entretanto, se existe aumento do custo de vida por conta do aumento do salário mínimo, esse aumento seria captado por um índice de inflação, como o INPC, que é exatamente o parâmetro para os reajustes dos benefícios maiores e para a manutenção de seu poder aquisitivo.

 Reajuste pelo teto do INSS

 O raciocínio usado em relação ao salário mínimo (piso previdenciário) também se aplica ao teto. Como mostramos nas simulações anteriores, é compreensível que os beneficiários argumentem que suas aposentadorias ou pensões perderam valor porque a magnitude dos aumentos desses benefícios foi menor que a dos reajustes no teto. Para contornar a situação, costuma ser proposta uma fórmula de reajuste que mantém a proporção entre cada benefício e o valor do teto.

A suposta perda ocorreria porque tanto a primeira reforma da Previdência (Emenda Constitucional nº 20, de 1998) quanto à segunda reforma da Previdência (Emenda Constitucional nº 41, de 2003) elevaram o “limite máximo de contribuição” (teto) para o valor nominal de dez salários mínimos da época. Dessa forma, ao vincular o valor dos benefícios à proporção existente, no momento da concessão, entre o benefício e o teto, essa fórmula de reajuste repassaria esses aumentos a todos os benefícios concedidos antes dessas reformas constitucionais. Apenas na reforma de 2003 a elevação do valor do teto foi de 28%.

Ademais, observa-se que, à exceção das alterações feitas pelas referidas emendas constitucionais em dezembro de 1998 e dezembro de 2003, o reajuste do valor do limite máximo de contribuição seguiu, desde a promulgação do Plano de Benefícios da Previdência Social, de 1991, os mesmos índices e datas usados no reajuste dos benefícios. Foram apenas nessas duas ocasiões em que houve redução da razão entre o valor do benefício e o teto.

Ainda assim, mesmo essa redução não implicou perda de poder aquisitivo, que só teria ocorrido, como vimos, caso os reajustes dos benefícios tivessem sido inferiores à inflação. As elevações do valor do teto em magnitude maior que os reajustes dos benefícios podem ter causado aos segurados a impressão de terem sido prejudicados, mas não houve perda no poder de compra de seus benefícios. Cabe ressaltar que essa afirmação não é o mesmo que dizer que os benefícios são altos, mas meramente que não perderam valor.

Assim como os reajustes mais altos para o piso reduzem a desigualdade de renda, como mostrado acima; reajustes mais intensos para o teto tendem a aumentar a desigualdade, visto que o grupo de aposentados e pensionistas melhor remunerados são os beneficiários da elevação do teto.

Outras fórmulas de reajuste

 Além da equivalência com os aumentos do salário mínimo ou do teto, outras proposições no Congresso buscam, com diversas fórmulas, dar aumentos reais para os benefícios superiores a um salário mínimo, seja para grupos específicos3, ou para todos os beneficiários (com fórmulas vinculando ao PIB4, aos rendimentos dos trabalhadores5 ou considerando índices de inflação mais complexos6).

Entre essas, destaca-se a bem intencionada ideia de reajustar os benefícios com um índice de inflação que dê maior peso aos produtos consumidos por idosos, como remédios7. Entretanto, essa noção, apresentada inclusive pela oposição na última eleição presidencial, não considera que, na verdade, boa parte dos beneficiários da Previdência não são idosos. Entre os motivos para isso, que também revelam as distorções da nossa seguridade social8, estão as regras de concessão de aposentadoria por tempo de contribuição (discutida no texto Por que o julgamento do STF sobre desaposentadoria é importante?), de aposentadoria precoce para mulheres (discutida no texto Por que precisamos reformar a previdência?), de aposentadoria especial e de pensões por morte (também já discutida no blog: Por que a previdência social brasileira gasta tanto com o pagamento de pensões por morte?). De maneira ilustrativa, segundo o Anuário Estatístico da Previdência, apenas 20% dos benefícios concedidos pela Previdência Social em 2012 eram para pessoas com mais de 60 anos de idade, conforme o gráfico abaixo9.

Gráfico 2 – Distribuição por faixa etária dos benefícios concedidos em 2012

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Fonte: Ministério da Previdência Social. Elaboração própria.

 

Cabe observar que não se defende aqui a extinção de benefícios, como as pensões por morte, mas apenas a racionalização dos recursos da Previdência e a aplicação das regras de concessão usadas no resto do mundo – inclusive em países emergentes.

O que o gráfico 2 mostra é que os benefícios da Previdência são concedidos no país em idades em que, normalmente, as pessoas ainda têm uma boa capacidade laboral. Assim, para contemplar as carências dos beneficiários idosos, é preciso uma proposta mais equilibrada e sofisticada do que simplesmente aumentar todos os benefícios.

Considerações finais: como conciliar a insatisfação dos beneficiários com a sustentabilidade do regime?

 Entendemos que as alterações da fórmula de reajuste propostas nos diversos projetos listados no texto  comprometem a sustentabilidade do Regime Geral de Previdência Social. O número de segurados que poderiam ter seus benefícios aumentados com o projeto superaria nove milhões, o equivalente a cerca de 30% do total de beneficiários da Previdência Social. De fato, a Previdência deve manter o poder de compra de seus benefícios, conforme o § 4º do art. 201 da Constituição Federal, mas não está obrigada a prover aumentos reais. A concessão de aumentos reais traria grande impacto financeiro nas contas públicas. Frisa-se também que aumentos na Previdência devem respeitar o § 5º do art. 195 da Constituição (criando não apenas o aumento, mas anunciando de onde virão os recursos) e os arts. 16 e 17 da  Lei de Responsabilidade Fiscal10 (pela sua caracterização como “despesa obrigatória de caráter continuado”).

Vale ressaltar novamente que, apesar de a Constituição Federal e do Plano de Benefícios preverem apenas a manutenção do valor real dos benefícios, desde a implantação do Plano Real foram concedidos aumentos reais aos benefícios maiores que um salário mínimo em 1995 e nos anos eleitorais de 2006 e 2010. Nesse período, pós-Plano Real, a variação do valor dos benefícios acima de um salário mínimo superou a variação do INPC em 25,3%. Assim, não apenas as elevações do salário mínimo ou do teto não acarretaram perdas aos beneficiários, como nos últimos anos também houve aumentos reais dos benefícios, de maior ou menor magnitude dependendo do ano em que foram inicialmente concedidos.

Compreendidas a ausência de perda real dos benefícios e levando em conta a insatisfação dos beneficiários, faz-se necessário analisar as possibilidades de conceder aumentos reais significativos a esses benefícios – que, infelizmente, são poucas. Não existe, em tese, impossibilidade de aumento real das aposentadorias e pensões, mas para que ganhos sejam transferidos do mercado de trabalho para os inativos, é preciso que haja ganhos. Por isso, para que possamos aumentar esses benefícios é essencial que a economia cresça. Isso implica colocar no centro do debate a realidade de estagnação do PIB per capita e da produtividade da economia (ver o texto O que é produtividade e como conseguir seu incremento?)

O crescimento econômico é importante não só para a Previdência agora, mas será também essencial para o seu futuro. Contrariando o mandamento constitucional de equilíbrio financeiro e equilíbrio atuarial, temos um déficit financeiro do INSS estimado para 2014 em R$ 55 bilhões. Mas o cenário pode ser ainda pior. O Tribunal de Contas da União (TCU) lançou neste mês de novembro um documento que estima um déficit atuarial de R$ 3 trilhões em relação ao ano de 2050 – se as regras de concessão de benefícios não mudarem11.

É quase impossível que o mercado de trabalho brasileiro consiga sustentar essa situação. Seria preciso que o país crescesse em um ritmo que nunca crescemos – e mais ainda se quisermos dar aumentos reais para os inativos. Entretanto, o que observamos nos últimos anos é, de fato, uma grande dificuldade de o país sair da estagnação econômica (que, de maneira circular, se deve em parte às distorções da Previdência).

Junto com a recente divulgação de que também a queda da miséria cessou, a estagnação da economia deve estimular o debate sobre a sustentabilidade da Previdência Social. Acreditamos que este seja, nos próximos anos, um dos principais assuntos da discussão política do país. Vivemos atualmente a situação paradoxal de termos, simultaneamente, segurados insatisfeitos e um grave desequilíbrio do sistema.

 

(Este texto é baseado no trabalho “Sobre a Perda de Valor das Aposentadorias: existe perda?”. O estudo integral consta do Boletim do Legislativo nº 17 do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado, disponível no seguinte link: http://www.senado.gov.br/estudos)

__________________

1  Propostas de emenda à Constituição 154/2012 e 43/2007; projetos de lei 6345/2009, 5719/2009, 4509/2008, 4434/2008, 4147/2008, 3273/2008, 3197/2008, 2816/2008, 2229/2007 e 3197/2008; projeto de lei do Senado 558/2013.

2 Em 2015, R$ 4.662,43.

3 Projetos de lei do Senado 285/2014 e 174/2013, e projeto de lei 777/2011.

4 Projetos de lei 5768/2013 e 6048/2009.

5 Projetos de lei do Senado 20/2013 e 361/2012.

6 Projetos de lei do Senado 287/2014, 244/2003 e projeto de lei 2380/2007.

7 Projetos de lei 1732/2007 e 2539/1996.

8 Entretanto, é natural que parte dos beneficiários sejam jovens, como adolescentes que recebem pensão por morte.

9 995.648 pessoas entre 4.957.618 benefícios.

10 Lei Complementar nº 101, de 2000.

11 Pacto pela Boa Governança – Um Retrato do Brasil. Disponível em: http://portal.tcu.gov.br/retratodobrasil/

 

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Por que o julgamento do STF sobre desaposentadoria é importante? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2328&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-o-julgamento-do-stf-sobre-desaposentadoria-e-importante https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2328#comments Tue, 04 Nov 2014 14:20:31 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2328 Introdução à desaposentadoria (desaposentação)

 A “desaposentadoria” (ou “desaposentação”) é tema que vem ganhando cada vez mais destaque, no Judiciário e no Legislativo1: o direito é pleiteado por centenas de milhares de aposentados e tem custos estimados em dezenas de bilhões de reais pelo governo. No Supremo Tribunal Federal, caminha para ser “o julgamento do ano”: o Plenário da Corte começou em outubro a analisar o Recurso Extraordinário nº 661.256, que tem repercussão geral – o que significa que a decisão deve ser estendida aos casos idênticos em todas as instâncias inferiores.

O julgamento começou com voto do ministro relator Roberto Barroso favorável à desaposentadoria, e também o ministro Marco Aurélio já votou também de maneira favorável em outra ação. Existem mais de cem mil ações no Judiciário pedindo a desaposentadoria, segundo a Advocacia-Geral da União (AGU). O governo ainda estima em meio milhão a quantidade de aposentados que continuam trabalhando e contribuindo para a Previdência, mas o número de afetados pode ser bem maior, considerando que a decisão favorável à desaposentadoria – pelo Congresso ou pelo STF – deve levar muitos trabalhadores que já são elegíveis a se aposentar; muitos aposentados que não trabalham a voltar ao mercado de trabalho formal; e muitos segurados a buscar judicialmente compensações por terem seguido as regras vigentes (tendo eles já se aposentado ou não).

Mas o que é a desaposentadoria? Conforme o texto publicado em junho (O que é desaposentadoria e qual o seu impacto?), simplificadamente, trata-se do direito ao recálculo do valor da aposentadoria para aqueles que continuaram trabalhando depois de se aposentar, de modo que seja incorporado ao benefício o valor das contribuições feitas à Previdência depois que se aposentaram (a contribuição previdenciária é devida por todos aqueles que trabalham).

Assim, a desaposentadoria guarda semelhança com o instituto da “reversão”, que permite, sob certas condições, que servidores públicos inativos voltem à atividade. Entretanto, os institutos são marcadamente diferentes: ao contrário do que a expressão “desaposentadoria” pode indicar, não se pleiteia meramente a possibilidade de se deixar de ser aposentado e voltar ao mercado de trabalho (como na reversão), mas de acumular trabalho e aposentadoria, pedindo, por uma segunda vez – quando de fato se para de trabalhar -, que as contribuições feitas se revertam em benefício. Nesse sentido, a expressão “reaposentadoria” ilustraria melhor o direito do que o termo “desaposentadoria”, já que não se trata da mera renúncia à aposentadoria acompanhada do retorno ao trabalho.

 

O fator previdenciário

 A desaposentadoria está intimamente ligada ao descontentamento com o “fator previdenciário”, e também com o fato de ele ser mal compreendido. Entendido como um “desconto” no valor que seria considerado justo para as aposentadorias, o fator, na verdade, busca contornar a ausência de idade mínima para aposentadoria no Regime Geral de Previdência Social (RGPS) – característica que faz do Brasil uma exceção entre os sistemas de seguridade existentes no mundo. Em geral, as aposentadorias no País se dão de maneira muito precoce quando comparadas a outros países, sejam eles países desenvolvidos ou mesmo países em desenvolvimento.

Para tornar o sistema mais equilibrado e sustentável, o fator previdenciário faz com que os benefícios dos que se aposentam mais cedo sejam menores do que os daqueles que escolhem se aposentar mais tarde. Assim, para dois segurados que começaram a trabalhar exatamente no mesmo dia, com a mesma idade e que receberam sempre os mesmos salários, a aposentadoria daquele que se aposentar, por exemplo, aos 55 anos, será menor do que a daquele que se aposentar cinco anos depois, aos 60 anos. O fator considera que o que se aposentou com 55 anos contribuirá por menos tempo e receberá por mais tempo o benefício do que aquele que se aposentou com 60, e por isso este último receberá um valor maior2.

Assim, o fator previdenciário deveria induzir os segurados a apenas começar a receber a aposentadoria em idades mais próximas daquelas praticadas mundo afora, remendando o problema da ausência de idade mínima para aposentadoria no RGPS. Isso, em parte, não aconteceu: as aposentadorias continuam se dando em idades baixas3. Estando aposentado em idade ainda jovem, o trabalhador tem plenas condições de voltar ao mercado de trabalho. Muitos destes trabalhadores se sentem injustiçados pelo fator, e buscam, administrativa ou judicialmente, o recálculo do benefício. Tal recálculo levaria em conta não apenas as contribuições adicionais feitas pelo indivíduo no novo emprego, após à aposentadoria, como também a sua idade mais avançada (que reduz o desconto aplicado pelo fator previdenciário).

O desequilíbrio prejudicial à previdência decorrente desse recálculo vem do fato de que entre o momento da aposentadoria e o momento do recálculo o indivíduo recebeu pagamentos a título de aposentadoria. Se ele deseja anular a aposentadoria anterior e recalculá-la com sua nova idade e tempo de contribuição, deveria, então, devolver todos os recursos que recebeu a título de aposentadoria. Tudo se passaria como se ele não tivesse se aposentado antes e estivesse pedindo aposentadoria agora. Recalcular o valor a receber, sem devolver o que recebeu até então, significa óbvio ônus ao erário.

 

O que apenas Brasil, Irã, Iraque e Equador têm em comum?

 Ainda pouco se fala no Brasil que somos um dos poucos países do mundo que permitem a aposentadoria por tempo de contribuição (anteriormente aposentadoria por tempo de serviço) – sem uma idade mínima. Juntam-se à exceção brasileira apenas o Irã, o Iraque e o Equador, sendo que este último exige um mínimo de 40 anos de contribuições. Não apenas o Brasil está acompanhado nesse quesito por economias nada modernas, mas, dentre elas, pode ser considerado o mais generoso nas condições de elegibilidade para concessão do benefício: Irã, Iraque e Equador só concedem a aposentadoria caso o segurado efetivamente pare de trabalhar.

Na verdade, a maioria dos países trata a aposentadoria de fato como um “seguro”. A noção por trás da aposentadoria é justamente que o segurado contribui para o sistema e, quando se encontra incapacitado de trabalhar (o equivalente a um sinistro em outros tipos de seguro), recebe um benefício para se manter.  É por isso que quase todos os países possuem uma idade mínima para a aposentadoria, já que seria a idade avançada que inviabilizaria o trabalho. Outro exemplo de ocorrência de “sinistro” seria a aposentadoria por invalidez, em que o segurado perde as condições de trabalhar normalmente, ainda que jovem, e recebe um benefício da seguridade social por isso, ou ainda o auxílio-doença.

As aposentadorias estão longe de ser entendidas como um “seguro” pela sociedade brasileira, seja no RGPS (Regime Geral de Previdência Social, o regime administrado pelo Instituto Nacional do Seguro Social – INSS) ou no serviço público (Regime Próprio de Previdência Social – RPPS), e são entendidas como uma renda que o trabalhador tem direito a receber como recompensa por décadas de trabalho, sendo considerado natural que ele ainda esteja em condições de trabalhar quando se aposenta. De acordo com o art. 194 da Constituição da República, integram o nosso sistema de seguridade social não apenas a previdência, mas também a assistência social e a saúde – esta última é financiada pelos segurados via tributos: na ocorrência de um “sinistro” (um problema de saúde), o segurado tem direito a ser tratado na rede pública de saúde.

Ressalta-se mais uma vez que a idade mínima para aposentadoria é a regra mesmo em países em desenvolvimento. Essa idade mínima, em geral, vai de pelo menos 60 anos para homens até um mínimo de 66, em Portugal, e 67, na Grécia e em países de renda alta (como os escandinavos). Como apresentado no texto anterior, entre os nossos vizinhos, México, Colômbia, Argentina, Chile e Peru têm, por exemplo, idade mínima de 65 anos.

O caso brasileiro é ainda mais discrepante quando se considera a expectativa de sobrevida da população idosa. Apesar de a expectativa de vida ao nascer no Brasil ainda estar abaixo da de outros países (74,6 anos em 2013, segundo o IBGE), ao contrário do que se pensa, não é esse o dado relevante para a seguridade social, e sim a expectativa de vida condicionada a idades mais avançadas4 (ou expectativa de sobrevida). A expectativa de vida daqueles com 65 anos no Brasil é próxima da de países desenvolvidos (83 anos em 2012, de acordo com o IBGE) e a OCDE estima que no futuro ela deve superar ligeiramente até a dos Estados Unidos e a da Dinamarca, chegando a quase 90 anos (24,6 anos de expectativa de sobrevida aos 65)5.

A falta de compreensão dessa realidade e do mecanismo que buscou corrigi-la (o fator previdenciário) está diretamente relacionada aos pleitos de desaposentadoria e à sua aceitação por parte da classe política e do Judiciário. Contudo, o instituto da desaposentadoria não parece consoante com a nossa Constituição, como veremos a seguir.

 

Sobre constitucionalidade: (des)equilíbrio atuarial, diferenciação dos segurados, majoração de benefícios sem fonte de custeio e a escolha do constituinte pelo modelo de repartição  

A preocupação com o equilíbrio da Previdência Social não é recente e não é apenas do governo ou dos economistas: está explícita no texto constitucional. No julgamento do STF, naturalmente é sob a luz da Constituição que a desaposentadoria é analisada.   No art. 201 consta que a organização da Previdência observará critérios de preservação do equilíbrio financeiro e do equilíbrio atuarial. Esses não são termos abstratos ou sem significado, apesar de o debate sobre a desaposentadoria por vezes parecer ignorar a presença do “equilíbrio financeiro e atuarial” na Constituição.

O Ministério da Previdência Social (MPS) define de maneira objetiva o equilíbrio financeiro como a equivalência entre receitas e obrigações em cada exercício financeiro, o que já não ocorre, apesar de ainda sermos um país com população jovem: o deficit estimado para 2014 é de R$ 55 bilhões. Já o equilíbrio atuarial seria a “equivalência, a valor presente, entre fluxo de receitas estimadas e obrigações projetadas, apuradas atuarialmente, a longo prazo”6. Ou seja, de maneira simplificada, o equilíbrio atuarial existe quando o valor esperado da diferença entre receitas e despesas futuras é zero: a arrecadação equivaleria às despesas e não haveria desequilíbrio.

A desaposentadoria vai de encontro com o equilíbrio atuarial. Isso porque desconsidera as variáveis atuariais usadas no cálculo do benefício e presentes no fator previdenciário. O fundamental é que o cálculo do valor da “primeira” aposentadoria não considera que o benefício será aumentado anos depois (como na desaposentadoria), e sim que o beneficiário permanecerá recebendo como provento aquele valor (em termos reais) que foi concedido, residindo justamente aí a fonte do desequilíbrio.

Naturalmente, o valor do benefício guarda relação com o valor da contribuição, mas também, entre outros fatores, com o tempo esperado de usufruto. Como o tempo esperado de usufruto é o mesmo com a desaposentadoria (logicamente a expectativa de sobrevida não diminui), o aumento do benefício gera o desequilíbrio: não há equivalência entre o valor esperado que o segurado receberá e o que ele contribuiu. A “premissa” dos pleitos de desaposentadoria é que seria justo que o beneficiário receba mais porque contribui mais quando continuou trabalhando, mas com a desaposentadoria o que de fato temos é o desequilíbrio do ponto de vista atuarial. Em outras palavras, como o trabalhador se aposenta cedo e tem longa expectativa de vida, mesmo com a aplicação do fator previdenciário, as contribuições que ele pagou não são suficientes para cobrir os benefícios que receberá. Tampouco “cobrem o buraco” as contribuições que ele paga quando volta à ativa, após à aposentadoria. Assim, o aumento do benefício via desaposentadoria apenas agrava o desequilíbrio atuarial.

Tal desequilíbrio atuarial seria minorado se o beneficiário devolvesse os valores recebidos entre o primeiro pedido de aposentadoria e o segundo pedido (desaposentadoria), mas não é esse o tratamento que tem sido dado à questão, caracterizando possível ofensa ao texto constitucional7.

O desequilíbrio é facilmente percebido quando se compara a situação dos “desaposentados” com a daqueles que, em vez de pedir a aposentadoria quando ficaram elegíveis, esperaram anos para pedir a aposentadoria definitiva, seguindo as regras vigentes e a lógica do fator previdenciário (que faz com que o valor do benefício seja maior quanto mais se espera para pleitear a aposentadoria). Com a desaposentadoria, os trabalhadores que esperaram (ou esperam) vão fazer jus a benefícios com o mesmo valor dos desaposentados, sem que tenham recebido os milhares de reais que os desaposentados receberam entre o primeiro e o segundo pedido de aposentadoria.

A situação, além de ser sobremaneira injusta e ilógica, ilustra o desequilíbrio atuarial que acompanha a desaposentadoria: segurados que contribuíram durante um mesmo período de tempo e sobre um mesmo salário vão receber da Previdência quantias muito diferentes, sendo que aqueles que seguiram as regras receberão muito menos do que os que pleitearam a desaposentadoria. Ou seja, mesmo que os valores de variáveis atuariais como idade e expectativa de sobrevida sejam idênticos, os montantes recebidos serão bastante diferentes.

Ainda, essa distorção pode ser interpretada como um afronta ao § 1º do art. 201 da Constituição, que veda a ação de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria no RGPS8.

Com efeito, a revisão dos benefícios que ocorre com a desaposentadoria majora as aposentadorias, o que confrontaria também o § 5º do inciso IV do art. 195 da Constituição. Tal dispositivo condiciona a criação, majoração ou extensão de benefícios ou serviços da seguridade social à existência de uma fonte de custeio total específica. A desaposentadoria aumentaria as despesas da seguridade sem especificar de onde viriam os recursos para custeá-las, especialmente caso seja reconhecida por decisão do Judiciário.

No entanto, os possíveis conflitos com o texto constitucional não se resumem somente à ausência do equilíbrio atuarial, à diferenciação dos segurados ou à majoração de benefícios sem a fonte dos recursos. A escolha do constituinte para o regime de custeio da Previdência foi o de “repartição”, como em geral os países escolhem para a previdência pública, e não o de “capitalização”, o regime de custeio usado na previdência privada.

No regime de repartição, os trabalhadores ativos financiam as aposentadorias dos inativos. Já no regime de capitalização, as contribuições do trabalhador ativo, quando está em atividade, são investidas individualmente e revertidas futuramente no valor da aposentadoria. A escolha pelo regime de repartição está expressa no art. 195, em que se estabelece que a seguridade social será financiada por toda a sociedade. A revisão dos benefícios, pleiteada na desaposentadoria, se apoia na ideia de que as contribuições do segurado devem ser revertidas em benefício, mesmo que feitas depois que ele já se aposentou. Ideia semelhante motiva os pedidos para que as contribuições deixem de ser cobradas quando o segurado acumula trabalho e aposentadoria.

Evidentemente esses argumentos fazem sentido apenas no regime de capitalização, como em uma previdência privada, mas não no caso dos benefícios do INSS. Se o nosso regime é, para todos os outros fins, o de repartição, não há que se considerar que os valores das novas contribuições sejam transformados em benefícios, porque, conforme a interpretação feita do art. 195, o benefício do segurado seria financiado por toda a sociedade, e não por sua contribuição individual.

Naturalmente existe uma confusão, já que a aposentadoria precoce (por conta da ausência de idade mínima), concedida sem estar condicionada à efetiva interrupção do trabalho, faz com que o trabalhador possa estar na peculiar condição de ativo e inativo simultaneamente – e isso ocorre ou ocorreu com milhões de trabalhadores.

Cabe observar que o fato de termos apontado aqui controvérsias em relação a pontos explícitos (como o equilíbrio atuarial) e implícitos (como a escolha pelo regime de repartição) no texto constitucional não implica que os segurados que pedem a desaposentadoria ajam de má-fé. O que parece ocorrer, como ressaltado anteriormente, é uma incompreensão sobre a realidade da ausência de idade mínima e da solução do fator previdenciário. Ainda, esses segurados certamente consideram o valor dos benefícios insatisfatórios, mas isso decorre da própria situação econômica do país, que ainda está longe de ser considerado um país com renda média alta. Em geral, a renda desses beneficiários já não podia ser considerada satisfatória quando estavam na ativa, e o valor da aposentadoria reflete esse quadro.

 

Ausência de omissão legislativa: as Leis nº 9.876, de 1999; nº 9.032, de 1995; nº 9.528, de 1997; e nº 8.870, de 1994.         

 Um dos argumentos usados para que o Judiciário reconheça a desaposentadoria é que existe omissão legislativa em relação à matéria – questão destacada inclusive no STF. No entanto, um conjunto de leis aprovadas pelo Congresso Nacional nos anos 90 gerou arcabouço bastante claro em relação às regras de concessão de benefício, sem previsão de desaposentadoria (além dos pontos já citados em relação à Constituição). Essas normas alteraram a Lei Orgânica da Seguridade Social e o Plano de Benefícios da Previdência Social9.

Essas leis são claras, respectivamente, em relação ao cálculo do valor dos benefícios (Lei nº 9.876/199910), à obrigatoriedade da contribuição pelo aposentado que continua trabalhando (Lei nº 9.032/1995, art. 12, § 4º 11), e à inexistência de benefício decorrente dessa contribuição (Lei nº 9.528/1997, art 2º 12). Dessa forma, não há que se falar em “omissão legislativa” em relação à desaposentadoria. O mero fato de a legislação ir de encontro com a desaposentadoria não deve ser considerado omissão do legislador.

A legislação anterior previa instituto próximo da desaposentadoria: o pecúlio, que consistia na devolução dos valores contribuídos pelo aposentado que continuava trabalhando. Entretanto, a Lei nº 8.870, de 15 de abril de 1994, acabou com essa possibilidade13.

 

Riscos fiscais e insegurança jurídica

 A desaposentadoria naturalmente se apresenta como um grande desafio para as finanças públicas do País e para a sustentabilidade da Previdência. Porém, além disso, destaca-se ainda que uma decisão favorável do Legislativo ou do Judiciário em relação a esse instituto pode trazer insegurança jurídica e riscos fiscais no futuro, ao abrir precedentes para que outros segurados invistam em ter pleitos atendidos baseados na lógica da desaposentadoria, notadamente os “não desaposentados” e os servidores inativos do RPPS, como se mostra adiante.

O MPS estima, de forma conservadora, em R$ 70 bilhões os custos da desaposentadoria a longo prazo14. A cifra é considerada subestimada (pelo próprio órgão) porque levou em conta apenas os custos advindos da revisão do valor das aposentadorias por tempo de contribuição que estavam ativas em 2010, se referindo, portanto, a apenas uma primeira dimensão dos custos. Mesmo essa “subestimativa” impressiona quando é analisada conjuntamente com as realidades das contas públicas no Brasil e as previsões para o futuro da seguridade.

Com a carga tributária situando-se ao redor de 37,5% do PIB (inviabilizando aumentos de tributos) e uma população cobrando maior qualidade dos serviços públicos (trazendo pressão constante pelo aumento de gasto), parece difícil incluir a variável desaposentadoria na equação de receitas e despesas do país. A situação é agravada pela perspectiva de rebaixamento da nota de crédito das contas públicas brasileiras pelas agências de risco internacionais. Nesse contexto, só se pode prever que uma decisão favorável à desaposentadoria terá impactos significativos.

No que tange à sustentabilidade do sistema, a desaposentadoria aparece como um delicado movimento de contrarreforma, anulando, pelo menos parcialmente, os ganhos da primeira (1998) e da segunda (2003) reformas da Previdência. É essencial salientar que mesmo essas reformas não foram suficientes para alterar o preocupante futuro que as contas da Previdência desenham para o país. Se hoje o Brasil, jovem, tem para 2014 um déficit previdenciário estimado em R$ 55 bilhões, para o futuro – na ausência de novas reformas – a situação da seguridade deve ser gravíssima e essa percepção já hoje afeta a economia brasileira (por exemplo, através de pouco investimento privado de longo prazo no país). Segundo o MPS, em 2010 havia nove pessoas em idade ativa (com capacidade para trabalhar), para cada idoso15. Já em 2050 serão apenas três para cada idosos, em uma Previdência custeada pelo regime de repartição (em que as contribuições dos ativos financiam os benefícios dos inativos), como ressaltado anteriormente.

Se o cenário já era preocupante sem a desaposentadoria, é importante explicitar outros riscos fiscais que uma decisão favorável apresentará. Os riscos fiscais são entendidos como gastos que o governo pode ter que incorrer no futuro, mas que são imprevisíveis no momento. A estimativa direta do custo da desaposentadoria pode ser calculada, como mostrado nos parágrafos anteriores (R$ 70 bilhões), mas nesse caso os riscos fiscais residiriam em “custos indiretos”, em consequências menos óbvias da desaposentadoria.

Se a estimativa de R$ 70 bilhões considerava apenas o estoque de aposentadorias em 2010, é de se imaginar que os gastos serão muito maiores ao longo do tempo, na ausência de novas mudanças de regras. Em primeiro lugar, somando-se a este estoque de 2010, há todo ano um fluxo contínuo de novas aposentadorias por tempo de contribuição, que não integram a estimativa de R$ 70 bilhões e encarecerão a conta. Em segundo lugar, além do fluxo “normal” de aposentadorias por tempo de contribuição, deve-se observar um aumento no número de segurados que optarão por esse benefício nos próximos anos: com a desaposentadoria reconhecida, o esperado é que os segurados negligenciem o fator previdenciário, se aposentem o mais cedo possível, continuem trabalhando e peçam a revisão dos benefícios. Este custo também não faz parte da estimativa de R$ 70 bilhões.

Em terceiro lugar, será natural que ocorra uma “corrida à aposentadoria” assim que a desaposentadoria for aprovada, por parte daqueles que já são elegíveis e esperavam para pedir um benefício maior no futuro: o racional é que se aposentem imediatamente e continuem trabalhando, para pedir futuramente a desaposentadoria visando a um benefício maior. Por último, também deve haver uma corrida, ainda que bem menor, de volta ao mercado de trabalho por parte dos aposentados que acreditavam que não compensava voltar a trabalhar: com a perspectiva de que o retorno à atividade possa elevar seus proventos futuramente, muitos devem se sentir encorajados. Esses últimos dois movimentos também devem aumentar sobremaneira os custos da Previdência futuramente, mas também não fazem parte da estimativa de R$ 70 bilhões.

A conta, talvez, não se feche aí. Existem ainda riscos fiscais porque um entendimento favorável à desaposentadoria deve incentivar outros segurados a buscarem direitos que incorram em mais gastos para Previdência. Um caso é o dos “não desaposentados”, aqueles trabalhadores e aposentados que não pediram de imediato a aposentadoria por tempo de contribuição, esperando anos, em atividade, para conseguir um benefício de valor maior, de acordo com a fórmula do fator previdenciário.

A situação desses segurados já foi citada anteriormente: eles receberiam daqui em diante benefício igual ao dos desaposentados (que fizeram o pedido de revisão da aposentadoria), sem terem recebido por anos as aposentadorias que os desaposentados receberam entre o primeiro e o segundo pedido de aposentadoria. Diante dessa enorme frustração por terem seguido às regras vigentes, parece natural que eles busquem reparação, já que um desaposentado e um “não desaposentado” receberão quantias muito diferentes ainda que tenham, rigorosamente, trabalhado e contribuído pelo mesmo período de tempo e com os mesmos valores, com a única distinção sendo a escolha por tentar a revisão do beneficio ou se conformar em seguir a legislação.

Outro risco fiscal que surge com a desaposentadoria, menos intuitivo, decorre da contribuição feita pelos servidores públicos inativos. Se a lógica da desaposentadoria for aplicada a esse caso, a contribuição pode acabar, ter seus valores devolvidos ou justificar o aumento da aposentadoria de milhares de servidores públicos. Desde a Emenda à Constituição nº 41, de 19 de dezembro de 2003, – segunda reforma da Previdência – os aposentados e pensionistas do serviço público (RPPS) devem pagar a contribuição previdenciária, ao contrário do que ocorre com os aposentados do INSS (RGPS)16.

A controvérsia em relação a essa contribuição não é nova, mas, caso o Judiciário seja favorável à desaposentadoria, estará entendendo que a contribuição de um inativo deve ser posteriormente revertida em benefício, abrindo margem para um novo entendimento em relação à contribuição dos servidores públicos inativos que veio com a última reforma da previdência. O STF decidiu, dez anos atrás, no julgamento das ADIs 3105 e 3128, que a contribuição era constitucional, com o voto contrário de quatro ministros e parecer contrário da Procuradoria-Geral da República.

A controvérsia pode ser ressuscitada, já que há uma pressão forte e contínua por parte dos inativos e pensionistas atingidos, visível no grande apoio que recebeu a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 555, de 2006, que acaba com a cobrança e tramita atualmente na Câmara dos Deputados. À época das ADIs, o entendimento do STF foi de que a implantação da contribuição obedecia “aos princípios da solidariedade e do equilíbrio financeiro e atuarial, (…) aos objetivos constitucionais de universalidade, equidade na forma de participação no custeio e diversidade da base de financiamento”.

Embora o valor médio dos benefícios do RGPS seja muito inferior ao do RPPS, e embora a Constituição trate o RGPS e o RPPS de maneira separada, – com o princípio da solidariedade estando explícito para o RPPS e não para o RGPS – a referida lógica da desaposentadoria no RGPS poderia dar embalo ao persistente movimento de contrarreforma no RPPS, que também defende que deve haver uma relação entre o benefício e a contribuição de um inativo.

Tanto o possível fim da contribuição dos inativos do RPPS como a “reparação”17 que os “não desaposentados” podem conseguir constituem riscos fiscais substanciais, ou seja, o custo da desaposentadoria pode ser bem superior a R$ 70 bilhões.

 

Considerações finais: o “custo de oportunidade” da desaposentadoria

 Economistas são constantemente acusados de se preocupar apenas com “custo financeiro” e não “com as pessoas”. O custo da desaposentadoria (e tantos outros custos) não se refere meramente a uma cifra que poderia ser economizada, um valor sem significado. Deve-se concebê-la como um “custo de oportunidade”, conceito básico da economia que pode ser entendido, simplificadamente, como o melhor uso que se pode fazer de um recurso – dentre várias possibilidades a serem escolhidas.

Pelos custos que trará e pelos riscos fiscais, caso uma decisão favorável do Judiciário saia em breve, ela constituirá verdadeira “herança maldita” para o governo 2015-2018, ainda que seus efeitos sejam modulados. Pela ótica do “custo de oportunidade”, a desaposentadoria sugará recursos valiosos que poderiam ser usados em outras políticas públicas, como as que objetivam a erradicação da pobreza, a redução da desigualdade e o crescimento econômico – além de tirar espaço fiscal de áreas como a educação e a saúde.

Frisa-se que, muito embora a maioria dos segurados beneficiários do RGPS não considere a sua renda satisfatória, o instituto da desaposentadoria é considerado de caráter regressivo pelo próprio MPS18. Isso implica que ele acentua, e não reduz a desigualdade de renda. Segundo o MPS, os “aposentados contribuintes” (candidatos à desaposentadoria, ainda em atividade) estão em melhor situação que a dos aposentados que não trabalham e em melhor situação que a dos trabalhadores não cobertos pela Previdência. Dentre esses candidatos à desaposentadoria, 96% estaria na metade mais rica da população do País, e 52% estaria entre o grupo dos 10% de brasileiros mais ricos. Ainda, a média do valor das aposentadorias por tempo de contribuição (a relacionada à desaposentadoria) corresponde ao dobro da média do valor das aposentadorias por idade e a mais de 50% da média do valor das aposentadorias por invalidez19.

Quando se manifesta a preocupação com o custo da desaposentadoria ou com a sustentabilidade do sistema como um todo, devem ser vislumbrados também os custos de oportunidade que existirão futuramente, com grandes quantias de recursos públicos sendo destinadas à Previdência – trazendo um impacto não apenas nas contas públicas, mas em toda a economia. Nossas escolhas hoje, criando um gigantesco déficit previdenciário nos próximos anos, afetarão não apenas a próxima geração de aposentados, mas também toda uma geração de trabalhadores – e a sociedade brasileira como um todo.

Portanto, parece essencial que as regras do sistema previdenciário sejam mais claras e melhor entendidas, a fim de se criar um sistema mais sustentável. Ao não impormos regras que acompanhem as práticas internacionais, acaba se fazendo necessária a invenção de remendos no sistema, que terminam incompreendidos e contestados, como acontece com o fator previdenciário ou a contribuição dos servidores inativos.

Outra possível consequência da escolha pela desaposentadoria, devido aos seus grandes impactos, é a precipitação de uma reforma que finalmente imponha a idade mínima, como já existe no RPPS, e que acabou não sendo aprovada junto com a Emenda à Constituição nº 20, de 1998. Ou seja, pode ser que, mais de dezesseis anos depois de o problema ter sido diagnosticado e de mudanças terem sido propostas, a desaposentadoria dê ímpeto ao estabelecimento da idade mínima no RGPS (com uma regra de transição justa que respeite os planos dos segurados). Por fim, no caso de uma decisão pela desaposentadoria vinda do Judiciário, se os ministros acompanharem o relator, o Legislativo ainda teria seis meses para vedá-la – prazo dado no voto do relator para que a decisão do STF começasse a valer.

 

(Este texto é baseado no trabalho “A DECISÃO DE R$ 70 bilhões: sobre constitucionalidade, ausência de omissão legislativa e riscos fiscais da desaposentadoria”. O estudo integral consta do Boletim do Legislativo nº 15 do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado, disponível no seguinte link: http://www.senado.gov.br/estudos)

__________________

1 É objeto dos Projetos de Lei do Senado (PLS) nº 214, de 2007, e nº 91, de 2010, ambos de autoria do Senador Paulo Paim. Com objetos diferentes, mas motivação semelhante, também tramitam na Casa os PLS nºs 464, de 2003; 56, de 2009; e 188, de 2011.

2 O fator previdenciário é regido pela Lei nº 9.876, de 26 de novembro de 1999.

3 A idade média de aposentadoria por tempo de contribuição dos brasileiros é de apenas 55 anos no caso dos homens e de 52 anos nos casos das mulheres. O número impressiona: em se tratando de uma média, o valor sintetiza a ocorrência de muitas aposentadorias em idades bastante precoces.

4 Essa expectativa não é afetada, por exemplo, pela mortalidade infantil ou por causas de morte comuns em faixas etárias menores, como a violência ou doenças cardíacas.

5 Pensions at Glance – 2013: OECD and G20 indicators. Disponível em: http://www.oecd.org/els/public-pensions/

6 Portaria do MPS nº 403, de 10 de dezembro de 2008.

7 Outras opções para corrigir o desequilíbrio atuarial, pouco factíveis, seriam a incorporação, pelo fator previdenciário – já no primeiro pedido –, da possibilidade de desaposentadoria (o que seria injusto com quem de fato pretende se aposentar cedo), ou a contabilização das contribuições feitas depois do primeiro pedido para uma nova aposentadoria, mas conforme as regras já existentes para concessão do benefício (como os 35 anos de contribuição, para homens).

8 Salvo casos definidos em lei complementar em relação a condições que prejudiquem a saúde ou a integridade física e o caso dos portadores de deficiência.

9 Respectivamente a Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, e a  Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991.

10 A Lei, que instituiu o fator previdenciário, prevê a possibilidade de o segurado optar por ter benefício em que não incida o fator. Ela garante, em seu art. 7º, “a opção pela não aplicação do fator previdenciário”, caso a opção seja pela aposentadoria por idade (que, em geral, se dá mais tarde do que à por tempo de contribuição). Cabe observar ainda que essa norma é bastante clara em relação à fórmula de cálculo do valor dos benefícios.

11 Prevê que o aposentado pelo RGPS que exercer atividade abrangida pelo Regime Geral será segurado obrigatório em relação a tal atividade, estando sujeito à contribuição previdenciária, “para fins de custeio da Seguridade Social”.

12 Estipula que o aposentado pelo RGPS que continua em atividade abrangida pelo regime “não fará jus a prestação alguma da Previdência Social em decorrência do exercício dessa atividade”.

13 Determinando que fosse feito pagamento em parcela única para aqueles aposentados que estavam contribuindo até à vigência dessa nova lei (art. 24, Parágrafo único).

14 CONSTANZI, R. N. “Evolução e Situação Atual das Aposentadorias por Tempo de Contribuição”. Informe da Previdência Social, vol. 23, nº 8. Ministério da Previdência Social, 2011.

15 BARBIERI, C. V. “Cuidados de Longa Duração no Brasil: As Possibilidades do Seguro-Dependência”.  Informe da Previdência Social, vol. 25, nº 4. Ministério da Previdência Social, 2013

16 Essa contribuição, de 11%, incide apenas sobre os benefícios de servidores civis com valores acima do teto do INSS (R$ 4.390,24 em 2014).

17 Os escritórios especializados em direito previdenciário ainda não deram um nome para esse possível tipo de ação. Chama a atenção que, no julgamento do STF, que tem como partes o INSS e um segurado, participa como amicus curiae o Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP), defendendo a desaposentadoria. Trata-se de entidade sem fins lucrativos, mas que tem a diretoria composta por vários advogados sócios de escritórios que atuam de maneira explícita em ações pró-desaposentadoria.

18 CONSTANZI, R. N.  Obra citada, pág. 7

19 Segundo o Boletim Estatístico da Previdência Social de Agosto/2014, o valor médio das aposentadorias concedidas naquele mês foi de R$ 1.740,01 (tempo de contribuição), R$ 1.149,31 (invalidez) e R$ 863,60 (idade).

 

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O que é desaposentadoria e qual o seu impacto? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2252&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-que-e-desaposentadoria-e-qual-o-seu-impacto https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2252#comments Tue, 24 Jun 2014 13:54:07 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2252 A desaposentadoria (ou desaposentação) é o cancelamento de uma aposentadoria que está vigendo para pleitear uma nova. Com esse cancelamento, consideram-se novamente todos os anos de trabalho do passado, acrescidos às contribuições da manutenção da condição laboral após a primeira aposentadoria. O objetivo disso é conseguir um benefício melhor. A desaposentadoria é pleiteada por aqueles que se aposentam mas não param de trabalhar, recebendo simultaneamente o benefício de aposentado e a renda do trabalho, sobre a qual incide a contribuição previdenciária.

Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) não reconhece o direito dos aposentados em se desaposentar, pois considera impassível a renúncia do benefício. Além disso, argumenta que se a sistemática da desaposentadoria virar regra, haverá um enorme impacto prejudicial às contas da previdência.

O Poder Judiciário tem posicionamento diferente. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já confirmou, no ano passado, em julgamento de recurso repetitivo1, que o aposentado tem o direito de renunciar ao benefício para requerer nova aposentadoria em condição mais vantajosa, e que para isso ele não precisa devolver o dinheiro que recebeu da Previdência. Isso significa que a renúncia à aposentadoria, para fins de concessão de novo benefício, seja no mesmo regime ou em regime diverso, não implica o ressarcimento dos valores recebidos.

Para o STJ, os benefícios previdenciários são direitos patrimoniais disponíveis e, portanto, suscetíveis de desistência pelos seus titulares, dispensando-se a devolução dos valores recebidos da aposentadoria a que o segurado deseja renunciar para a concessão de novo e posterior benefício. A matéria deve entrar em breve na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Recurso Extraordinário nº 661.256, que ganhou repercussão geral. Em caso semelhante (Recurso Extraordinário nº 381.367), o ministro relator Marco Aurélio iniciou o julgamento votando a favor da desaposentadoria. No Legislativo, tramitam vários projetos de lei instituindo esse direito ou concedendo vantagens semelhantes2.

Cabe considerar, no presente tema, não apenas a questão jurídica, mas também todo o impacto econômico na sociedade. Ao se validar o instituto da desaposentadoria, contraria-se todo o esforço recente de se melhorar as contas da previdência.

É importante fazer um breve histórico sobre as recentes alterações previdenciárias. O Governo, na época da aprovação da Emenda Constitucional nº 20, de 1998, não conseguiu incluir o limite de idade para aposentadorias na esfera do setor privado; no entanto, a mesma Emenda nº 20 abriu caminho para substancial inovação na metodologia de cálculo do salário-de-benefício dos segurados do Regime Geral de Previdência Social – RGPS, operado pelo INSS. Calcado no novo dispositivo constitucional (art. 201), que explicita o caráter contributivo da previdência social e requer equilíbrio atuarial e financeiro do sistema, bem como na “desconstitucionalização” da regra de cálculo do valor dos benefícios, o Governo implantou o chamado “fator previdenciário”.

Tratou-se de iniciativa do Poder Executivo que, pressionado pela imprescindível adoção de medidas que permitissem o controle e contenção da tendência ascendente dos gastos previdenciários, enviou ao Congresso proposta de legislação ordinária que estabelecia, dentre outros aspectos, o chamado “fator previdenciário” no cálculo das aposentadorias. Tal projeto de lei, tendo tramitado em regime de urgência, foi aprovado, com pequenas modificações, em novembro de 1999, transformando-se na Lei nº 9.876, de 26 de novembro de 1999.

O fator previdenciário consiste na inserção, na fórmula de cálculo do salário-de-benefício, de um multiplicador que inclui a expectativa de sobrevida, a idade e o tempo de contribuição do segurado, ou seja, critérios atuariais que aumentam a correlação entre contribuição e benefício. Ademais, ao invés de considerar apenas os últimos três anos de contribuição como base para a fixação do valor da aposentadoria, como antes estabelecido na Constituição, o novo cálculo considera toda a vida laboral do trabalhador (a partir de julho de 1994).

Com o novo método, cada segurado passou a ter direito a receber um benefício calculado de acordo com a estimativa do montante de contribuições realizadas, capitalizadas por uma taxa determinada pelo tempo de contribuição e idade do segurado, bem como pela expectativa de duração do benefício.

É fundamental entender que a nova regra representa passo significativo em direção à construção de um sistema previdenciário equilibrado. Além de embutir em seu cálculo um fator atuarial – a expectativa de sobrevida por faixa etária – tende a equilibrar o fluxo de caixa do sistema previdenciário no curto e médio prazos. Isso porque o segurado que sair mais cedo, provocando um desembolso antecipado, receberá, em contrapartida, uma aposentadoria de menor valor.

Tal critério é justo. É razoável que aquele que opte por se aposentar por tempo de contribuição (35 anos para homens e 30 para mulheres) em idade precoce faça jus a benefício inferior a de outro que prefira se aposentar com idade mais elevada. Esse último, além de ter contribuído por maior período, deverá receber o benefício por menos tempo, sendo, justo, pois, que aufira uma renda mensal mais elevada que o primeiro.

Percebe-se, assim, que o fator previdenciário, embora não elimine o déficit existente, nem altere direitos adquiridos de aposentados, permite maior correlação entre salário-de-contribuição e salário-de-benefício para as novas aposentadorias. Ainda, representa grande avanço no sistema de repartição simples, profundamente afetado por mudanças demográficas. Com o aumento da expectativa de sobrevida da população, por exemplo, é necessário que limites de idade mínima sejam periodicamente repactuados com a sociedade. No entanto, na medida em que esta variável está presente no próprio cálculo do salário de benefício, os ajustes necessários serão automaticamente internalizados de modo que o sistema se mantenha equilibrado.

O instituto da desaposentadoria acaba com os benefícios do fator previdenciário para a saúde das contas previdenciárias. Com as regras criadas pelo Poder Judiciário, os beneficiários do INSS têm incentivo a se aposentarem cedo e continuar trabalhando, pois acumularão a renda da aposentadoria com o salário do trabalho não interrompido. Depois de anos recebendo a aposentadoria, quando conseguirem um fator previdenciário favorável, simplesmente pedem o cancelamento da aposentadoria e solicitam novo recálculo do benefício. O Ministério da Previdência Social (MPS) estimou em 2011 impacto de R$ 69 bilhões nas contas públicas a longo prazo caso a desaposentadoria fosse reconhecida pelo Supremo3.

Ora, mas não há cálculo atuarial que consiga equilibrar essa situação, pois, no período entre a primeira aposentadoria e o novo recálculo, o beneficiário já tinha gerado um ônus para o Estado, pois já estava recebendo uma renda pelo INSS. Para consolidar a desaposentação, o mais justo seria então o beneficiário devolver tudo o que recebeu a título de aposentadoria nesse intervalo.

Ademais, a desaposentadoria constitui grande injustiça com os trabalhadores e aposentados que, quando satisfizeram os critérios para pedir a aposentadoria por tempo de contribuição, optaram por não pleitear o benefício, trabalhando sem acumular a renda do trabalho com a aposentadoria.  Esses trabalhadores se planejaram de acordo com a lógica do fator previdenciário, esperando anos para poder receber uma aposentadoria com valor maior. Naturalmente, esses trabalhadores e aposentados se sentem lesados com a possibilidade da desaposentadoria, já que receberiam benefícios iguais ao daqueles que se aposentaram muito antes, sem, no entanto, terem recebido a aposentadoria durante todos os anos nesse intervalo.

Assim, a discussão sobre a desaposentação remete ao grave problema das aposentadorias precoces no Brasil, decorrentes da possibilidade de aposentadoria por tempo de contribuição – que encontra paralelo em pouquíssimos outros países – e da ausência de idade mínima para quem se aposenta pelo INSS, problema que o fator previdenciário, embora não seja o ideal, conseguiu “remendar”. A idade mínima para a aposentadoria não é a regra apenas nos países ricos – como nos escandinavos em que chega aos 67 anos -, mas também em países emergentes, mais parecidos com o Brasil. México, Colômbia, Argentina, Chile, Peru e até El Salvador possuem idade mínima para aposentadoria de 65 anos4. A título de ilustração, a idade média de aposentadoria por tempo de contribuição das mulheres brasileiras no meio urbano é de apenas 52 anos5.

O fator previdenciário atenua essa situação, mas além de não resolver o problema, é mal compreendido pelos segurados, muitos dos quais pedem a aposentadoria por tempo de contribuição cedo. Sentem-se,  porém, vitimados pelo “desconto” do fator, o que dá ensejo posteriormente às ações de desaposentadoria para corrigir a suposta injustiça.

Dessa forma, a má compreensão sobre o funcionamento do fator previdenciário faz com que esses aposentados genuinamente creiam que o INSS lhes deve valores, ou que os valores das contribuições feitas depois da “primeira” aposentadoria deveriam ser devolvidos. Logo, não se percebe que a relação entre o tempo de contribuição e o tempo de usufruto do benefício para os segurados do INSS é muito diferente da comparação internacional e que o regime de custeio escolhido para o INSS na Constituição não é o de capitalização – como o da previdência privada, em que o valor das contribuições é revertido em benefício – e sim o de repartição, em que o sistema financia os inativos com as contribuições daqueles que estão em atividade.

Merecem ser destacadas, ainda, as falhas em um argumento comumente usado a favor da desaposentadoria: a de que este direito existe para os servidores públicos (Regime Próprio de Previdência Social – RPPS) por meio do instituto conhecido como “reversão”. A reversão é muito diferente da desaposentadoria, já que o servidor não recebe ao mesmo tempo seu salário e a aposentadoria, deixando meramente de ser inativo para voltar a ser ativo, no exato mesmo cargo que ocupava antes. Ressalta-se ainda que a reversão está prevista em lei (não foi criação de tribunais), só pode ocorrer de acordo com o interesse da Administração e segundo outros critérios da Lei nº 8.112, de 1990, e que existe idade mínima para aposentadoria no RPPS (65 anos para homens e 60 para mulheres, sem fator previdenciário). Obviamente, isso não implica que os aposentados do RPGS estejam em situação mais confortável que os do RPPS, mas todas as características citadas tornam os institutos da reversão e da desaposentadoria muito diferentes.

O gráfico a seguir, produzido na Consultoria Legislativa do Senado, mostra a evolução, em termos reais, das principais séries de despesa e receitas públicas. Nota-se que a série que mais cresceu foi a que representa os gastos com o Regime Geral de Previdência Social. Essa foi a única série que superou o crescimento da Receita da União, mostrando como o Regime Geral é uma bomba ainda não controlada.

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Enquanto em 2010, segundo o IBGE, havia 16 idosos com mais de 60 anos para cada grupo 100 brasileiros entre 15 e 19 anos, as projeções mais atualizadas indicam que essa relação aumentará, em menos de três décadas, para 52 a cada 1006. Levando em conta que o próprio Ministério da Previdência Social projetou um déficit do Regime Geral já da ordem R$ 50 bilhões em 2014, só é possível concluir que a situação da previdência ficará muito grave nos próximos anos, e institutos como a desaposentadoria reforçam esse quadro. Novamente segundo o MPS, mais de 700 mil segurados teriam hoje direito ao aumento de seus benefícios, contingente maior do que a população inteira de várias capitais do país.

O que se lamenta é uma falta de consciência da restrição orçamentária intertemporal na economia. A irresponsabilidade fiscal de hoje certamente causará problema para as gerações futuras do Brasil.

1 Recurso Especial nº 1.334.488.
2 Apenas no Senado tramitam os projetos de lei nos 464, de 2003; 214, de 2007; 56, de 2009; 91 de 2010; e 188, de 2011.
3 Constanzi (2011)
4 Cechin e Cechin (2007).
5 Giambiagi e Schwartsman (2014).
6 Giambiagi e Schwartsman (2014).

___________________

Referências:

CECHIN, J.; CECHIN. A. “Desequilíbrios: causas e soluções”. In: Tafner, P. e Giambiagi, F. (org.). Previdência no Brasil – debates, dilemmas e escolhas. Ipea, 2007.

CONSTANZI, M. N. “Evolução e Situação Atual das Aposentadorias por Tempo de Contribuição”. Informe da Previdência Social, vol. 23, nº 8. Ministério da Previdência Social, 2011.

GIAMBIAGI, F.; SCHWARTSMAN, A. Complacência. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014.

 

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Por que instituir a previdência complementar do servidor público? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=236&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-instituir-a-previdencia-complementar-do-servidor-publico https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=236#comments Fri, 25 Feb 2011 02:10:10 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=236 As duas reformas da previdência brasileira, feitas em 1998 e em 2003, embora tenham repercutido basicamente no regime de previdência do servidor público, ainda estão inacabadas. Isso porque uma das principais alterações aprovadas ainda não foi regulamentada em nenhum dos entes federativos: o estabelecimento da previdência complementar do setor público.

Os sistemas previdenciários podem operar, basicamente, na forma de dois regimes: capitalização e repartição. No regime de capitalização, os benefícios de cada indivíduo são custeados pela capitalização prévia das contribuições feitas ao longo da vida ativa. No regime de repartição, os trabalhadores ativos financiam as aposentadorias e pensões em curso, esperando que, no futuro, seus benefícios previdenciários sejam custeados por outros

A previdência complementar, onde vige o regime de capitalização, complementa a previdência básica regida pela repartição (sistema vigente no INSS e no serviço público federal), subdividindo-se em previdência complementar fechada (acessível apenas aos empregados de patrocinadoras ou associados de sindicatos, associações, etc) e aberta (acessível a qualquer pessoa física). No primeiro caso, ao contrário do segundo, há a participação financeira do empregador, quando este existe.

A previdência complementar do setor público será, assim, regida pela capitalização, complementará o regime básico, que continuará a existir, e contará com a participação financeira do ente federado, que, de acordo com o art. 202 da Constituição, não poderá superar a do segurado.

De acordo com o art. 40, §§ 14, 15 e 16 da Constituição Federal, , o ente federado (União, estado ou município), desde que institua regime de previdência complementar, poderá fixar, para as aposentadorias e pensões de seus servidores, o mesmo teto vigente no INSS, que hoje corresponde a cerca de 6,8 salários mínimos. Ou seja, não será necessário para esses governos pagar aposentadorias em valores equivalentes ao salário da ativa. Para receber maior renda de aposentadoria, os servidores terão a opção de adesão à previdência complementar.

A nova regra, todavia, só se aplicará compulsoriamente aos servidores que entrarem no serviço público após a implantação do respectivo plano de previdência complementar (para os demais, a adesão será facultativa).

Ademais, considerando que os planos de benefício da previdência complementar do servidor público deverão se restringir à modalidade de contribuição definida, na qual os benefícios futuros dependem da capitalização de contribuições, o novo regime de previdência do servidor deverá ter a seguinte configuração: a) até o teto do INSS, continuará a viger o sistema de benefício definido, em que o valor do benefício é garantido pelo ente federativo; b) para o valor que exceder o teto, caberá ao servidor a assunção dos riscos.

Contudo, por falta de legislação regulamentando a matéria, nada disso ocorreu até o momento.

O grande problema da postergação na efetivação do novo modelo é que, embora as reformas previdenciárias empreendidas tenham conseguido controlar a tendência explosiva dos gastos, o déficit do regime ainda é e continuará sendo elevado, já que ainda não se conseguiu reduzir efetivamente a pressão fiscal advinda dos encargos previdenciários.

As despesas com o regime próprio dos servidores se encontram estabilizadas em relação ao PIB. Na União, têm oscilado em torno de 2% do PIB, com tendência decrescente no longo prazo, conforme mais e mais servidores passem a receber benefícios previdenciários de acordo com as regras estabelecidas nas reformas da previdência empreendidas.

Ademais, mesmo considerando que os servidores públicos em atividade ficaram sujeitos a regras de transição, já se observa que a idade média de aposentadoria subiu (de 58 para 62 anos, no caso dos homens, e de 54 para 58 anos, no das mulheres), bem como aumentou o tempo de permanência no serviço público, tendências que seguirão seu curso ascendente até que as regras de transição se esgotem.

Não obstante, as despesas e o déficit do regime previdenciário dos servidores continuam sobremaneira elevados. Em 2009, enquanto as despesas do INSS, que abrange 23,2 milhões de beneficiários, somaram 7,1% do PIB; as do regime dos servidores, com apenas 3,1 milhões de beneficiários, totalizaram 4,3%. Em termos de déficit, o do primeiro regime representou 1,7% do PIB e o do segundo, 1,4%.

Essa situação se dá por duas razões básicas. Por um lado, porque as reformas estabelecidas e seus efeitos levam tempo para surtir efeitos fiscais plenos, tendo em vista as regras de transição. Por outro, porque ainda não existe um valor máximo para os benefícios previdenciários dos servidores públicos, o que só será possível depois do estabelecimento, mediante legislação ordinária, da previdência complementar desses trabalhadores.

Nesse último caso, pode-se afirmar que não há como restringir o montante do déficit do sistema sem a existência de um teto. A razão é que, de acordo com a estrutura de custeio do regime de repartição hoje existente no setor público, as contribuições sociais arrecadadas dos servidores públicos ativos, dos aposentados e dos pensionistas equivalem a menos de 12% dos gastos correntes da União com aposentadorias e pensões. Ou seja, os 88% restantes precisam ser bancados pelos contribuintes de tributos federais. Além disso, a imposição do teto no regime próprio dos servidores significa a aproximação entre este regime e o existente para os demais trabalhadores do País, prática que hoje representa tendência internacional.

Do ponto de vista da política fiscal, os efeitos de curto e longo prazo redundantes da mudança do regime de previdência dos servidores são distintos. No curto, existem os elevados gastos envolvidos com a transição de um regime integralmente de repartição, como o vigente, para outro em que parte será regida pela capitalização. Os custos são elevados por que os futuros servidores, ou seja, os que ingressarem no serviço público após a constituição da respectiva previdência complementar, passarão a contribuir apenas até o teto do regime, que, sendo igual ao do INSS, hoje equivale a R$ 3.689,66. Com isso, menor arrecadação será revertida para financiar as aposentadorias integrais em manutenção, cujos valores médios para a União correspondem a: R$ 6.177,00, no Executivo (civis), R$ 19.281, no Legislativo, e R$ 15.563 no Judiciário (MPO, 2010). Resultado: caberá ao Tesouro Nacional aportar, por vários anos, ainda mais recursos para financiar esses benefícios.

Cabe observar que a aplicação compulsória das novas regras apenas para os novos servidores amenizará o custo de transição, na medida em que o sistema previdenciário antigo continuará a contar com as contribuições integrais dos servidores públicos em exercício, o que minimizará a perda de arrecadação.

Mesmo assim, a vigência de um valor máximo para os benefícios dos novos servidores públicos redundará em um custo de transição entre o regime antigo e o novo estimado em torno de 0,1% do PIB nas duas primeiras décadas.

No longo prazo, todavia, a situação tende a se acomodar, já que a quantidade de aposentadorias integrais se reduz paulatinamente enquanto as novas crescem. Após um razoável período de tempo, a situação se reverte completamente, passando, então, a gerar a fundamental redução dos gastos públicos no âmbito do regime próprio de previdência do servidor público. Paralelamente, a previdência complementar dos servidores estará captando e capitalizando as contribuições adicionais, bem como aplicando a poupança em investimentos de longo prazo. Ao final do processo, as aposentadorias de maior valor deixarão de ser financiadas pelo Estado e, consequentemente, por toda a sociedade.

O gráfico a seguir mostra a trajetória estimada do custo de transição como proporção do PIB, caso a previdência complementar tivesse sido instituída na União em 2009. Verifica-se que tal custo apresenta três fases distintas. Nas duas décadas iniciais, é elevado. Na década seguinte, embora o custo de transição ainda seja positivo, sua trajetória já é descendente. A partir da terceira década, as vantagens advindas da limitação das aposentadorias ao teto do RGPS começam a superar os custos associados às perdas de arrecadação, fazendo com que os ganhos fiscais atinjam algo próximo a 0,2% do PIB.

Custo de transição da previdência complementar dos servidores públicos da União (em % do PIB)

Fonte: CAETANO, Marcelo A. “Previdência complementar para o serviço público no Brasil”. Sinais Sociais, v.3. nº 8, set/dez 2008. Rio de Janeiro: SESC, 2008.

Ressaltem-se ainda duas situações específicas que recomendam a tempestiva reformulação do regime previdenciário do servidor público. Em primeiro lugar, o Brasil encontra-se em fase de crescimento, o que torna menos difícil custear a transição. Em segundo, quase 40% dos servidores públicos federais possuem hoje mais de 50 anos de idade, o que configura um perfil envelhecido de trabalhadores (superior ao verificado no conjunto da nossa força de trabalho e mesmo nos países da OECD). Nesta segunda situação, embora haja uma pressão das despesas previdenciárias no médio prazo, há também a oportunidade de repor esses servidores por novos já inseridos num também novo regime de previdência sujeito ao teto do INSS e complementado por fundo de pensão do setor público. Se o processo de renovação dos servidores ocorrer antes da mudança de regime, os custos fiscais serão maiores e o tempo de maturação do novo regime será mais amplo.

Por fim, cabe fazer um alerta em relação à exigência constitucional de que os fundos de pensão dos servidores deverão ter natureza pública. Já que tal figura não possui significação jurídica estabelecida, caberá à lei que vier a instituir a previdência complementar a normatização da matéria. Se esta for no sentido do estabelecimento de institutos de previdência constituídos como fundações ou autarquias públicas, estar-se-á quebrando um dos pilares da organização da previdência complementar no Brasil, que sempre teve natureza privada. Além disso, correr-se-á o risco de o sistema ficar mais vulnerável às ingerências políticas. Ademais, caso venham a ser fundos públicos, o Governo Federal poderá encontrar dificuldades para supervisionar e regular as entidades criadas por estados e municípios, devido aos princípios constitucionais de autonomia federativa.

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Para ler mais sobre o tema:

AMARO, Meiriane N. Terceira Reforma da Previdência: até quando esperar? Brasília: Centro de Estudos da Consultoria do Senado, fev/2010 (Texto para Discussão nº 84). Disponível no site: http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao.htm

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Por que precisamos reformar a previdência? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=162&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-precisamos-reformar-a-previdencia https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=162#comments Sun, 20 Feb 2011 23:48:12 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=162 No Brasil existem dois regimes de previdência pública: o dos servidores públicos e o do INSS. Além disso, há a previdência privada. Já empreendemos duas reformas da previdência social, uma no Governo FHC, outra no Governo Lula. No entanto, ambas repercutiram basicamente no regime próprio de previdência dos servidores e, em menor proporção, no regime privado de previdência complementar, deixando as condições que regem o regime geral de previdência social praticamente inalteradas.

Enquanto isso, a restrição fiscal que motivou o encaminhamento ao Congresso Nacional da primeira proposta de reforma previdenciária, em 1995, continua. Agora potencializada pelo aumento dos gastos do INSS.

Entre 1988 e 2009, a despesa do INSS triplicou seu peso relativo na economia, passando a comprometer 7,2% do PIB e perto de um terço da despesa não financeira da União (despesa total menos juros). É o maior item de despesa da União, superando os gastos com o pagamento de pessoal (4,8% do PIB) e com juros (4% do PIB).

Quase metade da receita líquida federal é hoje destinada à previdência (36,8% para o INSS e 10,2% para inativos e pensionistas). A metade que sobra tem, assim, que custear todos os outros gastos da máquina pública, cuja maioria não pode ser descontinuada. Resultado: nosso ajuste fiscal acaba sendo feito pela compressão do investimento público, que representa apenas 1% do PIB e menos de 7% da despesa primária.

Estudos mostram que, embora ainda sejamos um país jovem, gastamos com previdência o mesmo que gastam países desenvolvidos e com estrutura etária já envelhecida, como o Reino Unido, e que, para custear tal nível de despesas, também aplicamos elevadíssimas alíquotas de contribuição previdenciária.

Essa asfixia fiscal, ao comprometer a necessária expansão dos investimentos em infraestrutura, educação e capacitação da mão-de-obra (afora outras áreas fundamentais, como saúde e segurança pública), compromete nosso potencial de crescimento e de melhoria da qualidade de vida da população mais pobre.

A situação é ainda mais grave quando confrontada com os prognósticos demográficos. A população brasileira está envelhecendo, e a uma velocidade mais rápida do que a verificada nos países do Velho Mundo, que, ao contrário de nós, enriqueceram antes de envelhecer. A proporção de idosos (indivíduos com mais de 60 anos) na população total do Brasil triplicará nos próximos quarenta anos, passando de 6,8% para 22,7%. O impacto desse envelhecimento na previdência social é grande.

Sendo nossa previdência pautada pelo “regime de repartição”[1],

é a população em idade ativa que sustenta a inativa. Isso significa que, enquanto hoje 6,45 indivíduos em atividade potencialmente podem gerar recursos para cada beneficiário, em 2050 deverão ser apenas 1,9. Em outras palavras, haverá cada vez menos pessoas trabalhando e, assim, sustentando o crescente número de idosos no Brasil.

Nesse contexto, fica evidente que, se nada fizermos agora, nossas despesas previdenciárias simplesmente explodirão, comprometendo o futuro das próximas gerações de brasileiros.

O irreversível envelhecimento da população no mundo representa uma questão tão grave, que pode hoje ser considerada como uma das principais variáveis a definir o futuro econômico e social das nações. Diante disso, muitos países se encontram engajados na reformulação dos seus sistemas de previdência, movidos pela assunção de que é melhor aumentar agora os anos de contribuição em relação aos de aposentadoria, bem como reduzir um pouco o benefício em relação ao salário, do que, daqui a alguns anos, ser forçado a elevar sobremaneira as contribuições sociais e/ou diminuir o valor dos benefícios previdenciários em manutenção.

Suas experiências constituem importantes ensinamentos. Em primeiro lugar, mostram que as idades de aposentadoria nos países avançados são bem maiores do que as relativas à aposentadoria por tempo de contribuição dos trabalhadores brasileiros da iniciativa privada (54 anos para homem e 52 para mulher). Isso ocorre porque continuamos a ser um dos únicos países do mundo que concede aposentadoria sem impor limite mínimo de idade (os outros são Nigéria, Argélia, Turquia, Eslováquia e Egito). Ademais, ao contrário do que aqui ocorre, muitos países aplicam a mesma idade mínima para homens e mulheres.

A experiência internacional também mostra que o valor dos nossos benefícios previdenciários como proporção dos salários é muito elevado. No caso da aposentadoria, embora muitos países permitam aposentadoria antecipada aos 60 anos de idade (vejam bem: antecipada), depois de 40 anos de contribuição (enquanto aqui o máximo exigido são 35 anos), isso implica redução de 40% no valor de benefício. No Brasil, um homem na mesma situação não terá qualquer perda monetária. Ou seja, sua aposentadoria equivalerá a 100% do salário.

Além disso, em relação à aposentadoria por idade, embora haja limite etário para a concessão do benefício, exige-se apenas quinze anos de contribuição, o que é muito pouco, especialmente quando se compara ao que ocorre no mundo. Afinal, um homem que espere 50 anos para começar a contribuir para a previdência poderá se aposentar aos 65 anos e receber o benefício por mais 16,3 anos, de acordo com sua expectativa de sobrevida. No caso da mulher, serão 15 anos de contribuição versus 19,1 de recebimento do benefício. Ademais, esses segurados receberão aposentadorias equivalentes a 100% de seus salários, enquanto que, se forem empregados, terão recolhido 8%, 9% ou 11% dos salários, de acordo com o rendimento que tinham, que, somados aos 20% do empregador, corresponderão à contribuição mensal de apenas 28%, 29% ou 31% do salário. É fácil perceber que a conta não fecha e será cada vez mais inconsistente, em vista dos prognósticos populacionais.

No caso das pensões, a situação é ainda mais discrepante. Representamos um dos poucos países que não exige qualquer condição de qualificação para a concessão do benefício. Não há, por exemplo, qualquer limitação relacionada à carência contributiva, ao tempo de casamento ou união, à idade do cônjuge sobrevivente e dos filhos, ao número de filhos, à renda do cônjuge sobrevivente, ao período de recebimento do benefício ou ao seu acúmulo com outros benefícios. Como resultado, nosso gasto com pensões é tão significativo que representa o segundo maior na estrutura de despesas do INSS, e, em termos de participação no PIB, representa o triplo da média internacional.

Mas é na indexação do piso previdenciário ao salário mínimo onde reside o maior propulsor da elevação das despesas com benefícios. Entre 1995 e 2010, o salário mínimo teve um aumento real de 122% (44% no Governo FHC e 54% no Governo Lula). Como o piso da previdência social é vinculado a esse salário, isso significa que o valor do piso foi elevado na mesma proporção; o que também é verdade para o benefício de prestação continuada da assistência social (que favorece idosos e deficientes físicos de baixa renda), igualmente atrelado ao mínimo.

A despesa da previdência social é fortemente influenciada pelo piso dos benefícios, já que dois em cada três segurados o recebem. A receita, por outro lado, depende principalmente dos benefícios superiores. Por isso, a elevação do salário mínimo impacta mais a despesa que a receita: a cada R$ 1 real de aumento do salário mínimo, os gastos com benefícios previdenciários sobem R$ 198 milhões e as receitas, apenas R$ 14 milhões, fazendo com que o déficit cresça em R$ 184 milhões. Agregando as despesas da previdência e da assistência social, observa-se que o déficit do INSS cresce R$ 230 milhões a cada R$ 1,00 de elevação no valor do mínimo.

É importante sublinhar que, no âmbito da assistência social, a vinculação do benefício de prestação continuada ao salário mínimo, além das implicações fiscais diretas, carrega consigo outro importante condicionante: desestimula a inclusão previdenciária, limitando, assim, o universo de contribuintes e, consequentemente, a elevação das receitas do sistema.

Isso ocorre porque a maior parte dos trabalhadores informais, mesmo sem qualquer contribuição prévia, quando atingirem 65 anos (mesma idade exigida dos homens para efeito de concessão da aposentadoria previdenciária por idade), poderão pleitear um benefício assistencial de valor idêntico ao piso da previdência social, desde que comprovem possuir renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo.

Daí cabe perguntar: qual o incentivo que esses trabalhadores têm para contribuir para a previdência social quando sabem que poderão usufruir, a partir da mesma idade (no caso dos homens), da mesma aposentadoria que será concedida à maioria dos trabalhadores do mercado formal de trabalho, que, com muito esforço, contribuem sistematicamente sobre seus rendimentos mensais de um salário mínimo?

Outro importante ponto a destacar é que o efeito do salário mínimo sobre a pobreza é quase residual atualmente e, no que diz respeito à pobreza extrema, é nulo. Resultado da expressiva escalada de aumentos reais verificada nos últimos anos, quem hoje recebe aposentadoria não mais pode ser considerado pobre.

Assim, defender os elevados gastos com a previdência social sob o argumento de que constituem importante instrumento de redução da pobreza esconde uma grande verdade: se parcela dos gastos redundantes do sistemático aumento do piso previdenciário for alocada na expansão de programas sociais focalizados nos estratos inferiores de renda, como por exemplo, o Programa Bolsa Família, que representa menos de 2% da despesa primária da União, a pobreza e a miséria diminuirão muito mais

As constatações apresentadas reclamam a urgente modificação de parâmetros básicos no âmbito da previdência dos trabalhadores da iniciativa privada, a maior parte de cunho constitucional, com destaque para as seguintes alterações:

a)      aposentadoria por tempo de contribuição: imposição de idade mínima;

b)      aposentadoria por idade: aumento da carência para concessão do benefício;

c)      pensão por morte: imposição de condicionalidades que reflitam o grau de dependência do cônjuge ou parceiro sobrevivente e filhos;

d)     piso da previdência social: fim da vinculação ao salário mínimo (atualização pela inflação passada);

e)      diferenças por sexo, setor (rural versus urbano) e categoria profissional (professor em sala de aula versus demais trabalhadores): extinção;

f)       benefício de prestação continuada da assistência social: fim da vinculação ao mínimo (atualização pela inflação passada), valor inferior ao do piso previdenciário e elevação da idade de 65 para 70 anos.

Ressalte-se, por fim, que as mudanças propostas não devem afetar os aposentados e pensionistas, devendo ser, em contraposição, integralmente aplicadas aos novos trabalhadores. Com relação aos trabalhadores em atividade, sugere-se o estabelecimento de regras de transição com extensa carência e lenta progressividade. A carência para início da aplicação das regras de transição poderia ser de quatro, cinco ou mais anos e a implantação progressiva dos novos parâmetros poderia ocorrer durante uma ou mais décadas. As únicas alterações que deveriam ter aplicação imediata para todos são as relativas à vinculação dos benefícios ao salário mínimo e às novas regras para concessão de pensão.

A extensa carência e lenta progressividade na aplicação das regras de transição aos trabalhadores já inseridos no mercado de trabalho é fator fundamental para que se consiga apoio político às mudanças. Outra opção, talvez mais pragmática, do ponto de vista político, seja executar imediatamente as mudanças relativas ao mínimo e às pensões e aplicar as demais alterações apenas aos novos trabalhadores.

Se houvéssemos considerado isso em 1995, quando começaram os debates em torno da necessária reformulação da nossa previdência social e o Poder Executivo apresentou sua primeira proposta sobre a matéria, e tivéssemos efetuado uma reforma mais profunda que se aplicasse apenas aos novos trabalhadores, por exemplo, todos aqueles que entraram no mercado de trabalho nos últimos quinze anos já seriam regidos pelo novo sistema. Assim, já teríamos passado pela fase mais dura do período de transição e, certamente, as contas públicas estariam em condições muito melhores, permitindo ao governo investir em infraestrutura e educação, dois itens fundamentais para o sucesso das futuras gerações de brasileiros.

Para ler mais sobre o tema:

AMARO, Meiriane N. Terceira Reforma da Previdência: até quando esperar? Brasília: Centro de Estudos da Consultoria do Senado, fev/2010 (Texto para Discussão nº 84). Disponível no site: http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao.htm

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[1] No regime de repartição, os trabalhadores ativos financiam as aposentadorias e pensões em curso, esperando que, no futuro, seus benefícios previdenciários sejam custeados por outros. No de capitalização, ao contrário, o trabalhador financia sua própria aposentadoria, aportando contribuições em sua conta individual que, capitalizadas, serão depois retiradas na forma de uma renda mensal.

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O fator Previdenciário deve acabar? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=233&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-fator-previdenciario-deve-acabar https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=233#comments Sat, 12 Feb 2011 01:56:38 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=233 Por ocasião da discussão da primeira reforma da previdência social, o Congresso Nacional rejeitou a imposição de idade mínima para habilitação à aposentadoria por tempo de contribuição no regime geral de previdência social (embora a tenha aceito para o regime do servidor público), o que foi um duro golpe para o Executivo, que considerava essa a principal medida de contenção das despesas do INSS.

Ocorre que, embora a Emenda Constitucional nº 20, de 1998, não tenha estabelecido um limite de idade, ela retirou do texto da Constituição a regra de cálculo da aposentadoria, o que abriu caminho para substancial inovação em sua metodologia: a aplicação do fator previdenciário, introduzido mediante a Lei nº 9.876, de 26 de novembro de 1999.

Mas o que é exatamente o fator previdenciário?

É um índice utilizado para definir o valor da aposentadoria. Ele multiplica o valor médio das contribuições à previdência social de cada segurado do seguinte modo:

Valor da aposentadoria = (valor médio das contribuições) x fator previdenciário

Esse índice (diferente para cada segurado) está estruturado de forma a incluir a idade, a expectativa de sobrevida e o tempo de contribuição do segurado ao se aposentar (além da alíquota de contribuição), nos seguintes termos:

Fator previdenciário =  Tc x a x   (1 + Id + Tc x a) onde:

Es                       100

Tc = tempo de contribuição do segurado

a = alíquota de contribuição do segurado = 0,31 (20% da empresa + 11% do empregado)

Es = expectativa de sobrevida do segurado na data da aposentadoria (fornecida pelo IBGE)

Id = idade do segurado na data da aposentadoria

Na primeira parte da equação, busca-se uma proporção entre o total de contribuições pagas pelo indivíduo e o tempo que se espera que ele receberá a aposentadoria. Suponha-se, por exemplo, um empregado que tenha trabalhado durante 30 anos. Como a contribuição mensal paga ao INSS correspondeu a 0,31% do seu salário de contribuição (11% do empregado mais 20% do empregador),a contribuição total acumulada seria suficiente para pagar sua aposentadoria por 9,3 anos (30 x 0,31). Portanto, se sua expectativa de sobrevida também for 9,3 anos, a primeira parte do fator estará equilibrada (corresponderá à unidade): suas contribuições foram suficientes para pagar sua aposentadoria ao longo do período esperado de sobrevida. Se ele estiver se aposentando ainda jovem, a sua expectativa de sobrevida será alta, o que reduz o valor da primeira parte da equação, reduzindo o fator previdenciário e, consequentemente, o valor mensal da aposentadoria. Se ele vai viver mais tempo, terá que receber menos por mês, para que a sua contribuição durante o período ativo seja suficiente para financiar sua aposentadoria. Efeito similar ocorrerá se o tempo de contribuição for baixo.

Na segunda parte, está sendo pago um prêmio para os segurados que permanecerem mais tempo em atividade, de modo que a aposentadoria é maior para aquele que permanece trabalhando por mais tempo e vice-versa.

Fundamental entender que o fator previdenciário é uma forma de fazer um “regime de repartição” funcionar de modo similar a um “regime de capitalização”.

No regime de capitalização o indivíduo faz contribuições mensais que, capitalizadas, serão depois retiradas na forma de uma renda mensal de aposentadoria. No regime de repartição são os trabalhadores ativos que financiam os benefícios dos aposentados e pensionistas, pressupondo que, no futuro, seus benefícios previdenciários serão custeados pela nova geração de trabalhadores.

O problema do regime de repartição é que, com o envelhecimento da população e ampliação da expectativa de vida, há cada vez menos trabalhadores na ativa para remunerar aposentados e pensionistas. Assim, uma transição para um regime de capitalização torna o sistema previdenciário menos deficitário.

Com o fator previdenciário, cria-se um estímulo para que o trabalhador permaneça mais tempo na ativa para ter uma aposentadoria maior. Tudo se passa como se ele estivesse mais tempo na ativa para acumular mais contribuições em uma conta de capitalização.

Além disso, o resultado final da aplicação do fator atende plenamente ao princípio de equidade que deve reger o sistema de previdência social, conforme dispõe o art. 194 da Constituição. Afinal, é razoável considerar que aquele que opte por se aposentar por tempo de contribuição (35 anos para homens e 30 para mulheres) em idade precoce receba benefício inferior a de outro que prefira se aposentar com idade mais elevada. Esse último, além de ter contribuído por maior período, deverá receber o benefício por menos tempo, sendo, justo, pois, que aufira uma renda mensal mais elevada que o primeiro.

Outra qualidade do fator previdenciário é que ele tende a equilibrar o fluxo de caixa do sistema previdenciário no curto e médio prazo, já que o segurado que sai mais cedo, provocando desembolso antecipado, recebe, em contrapartida, aposentadoria de menor valor. Ademais, possui o mérito de ajustar automaticamente os valores das aposentadorias ao contínuo aumento da expectativa de sobrevida da população brasileira, o que é essencial num sistema previdenciário de repartição como o nosso.

Diante de tantas qualidades, cabe questionar se ainda há necessidade de impor idade mínima para concessão de aposentadoria por tempo de contribuição. A resposta é sim. O necessário equilíbrio financeiro da previdência social continua a demandar o estabelecimento de uma idade mínima para concessão de qualquer tipo de aposentadoria.

Isso ocorre porque a incidência do fator previdenciário teve um efeito moderado em termos de incentivo à postergação da aposentadoria, sendo razoável supor que muitas pessoas prefiram se aposentar cedo, com menores aposentadorias. Assim fazendo podem complementar seus rendimentos mensais com a concessão de benefício complementar (no caso daquelas vinculadas a um regime privado de previdência) ou, mais frequentemente, com a renda proveniente de novo trabalho, já que não se proíbe que o aposentado volte a trabalhar.

Com efeito, a idade média de aposentadoria por tempo de contribuição ainda é muito baixa (54 para homens e 52 anos para mulheres), especialmente quando comparada à experiência internacional. Confrontando essas idades com as respectivas expectativas de sobrevida (Tábua de Mortalidade 2009/IBGE), nos deparamos com a seguinte situação: os homens que se aposentam aos 54 anos de idade deverão receber aposentadoria por mais 23,7 anos; as mulheres que se aposentam com 52 anos de idade, por mais 29,2 anos (quase o mesmo tempo mínimo de contribuição, que é de 30 anos).

É fácil perceber a inconsistência existente e o quanto se agravará, em face do irrefutável envelhecimento da nossa população. Há que se considerar, ainda, que a contribuição representa 31% do salário, enquanto a aposentadoria corresponde a 75% e 61%[1] desse valor, respectivamente para homens com 54 e mulheres com 52 anos (se o fator não fosse aplicado, a deficiência atuarial seria ainda mais grave, já que o benefício reporia 100% do salário para ambos os sexos).

O distanciamento entre as regras vigentes no Brasil, um dos seis únicos países do mundo que ainda concede aposentadoria sem limite de idade, e as aplicadas nos países desenvolvidos aponta para a relevância de introduzir tal limite para a aposentadoria por tempo de contribuição.

Enquanto no Brasil o fator previdenciário permite que alguém se aposente com 53 anos de idade, 35 de contribuição e benefício em torno de 70% da média dos salários de contribuição; nos países da OCDE, não apenas a idade de aposentadoria é muito mais elevada, como são requeridos 40 anos de contribuição e 70% do salário é o valor máximo do benefício.

Isso significa que no Brasil, não obstante a aplicação do fator previdenciário, ainda se recebe aposentadoria por mais tempo e com maior valor em relação ao salário médio de contribuição do que o verificado nos países desenvolvidos. Mesmo assim, há atualmente significativa pressão política em favor da eliminação do fator previdenciário.

Esse índice utiliza as informações sobre expectativa de sobrevida da população brasileira por sexo e faixa etária fornecidas pelo IBGE, que, em face do paulatino envelhecimento da população brasileira, é maior a cada ano.

Isso significa que os trabalhadores passaram a se deparar com a seguinte escolha: ou aceitam receber benefícios cada vez menores ou contribuem por cada vez mais tempo para fazer jus a proventos de aposentadoria de valor idêntico ao dos segurados já aposentados. Muitos argúem que tal situação não é justa, em especial porque impede o trabalhador de conhecer antecipadamente sua situação quando da aposentadoria, em vista dos constantes aumentos anuais da expectativa de sobrevida da população.

Diante da pressão política, o Congresso Nacional tentou extinguir o fator previdenciário em várias ocasiões. Na mais recente, aprovou a Lei nº 12.254, de 2010, que continha dispositivo que o eliminava, mas que acabou sendo vetado pelo Presidente da República.

Com isso, nos deparamos hoje com a ameaça de nem com o fator previdenciário contarmos no futuro, o que significaria caminhar na contramão do que ocorre no mundo, onde cada vez mais países utilizam fatores de cálculo que permitem a capitalização virtual das contribuições ao sistema previdenciário, de forma a aproximar os fluxos de contribuições passadas e de renda futura de benefícios.

A Suécia e a Itália, por exemplo, não obstante possuam sistemas previdenciários enormes e com graves restrições demográficas, conseguiram reduzir sobremaneira os efeitos do envelhecimento de suas populações a partir da criação de vínculos mais estreitos entre contribuições e benefícios. Isso foi possível mediante a instituição das chamadas “contas nocionais de previdência” (também adotadas pela Polônia e por mais três pequenos países), que consideram fatores demográficos e macroeconômicos no cálculo do benefício previdenciário, de forma similar ao nosso fator previdenciário.

Tomando como exemplo o sistema sueco, quando o indivíduo chega à idade de se aposentar (61 anos), o valor do seu benefício corresponde ao valor de suas contribuições acumuladas mais os juros nocionais (calculados de acordo com parâmetros estabelecidos pelo governo), dividido pela expectativa de sobrevida aos 61 anos. Se ele decide se aposentar um ano mais tarde, suas contribuições durante o ano adicional de trabalho são também acumuladas à taxa de juros nocional e o resultado final é dividido pela expectativa de sobrevida média aos 62 anos de idade e assim sucessivamente.

É fácil perceber que esse sistema de contas nocionais aproxima-se da sistemática que rege a aplicação do fator previdenciário no Brasil, com diferenças, dentre as quais a de que, ao contrário do caso brasileiro, no europeu se impõe uma idade mínima para habilitação ao benefício previdenciário.

A experiência desses países ensina que não deveríamos  extinguir o fator previdenciário. Pelo contrário, deveríamos, sim, refletir sobre a necessidade de impor idade mínima para a concessão de aposentadoria por tempo de contribuição, bem como sobre o aperfeiçoamento desse índice e ampliação dos benefícios previdenciários cujo cálculo utilize sua metodologia.

É inquestionável que o fim do fator dificultará muito mais o necessário controle do desequilíbrio financeiro e atuarial da previdência social brasileira. De acordo com estimativa da Consultoria de Orçamentos da Câmara dos Deputados, o impacto orçamentário e financeiro de tal extinção teria correspondido a cerca de R$ 1,2 bilhão, em 2009, R$ 2,5 bilhões, em 2010, e R$ 3,9 bilhões em 2011[2].

Por fim, cabe destacar que as aposentadorias por tempo de contribuição são majoritariamente concedidas aos trabalhadores melhor qualificados e com maior rendimento. Prova disso é que tal aposentadoria é o benefício mais alto da previdência social. Seu valor médio equivale a R$ 1.205,83, mais do dobro da média dos valores recebidos pelos trabalhadores que se aposentam por idade (R$ 521,58), que representam o maior contingente de beneficiários do sistema.

E quem paga por isso é toda a população brasileira, direcionando cerca de 34% da renda nacional para pagar tributos, enquanto continua a conviver com uma péssima saúde pública, baixíssima qualidade do ensino e níveis assustadores de violência.

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Para ler mais sobre o tema:

AMARO, Meiriane N. Terceira Reforma da Previdência: até quando esperar? Brasília: Centro de Estudos da Consultoria do Senado, fev/2010 (Texto para Discussão nº 84). Disponível no site: http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao.htm


[1] Na aplicação do fator previdenciário, são somados 5 anos ao tempo de contribuição das
mulheres e dos professores do ensino básico (10 anos se forem mulheres).

[2] CAMBRAIA, Túlio. Os Efeitos da extinção do fator previdenciário e do retorno à média curta. COFF/CD. Estudo Técnico nº 02, abr 2009. http://www.camara.gov.br/internet/orcament/principal/.

A estimativa também leva em consideração a diminuição do período de cálculo da contribuição média do segurado.

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