Redução da pobreza e redistribuição da renda – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Fri, 04 Feb 2022 12:33:43 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 Visão tipo ESG, com crescimento econômico https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3574&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=visao-tipo-esg-com-crescimento-economico Fri, 04 Feb 2022 12:33:43 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3574 Visão tipo ESG, com crescimento econômico

 

Estudo se dirige a quem promove mudanças nos negócios, no governo e na sociedade

 

Por Roberto Macedo

 

Depois de procurar em várias fontes, cheguei a essa visão a partir de um estudo da McKinsey, grande e famosa empresa de consultoria internacional com escritórios em mais de 130 cidades e mais de 65 países, em versão divulgada em outubro do ano passado. O acesso a esse estudo será indicado no final deste texto. Tem quatro autores, inclusive Tracy Francis, do staff da empresa no Brasil, e pareceu-me repleto de ideias interessantes, originais e estimuladoras de ações.

Em tradução livre, o título do estudo é Nossas vidas futuras e sobrevivência: ambientalmente sustentáveis, socialmente inclusivas e com crescimento econômico. Lembra a sigla ESG, que ganhou grande espaço no noticiário dos últimos dois anos, a qual prega uma agenda de empresas e investidores voltada para o meio ambiente (environment), a inclusão social e a governança, só que colocando o crescimento econômico em lugar dessa última. Poderia ser chamada de ESC.

O texto a que me refiro é longo, tem oito páginas e resume outro de mesmo número de páginas, mas com fonte menor. Aqui vou resumi-lo ainda mais, transcrevendo textos mediante tradução própria. Num artigo futuro pretendo voltar ao assunto para tratar do caso brasileiro, avançando além do que representam essas três letras.

O estudo é dirigido a quem promove mudanças nos negócios, no governo e na sociedade, de forma a tratar os problemas nele abordados, e em busca de soluções. Argumenta que sem crescimento econômico “(…) como poderíamos alcançar prosperidade e bem-estar ou pagar pelas transições necessárias para tornar a economia mais ambientalmente sustentável e socialmente inclusiva? Sem sustentabilidade, como poderíamos estruturar o crescimento para a geração atual e outras que virão? Sem inclusão – uma oportunidade para o trabalho produtivo e uma vida satisfatória para todos os cidadãos –, como poderíamos assegurar a demanda necessária para impulsionar o crescimento?’’.

Enfatizando o crescimento, em face de sua importância para a sustentabilidade e para a inclusão, aponta que ele vem caindo nas economias desenvolvidas do G-7 desde a crise financeira de 2008. Nas economias emergentes, com exceção de países como China e Índia, o crescimento tem sido menor do que no início dos anos 2000. Retratando a pobreza, é dito que mais de 600 milhões de pessoas ainda viviam em pobreza extrema em 2017, e que mais 100 milhões se juntaram a esse grupo, como resultado da pandemia de Covid-19. De sua parte, um futuro sustentável exigirá enormes investimentos, para zerar emissões líquidas de carbono, prevendo investimentos anuais perto de US$ 5 trilhões até o ano 2030 e US$ 4,5 trilhões até 2050. É muito dinheiro. E pondera que, “para os líderes atuais, as questões são muitas e profundas – e solucionáveis”.

Explica que o ciclo virtuoso começa com o crescimento, e que este inclui, entre outros aspectos, a ambição de prosperidade crescente e bem-estar, inclusive crescimento do lucro para empresas, do PIB das nações e medidas que tragam vida satisfatória para os cidadãos. A inclusão social significa igualdade de oportunidades e amplo avanço de resultados para todos – especialmente a suficiência de padrões de vida – e o estreitamento de desigualdades entre gêneros, idades, etnias, status familiares e lugares de residência. Em sustentabilidade, busca-se maior resiliência ambiental, que começa reduzindo o risco do clima, e inclui também a preservação muito mais ampla do capital natural, assim como do equilíbrio entre gerações.

O estudo também aponta que medidas adotadas segundo sua agenda podem trazer efeitos contrários para parte da sociedade. Por exemplo, os grandes investimentos para realizar a transição das fontes energéticas, embora gerando muitos empregos na chamada economia verde, poderão afetar trabalhadores de baixa renda, que precisarão de treinamento para se adaptarem a novos empregos.

Ao concluir, o estudo aponta seis desafios em escala global que as nações precisam encarar para enfrentar as três questões centrais envolvidas na sigla ESC mencionada acima: 1) como deslanchar o crescimento via maior produtividade; 2) como reduzir os custos de transição da descarbonização; 3) como financiar e suavizar o custo da transição energética, país por país, setor por setor, de uma forma que não prejudique o crescimento da economia; 4) como retreinar e empregar os milhões de trabalhadores estagnados em ocupações que se reduzem em razão do progresso tecnológico; 5) como fortalecer o contrato social com o atendimento de necessidades básicas dos cidadãos medianos; e 6) como apoiar os segmentos mais vulneráveis da população, como, por exemplo, a sua quinta parte mais pobre?

Para acessar o texto inicialmente citado, sugiro recorrer ao Google consultando “economic growth for the good of all: sustainable and inclusive McKinsey”, e na primeira página de resultados buscar o texto divulgado pela empresa em 26/10/21.

 

 

Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

 

 Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 3 de fevereiro de 2020.

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Da Prefeitura de São Paulo, uma notícia boa e outra má https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3508&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=da-prefeitura-de-sao-paulo-uma-noticia-boa-e-outra-ma Fri, 08 Oct 2021 16:01:54 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3508 Da Prefeitura de São Paulo, uma notícia boa e outra má

O R$ 1,1 bilhão de aumentos salariais deveria ir para a população mais carente

 

Por Roberto Macedo

 

A má veio neste jornal no último dia 29. O título e o subtítulo da matéria já dizem bastante sobre o conteúdo: Prefeito de SP quer dobrar salários de indicados políticos. Reforma enviada à Câmara também prevê aumento para cargos de chefia, como subprefeitos: impacto será de R$1,1 bilhão em 2022. A proposta também alcança servidores de níveis básico e médio, entre outras extensões.

Para justificá-la, os argumentos apresentados estão longe de convincentes. Um alegado benefício diz que ela eliminará mais de 38 mil cargos hoje vagos. Ou seja, nada custam, não havendo, assim, uma redução de custo na proposta. O benefício estaria em que a Prefeitura, se quiser admitir mais servidores, teria de comprovar a fonte de recursos e ter autorização da Câmara Municipal.

Em cargos comissionados a Prefeitura tem hoje cerca de 5 mil funcionários, sendo a metade deles servidores efetivos que recebem adicionais em função do cargo ocupado. Concluí que pelo menos 2.500 são indicações políticas. Para os comissionados o aumento seria de 96%. No nível básico, a alta prevista é de 23% e no nível médio, de 30%. Ou seja, quem ganha mais receberá aumento maior. A razão, segundo um secretário municipal, seria corrigir “… defasagens e equilibrar valores pagos a comissionados”. Nesses termos, o argumento não convence. Precisaria ser detalhado e comprovado com mais e esclarecedoras informações.

O mesmo vale para aumentos propostos para o vale-alimentação e as bonificações, bem como para a gratificação atribuída aos profissionais de saúde e de educação que atuam nos 35 distritos da cidade com os menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDHs).

Parece que foi o então prefeito Bruno Covas que inspirou os aumentos agora propostos. No final do ano passado ele sancionou lei que aumentou o seu próprio salário de R$ 24,1 mil para R$ 35,4 mil, ou 47% a mais. O salário do governador João Doria é de R$ 23 mil. Este é baixo e o do prefeito, muito alto.

Falando à reportagem sobre o assunto, o prefeito Ricardo Nunes disse que parte dos salários está muito defasada e se os funcionários não forem valorizados há o risco de “… perdê-los para a iniciativa privada”.

Essa perda para outros empregadores é uma questão importante que os gestores de recursos humanos avaliam ao examinar a estrutura salarial de sua organização. Mas não se pode ficar só na conversa. O que foi dito precisaria ser sustentado por pesquisas sobre os salários na Prefeitura e no mercado de trabalho, realizada por instituição especializada e de prestígio.

A proposta deveria ser examinada com rigor pela Câmara Municipal, numa discussão transparente para a sociedade em geral. Temo, entretanto, que essas ponderações venham a ser desprezadas por motivos de cunho político, pois muitos vereadores indicam ocupantes de cargos comissionados.

Destaco duas outras restrições adicionais. O custo é alto, R$ $1,1 bilhão em 2022, e presumo que seja assim anualmente daí em diante. E o momento é inoportuno.

Há perto de 14 milhões de desempregados no País, muitos até desistiram de procurar emprego e não são contados como desempregados. A população carente aumentou muito, e com dificuldades que levam mesmo à falta de alimentos, recorrendo até a ossos e outros resíduos de carne. Na situação atual, esse dinheiro deveria ser destinado aos cidadãos mais necessitados e suas famílias.

A outra notícia, no dia 1.º deste mês, também no Estadão, começa boa pelo título: SP vai priorizar áreas mais pobres em divisão de verba. O programa, de natureza plurianual, prevê uma aplicação de R$ 5 bilhões no período 2022-2025, o que implicaria uma média de R$ 1,25 bilhão por ano. A escolha das áreas teve por critério condições de vulnerabilidade social, infraestrutura urbana e demografia, com pesos de 60%, 30% e 10%, respectivamente. Como resultado, as regiões de Capela do Socorro, M’Boi Mirim e Campo Limpo, todas elas carentes, terão 20% dos recursos. Na outra ponta, Santo Amaro, Vila Mariana e Pinheiros ficarão com apenas 2,45% do total. Mas não é esclarecido se são gastos adicionais ou só redistribuição dos hoje realizados.

Um aspecto muito importante é que essas regras foram definidas em cooperação técnica com a Fundação Tide Setubal e a Rede Nossa São Paulo, o que, a meu ver, minimizou o impacto de influências políticas, fazendo que o programa possa atuar para reduzir desigualdades sociais. Conheço mais a Fundação Tide Setubal, uma organização não governamental de origem familiar. As periferias urbanas são o foco do seu trabalho.

Ao projeto de aumento de salários faltou essa cooperação técnica, conforme sugerida acima, que lhe desse melhor fundamentação para justificá-lo, mas sempre com a questão econômico-social do momento postergando sua adoção até que essa questão seja aliviada, pois, neste momento, o dinheiro poupado deveria, vale repetir, ter como destino o socorro aos segmentos mais necessitados da população.

 

* Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 7 de outubro de 2021.

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É preciso querer https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3271&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=e-preciso-querer Thu, 02 Jul 2020 15:57:59 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3271 Não será pela redução absoluta da oferta de trabalhadores que a distribuição de renda será menos concentrada

Por Luis Eduardo Assis

Foi tudo culpa da Yersinia pestis. Esta bactéria, alojada em ratos, acabou infestando seres humanos na Europa no século 14, deflagrando a Peste Negra. O resultado foi devastador. A população europeia caiu de 94 milhões, em 1300, para 68 milhões, em 1400.

A dizimação da força de trabalho elevou os salários, obrigando a Coroa inglesa a decretar um edito em 1349 que proibia aos trabalhadores recusar oferta de emprego com pagamento “usual” do período anterior à pandemia. A ideia era combater aumentos de salário.

Quem nos ensina isso é W. Scheidel, no portentoso The Great Leveller, livro em que o historiador vende a tese de que grandes catástrofes tiveram impacto positivo na redução da desigualdade social ao longo da História.

Nossa peste é, felizmente, menos voraz. Não será pela redução absoluta da oferta de trabalhadores que a distribuição de renda será menos concentrada. Mas o impacto sobre a desigualdade será contundente. Menos mal que agora a crise econômica veio acompanhada de queda nos juros.

O padrão brasileiro é elevar os juros quando a chapa esquenta, o que premia os ricos. Ainda assim, o aumento na desigualdade pode ser significativo. Basta pensarmos que as atividades que podem ser exercidas remotamente são ligadas a tarefas administrativas ou intelectuais. Trabalhadores manuais, por definição, são os maiores prejudicados.

Na educação, o efeito perverso não demorará a se manifestar. Crianças de famílias pobres têm enorme desvantagem em seguir as aulas em casa. Mas é possível, se houver vontade, adotar políticas públicas compensatórias. O auxílio emergencial mostrou o caminho.

É evidente que ao custo de quase R$ 600 bilhões por ano sua perenização é inviável. Mas é possível encontrar fórmulas intermediárias. Pagar R$ 300 mensais para cada criança com até quatro anos, por exemplo, custaria algo como R$ 52 bilhões por ano.

Não é pouco dinheiro. Este gasto, no entanto, não elevaria a relação dívida/PIB, uma vez que o PIB sobe na mesma proporção do gasto (na verdade, um pouco mais) e a despesa seria parcialmente compensada pelo aumento da arrecadação, no rastro do aumento do consumo. Claro que não paga a conta. Mas pode-se também corrigir distorções.

Nas contas do economista Marcos Mendes, do Insper, o fim da desoneração da cesta básica (que é ineficaz porque contempla ricos e pobres simultaneamente) pode render R$ 15 bilhões, ao passo que a extinção das deduções por dependentes e gastos com saúde e educação significaria R$ 28 bilhões adicionais.

Sem falar do imposto menor que incide sobre os fundos exclusivos, a doideira mais grandiloquente do nosso manicômio tributário (os bancos não montam fundos com apenas um cotista com menos de R$ 15 milhões de patrimônio). Há numerosas formas, mais elaboradas, sendo discutidas. Sim, é possível. Mas há três obstáculos.

O primeiro é que combater as iniquidades sociais nunca foi prioridade do presidente Bolsonaro. Sua adesão, agora que luta para sobreviver, é improvável. Ele não entende que ou vamos todos juntos ou não iremos a lugar algum. Também a equipe econômica não vê relevância neste tema. Se houver a perspectiva de aumentar a arrecadação, a preferência será por reduzir o déficit, ao invés de fazer transferências para os mais pobres.

Para eles, o Estado é sempre o problema, nunca a solução. O terceiro obstáculo é a ausência de capital político para avançar em mudanças que promovam a distribuição de renda. A articulação do Executivo é pífia. Não há consenso, não há liderança, não há coordenação, não há projeto. Não há compromisso. Nem partido o presidente tem. É possível mudar, mas antes é preciso querer.

ECONOMISTA, FOI DIRETOR DE POLÍTICA MONETÁRIA DO BANCO CENTRAL E PROFESSOR DE ECONOMIA DA PUC-SP E DA FGV-SP. E-MAIL: LUISEDUARDOASSIS@GMAIL.COM 

*Texto originalmente publicado em O Estado de S. Paulo e aqui reproduzido com autorização do autor.

 

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A Presidência e a Previdência: o que pensam os candidatos? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3176&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-presidencia-e-a-previdencia-o-que-pensam-os-candidatos https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3176#comments Thu, 22 Mar 2018 16:13:35 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3176 O debate sobre a Previdência deve se estender às eleições. Mesmo que versão atenuada da PEC 287 seja aprovada, o novo presidente dificilmente escapará de ter de fazer novas mudanças, em relação a militares, rurais e BPC-Loas. O que pensam os principais candidatos sobre o tema?

O debate deste ano é o que não fizemos em 2014. Já 2 meses após o pleito, o governo reeleito apresentou uma reforma da pensão por morte. Na campanha, apenas a oposição tratou do tema, prometendo acabar com o fator previdenciário.

A reforma da Previdência é assunto difícil para eleições. Até agora, porém, nenhum dos principais candidatos negou a sua necessidade. Algumas campanhas até se aventuraram mais no tema, como as de Ciro Gomes e Bolsonaro.

Ciro promete revogar a PEC, afirmando não existir déficit, que existiria somente no futuro. Mais reveladoras são falas anteriores.  Quando ministro apontou a reforma como inevitável: “Precisamos discutir isso fraternalmente. Não há solução indolor”. Falando para alunos em Harvard em 2016, disse: “é verdade que a previdência está desequilibrada no seu financiamento.”

Sugere um regime de capitalização, e explicou como seria sua comunicação: “você prefere deixar para o seu filho uma dívida ou uma poupança?”.  Não detalhou como financiar a transição da repartição atual para a capitalização, que gera perda de arrecadação (contribuições são individualizadas) justamente quando os déficits são crescentes. Apenas fala em estabelecer um corte de idade.

Também não explicou como tratar grupos subsidiados que perdem com a capitalização, como professores e rurais, cujo tratamento da PEC criticou. Só a gestão do modelo capitalizado foi mais explicada em entrevistas: pública, feita por coletivos de trabalhadores.

A capitalização também aparece na campanha de Bolsonaro. Seu assessor Paulo Guedes afirmara que se tivesse que fazer uma única reforma seria a da Previdência, bola de neve capaz de explodir o Brasil. Teria simpatia pelo modelo chileno.

De concreto, o filho Eduardo afirmou que a proposta de Bolsonaro seria a dos professores Abraham e Arthur Weintraub, de capitalização. Chamada de aposentadoria fásica, valeria já a partir de 2020. A proposta é silente sobre os custos de transição. Há perda de receita também porque se pode parar de contribuir aos 50.

Apesar da grande perda de arrecadação, não é uma proposta populista. Ela pressupõe o fim da vinculação do salário mínimo, que nem a PEC fez. A aposentadoria em fases levaria a benefícios de até R$ 241.  O salário mínimo só seria recebido com o dobro de contribuição atual, 30 anos, aos 65.

Por fim, Bolsonaro votou contra as reformas feitas por FH e Lula – comparada a um massacre. Sobre a PEC 287, se disse completamente contra: crime, maldade e falta de humanidade.

Já do Presidente Lula é sabido que é opositor da atual reforma (implosão, desmonte) e que realizou uma relevante reforma do regime dos servidores em 2003. Os sinais são mistos.

De um lado, o ex-ministro da Previdência Gabas tem feito apresentações pelo país – segundo ele a pedido do Presidente. Alega que reforma quer enriquecer a previdência privada e usa dados alternativos para mostrar sua desnecessidade.

De outro, o ex-Ministro Nelson Barbosa defende mudanças, e a ex-Ministra Helena Chagas garante que Lula fará uma reforma, salvo possibilidade muito remota, “ainda que não vá ser a de Temer”.

Se o Presidente Lula propõe referendo revogatório das medidas do governo, em 2016 também afirmou que a Previdência de vez em quando tem que ser reformada.

Ainda entre os principais candidatos, Marina, Dória e Alckmin defendem a atual PEC. Marina teve reservas ao texto original, mas disse que votaria a favor se fosse parlamentar. Aceita a idade mínima e rejeitou o aumento do tempo de contribuição do pobre – que saiu da proposta.

Dória foi um defensor vocal da PEC, até do texto original. Porém, em entrevista fez ressalvas à idade mínima: defendeu 60 anos para que o texto seja aprovado. Propôs retirar a Previdência do teto de gastos.

Como é sabido, Alckmin assumiu no final do ano a presidência de seu partido, que fechou questão a favor da PEC. O déficit da previdência do Estado de São Paulo se aproxima de R$ 20 bilhões, o maior do país. O dado só passou a ser divulgado com mais clareza em 2017: antes se reportava não haver déficit financeiro ou atuarial.

Como governador, teve poucos instrumentos para reduzi-lo, mas não elevou a alíquota de contribuição dos servidores, que permanece em 11%. Dez Estados têm alíquotas maiores.

Benefícios difusos, gerações que não votam: Previdência é um tema difícil para candidatos. Na Espanha, em 93, acusações sobre o assunto em um debate foram decisivas nas eleições.  Como resultado os partidos firmaram pacto se comprometendo com mudanças e evitando a exploração eleitoral da questão.

Recentemente, Hillary Clinton ponderou que diante do populismo, que enfrentou com Trump e Sanders, talvez faça mais sentido campanhas baseadas em discursos inspiradores e grandes ideias. Detalhes técnicos e pragmatismo seriam deixados para o processo legislativo.

É um risco que corremos. Há espaço para mais exploração populista do assunto, uma vez que mesmo os candidatos contrários à PEC reconheceram de 2016 para cá a necessidade de reforma. O pior cenário talvez seja o de repetição de 2014, quando o problema não foi discutido e as propostas de ajuste da chapa vencedora acabaram deslegitimadas.

Publicado originalmente no jornal Valor Econômico de 8 de fevereiro de 2018, sob o título “O que pensam os candidatos sobre a reforma da Previdência”.

 

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O fator e o favor previdenciário https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3161&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-fator-e-o-favor-previdenciario Wed, 07 Feb 2018 17:45:30 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3161 Em 6 de dezembro, o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), José Robalinho Cavalcanti publicou no JOTA o artigo Previdência: prendam os suspeitos de sempre. Contrário à reforma da Previdência discutida atualmente no Congresso, Robalinho reconhece que há um ‘problema’ previdenciário no País, mas ele estaria no Regime Geral (INSS).

O artigo critica as medidas que afetam os servidores públicos, especialmente os que ingressaram antes de 2003, já que reformas anteriores já teriam deixado a trajetória do Regime Próprio da União equilibrada no longo prazo. Assim, para Robalinho, os servidores teriam sido escolhidos como “espantalho” pelo governo, que desejaria criar um “inimigo externo”. O procurador também acusa o objetivo das medidas de irem “muito além da previdência”, uma vez que afetariam servidores de carreiras de estado que investigam forças políticas: teria a reforma da Previdência, portanto, “o objetivo final de manter o sistema político corrompido”.

Apesar de algumas considerações apropriadas – especialmente em relação à ausência dos militares da proposta -, há muito que ressaltar no texto do presidente da ANPR. Se é verdade que a situação futura do Regime Geral é muito mais grave do que a do Regime Próprio da União, também é verdade que os regimes próprios dos servidores dos entes subnacionais – na ausência de reformas – vão transformar vários Estados brasileiros em novos “Rios de Janeiros” nos próximos anos.

Igualmente, se é verdade que o menor desequilíbrio em longo prazo entre todos os regimes é mesmo o do Regime Próprio dos servidores da União, também é verdade que reformas anteriores ainda levarão tempo para surtir efeitos – o que diante do teto de gastos ameaça diversos investimentos e políticas públicas do governo federal. Os efeitos regressivos do ponto de vista da distribuição de renda também continuarão existindo por muito tempo: embora alcance poucas famílias, os regimes próprios seriam sozinhos responsáveis por 7% de toda a desigualdade de renda do país, segundo Pedro Souza e Marcelo Medeiros, os pesquisadores que estão na fronteira desta linha de pesquisa.

Para que o leitor entenda com mais clareza quais são as regras atuais do Regime Próprio (RPPS) dos servidores e como elas mudam na reforma, contemos a história de Antônio e Victor. Consideremos Antônio e Victor “gêmeos” para todos os fins: são trabalhadores que ingressaram no mercado de trabalho com a mesma idade, com uma mesma qualificação e em uma mesma profissão, receberam sempre a mesma remuneração, contribuíram sobre iguais valores e se aposentaram na mesma data: aos 55 anos, com 35 de contribuição.

Adicionalmente, suponha também o leitor que a média salarial ao longo da carreira de Antônio e Victor tenha sido de R$ 3 mil, e o último salário, de R$ 4 mil. Agora, suponha uma única diferença entre Antônio e Victor: Antônio trabalhava na iniciativa privada e está sujeito às regras do Regime Geral, Victor trabalhava no setor público e está sujeito às regras do Regime Próprio.

Antônio estará sujeito ao fator previdenciário, que aplicado a sua média salarial de R$ 3 mil, resultará em uma aposentadoria de cerca de R$ 2 mil1. Victor estará sujeito ao favor previdenciário, chamado de “integralidade”: se aposentará com os R$ 4 mil de último salário.

A integralidade ignora a média salarial de R$ 3 mil e a expectativa de sobrevida contida no fator previdenciário. Note que o termo integralidade pode confundir: ao contrário do que os segurados do INSS estão acostumados, o “integral” aqui se refere ao último salário, não à média salarial: com efeito, a aposentadoria não é a média integral, mas um valor maior do que a média.

No exemplo simples colocado, as regras diferentes entre os regimes levam a uma redução de R$ 1 mil sobre a média salarial de Antônio e um aumento de R$ 1 mil na média salarial de Victor, resultando em uma aposentadoria com o dobro do valor. Ressaltemos: Victor e Antônio sempre tiveram os mesmos salários e contribuíram sobre os mesmos valores.

A integralidade, ou o favor previdenciário como chamamos neste texto, é a principal fonte de iniquidade entre os regimes, e de pressão no gasto público. Contrariamente ao que algumas corporações veicularam nas redes sociais na última semana, o fato de servidores mais bem remunerados contribuírem sobre salários acima do teto do INSS não gera a contrapartida proporcional à integralidade. Se Victor ganhasse R$ 10 mil ou R$ 20 mil, certamente contribuiria com mais do que Antônio, mas o favor continuaria embutido.

Voltando à opinião de Robalinho, é verdade que servidores que ingressaram depois de 2003 não tem direito à integralidade, e os que ingressaram depois de 2013 (na União) possuem regras inclusive mais restritivas do que as do INSS (mesmo teto, idade mínima maior). O desafio é que o contingente de servidores com direito a esta vantagem – que o governo e os jornais chamam de privilégio – ainda é e será muito significativo, especialmente na próxima década. Em 2015, 93% dos servidores que se aposentaram na União tinham integralidade.

Diante do teto de gastos (Emenda Constitucional no 95, de 2016), os altos gastos com aposentadorias e pensões do Regime Próprio comprimem despesas de políticas públicas e investimentos na União, inclusive os voltados à população mais pobre – ainda que a tendência partir da década de 2030 tenda ao equilíbrio. Frisa-se que diante do teto e sem reformas, o próprio reajuste do funcionalismo de servidores ficará pressionado, o que adiciona complexidade à atuação corporativa de entidades como a ANPR: os interesses de servidores pré-2003 definitivamente se conflitam com os dos que ingressaram posteriormente.

Neste sentido, é pertinente olhar os indicadores de deficit atuarial dos diversos regimes.  O resultado atuarial – superavit ou deficit – é considerado o indicador mais relevante para a saúde de um regime previdenciário. Ele se contrapõe ao resultado financeiro, que é um indicador corrente, do presente; enquanto o resultado atuarial indica o equilíbrio futuro. Simplificadamente, este é a soma dos fluxos futuros de receitas e despesas, trazidas a valor presente. Em um sistema estritamente equilibrado, não há deficit (ou superavit) atuarial.

O deficit atuarial do regime próprio na União é de R$ 1,4 trilhão. Observe que enquanto Robalinho tem razão de que a trajetória no Regime Geral (INSS) é muitíssimo pior (R$ 7,9 trilhões!), o valor não é nada desprezível. Em especial, o Regime Próprio da União possui as mesmas regras dos regimes próprios de Estados e Municípios, com deficits atuariais somados de R$ 5,4 trilhões, em entes que não podem emitir moeda e tem restrições a se endividar.

A alarmante situação previdenciária dos Estados é parcialmente explicada pela integralidade, conjugada com regras especiais de aposentadoria que afetam a maior parte dos funcionários, como professores, policiais e profissionais de saúde. Segundo o Banco Mundial, mesmo o rico Estado de São Paulo terá ao redor de 2030 o mesmo comprometimento da receita com previdência que o Rio, falido, tem hoje. Os Estados – e a prestação de serviços básicos à população – não resistirão a mais uma década com as atuais regras previdenciárias. Não há sentido em se opor a esta reforma porque haverá equilíbrio nos regimes próprios em 2035 ou 2040.

Então o que muda na polêmica versão atual da proposta? A mudança é simples. Servidores que ainda têm direito ao favor previdenciário, a integralidade, continuarão tendo direito a ela – desde que esperem até os 65 anos de idade (homem) e 62 anos (mulher) para se aposentar. Podem se aposentar antes disso? Sim, mas sem a integralidade. Neste caso, este servidor leva “só” 100% da média salarial.

Voltando ao exemplo de Antônio e Victor, Victor continuaria tendo direito à integralidade se esperasse até os 65 anos. Se ainda quisesse se aposentar antes disso, teria direito a 100% da sua média, de R$ 3 mil. O valor é certamente inferior ao último salário (R$ 4 mil), mas ainda muito acima do da aposentadoria de Antônio (R$ 2 mil). Por quê? Se não incide mais o favor previdenciário aumentando a média, tampouco incide algo parecido com o fator previdenciário: pode-se levar 100% dela.

Note que é, portanto, absolutamente falsa a afirmação de Robalinho em seu texto de que não há regra de transição para servidores (“quer-se que a nova idade mínima seja fixada no dia seguinte à eventual promulgação”). Sustenta o presidente da ANPR, antes de concluir com a frase “prendam-se os suspeitos de sempre” que batiza o artigo, que haveria um tratamento diferenciado e desrespeitoso com o servidor que tornaria a proposta inconstitucional. Perceba: só é necessário continuar contribuindo até os 65/62 anos para manter a integralidade. Isso não é necessário para quem quiser sair antes levando 100% da média.

Agora imagine Victor, chateado com a proposta, explicando para Antônio a injustiça de levar como aposentadoria sua média salarial, sem fator previdenciário ou qualquer outro índice que considere sua (longa) expectativa de sobrevida. Ademais, a possibilidade de aposentadoria com 100% da média só existirá para servidores que ingressaram antes de 2003 – uma clara concessão a quem já foi afetado por reformas anteriores e feito seu planejamento familiar de acordo com elas –, enquanto os servidores que ingressaram posteriormente ficam sujeitos ao mesmo cálculo que valerá para os trabalhadores do INSS.

Há outros pontos a discordar no artigo aqui comentado. De menos relevante, soa incorreta a afirmação que “na verdade, é banal e intuitivo que a despesa previdenciária é anticíclica”: ela parece acíclica, pois cresce vigorosamente independentemente da atividade econômica. Talvez alguns ainda a considerem prócíclica, porque os reajustes do salário mínimo (o valor da maior parte dos benefícios) são influenciados pelo crescimento do PIB, mas com uma defasagem de mais de 1 ano. Anticíclica dificilmente ela é – como podem ser benefícios da Seguridade como o Bolsa Família e o seguro-desemprego –, se não se reduziria quando o PIB voltasse a crescer, o que coadunaria com o argumento de Robalinho de que os deficits altos são conjunturais.

De mais relevante, é extremamente controversa a afirmação de que “o governo mente quando diz que a reforma não atinge os mais necessitados” e que irá “reduzir em 40% a aposentadoria dos que chegarem aos requisitos com o tempo mínimo de contribuição (15 anos)”. De fato isso seria extremamente preocupante, porque possui razão o procurador quando diz que os trabalhadores mais pobres têm dificuldade de comprovar tempo de contribuição.

No entanto, a proposta atual, contrariamente à versão original, mantém o mínimo atual de 15 anos de contribuição, não mudando em nada o requisito para estes trabalhadores. Principalmente, a PEC não propõe a desvinculação do piso previdenciário do salário mínimo. Esta vinculação faz com que a maior parte dos beneficiários da Previdência, especialmente os mais pobres, recebam como valor do benefício mais do que a média salarial com que contribuíram. Para eles, é irrelevante a fórmula de cálculo do benefício, pois sempre tende a estar abaixo do salário mínimo atual – o piso previdenciário pela Constituição – que foi muito valorizado nos últimos 20 anos, especialmente nos governos do Partido dos Trabalhadores.

Ilustrativamente, um trabalhador que tenha recebido sempre o salário mínimo desde os anos 90, e contribuído sobre ele, teria média salarial atualizada em 2017 de pouco mais de R$ 600. Qualquer fórmula de cálculo de aposentadoria, seja a da reforma ou seja a vigente, leva a um valor inferior ao salário mínimo atual. Com 15 anos, o menor tempo de contribuição exigido para aposentadoria, ele já tem a média salarial integral como benefício, ou mais que integral, uma vez que o piso previdenciário é de R$ 937. Quase 70% dos benefícios do INSS são de 1 salário mínimo.

Desta forma, a tese do presidente da ANPR em relação aos trabalhadores pobres do INSS não apenas contrasta com o fechamento de seu artigo (“É no regime geral que está o problema”), como não tem amparo à luz da PEC e da realidade previdenciária.

Finalmente, chama atenção o argumento de que objetivo final da reforma da Previdência é manter o sistema político corrupto, uma vez que ela afeta servidores de carreiras que “investigam, fiscalizam, processam, incomodam as forças políticas que estão no poder”.  Não seria o caso então de possibilitar logo a aposentadoria destes servidores, permitindo a corruptos que se livrem de seus investigadores? Grandes personagens da luta recente contra a corrupção no País estão se aposentando pelas regras atuais, como o delegado ex-diretor da Polícia Federal Leandro Daiello (51 anos), o procurador da Lava Jato Carlos Fernando dos Santos Lima (53 anos, que anunciou aposentadoria para o ano que vem), e o próprio ex-Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot (61 anos) que se aposentadoria após deixar o cargo.

Ademais, a estranha lógica que relaciona a reforma da Previdência com o combate à corrupção poderia induzir o leitor menos esclarecido a inferir como corolário –equivocadamente – que ações anticorrupção são usadas contra a reforma: um infeliz argumento que já foi usado por opositores da Lava Jato.

A lembrança do ex-PGR Rodrigo Janot, aliás, é oportuna para encerrarmos este texto. Em agosto, o PGR ajuizou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 476, relativa ao Plano de Seguridade Social dos Congressistas (também afetado pela atual reforma). Esta previdência parlamentar, que contrariamente ao senso comum exige tempo de contribuição de 35 anos, possui na prática idade mínima maior do que a do Regime Próprio dos servidores e não conta com integralidade, pagando valores médios que são pouco mais da metade das aposentadorias do Regime Próprio no Judiciário, no MP e no Legislativo. Ressalta-se que a ação do PGR não se refere ao Instituto de Previdência dos Congressistas (IPC), este sim com regras mais vantajosas, mas extinto em 1997.

Os argumentos trazidos na ADPF são extremamente pertinentes na discussão da reforma que aproxima o favor previdenciário do Regime Próprio ao fator previdenciário do Regime Geral. Peço licença ao leitor para encerrar o texto reproduzindo três trechos, convidando-o a refletir se os argumentos se mantêm se substituirmos os termos “agentes políticos” por “servidores”.

  1. “Além de igualdade de oportunidades, o princípio republicano busca assegurar tratamento igualitário a todos os cidadãos e repudia privilégio ou regalia que beneficie, sem fundamento jurídico suficiente, determinado grupo ou classe em detrimento dos demais. É refratário à instituição de privilégios, pois se baseia no
    reconhecimento da igual dignidade de todos os cidadãos, donde a temporariedade do exercício do poder, precisamente para impedir perpetuação de privilégios.”
  2. “Concessão de benefícios previdenciários com critérios especiais distingue indevidamente determinados agentes políticos dos demais cidadãos e cria espécie de casta, sem que haja motivação racional – muito menos ética – para isso”.
  3. “Os princípios republicano e da igualdade exigem que, ao final do exercício de cargo eletivo, seus ex-ocupantes sejam tratados como os demais cidadãos, sem que haja razão para benefícios decorrentes de situação pretérita, muito menos de forma vitalícia. Mesmo durante a ocupação de cargos é desejável que os mandatários do povo sejam tanto quanto possível tratados com direitos e deveres idênticos aos de seus compatriotas”.

Publicado originalmente no JOTA em 11 de dezembro de 2017.

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1 R$ 2.124, com o fator previdenciário de 0,708.

 

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Contos da Reforma Trabalhista https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3157&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=contos-da-reforma-trabalhista Mon, 05 Feb 2018 14:17:10 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3157 Miranda queria comemorar a causa que ganhou: ele aproveitou a sexta-feira e chamou os colegas do escritório para um bar badalado. A noite não foi tão divertida: reclamou com o dono do estabelecimento, Emanuel, que o atendimento do grupo foi ruim e não conseguiam fazer seus pedidos porque faltavam garçons.

João acaba de sair do ensino médio em uma escola pública, sem boas perspectivas. Quer ingressar em uma faculdade, mas não tem dinheiro para pagar uma particular ou o cursinho para passar no Enem. Sem experiência, não consegue um emprego. Na verdade, gostaria de pelo menos um bico, que o ajudasse a pagar as despesas e que também permitisse que tivesse tempo para os estudos.

Emanuel gostaria de contratar mais garçons para o fim de semana, para atender clientes como o advogado Miranda. Porém, a lei o impede: se contratar, tem que ser pra semana toda, dinheiro que ele não tem. Pensou então em contratar garçons informalmente apenas para as sextas e sábados. Desistiu porque da última vez que tentou recebeu uma condenação da Justiça que pesou em suas despesas.

Consumidores tais quais Miranda continuarão mal atendidos, Emanuel continuará sem funcionários para parte da semana e João continuará sem trabalho. Como João, um a cada quatro jovens procurando não têm empregos. A taxa de desemprego entre eles é mais do que o dobro da média nacional.

*

Renato está feliz: concluiu um ano no emprego com carteira assinada em uma pequena empresa e tem recebido elogios de clientes e patrões. O trabalho finalmente deu a segurança que faltava para sustentar sua filha pequena sem contar só com o Bolsa Família, e as perspectivas no emprego são boas.

Sua chefe Dora reconhece seu esforço e as metas que bate na firma, e pensou em promove-lo para a função de Mauricio – um empregado mais antigo que está desmotivado no posto. Entretanto, como Mauricio tem 10 anos na função não pode mais perde-la. Não existe lei com esta obrigação, mas a determinação de um tribunal superior. A pequena empresa não consegue pagar duas pessoas para o trabalho de uma, e, portanto, Renato não receberá a gratificação.

Dora pensou então em dar um adicional a Renato pela boa avaliação que recebe dos clientes. Porém, da última vez que tentou fazer isso recebeu uma condenação da Justiça. Como Renato ocupa formalmente o mesmo cargo que outros funcionários, Dora poderá ser processada pelos colegas de Renato, ou funcionários da outra filial, ou funcionários que a empresa eventualmente contratar no futuro.

Renato não receberá o aumento. Com o tempo, ficará desmotivado como Mauricio. Dora não vai ouvir mais elogios das famílias que usam o estabelecimento.

*

Cristina finalmente terminou o curso de técnica em enfermagem. Foi em boa hora: se casou há pouco tempo e agora quer ter filhos. Cristina tentará uma vaga em um hospital.  Ela disputará a vaga com um colega do mesmo curso, com o mesmo nível de experiência e qualificação.

Luiz, responsável pelo RH do hospital, nota a aliança no dedo e a juventude de Cristina. Luiz sabe que se Cristina engravidar o hospital deverá pagar o afastamento dela durante a gestação e simultaneamente arcar com outra pessoa em seu lugar. A exigência existe há pouco tempo para gestantes em locais com qualquer nível de insalubridade. Luiz também sabe que Cristina tem restrições legais a fazer horas-extras.

Esses impeditivos não existem para o colega do curso de Cristina, que é homem. Ele levará a vaga.

No Brasil, o desemprego entre mulheres é quase 30% maior que dos homens. O grupo mais afetado pelo desemprego é o de mulheres jovens, como Cristina.

*

José está animado. Depois de anos trabalhando no setor de construção, virou um reconhecido especialista em terraplenagem em Fortaleza. Limpeza de terreno, locação topográfica, escavação, corte, aterro, compactação, fundação. Nada escapa a perícia de José, que consegue fazer o serviço de modo mais eficiente, poupando custos para a construtora e reduzindo o tempo de entrega das obras para os consumidores.

Por isso, José se demitiu para criar um pequeno negócio especializado na tarefa. Quer que sua firma de terraplenagem preste serviços para várias construtoras cearenses. Confiante, José investiu em equipamentos e contratou o primo e o cunhado para ajudá-lo.

José confia no seu taco: acha que contratar seu serviço será mais vantajoso para as empresas do que manter pessoal pouco especializado ou um quadro fixo que só trabalha algumas vezes durante o ano.

Nenhuma construtora contratará o serviço de José. Ele vai falir e seu negócio jamais existirá. José, o primo e o cunhado entrarão para a fila de desempregados no Nordeste, onde a taxa de desemprego é quase o dobro da do Sul e mais de 20% acima da média nacional.

As construtoras temem ser processadas. Dr. César é um dos juízes que proibiu construtoras de terceirizar este serviço. Ele entende que, embora eventual, o serviço faz parte da “atividade-fim” dessas empresas, não de sua “atividade-meio”. Embora não exista lei com esta proibição ou distinção, existe uma determinação de um tribunal superior, que Dr. César acatou.

O gabinete de César tem muitos processos. Para ajudá-lo, ele conta com o auxílio de assessoras como Kátia. Compete a Kátia fazer a pesquisa de jurisprudência, aplica-la ao caso concreto e redigir os votos que César assinará.

Seu trabalho, com o de outros assessores, é supervisionado por César, que assim pode dedicar seu tempo e energia a outras atividades que considera mais importantes para o trabalho eficiente do gabinete.

A decisão escrita por Kátia e assinada por Dr. César diz que as construtoras não podem contratar com terceiros atividades que lhe são inerentes, que há subordinação estrutural entre as partes e ordena então que desembolsem uma determinada quantia para equiparar os terceirizados.

*

Miranda está irritado. Com o escritório de vento em popa, ele está sem internet no celular logo no meio da semana. Ligou para o call-center da empresa de telefonia, que atende Miranda com lentidão e não consegue resolver o seu problema.

O call-center é de responsabilidade de Helena. Engenheira, ela era na verdade uma promissora profissional da área de mercado digital e inovação. Porém, a empresa optou por transferi-la da área onde pesquisava novos aplicativos e big data para que montasse uma estrutura para atender os clientes por telefone. Uma decisão judicial obrigou a empresa a ter seu próprio call-center.

Com a ajuda de Kátia, Dr. César foi o responsável pela decisão. Nenhuma lei obriga empresas telefônicas a terem seu próprio call-center, mas César entende que a atividade-fim de uma telefônica inclui falar ao telefone, ao contrário de outras firmas, que podem terceirizar a tarefa.

Sem poder contratar empresas especializadas para fazer o serviço, coube a Helena gerenciar o novo setor sem profissionais com know-how para auxiliá-la. Os novos aplicativos disponibilizados aos consumidores pela equipe especializada do antigo setor de Helena vão ter que esperar, e o atendimento da companhia por telefone demorará para ter a mesma eficiência.

Miranda não vai ser atendido hoje – como outros milhares de consumidores que perderão tempo de trabalho e convívio familiar com a inoperância do novo call-center.

*

A reforma trabalhista entra em vigor em novembro. Se ela já valesse, João poderia ser contratado formalmente por Emanuel, o dono bar; Renato poderia pegar a função de Mauricio ou receber o adicional por produtividade; Cristina talvez fosse contratada pelo hospital em vez de seu colega homem; José poderia abrir sua empresa de terraplenagem; Helena poderia se dedicar a produzir para a sociedade aquilo que ela faz melhor; e Miranda seria um consumidor mais satisfeito.

Nem todos ganham com a reforma. Mauricio terá que competir com trabalhadores mais jovens. Miranda teria menos para comemorar no bar porque ações trabalhistas não poderão ser disparadas a esmo, a Justiça do Trabalho terá menor poder para legislar, e a nova lei impede algumas criações judiciais – como a “equiparação em relação ao paradigma remoto” que impede o aumento de Renato. (Advogados e o Judiciário trabalhista continuarão a ter um papel essencial no combate a ilegalidades, como a de Emanuel – aliás, a multa para empregar trabalhadores informais subiu 7 vezes.)

Os personagens representam uma parcela da população que é difusa e desorganizada, invisível neste debate. Essa massa contrasta com a organização e articulação de grupos como os que representam os trabalhadores já inseridos no mercado de trabalho formal (sindicatos) e os que representam o status quo da estrutura judicial.

Rara exceção neste debate foi a campanha dos trabalhadores da Guararapes contra o Ministério Público do Trabalho – evidentemente apoiada pela empresa e por um movimento político – mas que serviu para mostrar o rosto de uma massa prejudicada pela regulação atual do trabalho no Brasil e que é tipicamente invisível.

Um mercado de trabalho que funcione bem é vital para redução da pobreza e das desigualdades. A reforma trabalhista não é bala de prata para solucionar todos os seus problemas, mas permite a inclusão de excluídos com novas formas de contratação; dá segurança jurídica para a criação de empregos formais; e estimula o crescimento da produtividade (renda). Mesmo no bom momento do mercado de trabalho na primeira metade da década, a produtividade permaneceu estagnada e a informalidade muito alta, enquanto a baixa taxa média de desemprego escondia os indicadores piores para jovens, mulheres, negros e estratos mais pobres da população.

É fato conhecido que a pobreza no Brasil se concentra desproporcionalmente nas crianças e jovens, que moram em famílias com inserção precária no mercado de trabalho e sem pessoas mais velhas (que comumente recebem benefícios da Seguridade Social). Entre os 20% mais pobres da população, o desemprego é 7 vezes maior do que entre os mais ricos, e a informalidade cerca de 4 vezes maior. São estas as famílias que mais tem a ganhar. Estimativas iniciais sugerem entre 1,5 e 2,3 milhões de novas vagas apenas por conta da reforma.

É evidente que a reforma também beneficia os empregadores, afinal o empresariado apoiou a proposta. Não é por benevolência deles que os empregos formais ou a renda aumentarão. Toda contratação faz parte da busca por lucro pelo empresário. Cabe à legislação estabelecer regras do jogo para que, em sua procura pelo lucro, os patrões também maximizem os níveis de emprego e salários – e não que os prejudiquem. Afinal, a escolha da sociedade brasileira em sua Constituição foi por uma economia de mercado, e a regulação do trabalho deve ser ciente disso.

Além dos casos dos personagens do artigo, a reforma ataca muitas outras situações em que a CLT ou o Judiciário estabelecem condições que à primeira vista parecem favoráveis ao trabalhador, mas acabam não o sendo porque ignoram a premissa de um empregador que se comporta racionalmente e objetiva o lucro. O comportamento do empregador não deve ser idealizado.

Por exemplo, decisões bem-intencionadas de juízes para que o tempo no transporte oferecido voluntariamente pelo empregador aos empregados seja contado como horas-extras provocam a reação defensiva do empresário que, para preservar o lucro, desiste de fornecer o transporte. A situação do trabalhador piora: perderá mais tempo e dinheiro na rede de transporte pública, normalmente pior.

Autorização médica

Para o Prêmio Nobel indiano Amartya Sen, autor de Desenvolvimento como Liberdade, a pobreza é a privação de oportunidade. A reforma precisa ser melhor compreendida para vencer os esforços contrarreformistas de algumas entidades sindicais, da advocacia trabalhista e de parte do Judiciário/MP. No mesmo sentido do caso Guararapes, as pequenas fábulas aqui contadas precisam chamar atenção para um imperativo: a necessidade de defender os mais pobres de seus defensores.

Publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 20 de outubro de 2017.

 

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Por que os advogados estão entre os mais afetados pela reforma da Previdência? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3022&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-os-advogados-estao-entre-os-mais-afetados-pela-reforma-da-previdencia Wed, 16 Aug 2017 15:51:42 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3022 A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) divulgou uma contundente carta contrária à reforma da Previdência, que seria “fundamentada em premissas equivocadas” e conteria “inúmeros abusos contra diretos sociais”. A esta carta, seguiram diversas outras manifestações da Ordem. É pertinente fazer uma provocação. Embora muitas categorias se sintam prejudicadas pelas novas regras de aposentadoria, como policiais e professores, há uma categoria do qual pouco se fala e que é vigorosamente afetada pela reforma: os advogados.

A ambiciosa proposta do governo de reforma da Previdência tem o potencial para reduzir sobremaneira a judicialização no INSS, o maior litigante do Brasil. No início desta década, havia tantos processos do INSS na Justiça quanto paraguaios no Paraguai: cerca de 6 milhões. Conhecendo as particularidades do sistema judicial brasileiro, não é possível descartar que, em número de causas, o INSS seja até mesmo um dos maiores litigantes do mundo, se não o maior.

Essa grande quantidade de ações movimenta milhares de advogados. Das dezenas de bilhões de reais que anualmente o INSS despende por decisões judiciais, pelo menos alguns milhões revertem em honorários para o conjunto desses advogados. Várias dessas causas estão ameaçadas com a reforma da Previdência. É evidente que a entidade de classe que representa esses advogados deve se pronunciar veemente contra mudanças que os prejudiquem.

Uma busca rápida na Internet dá a dimensão do mercado: uma empresa vende mais de 1.200 modelos de petições para advogados previdenciários. Em um jornal, um especialista propagandeia a área como cada vez mais promissora por conta do envelhecimento populacional. Em um site especializado, proclama-se, com algum exagero, que a advocacia previdenciária é a área mais lucrativa de 2016 e que “o leque de atividades é tão grande quanto lucrativo”. Entendamos então como a reforma da Previdência pode mudar esta realidade.

Aposentadoria rural

De cada 100 aposentadorias rurais, 30 são concedidas judicialmente. De maneira geral, esse benefício não exige contribuição. O advogado atua principalmente para comprovar que um segurado trabalhou por pelo menos 15 anos no campo. A reforma altera este desenho para que esta comprovação seja feita periodicamente mediante o pagamento de uma contribuição, e não no momento de pedir o benefício com a ajuda de um advogado. A demanda por advogados também tende a se reduzir uma vez que as exigências de idade e tempo de contribuição convergiriam para as da aposentadoria urbana, deixando o benefício menos atraente para trabalhadores urbanos.

Aposentadoria especial

De cada 100 aposentadorias especiais, 70 são concedidas judicialmente. Esta é uma modalidade similar à aposentadoria por tempo de contribuição, sem idade mínima, que exige apenas 25, 20 ou 15 anos de contribuição, para quem esteve exposto a agentes nocivos no trabalho. Além da possibilidade de se aposentar antecipadamente, o benefício é vantajoso por ser integral, sem a aplicação do fator previdenciário.

O advogado atua principalmente para comprovar o tempo de exposição a esses agentes. A reforma afetará duplamente a judicialização deste benefício: restringe as formas de comprovação e reduz significativamente a demanda por ele ao torná-lo menos vantajoso. Em relação ao primeiro ponto, a reforma veda a comprovação apenas pelo pertencimento a uma categoria profissional. Em relação ao segundo ponto, cria uma idade mínima de 55 anos, altera o tempo mínimo de contribuição para 20 anos e o valor do benefício, que será proporcional ao tempo de contribuição. Novamente, é evidente que assim menos pessoas recorrerão a advogados, e as que recorrerem terão menor chance de sucesso.

Aposentadoria por invalidez

De cada 100 aposentadorias rurais por invalidez, 70  também são concedidas judicialmente. Em geral, o advogado questiona perícias do INSS que negam o benefício ou busca expandir a lista de doenças que dão direito ao benefício independentemente de contribuição, bem como tenta contornar a lentidão da fila das perícias. Medida Provisória anterior à reforma já obrigava os juízes a estimarem o prazo para cessação do auxílio-doença, eliminando uma das vantagens do pleito judicial deste benefício (o recebimento por tempo indefinido).

A aposentadoria por invalidez também não prevê a aplicação do fator previdenciário (benefício integral), e inclusive permite um adicional de 25% para o beneficiário que necessitar de cuidador, ainda que o valor ultrapasse o teto de benefícios – o que só existe nesta modalidade de aposentadoria. A reforma também altera o valor deste benefício, que passaria a ser proporcional ao tempo de contribuição. A demanda por advogados tende a diminuir se esta modalidade de aposentadoria pagar um valor menor do que o segurado receberia se trabalhasse mais alguns anos, se aposentando pela modalidade comum.

A princípio, a afirmação anterior pode parecer por demais fria: afinal, as pessoas procuram este benefício porque estão incapacitadas para o trabalho, e não porque o montante a ser recebido é maior. Entretanto, as situações destes segurados são muito heterogêneas, e os incentivos da legislação desempenham sim um papel importante na demanda pela aposentadoria por invalidez. Ilustrativamente, após a 2ª reforma da Previdência, quando a aposentadoria por invalidez do servidor público deixou de ser integral e passou a ser proporcional ao tempo de contribuição, a sua participação no total de aposentadorias concedidas caiu de 30% em 2004 para apenas 4% em 2016. Em que pese as diferenças na realidade do servidor e do trabalhador do INSS, é provável que a demanda administrativa e judicial pelo benefício se reduza com a reforma.

Benefício de Prestação Continuada

De cada 100 Benefícios de Prestação Continuada (BPC) concedidos, 25 são concedidos judicialmente. Formalmente assistencial, mas materialmente previdenciário, este é um benefício pago à pessoa com deficiência e ao idoso em situação de comprovada pobreza. Cabe ao advogado batalhar pelo benefício para a família que não cumpra os requisitos legais de pobreza, pleiteando, por exemplo, que outros benefícios assistenciais e previdenciários sejam excluídos do cálculo da renda familiar ou que se desconsidere a parcela desta renda gasta com medicamentos. Desconhecem-se ações judiciais semelhantes para o Bolsa Família, apesar da linha de corte mais rígida, provavelmente porque o benefício é muitíssimo menor.

A reforma coloca no texto constitucional a previsão de que a renda familiar seja considerada na totalidade, e que lei disponha sobre outros requisitos do BPC.  Boa parte das ações que hoje são bem sucedidas podem não mais o ser. Adicionalmente, a reforma inicialmente previa que o BPC teria um valor menor do que o das aposentadorias, o que pode também desestimular a procura deste benefício, inclusive pela via judicial.

Desaposentadoria

Por fim, a reforma é a pá de cal na desaposentadoria, talvez a grande causa dos escritórios de advogados previdenciários. A desaposentadoria, que não foi reconhecida pelo Supremo em 2016, é a tese de que aposentados que continuam trabalhando e contribuindo para a Previdência merecem o recálculo dos benefícios como se jamais tivessem se aposentado. Ao afetar principalmente os segurados que podem se aposentar por tempo de contribuição, de maior renda, tratava-se de ações de valor maior.  Ocorre que a desaposentadoria era corolário da própria ausência de idade mínima, que gerava uma grande quantidade de aposentados-contribuintes. Com a idade mínima, este pleito não faz mais sentido.

Se por um lado uma ampla reforma como a proposta pelo governo pode gerar inúmeros questionamentos jurídicos, fica claro que a atividade das bancas previdenciárias não será mais como hoje se a reforma passar. Este é o possível conflito de interesse que a OAB possui, como representante desses advogados, e que não é explicitado quando se posiciona de maneira tão contundente contra a reforma da Previdência.

Em um interessante caso de lobby destes profissionais, uma emenda substitutiva à reforma foi apresentada com o timbre de entidades de advogados previdenciários que contam com o apoio da OAB. A proposta chega ao extremo de proibir o Congresso Nacional de fazer reformas por 20 anos, mesmo por Emenda Constitucional, entre outros dispositivos que causam perplexidade por terem sido avalizados por operadores do Direito.

É importante ressaltar que isso não significa que não exista por parte da Ordem uma genuína apreensão quanto às mudanças propostas, até porque o discurso da OAB é compartilhado por várias outras entidades da sociedade civil. Entretanto, é justamente para a sociedade que precisa ficar claro que, neste estratégico debate nacional, os objetivos da OAB podem não ser os mesmos do conjunto da sociedade. Na reforma da Previdência, a atuação da Ordem é marcadamente diferente da sua reconhecida atuação em outros momentos da vida nacional, como as Diretas Já ou o impeachment do Presidente Collor. Como responsável pela defesa da classe dos advogados, prejudicados pela reforma, o provável conflito de interesse está colocado.

Ademais, é oportuno salientar que uma reforma da Previdência pode ser defendida justamente com os argumentos contrários a ela colocados por membros da advocacia nacional nas últimas semanas. O princípio da proteção à confiança deveria nos inspirar a garantir um sistema previdenciário sustentável, que não venha no futuro a cortar aposentadorias como no Rio, em Portugal ou na Grécia, rasgando promessas feitas a idosos em um momento em que eles mais nada podem fazer. Já o princípio da proibição de retrocesso social deveria nos motivar a olhar com mais carinho para as políticas públicas que serão comprimidas com o crescimento de uma despesa que ocupa 57% do orçamento federal e passará a ocupar 80% em cerca de 10 anos. E o retrocesso social na saúde, no saneamento básico, na educação?

Como garantir o direito ao emprego com os empreendimentos sufocados pelos juros estratosféricos decorrentes do crescimento acelerado da despesa pública? Como garantir o direito à vida em uma sociedade em que o Estado não tem dinheiro para pagar policiais ou médicos na quantidade necessária? É preciso ficar claro que vários dos direitos individuais e sociais previstos pela nossa Constituição não poderão ser efetivados em um Estado sem recursos e em uma economia no chão, e não podem ser judicializados como os direitos previdenciários podem ser. Não existe ação judicial factível para garantir um emprego, a construção de uma estrada ou o patrulhamento de uma rua.

Os advogados previdenciários prestam um serviço essencial no país, garantindo amparo a famílias necessitadas quando esbarram na lentidão da burocracia ou no desconhecimento do legislador. Muitas vezes não são somente uma opção, mas a última opção.  Todavia, o Estatuto da Advocacia é claro em seu art. 44 que a OAB tem a finalidade não só de defender a Constituição, os direitos humanos e a justiça social (inciso I), como também de promover a representação e a defesa dos advogados em toda a República Federativa do Brasil (inciso II). No debate da reforma da Previdência, o melhor para o país é que a entidade que ele tanto admira e confia admita o conflito entre os dois incisos.

Este texto foi originalmente publicado no JOTA em 6 de abril de 2017, sob o título “Reforma da Previdência e conflito de interesse da OAB”.

 

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Como a reforma trabalhista pode reduzir o desemprego e aumentar os salários? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3003&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=como-a-reforma-trabalhista-pode-reduzir-o-desemprego-e-aumentar-os-salarios https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3003#comments Tue, 11 Jul 2017 21:00:33 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3003 No século passado, Getúlio Vargas decretou uma norma sob a premissa de que a situação econômica e a desorganização do trabalho ensejavam a intervenção do Estado em favor dos trabalhadores. O decreto obrigava todos os trabalhadores desempregados a se registrarem perante as autoridades: caso contrário, estariam sujeitos a processo por vadiagem, nos termos das leis penais.

A norma ficou conhecida como lei dos dois terços, e possuía além do espírito autoritário também um espírito xenófobo, ao proibir empresas de terem em seu quadro mais de um terço de trabalhadores estrangeiros.

Este era o Decreto nº 19.482, de 12 de dezembro de 1930. Ele antecede a fase ditatorial do presidente Getúlio Vargas e o decretamento da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). O Decreto ilustra o momento histórico que o país vivia e a origem autoritária das normas trabalhistas da época.

Após diversas modificações ao longo das décadas, a CLT é agora objeto justamente de uma “modernização”, termo pelo qual também é conhecida a reforma trabalhista. O desafio da reforma é o mesmo da CLT: regular um dos mercados de trabalho mais desiguais do mundo.

INCLUSÃO DOS EXCLUÍDOS

A proposta de modernização trabalhista é motivada pela inclusão das pessoas excluídas. A taxa de desemprego ronda os 14%, enquanto outros 6% da força de trabalho integram a chamada taxa de desemprego “oculto pelo desalento”, ou seja, abdicaram de buscar ativamente uma ocupação ainda que desejem uma.

Além destes cerca de 20% de pessoas desempregadas, temos ainda, entre as ocupadas, 40% de informais. São pessoas sem direitos, que não contam com as proteções constitucionais previstas pelas legislações trabalhista e previdenciária.

Neste grupo estão sobrerrepresentados os jovens, as mulheres, os negros e os pobres. A eles é necessário um olhar mais fraternal e solidário. Na prática a CLT é uma legislação para o homem branco.

As políticas de seguridade social só conseguem amparar esses grupos precarizados parcialmente. Emprego e salário são vitais para redução das desigualdades e erradicação da pobreza: a inclusão no mercado de trabalho é a melhor política social.

A reforma trabalhista tem o potencial de incluir estes grupos com novas modalidades de contratação e mais segurança jurídica para os contratos. Mercados precisam de boas escolhas institucionais para florescer, e no mercado de trabalho não é diferente.

A possibilidade de contratação em jornadas menores do que a jornada de 44h permite que o ajuste no mercado de trabalho se dê na quantidade de horas contratadas, e não no número de empregos formais (gerando desemprego, informalidade).

Ao contrário do que ocorre em outros mercados, no mercado de trabalho o ajuste à demanda não se dá pelo preço (salários), devido à irredutibilidade salarial e ao próprio salário mínimo (e seus encargos). Sem modalidades alternativas de contratação o desemprego e a informalidade são maiores.

Ainda que estas jornadas não sejam as ideais para parte dos trabalhadores, entende-se que possam funcionar como “porta de entrada” para o mercado de trabalho para trabalhadores mais vulneráveis.

Pela literatura, a resistência às novas formas de contratação pode ser explicada – além de pelo medo e a aversão à perda naturais em mudanças como essa – pela teoria de emprego insider-outsider.

Ela preconiza que no mercado de trabalho o que é ganho para o excluído (outsiders) pode ser perda para o incluído (insiders), que tentam bloquear mudanças, frequentemente por meio de sindicatos.

O trabalho intermitente é anedótico neste sentido, porque pode ser entendido como um jogo de soma zero. Suponha um restaurante cuja demanda nos fins de semana exige 40 garçons, mas durante a semana apenas 20.

Hipoteticamente, a sua função de produção é tal que na legislação atual ele emprega no ponto médio: 30 pessoas. Há, portanto, um excesso de garçons ao longo da semana, mas uma escassez no fim de semana.

Com o trabalho intermitente o restaurante, de fato, poderia contratar apenas 20 garçons de modo permanente (demanda do dia de semana), o que seria prejuízo para 10 de seus garçons. Por outro lado, poderia contratar outros 20 de modo intermitente (para a demanda do fim de semana), o que é vantajoso para 10 trabalhadores, por exemplo, desempregados.

Evidentemente os números do exemplo são arbitrários. Poderíamos considerar que sem o trabalho intermitente o restaurante emprega só 20 garçons (seriam geradas então 20 novas vagas) ou considerar que ele já emprega 40 garçons (nenhuma vaga seria gerada, e 20 pessoas ficariam em situação pior).

Os efeitos dependem da realidade de cada firma, mas este exemplo do trabalho intermitente ilustra a lógica de inclusão dos excluídos e de resistência dos incluídos nas novas formas de contratação – que incluem o fortalecimento das jornadas parciais e trabalhos temporários.

Por sua vez, as alterações propostas que afetam procedimentos na Justiça do Trabalho também têm o objetivo de ampliar o emprego formal. A bem-vinda e necessária conduta protetora do Judiciário não pode ser confundida com voluntarismo. Ao inibir o bom funcionamento do mercado, a incerteza jurídica afeta especialmente os trabalhadores, inclusive o informal ou desempregado. A viabilização de contratos depende do “império da lei”.

SEGURANÇA PARA NEGOCIAÇÕES

Em especial, fica fortalecida a segurança jurídica das negociações coletivas, nos moldes do que já vinha decidindo o Supremo Tribunal Federal (STF). As negociações, previstas na Constituição, são estimuladas em outros países e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), como instrumento para geração de ganhos mútuos entre as partes.

Atualmente no Brasil o que for firmado nessas negociações, que contam com a participação dos sindicatos, pode ser anulado pelo Judiciário – que se autoconferiu o papel de decidir o que é bom ou não para cada grupo de trabalhadores.

É simbólica deste entendimento uma decisão do Tribunal Superior do Trabalho (TST) que proclamou que o “o empregado merece proteção, inclusive contra a sua própria necessidade ou ganância”. É um nível de tutela que não tem respaldo nas leis e na Constituição. Deveríamos condenar a busca por prosperidade e melhores condições de vida?

Frisa-se que a prevalência do negociado sobre o legislado não afeta dezenas de direitos indisponíveis, ou seja, que não poderão ser objeto de negociação. Entre eles estão o 13º, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), o seguro-desemprego, o número de dias de férias, o aviso prévio e normas de saúde, higiene, e segurança do trabalho.

Um importante argumento que precisa ser esclarecido também é o de que as negociações só serão vantajosas para patrões, porque os trabalhadores não têm condição de negociar. O contraexemplo se dá por aquela que é a talvez variável mais importante do contrato de trabalho: o salário.

A legislação não define o salário de todos os trabalhadores. É permitido negociar, individual ou coletivamente, termos melhores do que mínimo exigido por lei. Fosse verdadeiro o argumento de que todos trabalhadores que buscarem condições mais favoráveis de trabalho serão imediatamente demitidos, todos os brasileiros contratados formalmente receberiam apenas o salário mínimo.

Por sua vez, é intuitivo que quanto mais aquecido for o mercado de trabalho, maior poder de barganha terão os trabalhadores. A tentativa de incluir dezenas de milhões de pessoas no mercado de trabalho formal afeta este poder de negociação, que será tão maior quanto mais alternativas os trabalhadores possuírem.

O fim da contribuição sindical obrigatória, em longo prazo, também pode contribuir nesse sentido. Na visão otimista, a maior liberdade sindical estimula exatamente uma participação mais ativa dos sindicatos. A faculdade de contribuir para um sindicato tenderá a ser exercida quanto mais representativo um sindicato for.

Os bons sindicatos poderão ser fortalecidos. Já a visão pessimista é que o fim da compulsoriedade gere escassez de recursos e facilite a captura do sindicato pelos empregadores, prejudicando as negociações. A atuação do sindicato tem características de “bem público”, por afetar tanto quem contribui quanto quem não contribui, e poderia ser subfinanciada – por esta ótica.

A drástica mudança na forma de financiamento poderia idealmente também ser o prelúdio de uma reforma sindical. O fim da unicidade necessita de emenda à Constituição, enquanto a reforma trabalhista é apenas um projeto de lei. Eventual competição dos sindicatos tenderia fortalecer a representação dos trabalhadores.

PRODUTIVIDADE E RENDA

As novas formas de contratação e o negociado sobre o legislado dominaram este debate, mas outro aspecto essencial da modernização trabalhista tem ficado esquecido na discussão: a busca por ganhos de produtividade. O crescimento da produtividade do trabalho é o que dita a capacidade que os salários têm de crescer de maneira persistente e sustentável.

Grosso modo, não sendo pelo crescimento da produtividade, países tem apenas outra possibilidade para crescer: pelo aumento de quantidade de trabalhadores. A produtividade se refere, portanto, a capacidade de aumentar o Produto Interno Bruto (PIB) sem mudanças no número de trabalhadores1. Nas palavras do Prêmio Nobel Paul Krugman “a produtividade não é tudo, mas em longo prazo é quase tudo.”

Aqui é pertinente fazer uma digressão em relação ao popular argumento que diz que a reforma não gera emprego, porque “o que gera emprego é crescimento econômico”. Por outro prisma, poder-se-ia dizer que o que gera crescimento é emprego e produtividade. Não dá pra considerar o crescimento do PIB como exógeno ao mercado de trabalho.

A ênfase que o aperfeiçoamento das leis trabalhistas dá à produtividade não é redundante: este indicador esteve estagnado no Brasil nos últimos anos, e apresentou até evolução negativa em alguns setores da economia. O desempenho ruim persistiu mesmo no bom momento do mercado de trabalho, de boom das commodities e demografia favorável, que ampliaram o emprego formal.

Nossa performance deixou muito a desejar não só em termos absolutos, mas também relativos. Ficamos muito para trás de economias emergentes, como a China, ou maduras, como os Estados Unidos.

São vários os mecanismos por quais as mudanças na CLT permitirão o crescimento da produtividade e, portanto, da renda. Concede-se maior liberdade para que as empresas remunerem por desempenho, possibilidade hoje travada porque judicialmente estas parcelas temporárias podem ser incorporadas definitivamente ao salário ou estendidas a outros trabalhadores com o mesmo cargo, ainda que em outra cidade ou ano.

Outros instrumentos para ganhos de produtividade incluem a terceirização, que encoraja a especialização, e o estímulo para concessão de transporte pelos empregadores, evitando que as pessoas percam tempo e energia nas caóticas redes de transporte das grandes cidades.

A própria prevalência do negociado sobre o legislado tende a permitir ajustes que propiciem condições de trabalho mais amigáveis à produtividade, assim como as novas formas mais flexíveis de jornada tendem a aumentar a permanência nos postos de trabalho e diminuir a rotatividade, outra grande inimiga da produtividade.

A rotatividade é cronicamente elevada no Brasil, e os trabalhadores permanecem pouco tempo em um mesmo posto de trabalho. Ninguém investe em vínculos que tendem a durar pouco, com graves prejuízos para qualificação profissional.

Por sua vez, o problema do desemprego também tem uma intersecção com o problema da produtividade: a inclusão dos excluídos permite o crescimento da produtividade pela via da experiência (on-the-job learning). Trabalhadores que estariam fora do mercado de trabalho passarão a ter mais experiência, ainda que não em contratos permanentes de 44 horas.

EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL

Uma das principais polêmicas da tramitação da proposta se refere ao efeito no emprego de reformas trabalhistas em experiências internacionais. Se do ponto de vista teórico da economia do trabalho a fundamentação é sólida de que a flexibilização das leis trabalhistas vai ao sentido de mais emprego, o resultado de experiências internacionais é objeto de disputa.

Uma primeira controvérsia se refere aos estudos que aplicam técnicas econométricas para estimar a relação de causalidade entre rigidez da legislação e desemprego (ou crescimento). Nesta metodologia estatística esta relação é isolada, ou seja, são controlados os efeitos de outras variáveis que afetam o emprego. A rigidez é medida por um índice – que é arbitrário por construção.

Os críticos da reforma trabalhista apontam estudo publicado pela OIT em 2015, com dados de 63 países para 20 anos, que não detectou relação entre o índice de rigidez e o nível de emprego, mantidos outros fatores constantes2.

Os autores do estudo são mais cautelosos a respeito das conclusões do que os seus entusiastas brasileiros, afirmando que uma legislação trabalhista rígida pode não afetar o nível de emprego se cuidadosamente desenhada. Ainda, o desenho desta legislação deveria levar em conta as condições específicas do mercado de trabalho em cada país. Reconhecem também que o efeito sobre o emprego pode variar entre grupos da população (ex: jovens).

Com metodologia semelhante, outros estudos chegaram à conclusão divergente daquela do estudo da OIT, isto é, concluíram que a rigidez trabalhista afeta negativamente o nível de emprego. Entre eles podemos destacar o de Andrei Schleifer, o economista mais citado do mundo na academia, que com seus co-autores analisou 85 países3; e o do Prêmio Nobel James Heckman, que teve amostra de 43 países e ênfase na América Latina4.

A ausência de um resultado consensual entre estudos de fontes respeitadas é frustrante, mas pode ser explicada. Fora a dificuldade de controlar estatisticamente o impacto de outras variáveis nesta relação, os próprios indicadores de rigidez trabalhista e de desemprego são pouco apropriados para esse tipo de estudo.

Os índices de rigidez trabalhista são construídos artificialmente: embora muito interessantes para fazer comparações no tempo e entre países, são menos pertinentes para identificar causalidade entre variáveis. São atributos que outros índices também possuem, como o de desenvolvimento humano (IDH).

Por sua vez, análises comparadas de desemprego são sempre questionáveis porque as definições de desemprego variam em cada país, e compatibilizá-las não é trivial.

Outro objeto de disputa no debate sobre a reforma trabalhista se refere a experiências individuais de alguns países. São populares os casos de economias grandes que fizeram reformas em anos recentes, como Espanha, México e Alemanha.

Com frequência, se apontou que estas reformas “precarizaram” as relações de trabalho sem trazer ganhos no desemprego. Porém, desta vez, não é apontada evidência empírica como base.

No caso da Espanha, que fez sua reforma em 2012, foram identificados efeitos positivos, e rápidos, da reforma trabalhista sobre o emprego, por estudos de pesquisadores espanhóis5 e da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)6, entre outros. Para o caso mexicano, ainda há carência de estudos.

Já em relação às reformas trabalhistas na Alemanha feita na década passada, a OCDE apontou em 2016 que elas tornaram o mercado de trabalho mais forte e que, graças a elas, a taxa desemprego continuou a cair e é agora a mais baixa da União Europeia7.

Em outra oportunidade, a OCDE defendeu que o desempenho macroeconômico alemão acima de seus vizinhos, inclusive em relação ao desemprego, teve como “base” as reformas trabalhistas feitas a partir de 20028.

Há uma série de outros trabalhos empíricos reconhecendo os efeitos positivos das reformas trabalhistas alemãs, inclusive atribuindo a elas o bom desempenho durante a crise econômica mundial – comumente chamado de “milagre”9.

Na França, que também se prepara para uma reforma trabalhista sob o presidente Emmanuel Macron, publicação dos Ministérios da Economia e Finanças e do Comércio Exterior explica que a maior parte dos milhões de empregos criados na Alemanha foram em contratos em regime de tempo parcial ou temporários – que são fortalecidos na proposta brasileira10.

Adicionalmente, há estudos apontando que a partir de 2010 a expansão do emprego pelas jornadas parciais foi dando espaço a uma expansão de empregos em tempo integral11.

Note que as novas modalidades de contrato previstas pela modernização brasileira são, junto com o fortalecimento da segurança jurídica, o principal mecanismo pelo qual se espera incluir os excluídos. São modalidades que em outros países são usadas por jovens e mulheres. Na Holanda, 60% das mulheres empregadas trabalham menos de 30 horas semanais (e apenas 18% dos homens), segundo a OCDE.

Essas evidências de outros países não integraram o debate da modernização trabalhista no Brasil nos últimos meses. Experiências individuais de outros países foram usadas em geral para se opor à reforma, com base em evidências apenas anedóticas.

Evidentemente que experiências de país A ou B não devem vincular qualquer opção de política pública no Brasil. Mesmo as conclusões dos estudos sobre reformas trabalhistas, sejam positivas ou negativas, precisam ser vistas com cautela, uma vez que o teor das reformas pode ser em muito diferente da proposta para o Brasil.

Portanto, parece ser mais conveniente a abordagem de Gordon Betcherman, preconizada em estudo do Banco Mundial, que reconhece a existência de um amplo espaço para as legislações trabalhistas de países emergentes no espectro “flexibilidade-rigidez”12. Desde que se evitem os extremos, seja de flexibilidade (baixo desemprego e informalidade, mas alta precarização) seja de rigidez (pobreza, com muitos “direitos” que não saem do papel), haveria muitas opções para o legislador.

Também é promissor o tratamento sugerido pelos professores Nauro Campos e Jeffrey Nugent para os índices de rigidez da legislação trabalhista. A comparação de um país com outros deveria ser cotejada com os dados domésticos de desempenho do mercado de trabalho13.

Na comparação internacional, temos uma das legislações menos flexíveis do mundo, com a 132a posição entre 144 países (LAMRIG, publicado pelo Instituto de Economia do Trabalho (IZA)) ou a 144ª entre 159 países (Instituto Fraser).  Nos dois rankings, Japão, Hong Kong, Nova Zelândia, Estados Unidos e Canadá aparecem na liderança, e Angola e Venezuela nas últimas posições.

A comparação por si não é um problema, mas infelizmente no Brasil temos também altas taxas de desemprego e informalidade, e uma baixa taxa de crescimento da produtividade. O conjunto desses indicadores cronicamente ruins sugere a necessidade de mudanças.

PREVIDÊNCIA E TERCEIRIZAÇÃO

Há no debate uma genuína preocupação de que as inovações da modernização trabalhista prejudiquem a Previdência. Ela se somaria a outras tendências estruturais de economias modernas, como a indústria 4.0, que tendem a enfraquecer a arrecadação previdenciária.

Isso seria especialmente deletério no Brasil, cuja previdência, com uma das tributações sobre a folha mais pesadas do mundo, é especialmente dependente da contribuição patronal tradicional.

Por outro lado, se existem mudanças estruturais ocorrendo no mercado de trabalho, não seria melhor justamente permitir a formalização de outras formas de contratos de trabalho? Desde que não sejam usadas de maneira espúria, a segurança jurídica para o trabalho intermitente e o autônomo exclusivo, por exemplo, poderiam, ao contrário, ampliar a arrecadação.

Cabe observar também que, sendo a reforma bem-sucedida em incluir os excluídos (desempregados e informais), aumenta-se a massa salarial sujeita à tributação. Ainda no âmbito da arrecadação previdenciária, é louvável a majoração da reforma da multa por empregado informal, que sobe em até 7 vezes, para R$ 3.000.

Da mesma forma, há um sincero medo de que a terceirização da atividade-fim também prejudique a arrecadação. Este é um debate que foi mal embasado, a partir de estudo rudimentar que apontava que o terceirizado ganha 25% menos do que o contratado diretamente.

No mercado de trabalho, os salários são determinados pelas forças da demanda por trabalho pelos empregadores e da sua oferta pelos trabalhadores. Eles não deveriam ser afetados pela forma de contratação, se direta ou indiretamente.

Em verdade, a pesquisa, da Central Única dos Trabalhadores (CUT), meramente comparou a remuneração média de funcionários em setores classificados como tipicamente de terceirizados e tipicamente de contratação direta. Não foi comparada a remuneração de trabalhadores terceirizados e trabalhadores contratados diretamente com as mesmas funções.

Seria o mesmo, portanto, que comparar o salário de um juiz e de um faxineiro do fórum, e explicar a diferença pelo fato do faxineiro ser terceirizado. Estudos que realmente fizeram a comparação apropriada identificaram diferenças muitos menores, e até positivas em ocupações de maior qualificação14.

Também não é consistente a lógica do argumento de que a terceirização da atividade-fim permitirá que trabalhadores contratados diretamente sejam demitidos para que outros mais baratos sejam contratados.

Sendo os salários determinados pelas forças de mercado, não haveria razão para que, por exemplo, o porteiro João fosse demitido para que um terceirizado José seja contratado com um salário menor. Se José já estava disponível e aceitava um salário menor, porque o condomínio esperaria a terceirização para o contratar?

Há duas exceções a este raciocínio: a terceirização no serviço público, uma vez que os salários não são determinados pelo mercado, e a terceirização espúria: a mera intermediação de mão de obra com o objetivo de sonegar encargos. Assim, há um importante argumento de que a vedação à terceirização da atividade-fim é principalmente um instrumento para evitar que se fuja da tributação.

Cabe, porém, refletir sobre as perdas decorrentes da insegurança jurídica que a vedação à terceirização gera, diante da impraticalidade de exigir que burocratas distingam o que são atividades meio e fim de milhares de empresas.

A terceirização em atividades-fim é amplamente adotada fora do país. Empresas terceirizam desde o estabelecimento de seus preços (McDonalds, Coca-Cola, General Eletric, Nestlé) até o desenho dos produtos (Samsung, Ford, Intel, Lufthansa). A gigante Ikea até faz o desenho dos móveis que vende, mas não fabrica nenhum deles.

Esses arranjos, que potencialmente geram emprego e incrementam a produtividade, e por isso, a renda, teriam segurança para nascer no Brasil?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É importante salientar que os mecanismos por meio das quais a reforma trabalhista tem potencial para aumentar o emprego e a renda não são explicados por suposta benevolência dos empregadores. Ao contrário, a regulação do mercado de trabalho deve ser consciente de que a motivação das firmas é de expandir seus lucros.

Qualquer contratação pressupõe a busca do empresário pelo lucro. Não é possível esperar que os empregadores vão empregar mais porque são “bonzinhos”. A legislação e a jurisprudência trabalhistas devem, portanto, ser elaboradas com ciência dessa restrição que opera em uma economia de mercado.

A aversão que temos aos patrões não pode ser maior do que o desejo de melhorar a vida dos brasileiros. A reforma gera os mecanismos para que o emprego formal e a renda floresçam dentro da lógica do capital.

A regulação do mercado de trabalho não é trivial e nossos anseios por proteção podem justamente prejudicar quem se busca proteger. Ilustrativamente, estudo econométrico sobre a PEC das Domésticas concluiu que em decorrência da medida o emprego se reduziu e mulheres de baixa qualificação foram movidas para fora da força de trabalho ou para empregos piores15.

Evidentemente que a reforma trabalhista não é capaz de, sozinha, propiciar o desenvolvimento e a redução das desigualdades, e nem terá fortes efeitos imediatos no emprego e na produtividade. É preciso desfazer o nó fiscal, que tanto reprime a economia com redução de investimentos público, elevada carga tributária e juros altos.

São necessárias reformas, também microeconômicas, que melhorem o ambiente de negócios, a qualidade da educação e deem mais eficiência e progressividade às despesas do Estado e ao sistema tributário.

Por outro lado, é natural que um projeto de lei com tantas mudanças sofra resistência, porque é difícil concordar com todos os seus dispositivos. Por exemplo, talvez pudessem ser deixadas para negociações coletivas itens que integrarão o texto da lei (salvo veto) e consistem em demanda de profissionais de áreas específicas, com ganhos menos evidentes para o conjunto de trabalhadores.

É o caso das demandas de médicas e enfermeiras (possibilidade de gestante e lactante trabalharem em local de baixa insalubridade) e bancárias (fim do intervalo de 15 minutos antes das horas-extras).

Outra reflexão é se a velocidade da tramitação da proposta, conjugada com tantos eventos políticos relevantes no país nos últimos meses, não prejudicou a sua assimilação – e até aceitação – pelos operadores do Direito. A almejada segurança jurídica depende também do convencimento deles, e não apenas de dispositivos em uma lei.

De todo modo, é urgente que o debate sobre as normas trabalhistas, que irá continuar depois de apreciação da reforma, perca o seu componente maniqueísta, em que os que são favoráveis à manutenção do status quo atual possuem o monopólio das boas intenções e do interesse no bem-estar dos trabalhadores.

 

Versão deste texto foi originalmente publicada no portal JOTA, em 2 de julho de 2017, sob o título “Reforma trabalhista é aposta para o crescimento do emprego”.

 

Sugestões de leitura:

Ao longo da tramitação da reforma trabalhista, o Senado ouviu os principais especialistas do Brasil em Economia do Trabalho, cujas apresentações seguem abaixo:

André Portela

Sérgio Firpo

José Pastore 1 e 2

José Márcio Camargo

Hélio Zylberstajn

A respeito especificamente do tema produtividade, também é de interesse o estudo dos professores Roberto Ellery, Ricardo Paes de Barros e Diana Grosner, publicado pelo Ipea e coletâneas organizadas recentemente por Regis Bonelli, Fernando Veloso e Armando Castelar Pinheiro, do IBRE, FGV; e Luiz Ricardo Cavalcante e Fernanda DeNegri, do Ipea.

Parecer da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal.

 

_______________

1 Rigorosamente, essa seria na verdade a produtividade média do trabalho, que se distingue da produtividade marginal do trabalho. Para os fins deste texto não diferenciamos os conceitos.

2 FENWICK, C.; MARTINSSON, S.; PIGNATTI, C.; RUSCONI, G. Labour Regulation and Employment Patterns. World Employment and Social Outlook. Genebra: OIT, 2015.

3 SCHLEIFER, A.; DJANKOV, S.; LA PORTA, R.; LOPEZ-DE-SILANDEZ, F. The Regulation of Labor. National Bureau of Economic Research Working Paper nº 9756. Junho de 2003.

4  HECKMAN, J.; PAGÉS-SERRA, C. The Cost of Job Security Regulation: Evidence from Latin American Labor Markets. Economia 2, 109-154. 2000.

5 AGUIRREGABIRIA, V.; ALONSO-BORREGO, C. Labor Contracts and Flexibility: Evidence from Labor Market Reform in Spain. Economic Inquiry, volume 52, issue 2, pp 930-957. Abril de 2014.

6 OCDE. The 2012 Labour Market Reform in Spain: A Preliminary Assessment. OECD Publishing, 2014.

7 OCDE. OECD Economic Surveys: Germany. Abril de 2016.

8 OCDE. Germany Keeping the Edge: Competitiveness for Inclusive Growth. Fevereiro de 2014.

9 BURDA, M. C.; HUNT, J. What Explains the German Labor Market Miracle in the Great Recession? Brookings Papers on Economic Activity. The Brookings Institution, 2011.

10 BOUVARD, F.; RAMBERT, L.; ROMANELLO, L.; STUDER, N. How have the Hartz reforms shaped the German labour market?. Trésor-Economics, nº 110. Ministère de l’Économie, et des Finances et Ministère du Commerce Extérieur  março de 2013.

11 BURDA, M. C. The German Labor Market Miracle, 2003 -2015: An Assessment. SFB 649 Discussion Paper 2016-005. Fevereiro de 2016.

12 BETCHERMAN, G. Labor Market Regulations: What do we know about their Impacts in Developing Countries?. The World Bank Research Observer, vol. 30, no. 1. Fevereiro de 2015.

13 CAMPOS, N. F.; NUGENT, J. B. The Dynamics of the Regulation of Labor in Developing and Developed Countries since 1960. IZA Discussion Paper No. 6881. Setembro de 2015.

14 STEIN, G. ZYLBERSTAJN, G.; ZYLBERSTAJN, H. Diferencial de salários da mão de obra terceirizada no Brasil. Working Paper 4/2015. Center for Applied Microeconomics, São Paulo School of Economics. Agosto de 2015.

15 PIRES, P. O. M. Labor Rights, Formality and Spillovers: Evidence from Brazil. Dissertação apresentada à Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas. Orientador Rodrigo dos Reis Soares. São Paulo, 2016.

 

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O que a mulher que mais sofre com a tripla jornada ganha da Previdência? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3000&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-que-a-mulher-que-mais-sofre-com-a-tripla-jornada-ganha-da-previdencia https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3000#comments Mon, 26 Jun 2017 15:58:03 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3000 Deodorina chegou atrasada ao trabalho. A patroa, Dona Carmen, não deu atenção: estava vidrada na TV, atenta ao jornal. Reclamou da retirada de direitos na Previdência, mas percebeu que a reforma não a afetava tanto. Carmen terá de adiar em 6 meses os seus planos de se aposentar ano que vem, aos 52 anos.

Servidora pública, Carmen receberá para todo o sempre o maior salário da sua vida, ainda que não tenha feito contribuições no montante correspondente, e terá aumentos reais sempre que os funcionários da ativa tiverem1. Ficou com pena de seu filho, também funcionário público, porque ele não vai receber nada disso e ainda se aposentará mais tarde que a mãe: vai trabalhar até morrer, diz ela. Carmen acha um retrocesso, e se queixa da reforma: “imagina como fica o pobre”.

Carmen defende ser um absurdo a aposentadoria para homens e mulheres na mesma idade, porque sabe que os compromissos da casa e com o filho sempre sobraram mais para ela do que para o marido.  Felizmente, Carmen teve condições financeiras para continuar trabalhando, 30 anos seguidos, sem precisar largar o emprego para cuidar da criança. Usou parte do seu salário para pagar uma creche, e depois sempre pôde contar com a ajuda de mulheres como Deodorina, sua empregada.

Deodorina também completará 52 anos, mas não vai se aposentar ano que vem. Tampouco nos seguintes. Embora trabalhe desde a adolescência, não vai conseguir juntar os 15 anos de contribuição que o INSS exige para uma aposentadoria. Durante as últimas décadas, conseguiu por poucos anos ter a carteira assinada. Por um período ficou desempregada, por outro precisou ficar em casa cuidando dos seus cinco filhos.

Deodorina quase sempre buscou emprego. Sem diploma, praticamente só conseguia fazer diárias, como na casa de Dona Carmen. Foi difícil, mas ela conseguiu criar as cinco crianças. Deodorina não sabe o que significa tripla jornada, mas não vai receber nenhuma compensação da Previdência pelas suas décadas como profissional, mãe e dona de casa. Resta a ela pedir um benefício assistencial, na mesma idade de seu marido, aos 65 anos.

Carmen recebeu uma ligação do sindicato da sua carreira para uma manifestação. Ficou animada e irá protestar com seu filho contra a perda de direitos, contra retrocessos sociais e pela dignidade da pessoa humana.            Na passeata falarão de isonomia, paridade e integralidade.

Deodorina não pertence a nenhuma carreira, e, portanto, a nenhum sindicato. No protesto que Carmen vai participar, ninguém irá reclamar que o benefício com que Deodorina contava ficou mais difícil de se obter. Ela tem a mesma idade de Dona Carmen e trabalhou até por mais tempo do que ela, mas por ser “informal” não terá a mesma regra de transição e não estará isenta de mudanças2.

Deodorina teme ter que chegar atrasada de novo no serviço amanhã. Ela levava duas horas pra chegar ao trabalho, mas a obra do BRT que iria melhorar o seu deslocamento está parada, e até piorou o trânsito. O governo estadual, que mal consegue pagar os salários em dia, diz não ter dinheiro para terminar a obra. Carmen diz não haver déficit na Previdência.

Para piorar, Deodorina ainda terá de arranjar tempo para levar o neto na UPA. Desde que o menino se mudou para a sua casa, após o pai ser demitido no ano passado, a criança passou a ter diarreias e febres frequentes. Deodorina acha que tem a ver com o esgoto, mas precisa perguntar ao doutor. Ela não irá encontrar pediatra amanhã, nem um médico pra falar sobre as dores que vem sentindo. Carmen diz que o governo desvincula o dinheiro da Previdência para pagar outras coisas.

Foi o filho de Deodorina, desempregado, que pediu a ela pra levar o garoto no médico, porque tem uma entrevista de emprego amanhã. A empresa vai gostar dele, mas perceberá que os juros no banco estão proibitivos e desistirá de pegar um empréstimo para sua expansão. O banco considera mais conveniente aplicar seu dinheiro em títulos do Tesouro do que no negócio desta empresa. Carmen diz que em vez de fazer reforma o governo deveria é gastar mais, para aquecer o consumo.

Com o filho e o neto em casa, Deodorina está com dificuldade de fazer a feira do mês. Ela não sabe, mas parte do seu salário gasto no supermercado servirá para pagar “contribuições sociais”. Este dinheiro não pode ir para a obra do seu BRT, mas poderia ir para o saneamento da sua rua ou para contratar médicos para a UPA. Carmen não sabe, mas quando protestar contra a reforma dizendo não haver déficit na Previdência porque “a seguridade precisa ser analisada como um todo” estará dizendo que sua empregada deve gastar mais no supermercado para pagar a sua aposentadoria.

Deodorina e Carmen são apenas personagens ilustrativos dos conflitos embutidos na discussão sobre a reforma da Previdência. A reforma tem potencial para reduzir as desigualdades de acesso aos benefícios entre os mais ricos e os mais pobres. Os mais pobres atualmente financiam um sistema previdenciário a que tem acesso limitado, enquanto sofrem com o ônus do baixo investimento público (como em mobilidade ou saneamento), da carga tributária crescente (que incide sobre as compras do mês) e dos juros altos (que desemprega os jovens).  Sem reforma, este ônus tende a aumentar.

Estes personagens ilustram ainda a miopia em relação à discussão sobre as mulheres na reforma da Previdência.  São as mulheres mais pobres quem têm maior taxa de fecundidade, e é evidente que maior número de filhos torna a parte doméstica da jornada ainda mais difícil.  É evidente também que a mulher mais pobre, menos escolarizada, tem também menos acesso a emprego formal, bem como que a mulher com mais filhos ficará mais ausente do mercado de trabalho.

Esta mulher mais pobre tem menos recursos financeiros e é mais dependente dos serviços públicos, enfrentando dificuldade de colocar seus filhos em creches ou em educação integral. Ela também tende a morar mais longe do trabalho e a perder mais tempo com deslocamentos na sua tripla jornada. Se esta mulher não completa 15 anos de contribuições à Previdência, ela não se beneficia do diferencial de 5 anos na idade. Se não completar 30 anos, não se beneficia do diferencial no tempo de contribuição.

Neste sentido, o foco da preocupação com a mulher neste debate não deveria ser o fim das diferenças nas regras entre homens e mulheres, tema mais caro às mulheres mais bem posicionadas na distribuição de renda. Na aposentadoria por tempo de contribuição, apesar do diferencial de 5 anos para mulheres, 67% dos benefícios concedidos são para homens.

O que é de fato relevante para as que mais sofrem com a tripla jornada, merecendo maior discussão, é o aumento do tempo mínimo de contribuição, de 15 para 25 anos, e, especialmente, da idade mínima para o Benefício de Prestação Continuada, de 65 para 68 anos. No Benefício de Prestação Continuada, apesar de não haver diferencial de gênero, 58% dos benefícios concedidos são para mulheres.

De resto, a reforma é essencial para viabilizar a solvência do Estado e permitir uma disponibilidade maior de recursos para políticas voltadas à trabalhadora pobre e sua família, como investimentos em saneamento básico, creches, educação básica e nas transferências de renda voltadas a este grupo, como o Bolsa Família. Ela é essencial também para que a carga tributária e os juros altos não estrangulem o crescimento da economia, facilitando a incorporação no mercado de trabalho das famílias hoje mais excluídas dele, justamente as mais pobres.

Carmen é uma boa pessoa, e acredita que também está defendendo os mais pobres. A pauta de seu sindicato, porém, não levanta os aspectos sensíveis da atual proposta da reforma que realmente podem prejudicar pessoas como Deodorina. Se a agenda das corporações continuar predominando neste debate, será preciso proteger os mais pobres de seus defensores.

Versão deste texto foi originalmente publicada no NEXO Jornal, em 28 de fevereiro de 2017.

______________

1 Conforme o texto original da PEC nº 287, de 2016, mas não conforme o Substitutivo aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados. Todavia, a imprensa tem noticiado que a situação de pessoas como Carmen deve continuar como está no texto (direito à integralidade e à paridade).

2 Vide nota anterior.

 

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Parte 2: O que te contaram errado sobre a reforma da Previdência https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2989&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=parte-2-o-que-te-contaram-errado-sobre-a-reforma-da-previdencia https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2989#comments Mon, 24 Apr 2017 13:31:50 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2989 Em texto anterior, discutimos no blog os mitos sobre a reforma da Previdência, como o de que ela faria as pessoas trabalharem até morrer (porque é um erro neste debate considerar a expectativa de vida ao nascer); o de que uma idade mínima prejudica o trabalhador mais pobre que começa a trabalhar cedo (porque ele já tem idade mínima hoje); o de que serão precisos 49 anos de contribuição para aposentadoria integral (porque isso só seria preciso para uma minoria da população); e o de que a Seguridade Social em seu conjunto é superavitária (porque essa conta esconde dados do funcionalismo público).

Neste texto, analisamos mais quatro mitos difundidos sobre a reforma.

 

Mito: O problema previdenciário seria resolvido se o governo cobrasse as empresas devedoras da Previdência.

Não há o que defender a respeito de sonegação e inadimplência na Previdência. Entretanto, quando se diz que as 500 maiores empresas devedoras da Previdência devem mais de R$ 400 bilhões, é preciso ficar claro que:

i) boa parte dos grandes devedores não são empresas;

ii) entre as que de fato são, muitas estão falidas, e o montante devido, além de irrecuperável, é alto pela própria incidência de juros e correção monetária;

iii) ainda que fosse recuperável, a dívida pagaria as despesas do INSS por apenas 9 meses.

As empresas que não são empresas

A respeito do primeiro ponto, há um evidente esforço de desinformação quando se fala sobre as 500 maiores “empresas” que devem à Previdência. A 13ª maior devedora, com R$ 550 milhões, é a Prefeitura de São Paulo. A lista contém ainda outras capitais como Salvador (44ª, R$ 320 milhões) e Manaus (54ª, R$ 280 milhões), e cidades como Guarulhos (11ª, R$ 560 milhões), Barcarena (62ª, R$ 250 milhões), Cabo Frio (66º, R$ 230 milhões) e Campinas (77ª, R$ 210 milhões).

Órgãos da Administração Direta e Indireta de diversos entes também abundam na lista, como o 8º maior devedor, o Instituto Candango de Solidariedade (DF), (R$ 700 milhões), e a 10ª maior devedora, a Agespisa (PI), com R$ 590 milhões.

Até mesmo estatais federais aparecem entre os grandes devedores, como a Caixa Econômica Federal (14ª maior devedora, R$ 550 milhões), os Correios (32º maior devedor, R$ 380 milhões) e o Banco do Brasil (76º, R$ 200 milhões)

Por que isso é um problema no debate? A narrativa de que a dívida (“dívida ativa”) é formada por grandes empresas passa a errônea impressão que o problema previdenciário poderia ser resolvido com recursos do setor privado. Entretanto, a grande participação de entidades do próprio Estado revela que, caso a cobrança da dívida ativa fosse melhorada, parte do fluxo de dinheiro se daria entre bolsos de uma mesma calça: por exemplo, de um ente do Estado para o outro. Evidentemente isso não significa que não seja justo que todos aqueles com dívida reconhecida paguem o que devem, sejam do setor privado ou não.

As empresas falidas

Já o segundo ponto, a grande quantidade de empresas falidas, é ilustrada pelo trio Varig, Vasp e Transbrasil: as três empresas aéreas estão entre as seis maiores devedoras, todas com passivos de mais de R$ 1 bilhão. No caso da Varig, a maior devedora da Previdência, o valor se aproxima de R$ 4 bilhões.

Há uma evidente dificuldade de recuperar recursos de empresas falidas, seja seu credor um banco ou a Previdência.

Figura 1 – Ativos da maior devedora da Previdência

Adicionalmente, é pertinente observar que o valor alto que algumas dessas empresas registram na lista de grandes devedores se deve à própria incidência de juros e correção monetária sobre os débitos, que vão se somando ao longo dos anos, ainda que não sejam recuperáveis. Algumas das empresas da lista não estão falidas há anos, mas há décadas.

Dinheiro para pagar um benefício por um mês

Por isso, é extremamente falacioso comparar o montante de R$ 430 bilhões das 500 maiores devedoras com o déficit da Previdência. Infelizmente, deste montante, apenas R$ 10 bilhões é classificado como de “alta chance de recuperação”. O valor equivale às despesas com aposentadoria por tempo de contribuição: em um mês. Argumento semelhante se aplica à lógica de que a reforma da Previdência deve ser substituída pelo combate à corrupção, uma causa nobre, mas que é incapaz de resolver os problemas do país: o departamento de propinas da Odebrecht movimentou em quase 10 anos o que o INSS gasta em 1 semana1.

Assim chegamos ao terceiro ponto elencado acima. Ainda que toda a dívida ativa fosse recuperada, o valor seria suficiente para pagar todas despesas do INSS por apenas 9 meses. Este é um importante equívoco dos que apontam a dívida ativa como solução para a Previdência: em economês, a dívida ativa é um “estoque”, um valor acumulado referente ao passado, enquanto a despesa previdenciária é um “fluxo”, que se repete no tempo.

As filantrópicas (pilantrópicas?) e o STF

Um complicador adicional deve ser a recente decisão do Supremo Tribunal Federal estabelecendo que os requisitos de imunidade previdenciária para entidades filantrópicas deveriam ter sido estabelecidos por uma lei complementar, e não por lei ordinária como foi feito. Parte dos devedores da Previdência são justamente entidades que se consideravam isentas de pagar contribuição. Elas se consideram filantrópicas para fins previdenciários (ex: uma faculdade privada), mas não são assim consideradas pelos órgãos competentes do governo. Quando não pagavam a Previdência por “terem” isenção, eram consideradas devedoras. Com a decisão do STF, suas dívidas agora poderão não existir mais.

Outros exageros

Outros exageros nas mensagens denuncistas que circulam nas redes sobre os grandes devedores incluem considerar que as dívidas já estão reconhecidas e prontas para cobrança, quando boa parte ainda é discutida na Justiça (como a da Caixa Econômico Federal); e insinuar que o governo não busca recuperar os débitos para não incomodar os devedores. Este último tipo de insinuação tem sido comum no debate (como quando se diz que as contas da Previdência não são auditadas). Na verdade, a soma anualmente recuperada desta dívida subiu de R$ 1,5 bilhão em 2010 para R$ 4,1 bilhões em 2016, quase três vezes mais.

Se este pote de ouro ao fim do arco íris não existe, por que este discurso persiste ao longo dos anos? Uma possível explicação já foi debatida aqui no blog  e se relaciona com promessas de corporações de funcionários públicos feitas a agentes políticos e à sociedade. Neste caso, representantes de procuradores, a quem compete recuperar este dinheiro, sempre exageraram valores referentes à dívida ativa ao mesmo tempo em que defendiam a importância de receberem honorários indenizatórios, isto é, um vantajoso complemento de remuneração que não se sujeita ao teto constitucional ou à incidência de Imposto de Renda. Em troca do aumento salarial, a sociedade recuperaria bilhões da tal dívida.

 

Mito: A reforma é baseada na comparação do Brasil com países ricos, que possuem outra realidade.

As regras de concessão de benefícios previdenciários do Brasil não destoam apenas das de países ricos, mas também de países emergentes. Por exemplo, além do Brasil, apenas 12 países possuem aposentadoria por tempo de contribuição, isto é, uma aposentadoria sem idade mínima.

A idade mínima proposta pelo governo para o Brasil na década de 2030, de 65 anos, já é a idade mínima hoje no Paraguai, no México, na Argentina e no Chile. Isso evidentemente não significa que o país deva “importá-la”, mas mostra que é equivocado afirmar que as regras propostas só são compatíveis com a de um país rico.

Ainda assim, o processo de envelhecimento populacional do Brasil é tal que a OCDE estima que nas próximas décadas a expectativa de sobrevida de uma idosa brasileira será até ligeiramente superior a de uma americana ou de uma dinamarquesa – países muito mais ricos.

Apesar disso, de fato medidas de “expectativa de sobrevida com saúde” dos brasileiros não acompanham a de nacionais de outros países. É evidente que deixam muito a desejar no Brasil a saúde pública, a mobilidade e a acessibilidade, entre outras políticas públicas voltadas aos idosos.

Uma reflexão que é pertinente, porém, é se não reformar a Previdência é de fato o caminho para melhorar essa situação. Com o crescimento do gasto previdenciário, não estamos condenando, por exemplo, o Sistema Único de Saúde (SUS) a ter menos recursos do que poderia para atender idosos, cujas internações são mais frequentes e duram mais? O caminho para a “expectativa de sobrevida com saúde” não pode ser somente o aumento de gastos com Previdência, às custas da saúde ou do saneamento básico, por exemplo.

Finalmente, é útil apresentar a idade para aposentadoria em outros países, comparando-a com uma versão difundida em mensagens pela Internet.

Figura 2 – Idade mínima falsa e verdadeira para países selecionados

 

Mito: A reforma não resolve o problema e melhor seria mudar para um sistema de contas individuais capitalizadas.

Neste debate, frequentemente defende-se que, em vez de modificar os parâmetros do sistema (idade, tempo de contribuição), melhor seria transformar o regime de repartição em um regime de capitalização. Isto é, mudar de um regime em que os trabalhadores em atividade pagam contribuições que financiam os benefícios dos inativos (aposentadorias, pensões, auxílios) para um sistema em que cada um poupa para seu próprio benefício, depositando a contribuição em contas para serem aplicadas no mercado financeiro.  Tal proposta é considerada inviável pelos significativos custos de transição que implica.

O custo de transição ocorre porque, enquanto as contribuições dos trabalhadores da ativa seriam separadas individualmente e capitalizadas, as despesas com os atuais beneficiários (aposentadorias, pensões, auxílios) deveriam continuar sendo pagas. Caso nenhuma transição fosse empregada, a perda de arrecadação seria da ordem de R$ 350 bilhões em 2016. Com a União em delicada trajetória de endividamento e incapaz deproduzir sequer superavits primários, uma mudança abrupta do regime ameaçaria aprópria solvência do Estado brasileiro.

Adicionalmente, como a Previdência Social é caracterizada pela solidariedade entre grupos, um regime de capitalização necessariamente implicaria perdas e regras mais duras do que as da proposta de reforma da Previdência para grupos que são “subsidiados” no atual sistema. Entre eles, mulheres, servidores públicos, professores, policiais, trabalhadores rurais e aqueles que recebem benefícios vinculados ao salário mínimo. Mantidas as alíquotas de contribuição atuais, todos esses grupos provavelmente receberiam menos em um regime de capitalização do que no regime atual.

A principal proposta para um regime de capitalização presente neste debate é a dos pesquisadores da USP, apoiada recentemente pelo Movimento Brasil Livre (MBL). Eles propõem a criação de um sistema misto, mantendo o regime de repartição para valores menores e instituindo uma camada de capitalização obrigatória para valores maiores. Cabe observar que, apesar da transição proposta pelo modelo, ainda há perda de arrecadação (custo de transição).

O professor Hélio Zylberstajn sugere que a transição seja financiada ou pelos jovens que estariam no novo modelo, pagando uma contribuição dobrada (para o modelo antigo e para o novo) ou pelos atuais beneficiários, que teriam descontos em seus benefícios, como aposentadorias. Fica evidente que não há solução fácil para esta transição, seja ela financiada pela União, pelos novos segurados ou pelos atuais beneficiários.

Por fim, cabe ressaltar que o risco demográfico presente na repartição não está totalmente ausente em um regime de capitalização. Uma boa remuneração das contas pressupõe a transferência de ativos da geração que se aposenta para a geração seguinte, ou seja, esse regime também é afetado pela transição demográfica.

 

Mito: A principal despesa do governo não é a Previdência e sim os juros, e é ela que deveria ser combatida.

Respondendo em 2017 por 57% do total, a Previdência é o principal componente da despesa primária da União.  De maneira simplificada, a despesa primária é a despesa financiada com a arrecadação detributos (impostos, contribuições). Já os juros e a amortização da dívida são despesas financeiras, que têm sido na prática financiadas pela emissão de dívida nova e não de tributos.

Como toda despesa da União precisa ser autorizada pelo Congresso Nacional, as despesas financeiras também constam do orçamento, o que leva algumas fontes a equivocadamente concluir que recursos que poderiam, por exemplo, ser usados na Previdência, estão sendo usados para pagar a dívida pública (ou os juros dela). É esta a visão, por exemplo, do movimento “Auditoria Cidadã da Dívida”. No entanto, isso só poderia ocorrer, parcialmente, nos anos em que o governo consegue fazer superávit primário, o que não ocorre desde 2013 e pode voltar a ocorrer somente em 2021 – mesmo com uma reforma da Previdência. Ainda assim, o objetivo destes superavits é justamente reduzir a dívida.

Uma maneira de entender porque é falacioso o infame gráfico do movimento “Auditoria Cidadã da Dívida” denunciando que quase 50% das despesas é usada para pagar juros da dívida é usar a mesma metodologia para criar um gráfico das receitas da União. Caso misturássemos as receitas primárias e financeiras, como a Auditoria faz com as despesas primárias e financeiras, teríamos que a maior receita da União é justamente a emissão da dívida, com uma percentagem do total maior do que tem a própria despesa com a dívida – exatamente por conta dos déficits primários (emissão de dívida financiando despesas primárias como previdência, saúde, etc).

Existe ainda no debate a visão de que a trajetória ascendente da dívida pública federal deveria ser combatida com a redução das despesas financeiras, e não primárias.A esse respeito, sem adereçar as consequências adversas de uma redução forçada das taxas de juros ou de renegociação (calote parcial) da dívida pública, é preciso ficar claro que a reforma da Previdência afeta duplamente as despesas financeiras com a dívida, tendendo a reduzi-las significativamente nos próximos anos. Não apenas a reforma tende a provocar expressiva melhora no resultado primário (dívida nova), como tende a atenuar as taxas de juros que incidem sobre o estoque de dívida, ao reduzir o risco de insolvência do Estado.

 

Considerações finais

Idealmente, em uma democracia madura, uma reforma significativa como a da Previdência seria discutida em eleições gerais, momento em que a sociedade se mobiliza para discutir o futuro. Como essa não foi a opção de nenhuma das chapas disputando as últimas eleições presidenciais no Brasil, restou ao país ter que discutir a reforma de maneira apressada na beira do precipício. A era das redes sociais, em que a informação corre sem filtro, nem sempre ajuda neste caso, contribuindo para rumores e desinformação. Se a qualidade do debate não melhorar, a reforma da Previdência pode acabar sendo aprovada com pouco convencimento do País, e pronta para ser desfeita nos próximos anos.

1 Proporcionalmente, uma vez que os pagamentos do INSS não são diários. A despesa anual com benefícios do RGPS foi de R$ 515 bilhões. O departamento de operações estruturadas da Odebrecht movimentou em 9 anos R$ 11 bilhões.

 

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Aprenda a criar um superávit na Previdência https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2981&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=aprenda-a-criar-um-superavit-na-previdencia https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2981#comments Thu, 30 Mar 2017 15:54:41 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2981 A Previdência é uma gigantesca máquina de redistribuição de renda – nem sempre para os mais pobres – transferindo recursos entre gerações, regiões, categorias profissionais e gêneros. É, portanto, natural que uma reforma desta máquina de redistribuição gere resistências.

***

É difícil questionar a rápida transição demográfica por qual passa o país. Entretanto, se você precisa se opor de maneira contundente a mudanças na Previdência, tem como opção alegar que não existe necessidade de mudanças porque nela sobra dinheiro, ou dizer que “a Previdência tem superávit”. Este pode ser o seu caso se você representa em uma associação uma carreira de servidores públicos com privilégios ameaçados pelo discurso de reforma, ou se você representa advogados cujos honorários dependem de decisões judiciais contra o INSS.  

Este texto ensina quatro manobras contábeis para criar um superávit na Previdência, subsidiando a retórica de que a Previdência não precisa de reforma.

 

1. Pegue o dinheiro da saúde e incorpore à Previdência, dizendo que “a Seguridade Social precisa ser analisada como um todo”.

Quando se diz que a Previdência não tem déficit porque a Seguridade Social é superavitária, a lógica implícita é que as outras áreas da Seguridade devem financiar a Previdência: são elas a assistência social e, principalmente, a saúde.1 

Evidentemente essa lógica não pode ficar clara.

Por isso, use termos complicados para se referir a este dinheiro, como Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, ou de preferência siglas, como CSLL ou Cofins.

Além de siglas, você pode também usar um argumento pretensamente legalista, dizendo que essa manobra era na verdade o desejo do “constituinte originário”.

Porém, você tem um problema: esta conta também apresenta déficit, de cerca de R$ 250 bilhões. Vá para a manobra (2).

 

2. Pegue o dinheiro da educação e incorpore à Previdência, dizendo que “o governo desvincula receitas da Seguridade”.

Quando se diz que a Desvinculação de Receitas da União (DRU) retira recursos da Previdência, ignora-se que a DRU não incide sobre a receita de contribuições previdenciárias, apenas sobre contribuições sociais.

Mesmo no caso dessas contribuições, é preciso lembrar que a DRU na verdade foi criada como instrumento para evitar que o governo federal dividisse sua arrecadação com Estados e Municípios, o que é uma obrigação no caso de impostos, mas não no caso de contribuições sociais (que por sua vez, só poderiam ser usadas na Seguridade).  Desvinculá-las da Seguridade foi a solução, permitindo o aumento de alíquotas e da base de tributação, mas ampliando a arrecadação somente do governo federal.

Simplificadamente, isso quer dizer que, ainda que a DRU não tenha a importância que teve no passado, encerrá-la retiraria uma flexibilidade que prejudicaria ao longo do ano a execução de políticas e investimentos da União em áreas como educação, ciência & tecnologia, cultura, defesa nacional, energia, meio ambiente, habitação, saneamento, segurança pública, transportes, etc.

Evidentemente essa lógica também não pode ficar clara.

Por isso, omita as consequências de acabar com a DRU. Outra opção, mais desonesta, é dizer que a DRU paga juros da dívida pública, ainda que isso seja não seja verdade.2

Infelizmente, você ainda tem um problema: mesmo que você considere a DRU como uma receita da Seguridade, o déficit teima em existir, e é de cerca de R$ 165 bilhões. Passe para a manobra (3)

 

3. Suma com as aposentadorias e pensões de servidores públicos, dizendo que não fazer isso é inconstitucional.

Agora retire do Orçamento da Seguridade Social o Plano de Seguridade Social do servidor, isto é, as aposentadorias e pensões dos funcionários públicos. Este sistema arrecada bem menos do que gasta, e por isso excluir ele da Seguridade vai afetar pouco a receita, mas vai diminuir bastante a despesa.

Além de provocar um superávit, essa exclusão evita questionamentos sobre vantagens deste sistema que ainda existem em relação ao Regime Geral, como o direito à paridade (o direito de receber do contribuinte um aumento acima da inflação que ele mesmo jamais vai receber) e o direito à integralidade (o direito de receber o maior salário da carreira sem ter contribuído para isso).

Essas vantagens podem ser percebidas como privilégios, afinal trata-se, dentre os grandes grupos de despesa da União, do que mais concentra renda. Portanto, é estratégico que essas despesas não se misturem com as despesas dos mais pobres da Seguridade. Não diga nada sobre como financiar estes benefícios.

Você pode apelar novamente ao “constituinte originário”, alegando que ele não queria que esta despesa fosse considerada da Seguridade porque a Constituição trata de servidores públicos no capítulo “Da Administração Pública” e não no capítulo “Da Seguridade Social”.

A lógica é frágil: a aposentadoria de um auditor fiscal de uma prefeitura que não possua regime próprio é feita pelo INSS e entra na conta da Seguridade, mas a aposentadoria de um auditor fiscal da Receita Federal não entraria. Já o regime de previdência complementar pertence na Constituição ao capítulo “Da Seguridade Social” e, nessa lógica, a aposentadoria de um fundo privado deveria entrar na conta.

Releve: a quem questionar este argumento topográfico, diga que não fazer esta manobra é in-cons-ti-tu-ci-o-nal.

Seu problema foi resolvido: foi criado o superávit. Pode preparar um vídeo para espalhar no Whatsapp.

Entretanto, há um pequeno complicador. As três manobras resultam em superávit apenas até 2015. Mesmo com os procedimentos aqui elencados, o teimoso déficit surge em 2016. Vá para o passo (4).

 

4. Esconda o resultado desta conta para 2016 e para os próximos anos.

Não importa que estejamos em 2017 e que a reforma da Previdência trate do futuro do país, especialmente das próximas décadas, e não do passado. É somente com dados desatualizados que você pode dizer que existe superávit.

***

Ironias à parte, o debate sobre financiamento da Seguridade Social poderia ser pertinente e saudável. O déficit é um indicador sujeito a reflexões, como é o PIB de um país (que diz pouco sobre sua qualidade de vida), o peso de uma pessoa (que diz pouco sobre as condições de suas artérias) e o número de gols em uma partida de futebol (que não revela necessariamente quem jogou melhor).

O déficit financeiro da Previdência diz pouco sobre seu equilíbrio ou desequilíbrio atuarial. Em especial, o déficit financeiro, isoladamente, é alheio ao debate sobre qual deve ser a participação do Estado de um país tão desigual em financiar grupos que são subsidiados na Previdência (como vem sendo discutido neste blog).

Todavia, infelizmente esta bem-vinda discussão deu lugar a uma rudimentar teoria da conspiração de que sucessivos governos enganam a sociedade e desviam recursos da Previdência, negando a necessidade de mudanças em uma questão estratégica para o país. Esta retórica alimenta a desinformação no debate nacional, a indignação das famílias brasileiras e provocou recentemente até mesmo uma antológica decisão judicial censurando os dados previdenciários do país3.

Os motivos das entidades que difundem esta tese permanecem pouco claros. O incômodo silêncio sobre o resultado de sua metodologia para 2016, negativo em R$ 39 bilhões pela estimativa da Instituição Fiscal Independente ou R$ 46 bilhões pela estimativa do governo, sugere que o objetivo desses grupos de interesse pode não ser exatamente o de contribuir para a discussão.  O argumento de que a Previdência não tem déficit, cujo corolário é de que a Previdência tem superávit, é sustentado por premissas questionáveis que não são expostas de maneira transparente à sociedade (ou que não aparecem nos vídeos do Whatsapp). Com um pouco de bom humor, foram essas premissas que buscamos discutir neste texto.

_______________

1 Cuja essência não são despesas de caráter continuado, como benefícios previdenciários e assistenciais.
2 Este discurso é remanescente da época em que a União produzia superávits primários, isto é, usava a arrecadação de tributos para pagar a dívida pública. O último ano em que isso aconteceu foi 2013 [supondo que o superávit primário oficial não foi maquiado), podendo acontecer de novo ao redor de 2020 – especialmente caso uma reforma da Previdência seja aprovada.
3 http://portal.trf1.jus.br/sjdf/comunicacao-social/imprensa/noticias/justica-federal-defere-em-parte-liminar-da-fenajufe-para-que-a-uniao-comprove-dados-sobre-deficit-na-previdencia-social.htm.

 

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Contra a retórica antirreforma https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2969&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=contra-a-retorica-antirreforma https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2969#comments Wed, 08 Mar 2017 18:34:42 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2969 O envio da Reforma Previdenciária (Proposta de Emenda Constitucional 287) ao Congresso traz a público alguns argumentos da retórica antirreforma, à qual estaremos muito expostos a partir de agora. Embora os argumentos possam variar nas especificidades, temos poucas linhas gerais, que descrevo a seguir.

O argumento do inimigo comum. O primeiro argumento antirreforma é que a Reforma Previdenciária é de interesse de um “inimigo comum”. O objetivo é ter a maior base possível de oposição. Para isso, quem utiliza esse argumento busca um inimigo a um só tempo pequeno em número, poderoso e distante. Os banqueiros são sempre um forte candidato a “inimigo comum”: são poucos, poderosos e a maioria de nós nunca pôs o olho em um. Se eles é que estão por trás da reforma, ela é ruim.Outro candidato natural é uma minoria de endinheirados. Até há pouco, certos “círculos progressistas” bradavam contra o “1% mais rico”. Como os “círculos progressistas”descobriram ser parte do 1% mais rico, elegeu-se agora o 0,1% mais rico como “inimigo comum”. O “inimigo comum” é um ser maquiavélico por trás da Reforma; ele é que deveria pagar pelas dificuldades pelas quais passa o país, ao invés de“penalizarmos os trabalhadores mais pobres” com uma reforma que “restringe direitos”.

No caso da Reforma Previdenciária, esquece-se convenientemente que os níveis de despesa com benefícios previdenciários no Brasil (mais de 13% do PIB) são incompatíveis com a situação demográfica do País, limitam a realização de outros imperativos sociais (como aumentar os gastos com o SUS ou com o Bolsa Família) e não são sequer redistributivos.

O argumento da injustiça. O segundo grande argumento contra a Reforma busca encontrar casos específicos nos quais a Reforma seriaexcessivamente dura. A partir dessa “injustiça”, faz-se a generalização: a Reforma como um todo é condenável. O exemplo típico é a afirmação de que o trabalhador pobre começa a trabalhar cedo e será prejudicado com o fim da aposentadoria por tempo de contribuição. Esquece-se, convenientemente, que as idades médias de aposentadoria por tempo de contribuição são de 52 anos (mulheres) e 55 anos (homens) e que só se aposenta nessas idades pessoas que tiveram, no máximo,raros momentos na informalidade ou no desemprego. Essas pessoas certamente não são pobres. Os brasileiros pobres têm dificuldade de acumular tempo de contribuição em empregos formais. Quando conseguem se aposentar, o fazem por idade, aos 65 anos. Ou seja, os pobres já têm idade mínima.

Outro exemplo típico do argumento da “injustiça” é sugerir que as mulheres concentram os afazeres domésticos e, portanto, devem continuar a se aposentar cinco anos antes. Isso faz sentido? Não, obviamente. O modelo previdenciário brasileiro sequer considera o trabalho informal nos critérios de aposentadoria. Milhões de trabalhadoras informais, majoritariamente pobres, não podem bater à porta da Previdência para pedir benefícios em caso de doença, acidente de trabalhoou outro evento que as impeça de trabalhar. Elas são excluídas. Porque a previdência, nesse contexto, deveria concedercinco anos a menos de idade e tempo de contribuição para trabalhadoras incluídas no regime previdenciário? Das duas, uma: ou reformamos por completo a Previdência, adotando um modelo universal que pague um benefício básico (e não mais do que isso) para todos, independentemente de contribuição (o modelo beveridgiano); ou mantemos o regime contributivo atual (bismarckiano) mas, nesse caso, nada mais justo do que unificara idade para homens e mulheres.O que não dá é defender que apenas as mulheres incluídas trabalhem menos cinco anos enquanto pobres, excluídos e excluídas, não tenham sequer direito à cobertura previdenciária.

O argumento do ‘se não for para todos, não pode ser para ninguém’. O terceiro argumento tenta demonstrar que existem pessoas ou grupos que não são atingidos pela reforma, o que invalida toda a proposta. O exemplo mais óbvio desse argumento é a exceção que infelizmente foi feita às Forças Armadas e que tem servido de combustível para toda sorte de pirotecnia antirreforma. Esquece-se, convenientemente, que esta é a mais abrangente proposta de Reforma Previdenciária já feita, a que mais aproxima servidores públicos de trabalhadores da iniciativa privada, que reduz as taxas de reposição dos maiores rendimentos (o que é necessário) e mantém altas as taxas de reposição dos trabalhadores mais pobres (o que é justo).

O argumento da ilegitimidade. O quarto argumento é o de que o Governo é ilegítimo e, portanto, também é a reforma.A Reforma Previdenciária precisaria passar por um amplo debate envolvendo vários setores da sociedade e que tal processo teria que ser liderado por um governo eleito. Se o argumento for levado seriamente, talvez tivéssemos que recuar no tempo e exigir que Itamar Franco não enviasse ao Congresso a Medida Provisória que instituiu o Plano Real, já que não havia liderado sua chapa na eleição presidencial de 1989 e, portanto,não teria legitimidade para pôr fim à hiperinflação. Esquece-se, além disso, que tentativas de fazer um “amplo debate” em torno do tema (como o Fórum Nacional da Previdência Social de 2007) fracassaram miseravelmente e que “amplo acordo” pressupõe agentes dispostos a entrar em acordo – o que, lamentavelmente, não tem sido o caso das Centrais Sindicais. Em suma, nem toda medida liderada por um Presidente que assumiu depois de um processo de impeachment é necessariamente ruim; nem todo “amplo debate social” produz resultados minimamente satisfatórios.

Praticamente todos os argumentos antirreformasão variantes dessa retórica. Frequentemente são vocalizados por grupos para os quais a Reforma Previdenciária representa o fim de privilégios. Os pobres e os injustiçados só parecem ter uma função: servir de elemento retórico que justifique que tudo permaneça como está. Não deixa de ser triste, em um dos países mais desiguais do mundo, defender os mais pobres como estratégia para manter o status quo.

 

Originalmente publicado em edição do Valor Econômico, de 21 de dezembro de 2016.

 

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O que te contaram errado sobre a reforma da Previdência https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2964&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-que-te-contaram-errado-sobre-a-reforma-da-previdencia https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2964#comments Mon, 06 Mar 2017 18:09:10 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2964 A reforma da Previdência atinge quase todas as famílias brasileiras, direta ou indiretamente. Seus benefícios são invisíveis, mas as perdas que ela gera são bem palpáveis, sendo natural que provoque rejeição. Entretanto, existe muita contrainformação na rede e, infelizmente, até em grandes jornais. Apresentamos as principais controvérsias brevemente neste texto.

Mito: O brasileiro vai trabalhar até morrer, já que em Estados pobres a expectativa de vida é somente de 66 anos.

É um grave equívoco usar neste debate a expectativa de vida ao nascer. Este indicador é, grosso modo, a idade média com que as pessoas falecem no Brasil. Ele é muito influenciado, para baixo, pela mortalidade infantil e pela morte de jovens por causas externas, como no trânsito e em homicídios. É por isso que em Estados pobres a expectativa de vida ao nascer é tão baixa.

Para a Previdência, o que importa é a expectativa de vida não no nascimento, mas na idade da aposentadoria. Este indicador também é muitas vezes no debate chamado de “expectativa de sobrevida”.  Aos 65 anos, a expectativa de sobrevida do brasileiro é, hoje, de mais 18 anos, totalizando 83 anos e meio. A boa notícia: esta expectativa vem aumentando e varia pouco pelo país (é de cerca de 84 anos no Sul, 82 e meio no Nordeste). Se de fato os aposentados morressem em média com 66 anos, seria um absurdo a reforma da Previdência.

Mito: Uma idade mínima prejudica o trabalhador mais pobre, porque ele começou a trabalhar cedo e teria que esperar anos para se aposentar.

É muito justa a preocupação com o trabalhador pobre. No entanto, precisa ficar claro que ele já se aposenta com uma idade mínima. O Brasil é imensamente desigual, como é desigual o acesso à aposentadoria. Existe uma aposentadoria mais voltada para a classe média e alta, onde não existe idade mínima, e outras voltadas para o trabalhador pobre, com idade mínima.

A reforma da Previdência cria uma idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição, aquele benefício que o homem recebe com 35 anos de contribuição, e a mulher com 30. Este benefício quase não é pago aos pobres, justamente porque conseguir décadas de emprego com carteira assinada é muito difícil para eles. Por isso, a aposentadoria por tempo de contribuição é a aposentadoria dos mais escolarizados e das regiões mais ricas do Brasil. Homens são seus principais beneficiários.

O trabalhador pobre, penalizado pelo desemprego e pela informalidade, pode até trabalhar 35 anos, mas geralmente sem carteira assinada por todo o período. Ele recorre a outros benefícios em que já existe idade mínima, mas que exigem menor tempo de contribuição (15 anos). É o caso da aposentadoria por idade urbana (65 anos para homens, 60 para mulheres) e rural (60 para homem, 55 para mulheres). Muitos trabalhadores se “aposentam” também pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC), um benefício assistencial, que acaba sendo usado para quem não conseguiu 15 anos de contribuição, e só é pago aos 65 anos (homem ou mulher). Mulheres são as principais beneficiárias.

Por isso, a preocupação com acesso à aposentadoria do trabalhador pobre não é com a idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição, que afeta apenas os mais bem remunerados, seja da iniciativa privada ou do serviço público. A preocupação deve ser com a elevação do tempo mínimo de contribuição, de 15 para 25 anos (com transição), e com a elevação da idade mínima do BPC, de 65 para 70 anos (com uma transição acelerada).

Mito:O trabalhador precisará de 49 anos de contribuição para se aposentar com salário integral.

À primeira vista, a frase acima parece verdadeira, tanto que foi amplamente noticiada pelos jornais.  De fato, com a reforma, o cálculo dos benefícios seria de 51% da média, mais 1% por ano de contribuição, totalizando 49 anos para chegar em 100%. Por que então isso é um mito?

O Brasil é pobre. Apesar de nosso desenho previdenciário ser profundamente desequilibrado, 2/3 dos benefícios são de um salário mínimo.  Ocorre que o salário mínimo passou por uma expressiva valorização real, acima da inflação, desde os anos 90, e especialmente nos governos do PT. Ocorre também que no Brasil, ao contrário de outros países, o salário mínimo também é a “aposentadoria mínima”, independentemente do valor contribuído. A reforma não alterou isso (vinculação ao salário mínimo).

Com esta vinculação, boa parte dos trabalhadores receberá a sua média integral, 100%, apenas com o tempo mínimo de contribuição ou, muitas vezes, muito mais do que os próprios 100%. Como o salário mínimo cresceu acima da inflação, o passado do salário de contribuição deste trabalhador está abaixo do salário mínimo atual. Um trabalhador que tenha recebido apenas o salário mínimo desde 1995,teria em 2017 uma média salarial atualizada pela inflação de R$ 666, bem abaixo da “aposentadoria mínima” de R$ 936 – o atual valor do salário mínimo.

E o restante dos trabalhadores, que ganha acima de 1 salário mínimo? Trabalharão 49 anos para ter o benefício integral? Também não. O que passou despercebido por parte da opinião pública é que a proposta do governo mantém o cálculo da média salarial que existe hoje, que não é exatamente uma média. Neste cálculo, são excluídos os 20% piores salários da vida do trabalhador. Por isso, uma aposentadoria com 100% de sua média salarial pode ser obtida muito antes de 49 anos de contribuição (por exemplo, com 30 anos de contribuição). O tempo exato depende da trajetória dos salários deste trabalhador.

Só realmente teriam que trabalhar 49 anos para conseguir 100% do salário médio aqueles que ganhavam mais que o salário mínimo e receberam sempre mais ou menos o mesmo salário ao longo de toda vida, sem promoções, aumentos ou mudanças para empregos que paguem melhor. Nestes casos, não faz diferença para o cálculo excluir os 20% piores salários (justamente porque eles são parecidos com os 80% restantes).

Assim, caso o Congresso opte por manter a fórmula de cálculo proposta pelo governo, pouquíssimos trabalhadores teriam que trabalhar tanto para conseguir uma aposentadoria integral. Na verdade, ainda que o trabalhador se aposente aos 65 anos com cerca de 90% de seu rendimento médio, a proporção entre o valor da aposentadoria/salário médio (taxa de reposição) será compatível com a de outros países, ricos ou emergentes.​

Mito: A Previdência só tem déficit quando olhada separadamente, porque o conjunto da Seguridade é superavitário.

O dado apresentado inicialmente pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da  Receita Federal do Brasil (Anfip) e difundido por diversas fontes, mostrando que a Seguridade Social é superavitária, só se mantém diante de premissas bastante questionáveis, que não são expostas de maneira transparente em seu discurso.

O orçamento da Seguridade Social, que inclui além da Previdência, Saúde e Assistência Social, é deficitário em cerca de R$ 255 bilhões. Para chegar ao “superávit da Anfip”, é necessário incorporar como receita a Desvinculações de Receitas da União (DRU), um mecanismo criado para que a União não compartilhasse com Estados e Municípios um dinheiro que financia outras despesas do governo federal (mas não a dívida). Entretanto, ainda que consideremos estes recursos como sendo de fato da Seguridade, a conta ainda é deficitária em cerca de R$ 165 bilhões.

Se até com a DRU a conta da Seguridade é deficitária, como a Anfip chega em um superávit? O pulo do gato é, ao trazer para a conta as receitas e despesas da Seguridade Social, excluir o Plano de Seguridade Social do Servidor, ou seja, as aposentadorias e pensões do funcionalismo. Como este regime é extremamente deficitário, retirar suas receitas não afeta muito o lado da arrecadação, mas retirar suas despesas afeta muito o lado da despesa. Passa a haver então, para o ano de 2015, um pequeno superávit, de R$ 10 bilhões.

Ou seja, mesmo com a DRU, a Seguridade é deficitária e só passa a ter superávit se os servidores públicos forem retirados da conta. É essencial compreender que o problema da Previdência é principalmente devido pelo profundo e veloz processo de envelhecimento da população, ou seja, pelo crescimento da despesa, e não por problemas de lançamento contábil.

Por conta deste crescimento da despesa, e da queda conjuntural da arrecadação decorrente dos efeitos da recessão sobre o mercado de trabalho, até a conta da Anfip passa a ser deficitária em 2016. Não por acaso, este dado atualizado não tem sido apresentado no debate.

Em resumo, mesmo adotando todas as heterodoxas interpretações das corporações do funcionalismo, a Seguridade Social é deficitária até incorporando a DRU como receita. Ela só é superavitária quando se exclui as aposentadorias e pensões dos próprios servidores. Mesmo assim, a partir de 2016, até com esse truque a Seguridade é deficitária.

Considerações finais

Infelizmente, em um debate tão importante para o país, com importantes consequências sobre os objetivos nacionais de crescimento econômico e combate às desigualdades, muitas fontes têm mais desinformado do que informado. Seja por interesses que não são compartilhados pelo conjunto da sociedade (como os de corporações do funcionalismo ou das bancas advocatícias interessadas na indústria do litígio), seja por descuido, os mitos têm predominado na opinião pública. É da boa informação que a democracia precisa.

 

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Morte severina e mitos sobre a reforma da Previdência https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2917&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=morte-severina-e-mitos-sobre-a-reforma-da-previdencia https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2917#comments Mon, 28 Nov 2016 14:40:33 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2917 “Morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia”. A morte severina do poema de João Cabral de Melo Neto se reflete na expectativa de vida ao nascer. Este indicador é afetado por mazelas nacionais como a mortalidade infantil e a morte de jovens por causas externas (homicídios, trânsito). Grosso modo, a expectativa de vida ao nascer está relacionada com a idade média com que as pessoas falecem no país.

Este dado vem sendo equivocadamente usado para justificar que uma reforma da Previdência faria as pessoas “trabalharem até morrer”. Seria injusto estabelecer uma idade mínima, por exemplo, de 65 anos, se em alguns Estados a expectativa de vida é de 66, 68 anos.

Na verdade, o indicador relevante nesta discussão não é a expectativa de vida no nascimento, mas a expectativa de sobrevida na idade de aposentadoria. É por conta dela que se diz que estamos vivendo muito mais, o que pressionaria a Previdência. A expectativa de sobrevida em idades mais altas não é afetada pela morte severina.

Nas idades médias em que se dão a aposentadoria por tempo de contribuição no Brasil, 55 anos para homens e 52 anos para mulheres, a expectativa de sobrevida é respectivamente de 24 e 30 anos. Assim, a expectativa de vida é de 79 anos para homens e 82 anos para mulheres, bem acima da expectativa de vida ao nascer (72 para eles, 79 para elas), e dos 66 anos do meme “trabalhar até morrer” que circula nas redes.

Figura 1 – “Trabalhar até morrer”

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De fato, mesmo com ganhos expressivos na redução da mortalidade infantil, a expectativa de vida dos homens ao nascer cresceu nas últimas décadas menos da metade do que cresceu a expectativa de sobrevida dos mais velhos. Junto com a veloz redução da taxa de natalidade no país, é isso que pressiona a Previdência e seu desequilíbrio atuarial (medido em trilhões).

A expectativa de sobrevida em idades mais altas não é perfeitamente correlacionada com a renda de um país. Parte da falência da previdência na Grécia se explica pela alta expectativa de vida dos idosos: uma das maiores da União Europeia, apesar de o país ser o patinho feio do grupo. No mesmo sentido, a OCDE estima que nas próximas décadas a sobrevida das brasileiras será maior do que as das americanas ou dinamarquesas, que moram em países muito mais ricos.

O uso da expectativa de vida ao nascer no debate previdenciário, além de incorreto, é incômodo: usa-se a mortalidade infantil para justificar transferências para grupos de faixas etárias mais avançadas.  Esta não é uma questão trivial, já que a pobreza no Brasil está desproporcionalmente concentrada nas crianças.

A discussão da distribuição de renda se relaciona também a outro mito da reforma da Previdência: o de que uma idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição prejudica os mais pobres, que ingressam cedo no mercado de trabalho. Diversos estudos tem mostrado que os trabalhadores mais pobres não usufruem da aposentadoria por tempo de contribuição. (tema discutido anteriormente no blog)

A exigência de 35/30 anos de tempo de contribuição desta modalidade de aposentadoria não pode ser cumprida por uma ampla parcela da população, que tem uma inserção precária no mercado de trabalho, alternando em sua vida períodos de desemprego, informalidade e carteira assinada. Na verdade, a maioria da população recorre a outro tipo de aposentadoria, a por idade, que requer 15 anos de carteira assinada, mas idade mínima de 65 anos para homens e 60 para mulheres.

Outra parcela da população, com menos de 15 anos de contribuição, só pode recorrer a um benefício assistencial de um salário mínimo, com idade mínima de 65 anos até para mulheres. Assim, a idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição não pode prejudicar os mais pobres se para eles a idade mínima sempre existiu.

Não só a idade mínima para esta modalidade de aposentadoria afeta mais os com maior escolaridade como as regiões mais industrializadas do país. No Norte e no Nordeste, onde se trabalharia “até morrer”, a quantidade de aposentadorias por tempo de contribuição representa apenas 7% e 9% do total de benefícios pagos (metade do que é no Sudeste, 19%).

Para várias regiões e ocupações do país, outros pagamentos são mais relevantes, como a aposentadoria rural. É neste e em outros benefícios associados ao salário mínimo que deveria se concentrar a preocupação acerca dos efeitos da reforma da Previdência na desigualdade de renda.

Outro tema que merece ser visto com ceticismo é a tese de que a Previdência é superavitária, e de que seu déficit seria uma farsa. Há várias questões legítimas no debate sobre o que deve ser receita ou despesa do INSS, mas dizer que nosso problema previdenciário é resolvido com mudanças na contabilidade seria mito, ou para usar o termo do momento, algo que se aproxima de uma “pós-verdade”. O problema concreto é o crescimento da despesa, que decorre de um problema físico, demográfico.

Disputas em torno da contabilidade do sistema são naturais e ocorreram em outros países, mas não podem tirar o foco da questão principal. Ilustrativamente, até os militares não aceitam a contabilidade do seu regime, defendendo que o déficit deles é de metade do que vinha sendo entendido. Por sua vez, o TCU não aceita a tese de superávit no INSS.

Do lado da receita, deve ser lembrado que a Desvinculação de Receitas da União (DRU) historicamente teve como perdedores Estados e Municípios, não a Previdência. A União precisava de dinheiro: se aumentasse impostos, deveria dividi-los com os entes. O jeitinho, de sucessivos governos, foi aumentar contribuições e desvinculá-las via DRU. Este histórico destoa da “teoria da conspiração” de que o governo desvia recursos da Previdência para forjar um déficit e corte de direitos. Também precisa ficar claro que trazer recursos da DRU para expandir a Previdência significa retirá-los de despesas que já serão significativamente comprimidas com o crescimento da despesa previdenciária diante do teto de gastos a vigorar com uma eventual aprovação da PEC nº 55, de 2016, ora em tramitação no Senado.

Do lado da despesa, deve ser esclarecido que mesmo a clientela urbana do INSS apresentou déficits até 2009, com previsão de voltar a apresentá-los de 2016 em diante1. Este é um ponto importante para os que defendem que, sem os rurais, a Previdência é sempre superavitária.

Nos próximos meses o Brasil passará por um amplo debate sobre sua Previdência. Pelo seu tamanho, ela é uma grande conquista e um grande desafio. Discutiremos se financiá-la nos moldes atuais é insustentável ou se mudar suas regras é retroceder em direitos conquistados: o ideal é partir para este debate livre de crenças equivocadas.

Versão resumida deste texto foi publicada no jornal O Estado de São Paulo, edição de 08/11//2016.

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1 O superávit temporariamente registrado teve relação com maior formalização da economia no período, e não com um equilíbrio atuarial estrutural do regime de previdência.

 

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A PEC do limite dos gastos e a proteção aos mais pobres https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2868&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-pec-do-limite-dos-gastos-e-a-protecao-aos-mais-pobres https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2868#comments Thu, 29 Sep 2016 12:34:23 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2868 Entre 1997 e 2015, a despesa primária (despesa total menos juros da dívida) anual do Governo Central triplicou em termos reais. Isso equivale a um crescimento médio de 6,2% ao ano acima da inflação. Se a despesa continuar a crescer nesse ritmo, não haverá dinheiro para pagá-la.

Com despesa crescente, o governo precisou extrair mais dinheiro da sociedade. A carga tributária subiu fortemente, chegando a 32,7% em 2015, valor muito acima da média de países emergentes. Mas não se pode continuar aumentando a carga tributária indefinidamente. Os impostos já sobrecarregam as empresas e as famílias.

Arrecadação estagnada e despesa crescendo resultam em déficits primários maiores a cada ano, chegando a R$ 170 bilhões (2,7% do PIB) em 2016.Em má situação financeira, o governo acaba tendo que pagar juros mais altos, pois o seu risco de default aumenta. Déficits primários e juros mais altos aceleram o crescimento da dívida bruta, que disparou de 53,8% do PIB para 69,5% em apenas dois anos.

Quando as empresas percebem que o governo está em dificuldade financeira, passam a temer aumentos abruptos de carga tributária, aceleração da inflação e instabilidade política. As agências de avaliação de risco rebaixam a nota de crédito do governo. Nesse cenário de perda da confiança no futuro de seus negócios, as empresas, num primeiro momento, evitaminvestir e posteriormente passam a demitir. Instala-se a recessão.

O crescimento mais baixo prejudica a receita do governo, agravando o quadro fiscal. Entra-se em um ciclo vicioso: o desequilíbrio fiscal derruba a economia, e a queda da economia piora a situação fiscal.  Estamos em situação difícil: não há como financiar o crescimento real de 6% ao ano dos gastos públicos e a economia já acumula queda do PIB de 7% em dois anos.

É nesse contexto que se está propondo a PEC 241/2016, que estipula limite para o crescimento da despesa primária. A regra é simples: se em um determinado ano a inflação for, por exemplo, de 5%, no ano seguinte o gasto primário da União só poderá crescer, no máximo, 5%.

A aprovação da PECatuará na causa fundamental do problema fiscal (o crescimento acelerado do gasto),sinalizando para a sociedade que o desajuste fiscal será resolvido. Haverá aumento da confiança das empresas, que retomarão os investimentos, gerando crescimento econômico. As receitas públicas reagirão, iniciando o processo de ajuste fiscal.

Ao mesmo tempo, o Tesouro Nacional precisará de menos empréstimos para financiar um déficit decrescente. Sobrarão mais recursos no mercado para financiar o investimento privado, o que levará à queda da taxa de juros, que impulsionará o investimento e o crescimento.Juros mais baixos vão desacelerar o crescimento da dívida pública. Também aumentarão a viabilidade dos investimentos privados em concessões de infraestrutura, reduzindo a necessidade de subsídios creditícios do governo aos concessionários, o que contribui tanto para o crescimento quanto para o ajuste fiscal.

A ideia deconter o crescimento da despesagera o temor de que políticas sociais sejam afetadas, prejudicando os mais pobres. Na verdade, a população de baixa renda será beneficiária do ajuste. Estamos com doze milhões de desempregados, que dependem da recuperação da economia para voltar à ativa. Os pobres são os maiores prejudicados pelo desemprego recorde. Segundo o IPEA, em 2014, a taxa de desemprego era de 20% para os trabalhadores situados entre os 10% mais pobres, enquanto a taxa era de apenas 2% entre os 10% mais ricos. Além disso, os pobres não têm poupança acumulada para enfrentar o período de desemprego, geralmente não têm parentes ricos para lhes emprestar dinheiro e seu acesso ao crédito bancário é limitado e caro.

A mais importante política social é a recuperação da economia e do emprego.Adicione-sea queda da inflação que advirá do ajuste fiscal. Os pobres são os mais prejudicados pela carestia.

Os mais pobres também ganharão com a PEC porque hoje não são os maiores beneficiários do gasto público. O orçamentotem gordas dotações que beneficiam estratos sociais mais altos. Controlando-se a expansão desses gastos, restarão mais recursos para financiar programas que efetivamente atendem os pobres.

A queda da despesa com juros também favorecerá os pobres. Os juros são pagos a famílias de maior renda, que são aquelas que dispõem de reservas financeiras aplicadas em títulos públicos. Menor pagamento de juros resulta em redução do superávit primário necessário para manter a dívida sob controle, permitindo, mais adiante, a expansão de programas sociais. Ademais, ao facilitar as concessões de infraestrutura, a queda dos juros permitirá a expansão do saneamento básico e dos transportes coletivos.

Há, também, no orçamento, perda de recursos por ineficiência. Esse custo não é desprezível. Por exemplo, entre 2004 e 2014, o Ministério da Educação aumentou seus gastos, em termos reais, em 285%, mas isso não parece ter se refletido em melhoria significativa no aprendizado, em especial dos alunos do ensino médio, cujo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica mantém-se em 3,7 quando, pela meta estabelecida, já deveria ter chegado a 5,2. A fixação de um teto de gastos induzirá a administração pública, sujeita a maior controle do gasto, a buscar eficiência, beneficiando a todos. O Ministério da Saúde já deu a largada: com medidas gerenciais e renegociações de contrato reduziu seu gasto anual em mais de R$ 1 bilhão.

A PEC também tem sido questionada ao propor mudança na vinculação de recursos da saúde e da educação. A proposta é que o gasto mínimo (o piso) nesses setores deixe de ser calculado com base na receita do governo, passando a ser corrigido pela inflação. Há o argumento equivocado de que a receita crescerá mais rápido que a inflação, de modo que a troca do indexador levaria a perda de recursos.

É incorretocomparar os cenários “com aprovação da PEC” e “sem aprovação da PEC” supondo que o crescimento econômico e o desempenho da receita serão iguais nos dois casos. Sem a aprovação da PEC e, portanto, mantendo-se a atual regra de correção do gasto mínimo em saúde e educação, o crescimento econômico e da receita serão muito baixos, implicando baixa correção da despesa mínima.Quando o PIB cai, como está ocorrendo agora, a correção pela receita é uma opção pior. Pelos dados dos últimos anos, a correção pela inflação geraria valores maiores que a indexação à receita desde o exercício de 2013. O critério proposto na PEC protege a saúde e a educação durante as crises.

É preciso computar o aumento de demanda porserviços públicos gerado pela deterioração econômica. Pesquisa recente da CNI apurou que, em 2016, 34% dos entrevistados pararam de pagar planos de saúde e 14% transferiram os filhos da escola privada para a pública. Se não houver a aprovação da PEC e a recuperação da economia, mesmo que seja destinada uma dotação maior para saúde e educação, haverá pressão de demanda, prejudicando os usuários.

Deve-se considerar o estrago que a deterioração econômica gera na escolaridade dos mais pobres. Entre 2015 e 2016 a taxa de desemprego para jovens entre 14 e 17 anos, apurada pelo IBGE, subiu de 24% para 39%, refletindo um quadro de abandono dos estudos em busca de emprego. Essa é uma perda para a educação que independe de haver mais verbas destinadas para o setor.

É essencial lembrar que a PEC deixa fora do limite de gastos as transferências federais para o FUNDEB, que financia a educação básica, mais importante etapa educacional no fortalecimento do capital humano dos mais pobres. E a complementação da União vai justamente para os estados mais pobres.

Nada impede que o Congresso decida alocar recursos para saúde e educação acima do mínimo (como está sendo feito no orçamento de 2017), desde que reduza despesas em outras áreas, para respeitar o teto de gasto. Esse é um ponto que ilustra outra virtude da PEC. Ela induz o Congresso e a sociedade a definir prioridades. Não será mais possível adotar a prática atual de superestimar receitas para incluir o máximo possível de despesas no orçamento. O Congresso recobrará o seu papel de fórum de discussão das prioridades nacionais.

Ao tornar mais forte a restrição ao crescimento do gasto, a PEC induzirá a recuperação da economia e do emprego, beneficiará a população mais pobre, criará restrições à obtenção de privilégios a grupos de renda alta; estimulará a racionalização e a eficiência dos programas públicos; permitirá o planejamento fiscal de longo prazo. Essa medida é apenas a primeira peça da reforma do gasto público, que terá segmento como a reforma previdenciária. Sem conter os gastos será difícil superar o atual cenário de deterioração das contas públicas, baixo crescimento e empobrecimento.

 

(Este texto é uma reprodução de artigo publicado originalmente na Folha de São Paulo em 25/09/2016.)

 

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Cumpra-se https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2829&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=cumpra-se https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2829#comments Mon, 08 Aug 2016 12:39:26 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2829 O governo interino editou a Medida Provisória no 739, uma espécie de “pré-reforma” da Previdência, destinada a reduzir em pelo menos R$ 6 bilhões por ano, por meio de medidas administrativas, o pagamento de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez para quem  não se encontraria incapacitado para o trabalho.

Pode-se dizer que a MP simultaneamente:

  1. faz parte do esforço de ajuste fiscal, sendo um dos frutos baixos da árvore, ao não exigir aumento de tributos ou a repactuação com o Congresso de novas regras para benefícios;
  2. prepara o terreno para a terceira reforma da Previdência, ao apresentar à sociedade que pagamentos indevidos estão sendo revistos antes de medidas mais impopulares serem tomadas; e
  3. tenta responder aos efeitos da judicialização da Previdência, tema introduzido neste texto.

O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), maior litigante da Justiça Federal, já teria 10% de seus benefícios sendo pagos por decisão judicial, segundo a Associação Nacional dos Médicos Peritos (ANMP). Isso seria equivalente a cerca de 3 milhões de benefícios pagos por mês. Entre os benefícios mais concedidos por decisão judicial1, além dos objetos da MP 739/2016 (auxílio-doença e aposentadoria por invalidez), estão a aposentadoria rural (a Justiça pode aceitar provas alternativas de comprovação do tempo de trabalho no campo) e o Benefício de Prestação Continuada (a Justiça pode reavaliar a incapacidade de quem alega deficiência ou modificar o critério  usado para aferir pobreza – o que já foi discutido no blog). A judicialização atinge milhares de casos individuais, mas também dezenas de ações civis públicas propostas principalmente pelo Ministério Público em diferentes regiões do país.

Auxílio-doença e aposentadoria por invalidez

A exposição de motivos da MP 739 aponta que as despesas com auxílio-doença cresceram 85% em apenas 10 anos, atingindo R$ 23,2 bilhões em 2015. Em especial, chama a atenção a quantidade de benefícios sendo pagos há mais de 2 anos: quase 850 mil, mais da metade de todos os benefícios. Apenas nesses casos a despesa total por ano é de R$ 13 bilhões2,  ou  o equivalente a dois terços das despesas com o Minha Casa Minha Vida em 2015.  Por que tantas pessoas recebem um benefício provisório por tanto tempo?

Além da crônica dificuldade do INSS de realizar perícias médicas e de reabilitar os segurados3, a judicialização desempenha um papel.  Nos casos individuais, o Judiciário pode discordar da perícia do INSS que não considerava alguém incapacitado, e conceder o benefício. Também são muitos os casos em que a Justiça até mesmo expande a lista de doenças que, independentemente de contribuição, dão direito à aposentadoria por invalidez e ao auxílio-doença. Os peritos previdenciários se queixam que o Judiciário não teria a expertise necessária para tomar tais decisões. Por sua vez, o INSS não tem tido capacidade de deslocar peritos para participar de audiências na Justiça: casos em que há participação do perito do INSS tendem a ter decisões mais favoráveis ao órgão.

Já nas ações civis públicas a Justiça tem obrigado o INSS a conceder automaticamente o auxílio-doença, aposentadoria por invalidez e o BPC da pessoa com deficiência se a perícia não puder ser realizada em um determinado prazo. Note que, também nesse caso, a dificuldade da Previdência com a mão de obra pericial tem um papel fundamental.

Entretanto, como esse prazo máximo para que a perícia seja feita não está previsto em lei, as ações civis públicas também tem o efeito adverso de adicionar mais complexidade à operação do INSS, um órgão nacional com a missão de administrar a segunda maior folha de pagamento do mundo. Nas agências de Roraima, ação civil pública determina que perícia deve ser feita em no máximo 30 dias ou os benefícios devem ser automaticamente concedidos, prazo que é de 45 dias nas agências Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina e Maranhão.

Os problemas com perícias e a judicialização se relacionariam com os R$ 13 bi pagos por ano a quem recebe o auxílio-doença por mais de 2 anos.

Por isso, a MP 739 propõe que o auxílio-doença concedido judicialmente tenha uma estimativa de quando o pagamento deverá ser cessado (já há recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no mesmo sentido). Caso não haja a previsão sobre a recuperação do beneficiário, ele será interrompido após quatro meses. Prevê ainda que a qualquer momento quem recebe auxílio-doença e aposentadoria por invalidez por determinação judicial poderá ser reavaliado.

(Do lado administrativo, a MP prevê um bônus por perícia para os médicos do INSS, na tentativa de manter os médicos no quadro e efetivamente trabalhando nas agências. Nesse sentido, o ano passado foi marcado por uma malsucedida tentativa de terceirizar as perícias no âmbito da MP 664 (para o setor privado e o SUS) e por uma longa greve da categoria).

O governo pretende, com a Medida Provisória, reduzir em cerca de R$ 6 bilhões os benefícios pagos a quem não está incapacitado, ou mesmo quem de fato continua trabalhando. O grosso da redução deve ser no auxílio-doença e, residualmente, na aposentadoria por invalidez. Grupos contrários receiam que a MP prejudique subgrupos com incapacidade menos evidente, como pessoas com transtornos psiquiátricos, e anunciam intenção de recorrer a cortes internacionais4.

Benefício de Prestação Continuada

O BPC, operado pelo INSS, é objeto residual da MP 739, mas é alvo de intensa judicialização. Previsto na Constituição, trata-se de benefício assistencial destinado ao idoso ou deficiente pobre. A Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), que concretizou o benefício, considera como critério de pobreza para recebimento do benefício a renda per capita familiar abaixo de um quarto de salário mínimo. Ou seja, em valores de 2016, a renda per capita de até R$ 220 na família do idoso ou deficiente pobre daria direito ao recebimento do benefício no valor de R$ 880.

Note que há uma enorme discrepância em relação à linha de corte e ao valor do benefício em relação aos critérios do Bolsa Família (renda per capita de até R$ 85 para um benefício de R$ 85, ou renda per capita de até R$ 170, se houver crianças para um benefício de R$ 39). Assim, o critério de pobreza do BPC pode ser quase 3 vezes maior do que o do “famigerado” Bolsa Família, para um benefício 22 vezes maior de acordo com a legislação.  Mesmo assim, o critério de pobreza do BPC é considerado inadequado, e é o principal tema das ações judiciais que tratam do benefício.

Existem no Brasil dezenas de ações civis públicas em relação ao BPC. No que tange ao critério de pobreza, elas dividem-se em dois tipos: i) as que excluem do cálculo da renda per capita a renda recebida a título de BPC por outra pessoa da família ou até mesmo a aposentadoria ou pensão (de um salário mínimo); e ii) as que avaliam a pobreza subjetivamente ou que desconsideram no cálculo despesas essenciais, notadamente com medicamentos.

O Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA, 2016) aponta que contribuiu para essa tendência a previsão do Estatuto do Idoso (Lei no 10.741, de 1º de outubro de 2003) de desconsiderar no cálculo da renda o BPC recebido por outro idoso da família, entendimento que foi sucessivamente expandido pelo Judiciário (ex: desconsiderar o BPC da pessoa com deficiência, aposentadorias e pensões).

As ações também ganharam fôlego com um importante julgado recente do Supremo Tribunal Federal (STF)5, discutido previamente no blog, que reviu o posicionamento da corte e ampliou o critério da pobreza para recebimento do BPC de um quarto do salário mínimo como renda per capita para meio salário mínimo (ou de R$ 220 para R$ 440 em 2016).

Além da óbvia iniquidade e dificuldades administrativas causadas por essa série de decisões serem descoordenadas e aplicadas em regiões diferentes do país, o atropelo dos critérios pactuados pelo Executivo e o Legislativo causam distorções impressionantes. Se uma decisão individual está guiada por boas intenções e pode ter custos baixos, o seu acúmulo vai exatamente à direção contrária a pretendida, retirando recursos dos que mais precisam.

Conjugando os critérios dessas decisões, podemos, ilustrativamente, analisar as distorções em quatro famílias fictícias de três pessoas. Uma primeira família tem dois aposentados que ganham o salário mínimo, de R$ 880, vivendo com um deficiente com renda de R$ 1320 (total R$ 3080). Essa família não seria considerada pobre pela legislação, mas seria pelos critérios do Judiciário apresentados acima. Ela teria o direito de receber o BPC, no valor de R$ 880, totalizando uma renda de R$ 3960 (ou R$ 1320 per capita).

Suponha uma segunda família, também com três pessoas: um deficiente sem renda, um desempregado sem renda e alguém recebendo um salário de R$ 1321. Ela não se enquadra nos critérios de pobreza definidos pelo legislador ou pelo Judiciário e sequer receberia o benefício. A renda dessa segunda família fica sendo 3 vezes menor do que a da primeira, porque o Judiciário decidiu que o dinheiro recebido a título de aposentadoria não é renda para a definição de pobreza, o que permitiu aquela família receber além desses proventos, também o benefício assistencial para o deficiente.

Ainda ilustrativamente, considere outra família de três pessoas com renda total de apenas R$ 511.  Elas não têm direito nem ao BPC nem ao Bolsa Família, se não houver no grupo familiar idoso, deficiente ou criança. Esta é uma família significativamente mais pobre, com capacidade muito menor de judicializar a questão. Assim, a primeira família de três pessoas, com renda de R$ 3080, pode receber mais R$ 880 pelo entendimento do Judiciário, mas a terceira família com renda de R$ 511, sequer pode receber os R$ 85 do benefício básico do Bolsa Família. A diferença da renda per capita será de 8 vezes, por distorções, cumulativamente, das leis que regem o Bolsa Família e o BPC, e da intervenção do Judiciário.

Partindo desde último exemplo, podemos chegar a uma quarta família: se uma das pessoas do terceiro exemplo fosse uma criança (ex: uma mãe desempregada, um pai com salário de R$ 511 e um filho de até 15 anos), a família poderia receber o benefício variável de R$ 39 do Bolsa Família. Este é o auxílio que esta criança pobre poderá receber, ainda significativamente abaixo dos R$ 880 que a primeira família, com renda de mais de R$ 3 mil, teria direito. (Cabe observar que os valores usados aqui para o Bolsa Família já contam com o controverso reajuste dado pelo presidente interino Michel Temer).

Os casos são ilustrativos e anedóticos. Porém, já fica claro que: i) benefícios direcionados a crianças pobres têm menor chance de serem, e não são, judicializados; e ii) os benefícios recebidos por este grupo possuem valores muito menores e parâmetros mais duros para o recebimento. O mais grave é um terceiro ponto: é justamente nas famílias com crianças que a pobreza se concentra no Brasil.

Camarano et al. (2014) mostram que, no estrato de renda mais pobre, um terço dos indivíduos são crianças, mas apenas 6% tem mais de 60 anos. Por sua vez, no estrato de renda mais alto, somente cerca de 10% são crianças6. A discrepância na legislação e nas decisões judiciais em relação aos benefícios voltados para crianças e para idosos não seria um problema se fosse comum uma configuração familiar em que idosos vivessem com crianças.Entretanto, o que ocorre no Brasil é exatamente o oposto. Tafner, Botelho e Erbisti (2015) mostram que, no caso de benefícios previdenciários, 88% dos idosos beneficiários não possuem crianças ou jovens abaixo de 15 anos em sua família. Apenas 3,5% possuem pelo menos duas crianças.

Tafner (2006) mostra ainda que este fato (a pobreza no Brasil ser desproporcionalmente concentrada nas crianças em relação às outras faixas etárias) quase não encontra paralelo no resto do mundo. Seria razoável, por óbvias diferenças no padrão de consumo, que houvesse distinção nos benefícios direcionados a estes dois grupos demográficos, mas está claro que a magnitude da discrepância acumulada pela legislação e pelo Judiciário é preocupante.

Ainda, os gastos pró-crianças têm evidentemente um potencial maior para transformar o futuro, estando cada vez mais claro o seu importante papel não só em combater a pobreza, mas também a desigualdade e em aprimorar o crescimento da produtividade da economia. Esta é em especial uma bandeira do Prêmio Nobel James Heckman, que defende que políticas para este grupo beneficiam não só as crianças, mas a sociedade como um todo78.

No Brasil, este grupo vulnerável está desamparado por essas decisões e não tem quase nenhuma capacidade de judicializar a questão: crianças não contratam advogados ou batem nas portas da Defensoria Pública, e seus pais, que recebem os benefícios voltados a ela, são pouco estimados pela sociedade (nas últimas eleições apenas 40% da população era a favor do programa9).

Só que este não é o único problema: o foco dos três Poderes nas transferências para grupos mais velhos drena quantidade significativa de recursos, sufocando ações que beneficiam este grupo, como o investimento em saneamento básico, creches e educação básica (além de transferências diretas como o próprio Bolsa Família). Segundo a ANMP, em 2015 o INSS pagava R$ 20 bilhões em benefícios decididos judicialmente. No total do orçamento, o Brasil já gasta 54% apenas com benefícios previdenciários e o BPC.

Este é um debate difícil: é evidente que os entusiastas da judicialização estão bem intencionados e que os critérios legais para concessão dos benefícios são discutíveis. Entretanto, a invasão da competência do Executivo e do Legislativo (mais bem posicionados para avaliar a questão) e a expressiva quantidade de decisões concedendo benefícios sem fonte de custeio podem não ser a melhor maneira de erradicar a pobreza no Brasil, reduzir as desigualdades e promover o crescimento da renda.

É possível que o governo lance mão de medidas administrativas para identificar pagamentos indevidos do BPC a quem não se enquadraria nos critérios de renda, bem como é provável que o benefício seja incluído na reforma da Previdência (transformando o valor recebido proporcional às contribuições do beneficiário ao INSS). No entanto, é incerta a maneira que a judicialização do benefício vai evoluir nos próximos anos: eventuais mudanças legislativas vão dirimir ou estimular a judicialização? Hoje, de cada 4 BPC concedidos, 1 já seria por decisão judicial1011. No total de benefícios mantidos, a estatística varia de 28% no benefício da pessoa com deficiência em Alagoas a 1% no do idoso no Amazonas, segundo o MDSA.

Outras ações civis públicas

Além das dezenas de ações civis públicas sobre a concessão automática do auxílio-doença e aposentadoria por invalidez e os critérios do BPC, outros casos anedóticos de judicialização da Previdência por este instrumento incluem:

  • pagamento de BPC para estrangeiros, proposta pelo Ministério Público Federal em  Rondônia;
  • pagamento do salário-maternidade a índias de tribos específicas, independentemente de contribuição ou da idade mínima de 16 anos para se tornar segurada (adolescentes pobres da cidade não são contempladas, podendo contar somente com o Bolsa Família); e
  • pagamento do salário-maternidade sem comprovação de relação de emprego a desempregadas pelo INSS no Rio de Janeiro.

Causas da judicialização

Marques (2016) relaciona a judicialização, entre outros:

  • ao alto volume de segurados e ao aumento do número de advogados no país (o que alude ao termo “advogado de porta de INSS”);
  • à fraqueza da defesa do INSS;
  • ao número insuficiente de servidores; e
  • a minúcia da Constituição ao tratar de Previdência.

Já Coelho (2014) ressalta a interiorização da Justiça Federal, enquanto o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (2016) aponta também a possibilidade de delegação da competência em ações que envolvam o INSS da Justiça Federal para a Justiça estadual. Marques aponta ainda que apenas cerca de um terço das ações contra o INSS são consideradas improcedentes.

Considerações finais

Tratando de maneira mais ampla do problema da judicialização de políticas públicas, Di Pietro (2014) aponta que a intervenção judicial é feita a partir de casos concretos, que quando somados correspondem a políticas públicas:

feitas sem qualquer planejamento (que o Judiciário, pela justiça do caso concreto, não tem condições de fazer) e sem atentar para as deficiências orçamentárias que somente se ampliam em decorrência de sua atuação, desprovida que é da visão de conjunto que seria necessária para a definição de qualquer política pública que se pretenda venha em benefício de todos e não de uma minoria privilegiada pelo acesso à Justiça.

A MP 739/2016 trouxe à tona a judicialização da Previdência, questão de difícil solução e que carece de mais estudo. É necessário identificar quando existem vácuos que corretamente são preenchidos pelo Judiciário ou quando há invasão de competência da Presidência e do Congresso, mais aptos e legitimados para aprovação das normas que guiam a máquina previdenciária.

Para os próximos anos, não se pode descartar que a judicialização aumente ainda mais, frente ao natural crescimento da demanda por benefícios previdenciários decorrente do envelhecimento da população e das inevitáveis alterações legislativas que serão feitas (reformas), que podem inspirar os operadores do Direito (como no caso do Estatuto do Idoso e o BPC) ou dar vazão ao discurso de “perdas de direitos” típico desse tipo de mudança.

 

Referências

CAMARANO, A, A; KANSO, S.; BARBOSA, P.; ALCÂNTARA, V. S. Desigualdades na Dinâmica Demográfica e as suas Implicações na Distribuição de Renda no Brasil. In: CAMARANO, A. A. (Org.). Novo Regime Demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento?. Rio de Janeiro: Ipea, 2014. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article &id=23975.

COELHO, S. M. A problemática da judicialização dos conflitos previdenciários e a ação civil pública como instrumento processual de efetivação da proteção constitucional previdenciária. Jus Navigandi. Julho de 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30085/a-problematica-da-judicializacao-dos-conflitos-previdenciarios-e-a-acao-civil-publica-como-instrumento-processual-de-efetivacao-da-protecao-constitucional-previdenciaria.

DI PIETRO, M, S. Z. Judicialização de políticas públicas pode opor interesses individuais e coletivos. Consultor Jurídico. 28 de maio de 2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-mai-28/interesse-publico-judicializacao-politicas-publicas-opoe-interesses-individuais-coletivos.

MARQUES, C. Possíveis causas e consequências da judicialização dos benefícios do RGPS. Jusbrasil. Março de 2016. Disponível em:  http://supercassius.jusbrasil.com.br/artigos/316638102/possiveis-causas-e-consequencias-da-judicializacao-dos-beneficios-do-rgps.

MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E AGRÁRIO. Nota Técnica nº 03/2016/DBA/SNAS/MDS. Brasília, 21 de março de 2016. Disponível em: http://conpas.cfp.org.br/wp-content/uploads/sites/8/2014/11/Nota-T%C3%A9cnica-n%C2%BA-03-Judicializa%C3%A7%C3%A3o-do-BPC-2.pdf. TAFNER, P. S. B. (Ed.). Brasil: O Estado de uma Nação, 2006: Mercado de Trabalho, Emprego e Informalidade. Rio de Janeiro: IPEA, 2006. TAFNER, P.; BOTELHO, C.; ERBISTI, R. Debates sobre Previdência: Confusões, Polêmicas Iniciais e Mitos. In: TAFNER, P.; BOTELHO, C.; ERBISTI, R. (Org.). Reforma da Previdência: A Visita da Velha Senhora. Brasília: Gestão Pública, 2015.

________________

1 Considerando a desaposentadoria como revisão de um benefício, e não concessão.

2 http://odia.ig.com.br/economia/2016-07-01/inss-vai-passar-pente-fino-para-detectar-fraudes-em-auxilio-doenca.html.

3 No ritmo atual e apenas com o estoque existente hoje, levariam 50 anos para o INSS reabilitar os que recebem o benefício há mais tempo. Ver: http://noticias.r7.com/economia/metade-dos-segurados-que-recebem-o-auxilio-doenca-do-inss-vao-passar-por-reavaliacao-26072016

4 Ver: http://www.redebrasilatual.com.br/trabalho/2016/07/sindicatos-va-questionar-mp-que-mexe-com-beneficios-da-previdencia.

5 Recurso Extraordinário (RE) nº 567.985/MT, julgado em 2013.

6 Cabe observar que o resultado dos autores, obtido a partir do Censo do IBGE, leva em conta a renda per capita de uma família. Crianças entre os 20% mais pobres estão em famílias pobres, enquanto crianças entre os 20% mais ricos estão em famílias ricas. Assim, não se considera “natural” este resultado, o que poderia ser argumentado caso se interpretasse erroneamente que crianças estão entre os 20% mais pobres simplesmente porque não trabalham.

7 Entre outros: HECKMAN, J. J.; MASTEROV, D. V. The Productivity Argument for Investing in Young Children. 2007. Disponível em: http://jenni.uchicago.edu/human-inequality/papers/Heckman_final_all_wp_2007-03-22c_jsb.pdf. e ALMOND, D.; CURRIE, J. Human Capital Development Before Age Five. Handbook of Labor Economics. Volume 4b. Elsevier, 2010. Disponível em: https://www.princeton.edu/~jcurrie/publications/galleys2.pdf.

8 Co-autor frequente de Heckman no tema, o pesquisador Flávio Cunha aparece como o brasileiro mais citado na academia nos últimos 25 anos. Ver: https://t.co/VvLrwKQFVs.

9 Ver: https://www.academia.edu/13218971/Mapping_and_understanding_perceptions_about_the_
Family_Stipend_based_upon_a_mixed_methods_approach?auto=download
.

10 Alguém tem que Cuidar da Qualidade do Gasto. Valor Econômico, 8 de julho de 2016.

11 Proporção próxima do benefício mais judicializado, a aposentadoria rural, com 30%, segundo o Relatório do Fórum de Debates sobre Políticas de Emprego, Trabalho e Renda e de Previdência Social de 2016.

 

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Como as universidades públicas no Brasil perpetuam a desigualdade de renda: fatos, dados e soluções https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2793&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=como-as-universidades-publicas-no-brasil-perpetuam-a-desigualdade-de-renda-fatos-dados-e-solucoes https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2793#comments Wed, 15 Jun 2016 14:06:14 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2793 SUMÁRIO EXECUTIVO

  • Níveis educacionais melhoraram sensivelmente nos últimos 20 anos no país, mas o Brasil continua com resultados comparativamente baixos em relação a seus pares latino-americanos.
  • Em gastos por aluno, o setor público escolheu por priorizar a educação superior. Para cada estudante em uma universidade pública, em média, seria possível manter quatro estudantes de ensino médio ou fundamental na escola.
  • Essa priorização beneficia os mais ricos. Estudantes de universidade pública têm uma renda familiar per capita duas vezes maior do que aqueles que não vão para a universidade. A representação proporcional da classe alta nas universidades públicas é quase o dobro daquela observada na sociedade como um todo.
  • A probabilidade estimada de um jovem com renda familiar per capita de R$250 ao mês estudar em universidade pública é virtualmente nula: cerca de 2%. Já aqueles jovens que têm uma renda familiar per capita de R$20 mil reais ao mês têm uma chance de 40% de estudar em uma universidade pública.
  • Existe uma desigualdade também no acesso a cursos mais concorridos. Em universidades públicas, cursos com nota de corte mais alta no SISU tendem a ter uma presença menor de negros. Negros são também sub-representados no Ciência sem Fronteiras.
  • Transferir renda para financiar a educação dos mais ricos com impostos ajuda a perpetuar desigualdades, pois anos adicionais de estudo incrementam a renda de quem recebeu o benefício. Para cada ano adicional de estudo, adultos têm um aumento de sua renda entre 6,5% e 10%.
  • Mudar o foco das universidades públicas para outros níveis de ensino amenizaria essas desigualdades. Retornos ao investimento em educação, em termos econômicos para a sociedade e cognitivos para as crianças, são maiores quando esses investimentos são direcionados à educação de base.
  • Algumas alternativas em políticas públicas seriam: (a) permitir e financiar a criação de escolas públicas de administração autônoma; (b) criar o ProUni do ensino básico e distribuir vale-escola para estudantes pobres se matricularem em escolas privadas; e (c) estimular a educação na primeira infância, eliminando impostos sobre creches e pré-escolas, facilitando seu processo de criação e registro.
  • Para financiar essas mudanças, seria necessário instituir mensalidades nas universidades públicas federais para aqueles que podem pagar, com bolsas condicionais à renda familiar per capita do estudante ingressante.
  • Com a limitação dos recursos transferidos pelo governo federal, seria necessário reformar a legislação para facilitar e incentivar a captação autônoma de recursos pelas próprias universidades em complementação à cobrança de mensalidades. Entre essas medidas, poderiam se incluir, dentre outras: (a) a reforma na legislação para permitir às universidades receber doações diretas; (b) a ampliação da cooperação existente entre universidades públicas e o setor privado, que deve passar a ser mensurada de forma adequada pelo Ministério da Educação; e (c) a flexibilização da legislação de modo a permitir às instituições de ensino superior licenciar suas marcas e experimentar individualmente métodos distintos de financiamento.
  • Em termos regulatórios, é necessária uma ampla reforma do sistema educacional brasileiro. Na educação superior, a instituição de mensalidades proporcionais à renda familiar do estudante e a flexibilização dos métodos de captação de recursos por universidades reduziria o fardo de impostos necessários para o financiamento dessas instituições. Na educação de base, alternativas de descentralização da educação pública e empoderamento dos pais de crianças pobres na escolha da educação de seus filhos, seja por meio de escolas públicas autônomas ou por vales educacionais, contribuiriam com a melhoria da educação recebida pelos grupos economicamente desfavorecidos.

 

INTRODUÇÃO

Na última década, o Brasil deu passos importantes na expansão do nível educacional da população. Num espaço de dez anos, a proporção de pessoas que tem ensino médio ou superior completo subiu de 30% para 42% da população. Esse incremento de 12% corresponde a, aproximadamente, 24 milhões de pessoas a mais com o ciclo do ensino básico terminado.

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Tal avanço não se restringiu a um grupo específico de municípios, mas ocorreu de forma generalizada. Contudo, ainda há uma dispersão muito grande nos resultados. Enquanto em municípios como Florianópolis (SC) mais de 65% da população adulta concluíram o Ensino Médio, em outros, como Chaves (PA), apenas 4% o fizeram. Os avanços ao longo do tempo, bem como a desigualdade entre os municípios, podem ser observados na Figura 2 abaixo, com as curvas progredindo para a direita.

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Apesar dessas melhorias, o país ainda apresenta números comparativamente baixos em relação aos seus pares latino-americanos. Entre os maiores países do continente, somente a Colômbia apresenta níveis educacionais semelhantes aos brasileiros. O hiato entre os níveis brasileiros e os líderes da região chega a quase três anos de estudo.

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Mesmo com mais da metade da população sem ensino médio e com índices de educação básica comparativamente baixos, o investimento por aluno no Brasil prioriza o ensino superior. Segundo dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômicos (OCDE), gasta-se quatro vezes com cada aluno do ensino superior público o valor que se investe em estudantes do ensino fundamental ou médio. Em média, países da OCDE gastam com cada estudante de ensino superior 1,5 vezes o gasto do ensino médio – o que indica que a priorização brasileira ao ensino superior é mais evidente.

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Apesar de um estudante de ensino superior custar muito mais que o de uma educação básica e mais da metade da população não ter terminado o ensino médio, o país observou uma expansão forte das universidades públicas na última década. Se nos 20 anos entre 1980 e 2000 as vagas cresceram 80%, no período mais curto entre 2000 e 2014 as vagas em instituições públicas aumentaram 120%.

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Priorizar o ensino superior público em um país em que mais da metade da população não termina o ensino médio significa uma transferência de renda para os mais ricos. Não apenas os estudantes de famílias mais ricas têm uma probabilidade maior de estudar nas universidades públicas, como também pessoas que são beneficiadas por essas políticas e estudam mais anos tendem a ter salários maiores no futuro, perpetuando as desigualdades.

 

A ESTRUTURA SOCIAL E DEMOGRÁFICA DAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS

Quase toda política pública é uma forma de transferência de renda. Quando os custos de uma política estão dispersos por toda a sociedade e os benefícios estão concentrados em um grupo específico, aqueles que ajudam a financiar uma política, mas dela não se beneficiam, estão subsidiando os que recebem os serviços prestados pelo governo.

Com as universidades públicas isso se torna ainda mais claro: todos pagam pelas instituições, mas somente alguns têm acesso ao serviço educacional que elas oferecem. Por causa da alta concorrência das universidades públicas e da baixa qualidade das escolas públicas brasileiras, aqueles em situação econômica mais vulnerável têm pouca chance de conseguir uma vaga para estudar em uma universidade financiada pelo contribuinte.

Em média, a renda familiar per capita de jovens que frequentam universidades públicas (R$1422) é mais de duas vezes maior do que a daqueles jovens que não frequentam universidade (R$690)1. As famílias 20% mais pobres têm várias dificuldades. Uma boa parte deles (50,8%) sequer termina o ensino médio. Além disso, a pressão que eles têm por trabalhar para contribuir com o orçamento familiar diminui a possibilidade que eles têm de se preparar para os altamente concorridos vestibulares ou mesmo se dedicar a um curso integral (e, na maior parte das vezes, diurno) que vai limitar sua possibilidade de trabalho.

Por isso, as universidades públicas tendem a beneficiar os ricos de forma desproporcional. Segundo dados da Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (PNAD), a classe alta corresponde a 24,8% da população. Mas, nas universidades públicas, a classe alta ocupa 45,5% das vagas. Do outro lado dessa equação, as pessoas que estão hoje na classe baixa são 23,1% da população brasileira, mas apenas 8,4% da população universitária.

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A probabilidade de um jovem estudar em uma universidade pública está diretamente relacionada a sua renda familiar. A probabilidade estimada de um jovem com renda familiar per capita de R$250 ao mês – por exemplo, uma chefe de família que recebe R$1000 ao mês e sustenta um cônjuge e dois filhos – é virtualmente nula: cerca de 2%. Já aqueles jovens que vêm de famílias muito ricas, tendo uma renda familiar per capita de R$20 mil reais ao mês – digamos, o filho de um diretor de uma multinacional – têm uma chance de 40% de estudar em uma universidade pública2.

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O acesso desproporcional de grupos privilegiados à universidade pública é mais pronunciado em determinados cursos. Não há dados de renda familiar disponíveis para a composição de cursos das universidades públicas, mas as tendências de desigualdade são evidenciadas por diferenças nas composições de cor/raça. Enquanto cursos como Pedagogia e Serviço Social são majoritariamente negros, em outros, como Engenharia Mecânica e Relações Internacionais, negros são menos de um terço do corpo discente3.

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Essa tendência mantém um padrão: quanto mais difícil o ingresso em um curso, menor a presença de negros entre os estudantes – e, presumivelmente, isso também se correlaciona com a renda familiar. Como pode-se observar na Figura 9 abaixo, dentre os 90 cursos de universidades públicas com mais de 10 mil estudantes, a correlação entre porcentagem de negros dentre os alunos e a nota de corte média de cursos no Sistema de Seleção Unificada (SISU) do Ministério da Educação é negativa e estatisticamente significante.

Do modo como está desenhada atualmente, a política de cotas raciais em nada altera essa existente desigualdade entre cursos. Embora ela possa alterar a presença de negros em todos os cursos, empurrando a linha da regressão na Figura 9 para cima, não há nenhum efeito esperado na inclinação da linha – ou seja, na relação esperada entre notas do SISU e queda na proporção de negros.

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Novos programas de investimento em universidades públicas, como o Ciência sem Fronteiras (CsF), exacerbam essas desigualdades. Isso acontece por uma confluência de fatores. De início, como evidenciado anteriormente, negros têm menos acesso a cursos mais competitivos – que tendem a ser aqueles contemplados pelo CsF. Além disso, dentre os cursos elegíveis4, negros estão sub-representados no grupo que é escolhido para ir ao exterior. Enquanto brancos são cerca de metade do corpo discente dos cursos elegíveis para o CsF, dentre aqueles selecionados para, de fato, ir ao exterior, eles são 70%.

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Subsidiar a educação superior dos mais ricos enquanto os mais pobres sequer terminam o ensino médio resulta em transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos. Enquanto os filhos da elite são educados com o dinheiro dos contribuintes (no Brasil, majoritariamente negros e pobres), os filhos dos mais pobres terão pouquíssimas chances de conseguir entrar na universidade pública.

Transferir renda para financiar a educação dos mais ricos com impostos ajuda a perpetuar desigualdades, pois anos adicionais de estudo incrementam a renda de quem recebeu o benefício. Para cada ano adicional de estudo, adultos têm um aumento de sua renda entre 6,5% e 10%5. Por isso, as universidades públicas brasileiras são um dos mais importantes mecanismos de perpetuação das desigualdades de renda que já existiu na história brasileira.

 

NOVAS ALTERNATIVAS DE POLÍTICA EDUCACIONAL

Como as universidades públicas beneficiam desproporcionalmente os mais ricos, os gestores públicos deveriam reverter a priorização do ensino superior. Há vastas evidências científicas que demonstram que retornos ao investimento em educação, em termos econômicos para a sociedade e cognitivos para as crianças, são maiores quando esses investimentos são direcionados à educação de base – em especial na primeira infância6.

Desigualdades na educação de base são determinantes para desigualdades econômicas e sociais futuras. Diversas pesquisas já demonstraram que desigualdades de renda, nível de desemprego, encarceramento, gravidez na adolescência e saúde entre brancos e negros, por exemplo, são, em sua maior parte, explicadas por diferenças na qualidade da educação de base recebida7. No Brasil, a redução das desigualdades na educação de base na década de 2000 explicam 40% da redução da desigualdade de renda no período8.

O governo federal tem autoridade para reverter parte do dinheiro investido nas universidades públicas para o Fundo Nacional da Educação Básica e alterar este para financiar novos modelos de educação. Algumas possibilidades políticas de tais novos modelos são:

  • Permitir e financiar, com os recursos repriorizados, a criação de escolas públicas de administração autônoma (charter schools).Essas escolas, apesar de públicas, têm maior autonomia em sua administração. No lugar de currículos rígidos determinados pelas capitais, seus gestores têm capacidade para desenhar currículos individuais que atendam às demandas específicas daquela escola. Além disso, as escolas também têm independência administrativa para sua organização interna e contratação e demissão de pessoal. Ao mesmo tempo, como o financiamento é condicional à performance, isso dá aos gestores públicos maior capacidade de fiscalização e maior espaço para uma saudável competição e trocas de boas práticas entre as escolas. Diversos estudos experimentais9 demonstraram que essas escolas têm um efeito positivo sobre a performance acadêmica, em especial ao desempenho de matemática10. Seria viável alterar o artigo 20 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação para enquadrar tais escolas públicas de administração autônoma como “escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas”, previstas pelo artigo 213 da Constituição, ou, ainda, estabelecer parcerias público-privadas para a administração dessas escolas.
  • Criar o ProUni do ensino básico e distribuir vales educacionais para estudantes pobres se matricularem em escolas privadas.O modelo de vales educacionais (também conhecido como “vouchers”) foi aplicado já em diversos países, como os Estados Unidos, a Colômbia, o Chile e a Suécia. A ideia é substituir uma estruturação centralizada da política educacional por uma descentralizada. Como no Bolsa Família, no lugar de os governantes distribuírem produtos diretamente para a população, dá-se aos indivíduos a possibilidade de escolher no mercado aquilo que eles entendem como melhor. Por exemplo, os pais que prefiram uma educação mais generalista e humanista podem escolher uma escola de tal linha. Já os que prefiram uma educação mais tradicionalista e focada em resultados em termos de notas e provas também o podem fazer. Não haveria um modelo centralizado com todas as respostas. Estudos empíricos demonstraram dois efeitos positivos dessas políticas11. Em termos diretos, sendo as escolas privadas mais eficientes, os estudantes que receberam vales educacionais viram uma melhora na sua performance acadêmica, em especial na parte de exatas. Indiretamente, como esses programas inicialmente se focalizaram em regiões de pior desempenho educacional, ao retirar o fardo nessas regiões dos profissionais da rede pública, as escolas públicas tradicionais também responderam positivamente, beneficiando estudantes que não participaram do programa.
  • Estimular a educação na primeira infância, eliminando impostos sobre creches e pré-escolas, facilitando seu processo de criação e registro junto ao Ministério da Educação e/ou criando benefícios fiscais similares aos existentes para as Instituições de Ensino Superior que se beneficiam do ProUni. Estudos experimentais demonstraram de forma causal que crianças que recebem atenção na primeira infância tendem a ter melhores resultados escolares e a ter uma probabilidade menor de cometer crimes ou engravidar na adolescência12.

 

Para financiar essas mudanças, seria necessário instituir mensalidades nas universidades públicas federais para aqueles que podem pagar, com bolsas condicionais à renda familiar per capita do estudante ingressante. Esse modelo já existe no mundo. Por exemplo, a Universidade da Califórnia, que é uma universidade pública, adota um modelo em que as bolsas podem cobrir desde três quartos do custo total da educação (incluindo habitação, alimentação, livros, etc.) para estudantes mais pobres mas converge para zero à medida que a renda familiar aumenta. É importante frisar que, em tal modelo, é possível que aqueles estudantes que tenham renda familiar mais baixa, na verdade, recebam mais recursos do que hoje recebem com universidade sem mensalidade e com sistemas de assistência estudantil. De fato, o custo da mensalidade é apenas um terço do total13 e, ao focalizar recursos naqueles que não podem pagar, foi possível aumentar os benefícios para os que mais precisam. Ao mesmo tempo, as famílias ricas quase não recebem nenhum subsídio do governo, limitando a transferência de renda de pobres para ricos que existiria se eles adotassem um modelo como o brasileiro.

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Há um projeto de lei apresentado no Senado Federal que pretende instituir a cobrança de mensalidade para filhos de famílias cuja renda familiar mensal for superior a R$ 26.40014. Como essa proposta atingiria tão-somente uma parcela muito pequena daqueles que, pertencentes à classe alta, hoje se beneficiam das universidades públicas, um sistema proporcional, conforme o mencionado acima, seria mais eficiente em levantar recursos para amenizar transferências de renda de pobres para ricos. Caso haja dúvidas sobre a constitucionalidade desse projeto, seria necessário emendar o Art. 206 da Constituição para levar essa reforma adiante.

Adicionalmente, com a limitação dos recursos transferidos pelo governo federal, seria necessário reformar a legislação para facilitar e incentivar a captação autônoma de recursos pelas próprias universidades em complementação à cobrança de mensalidades. Entre essas medidas, poderiam se incluir, dentre outras:

  • A reforma na legislação para permitir às universidades receber doações diretas, o que atualmente é proibido.Atualmente, doações para universidades públicas têm de ser feitas por meio de depósitos na Conta Única do Tesouro, utilizando-se Guias de Recolhimento da União e subsequentes saldos de aporte liberados pelo Tesouro Nacional. Na prática, esse tipo de centralização torna burocraticamente improvável que essas doações sejam efetivadas. Uma alternativa já apresentada no Congresso Nacional15 é a criação de fundos patrimoniais (endowment funds), que facilitariam doações e fariam investimentos em nome das universidades. Nos Estados Unidos, em 2015, o valor total sob administração dos fundos patrimoniais das universidades públicas chegava 165 bilhões. Desse total, cerca de 5% (ou 8 bilhões de dólares) são utilizados pelas universidades ao ano para financiar pesquisa, ensino e extensão16. Esses recursos poderiam, se efetivados, contribuir com a substituição do uso de impostos em universidades públicas.
  • A ampliação da cooperação existente entre universidades públicas e o setor privado, que deve passar a ser mensurada de forma adequada pelo Ministério da Educação.Mudanças na legislação nas últimas duas décadas regulamentaram a possibilidade da criação de fundações públicas de direito privado para apoiar o ensino, a pesquisa e a extensão em universidades públicas17. Essas fundações podem receber verba de empresas privadas e outras instituições da sociedade civil para execução de projetos e devem repassar parte dessa verba para as universidades. Além disso, professores que façam pesquisa em alguma área que demande recursos muito altos podem utilizar uma dessas fundações para conseguir financiamentos específicos em parceria com setor privado. Em 2013, 74 fundações de apoio foram credenciadas/recredenciadas pelo Ministério da Educação18, com um prazo usual de dois anos para a vigência de cada credenciamento. Atualmente, não existe uma base de dados pública e de fácil acesso que consolide as informações quanto ao volume de financiamento dessas fundações e que facilite a análise de custo benefício destas. O Ministério da Educação poderia organizar e disponibilizar tais dados para facilitar a racionalização do desenho de políticas públicas.
  • A flexibilização da legislação de modo a permitir às instituições de ensino superior licenciar suas marcas e experimentar individualmente métodos distintos de financiamento.Entre possibilidades que já foram experimentadas em outros países, incluem-se o licenciamento da marca de universidades em produtos distintos (como peças de roupa, indumentária esportiva, peças decorativas e outros produtos) e a possibilidade de batismo de prédios, salas e cátedras da universidade em nome de empresas ou pessoas físicas que estejam dispostas a financiá-las. Mais importante, ao descentralizar esse tipo de planejamento, as universidades poderão experimentar com possibilidades diversas e aprender com as falhas e sucessos umas das outras – melhorando, assim, o sistema de financiamento da educação superior pública.

 

Em uma transição, o financiamento das universidades públicas pode combinar o atual regime de impostos com fontes alternativas de financiamento. Excluindo-se os gastos com servidores inativos, o gasto por aluno necessário para financiar as universidades federais é de aproximadamente R$ 29 mil ao ano (ou cerca de R$ 2,4 mil ao mês)19. Até que um sistema de financiamento privado via doações e cooperação com o setor privado seja construído, é provável que o financiamento exclusivamente por mensalidades seja politicamente inviável. Por isso, um novo regime de financiamento deve incorporar uma transição suave de médio prazo.

 

CONCLUSÕES

A atual priorização do ensino superior em termos de gasto por estudante, em uma média muito maior do que a dos países da OCDE, contribui para a perpetuação de desigualdades sociais no Brasil. Como políticas públicas, universidades estatais transferem rendas de pessoas relativamente pobres para aquelas relativamente ricas.

Reverter essa priorização focando-se na educação de base traria importantes retornos em termos cognitivos para as crianças, econômicos para a sociedade e contribuiria para reduzir as desigualdades sociais e de renda. Uma vez que desigualdades de performance sócio-econômica na vida adulta tendem a estar relacionadas diretamente com a qualidade da educação de base, uma equalização de oportunidades na educação de base tenderia a amenizar desigualdades futuras.

Em termos regulatórios, é necessária uma ampla reforma do sistema educacional brasileiro. Na educação superior, a instituição de mensalidades proporcionais à renda familiar do estudante e a flexibilização dos métodos de captação de recursos por universidades reduziria o fardo de impostos necessários para o financiamento dessas instituições. Na educação de base, alternativas de descentralização da educação pública e empoderamento dos pais de crianças pobres na escolha da educação de seus filhos, seja por meio de escolas públicas autônomas ou por vales educacionais, contribuiria com melhoria da educação recebida pelos grupos economicamente desfavorecidos.

 

Os autores agradecem a Cássio Ribeiro, Ronald Barbosa e Irapuã Santana pela ajuda fundamental na compreensão da legislação que regula doações e financiamento em universidades e por seus comentários e críticas; e a Marília Mareto por sua cuidadosa revisão. Enfatizamos que qualquer erro e omissão do presente estudo é nossa responsabilidade.

 

Versão completa deste texto foi publicada no site do Instituto Mercado Popular, em 18 de maio de 2016.

 

___________________

1 O conceito de jovens abarca indivíduos que têm entre 18 e 24 anos. Essa é a divisão etária que a Pesquisa Mensal de Empregos do IBGE utiliza para caracterização de desemprego juvenil.

2 Essas probabilidades são valores preditos por uma regressão logística que tem a probabilidade de se estudar em uma universidade pública como variável dependente e o logaritmo da renda familiar per capita como variável independente. Ver Anexo 3 para detalhes da estimação.

3 O critério do IBGE para cor/raça faz uma divisão entre “pretos” e “pardos”. Neste estudo, decidiu-se por fazer uma agregação das duas categorias sob o rótulo de “negros”.

4 Como o período 2012-2014 era um período de transição quanto à elegibilidade de curso para o Ciência sem Fronteiras, definimos “cursos” elegíveis como aqueles que têm ao menos um estudante listado no Censo da Educação Superior de 2014 como participante do Ciência Sem Fronteiras.

5 Estimações resultantes de uma regressão linear que utiliza dados da PNAD de 2013. Veja Anexo 4 para detalhes metodológicos.

6 Heckman, James. 2008. “School, Skills, and Synapses”. Economic Inquiry. Volume 46, Issue 3, pages 289–324, July 2008

7 Ver, por exemplo, Fyer Jr., Roland. 2010 “Racial Inequality in the 21st Century: The Declining Significance of Discrimination.” NBER Working Paper No. 16256.

8 Menezes Filho; Naercio; Oliveira, Alison. 2014. “A Contribuição da Educação para a Queda na Desigualdade de Renda per Capita no Brasil”. Insper Policy Paper n. 9.

9 Nós mencionamos prioritariamente estudos experimentais comorandomized control trials ou loterias para ascensão às escolas. Isso porque, ao adicionar aleatoriedade ao processo de seleção, eles permitem uma inferência causal mais forte, indo além de mera correlação.

10 Betts, Julian & Y. Emily Tang. 2014. “A Meta-Analysis of the Literature on the Effect of Charter Schools on Student Achievement.” CRPE Working Paper. August 2014.

11 Forster, Greg. 2013. “A Win-Win Solution: The Empirical Evidence on School Choice.” The Friedman Foundation. April 2013.

12 Heckman, James, et al. 2013. “Understanding the Mechanisms through Which an Influential Early Childhood Program Boosted Adult Outcomes.” American Economic Review, 103(6): 2052-86.

13 University of California. “How Aid Works: Student Scenarios”. http://admission.universityofcalifornia.edu/paying-for-uc/how-aid-works/student-scenarios/index.html. Acessado em 7/4/2016.

14 Projeto de Lei 782/2015, do Sen. Marcello Crivella, que “dispõe sobre o pagamento, pelo estudante universitário, de anuidade em instituições públicas de ensino superior”.

15 Projeto de Lei 4643/2012, da Dep. Bruna Furlan, que “autoriza a criação de Fundo Patrimonial (endowment fund) nas instituições federais de ensino superior”.

16 National Association of College and University Business Officers. 2015. “NACUBO-Commonfund Study of Endowments.” Disponível em: http://www.nacubo.org/Research/NACUBO-Commonfund_Study_of_Endowments/Public_NCSE_Tables.html. Acessado em 13/4/2016.

17 Ver Lei 8.958/1994 e Lei 12.349/2010, que regulamentam as fundações de apoio às universidades públicas.

18 Secretaria de Educação Superior, Ministério da Educação. 2014. “A democratização e expansão da educação superior no país 2003 – 2014”.

19 O orçamento das universidades públicas federais em 2014 foi de, aproximadamente, 34 bilhões de reais e o número de vagas foi de, aproximadamente, 1,2 milhões.

 

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A desigualdade de renda parou de cair? (Parte III) https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2041&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-desigualdade-de-renda-parou-de-cair-parte-iii https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2041#comments Tue, 29 Oct 2013 13:44:19 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2041 O texto da semana passada mostrou como o mercado de trabalho atuou no sentido de reduzir a desigualdade de renda desde pelo menos o início da primeira década do século XXI. Argumentou-se, naquele texto, que as condições que levaram à redução da desigualdade podem não se reproduzir nos próximos anos, o que faria com que a trajetória de queda se interrompesse.

O presente texto analisa o impacto das políticas sociais mostrando que, também nesse caso, os ganhos mais fáceis em termos de redistribuição já foram obtidos, podendo-se prever redução do seu efeito redistributivo nos próximos anos.

De acordo com IPEA (2013)1, aproximadamente 40% da queda da desigualdade entre 2002 e 2012 decorreu de políticas governamentais, sendo os seguintes os impactos individuais de cada política: aumento do valor real das aposentadorias de menor valor, indexadas ao salário-mínimo (21%); expansão do Bolsa Família (12%) e do Benefício de Prestação Continuada (BPC) (6%). Souza e Medeiros (2013)2, analisando a variação da desigualdade entre 2002 e 2009, chegam a números similares.

Trata-se de impacto significativo: as políticas sociais estão, de fato, ajudando a reduzir a desigualdade. Todavia, o governo poderia ter feito muito mais em termos de redução da desigualdade e da pobreza sem, ao mesmo tempo, ter prejudicado tanto as perspectivas de crescimento econômico, no curto e no médio prazo.

Em primeiro lugar, deve-se considerar que o Bolsa Família, entre os instrumentos de políticas públicas de redução de pobreza e desigualdade, é o mais eficiente, pois reduz a desigualdade a baixo custo. Já os benefícios previdenciários indexados ao salário-mínimo e o BPC (que também é reajustado de acordo com o mínimo) têm elevado custo fiscal. Outros programas públicos, como o Seguro-Desemprego e o Abono Salarial, além de impacto pífio sobre a desigualdade, também têm custo mais alto que o Bolsa Família.

Não obstante isso, o governo insiste em manter programas sociais menos eficientes e de alto custo, em vez de ampliar as intervenções de menor custo, na linha do Bolsa Família. Em especial, insiste nos aumentos reais do salário-mínimo, que provocam grandes aumentos de despesa pública, gerando desequilíbrio fiscal (além do problema citado na parte II, publicada na semana passada: elevação de custos e perda de competitividade das empresas).

Os aumentos reais do salário-mínimo são uma importante ferramenta eleitoral, o que torna difícil alteração de rota em tal política, a despeito de seus impactos adversos. O resultado é a expansão do gasto público, que pressiona a taxa de juros e a carga tributária. Ambos desestimulam o investimento e o crescimento econômico.

Em segundo lugar, é preciso considerar que a Previdência Social como um todo (considerando-se não só os benefícios de um salário-mínimo mas todas as aposentadorias, pensões e demais benefícios pagos) é fortemente concentradora de renda. De acordo com IPEA (2012)3, em 2011 a Previdência era responsável por 18% de toda desigualdade de renda. Ou seja, se não existissem os pagamentos feitos pela Previdência Social, o Índice de Gini seria aproximadamente 18% menor.

Isso ocorre porque são pagos benefícios de valor mais elevado para segmentos de renda mais alta. Uma reforma da previdência que reduzisse os privilégios hoje existentes (como, por exemplo, a concessão de pensões por morte sem qualquer limitação do prazo de concessão ou restrições de valores), diminuiria esse efeito concentrador de renda. No entanto a reforma da previdência saiu da agenda política, tendo sido aprovada apenas uma versão mitigada da previdência complementar dos servidores públicos.

Em terceiro lugar, houve no período 2007-2010 (segundo mandato do Presidente Lula) significativos aumentos salariais para os servidores públicos, o que também tem impacto concentrador de renda, pois o funcionalismo está no topo da distribuição de renda. Houve aumento real da folha de pessoal da União da ordem de 8% ao ano naquele período4, com posterior estabilização ao longo do Governo Dilma.

De acordo com o texto de Souza e Medeiros (2013), acima citado, entre 2003 e 2009 quase toda a redução de desigualdade promovida pelo Bolsa Família (12%) foi desfeita pelo aumento da remuneração dos servidores públicos, que aumentou a desigualdade em  10%. Note-se que também nesse caso houve deterioração das contas fiscais e necessidade de aumento de impostos e juros, com prejuízo para o crescimento da economia.

Em quarto lugar, duas políticas públicas fundamentais para melhorar as condições de vida da população e ao mesmo tempo elevar a produtividade dos trabalhadores, têm apresentado pouco progresso ou estagnação. Trata-se do saneamento e da saúde.

No caso do saneamento, IPEA (2013, p. 7) apresenta a  informação de que “o percentual de pessoas que tiveram acesso simultaneamente a energia elétrica, coleta de lixo, esgotamento sanitário adequado e acesso adequado à rede geral de água aumentou 1 ponto percentual em 2012, atingindo o universo de 59,2%”. Este é um dado muito ruim: 40,8% da população brasileira não têm acesso a serviços públicos básicos.

É relevante ressaltar que enquanto houve farta distribuição de desonerações tributárias nos últimos anos, as empresas de saneamento básico continuaram a ser taxadas integralmente pelo PIS/COFINS e CSLL, a despeito de haver no Congresso diversos projetos propondo tal isenção.

Na saúde, conforme registra Médici (2011)5, houve descontinuidade de importantes políticas de ampliação de atenção à saúde dos mais pobres. Entre 1992 e 2002 a cobertura do Programa Saúde da Família expandiu-se a uma taxa anual de 25,5%, depois, entre 2002 e 2009, essa taxa reduziu-se para 8% a.a.. A mesma desaceleração foi verificada no Programa de Agentes Comunitários de Saúde, que crescia a 72,6% ao ano entre 1994 e 2002 e desacelerou para 2,5% ao ano no período 2002-2009.

Também foi interrompido o processo de organização da rede de atendimento ambulatorial de forma regionalizada. Por esse meio, postos de atendimento básico filtravam os pacientes mais graves para unidades capacitadas para atendimento mais complexo, geridas pelos estados e cobrindo vários municípios. O sistema regrediu para o modelo anterior de hospitais municipais pequenos, sem economia de escala, baixa capacidade operacional e alta ociosidade.

Pouca ênfase foi dada às experiências de gestão hospitalar por Organizações Sociais, em contratos de gestão mais flexíveis que, comprovadamente, reduzem o custo e aumentam a resolutividade e qualidade dos atendimentos.

Ainda na saúde interrompeu-se a implantação do Cartão SUS, que agregaria qualidade ao atendimento, ao armazenar o histórico clinico dos pacientes. Ao mesmo tempo, o Cartão permitiria a criação de uma câmara de compensação financeira, para que os estados e municípios que prestassem o atendimento fossem por ele remunerados, além de permitir a cobrança, junto a planos de saúde, pelo atendimento de seus clientes que viessem a ser atendidos pelo SUS.

Tais medidas, se levadas adiante, reduziriam a iniquidade no atendimento à saúde, melhorariam a gestão, a produtividade e a qualidade dos serviços prestados. Em última instância, elevariam a capacidade laboral do trabalhador, sua produtividade e as perspectivas de crescimento da economia.

Ou seja, com políticas mais focadas na população pobre teria sido possível diminuir a pobreza e a desigualdade de forma mais intensa do que realmente aconteceu. Esse tipo de aperfeiçoamento da política social se torna cada vez mais importante, pois há motivos para se crer que o atual conjunto de política tende a ter menor efeito sobre a desigualdade nos próximos anos, uma vez que os resultados mais fáceis já foram obtidos. Isso porque:

a) o Bolsa Família e os demais programas sociais estão próximos de esgotar o seu processo de expansão (praticamente toda clientela elegível já é atendida pelos programas) e só continuarão a ter efeito redistributivo se houver aumento real no valor dos benefícios, o que se defronta com a delicada situação fiscal do país;

b) o processo de elevação do valor real do salário-mínimo parece já ter chegado a um ponto de esgotamento, tanto por produzir aumentos artificiais de salários, reduzindo a competitividade das empresas, quanto pela pressão que exerce nas contas públicas via previdência social.

c) Segundo Ferreira et al (2013)6, 32% da população brasileira, em 2009, podia ser classificada como “vulnerável”. Essas pessoas deixaram de ser pobres, mas têm razoável chance de voltar a sê-lo. Uma desaceleração da economia pode levar parte desse grande contingente de volta à pobreza, com possível ampliação dos  índices de desigualdade.

Para evitar que a desigualdade e a pobreza parem de cair é preciso ir além dos ajustes nas políticas sociais referidos ao longo desse texto (inclusive nos setores de saúde e saneamento). Deve-se fazer uma reforma da previdência social que, ao mesmo tempo, reduza a iniquidade daquele sistema e promova ajuste estrutural das contas públicas, o que elevará a poupança agregada e, consequentemente, o potencial de crescimento da economia. Portanto, a reforma da previdência combinaria queda de desigualdade com aumento do crescimento.

Da mesma forma, é fundamental dar prioridade à melhoria da qualidade da educação que é o meio mais garantido de gerar, simultaneamente, redução de desigualdade e crescimento econômico no longo prazo. A oferta de educação de qualidade faz com que o futuro das crianças deixe de depender do nível sócio-econômico dos pais. Um sistema educacional equitativo cria igualdade de oportunidades e promove mobilidade social de uma geração para outra. Sem investimentos em educação as famílias podem até melhorar de vida, mas seus horizontes estarão limitados pelo histórico familiar, pois as suas oportunidades de educação tendem a ser similares ou pouco melhores do que as que seus pais tiveram.

Políticas públicas e reformas que combinem redução da desigualdade com remoção de barreiras ao crescimento devem ser as prioridades governamentais.

__________

1 IPEA (2013) “Duas décadas de desigualdade e pobreza no Brasil medidas pela Pnad/IBGE” – Comunicados do IPEA nº 159, de 2013

2 Souza, P.H.G.F, Medeiros, M. (2013) The Decline in Inequality in Brazil in 2003-2009: the role of the State. Universidade de Brasilia. Economics and Politics Working Paper 14/2013.

3 IPEA (2012) A Década Inclusiva (2001-2011): desigualdade, pobreza e políticas de renda. Comunicado IPEA nº 155, de 2012.

4 Fonte: Boletim Estatístico de Pessoal, mar. 2013. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.

5 Médici, A. (2011) Propostas para Melhorar a Cobertura, a Eficiência e a Qualidade no Setor Saúde. In: Bacha, E.L. e Schwartzman, S. (Orgs.) Brasil: a nova agenda social. LTC editora.

6 Ferreira, F.H.G. et al (2013) Economic Mobility and the Rise of Latin American Middle Class. Banco Mundial.

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A desigualdade de renda parou de cair? (Parte II) https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2021&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-desigualdade-de-renda-parou-de-cair-parte-ii https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2021#comments Mon, 21 Oct 2013 11:58:52 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2021 No texto publicado na semana passada chamou-se atenção para o fato de que o Índice de Gini de distribuição de renda no Brasil parou de cair em 2012, interrompendo uma trajetória descendente que vem desde meados dos anos 90. Pode ser que isso seja apenas um dado isolado, que não revele uma nova tendência de interrupção da queda da desigualdade. Mas também pode ser um sinal de que os fatores que levaram à queda da desigualdade estão se estagnando. Isso seria preocupante, pois a desigualdade no Brasil ainda é alta.

A literatura especializada já vem apontando há alguns anos que será cada vez mais difícil manter a redução da desigualdade1. Para sabermos o motivo, é preciso entender quais foram as causas da queda recente da desigualdade.

Esse texto vai se concentrar nos fatores que afetam a desigualdade no mercado de trabalho. Na próxima semana serão analisadas as políticas sociais do governo.

I – A mudança no perfil de demanda de mão-de-obra

A forte queda da desigualdade não ocorreu apenas no Brasil. Como mostram inúmeros estudos, entre eles o artigo Deconstructing the Decline of Inequality in Latin America2, houve generalizada queda de pobreza e desigualdade na maioria dos países da América Latina. O estudo mostra que, dos 17 países estudados, nada menos que 12 tiveram significativa queda de desigualdade.

Essa causa comum parece ser o boom no mercado internacional de commodities, que favoreceu todos os países da região, tipicamente exportadores desse tipo de mercadoria. Esse boom ocorreu exatamente a partir de 2002/2003, quando a desigualdade começou a cair de forma mais intensa. Mas qual seria o mecanismo que transformaria os ganhos no comércio internacional em redução da desigualdade?

Em primeiro lugar é preciso ficar claro que o aumento de preços no mercado internacional dos produtos exportados pela América Latina e a queda dos preços dos produtos de alta tecnologia por ela importados aumentou fortemente o poder de compra dos países da região. Para que se tenha ideia da dimensão desse fenômeno, basta notar quem em 2005 um navio carregado de minério de ferro tinha valor equivalente a 2.200 TVs de tela plana, em 2010 a mesma carga valia o equivalente a 22.000 TVs3.

Mas como esse maior poder de compra passou da mão dos exportadores para o restante da população? E como gerou redução da desigualdade de renda?

A maior renda obtida com exportações ativa a economia como um todo. Passa a haver, por exemplo, maior disponibilidade de divisas, a taxa de câmbio valoriza-se, e as empresas podem importar mais máquinas e equipamentos, enquanto os consumidores podem consumir bens importados a custo menor. As empresas exportadoras depositam seus superávits financeiros nos bancos, que emprestam os recursos para outros setores da economia, aumentando a taxa de investimento e crescimento. O maior investimento aumenta a taxa de crescimento e a demanda por trabalhadores.

Os ganhos nas relações de troca internacional são, portanto, uma bênção, e devem ser aproveitadas ao máximo pelo país. No entanto, embora aumentem a renda e a poupança disponível para financiar investimentos, eles não são suficientes para desencadear o desenvolvimento de todos os setores da economia.

Isso porque o Brasil (assim como boa parte dos países latino-americanos) tem diversos outros problemas que retiram competitividade da economia: a infraestrutura de transportes e comunicações é ruim; a energia é cara; a economia é fechada à concorrência internacional e à importação de insumos e serviços de qualidade; o grau de instrução da mão-de-obra é baixo; o sistema tributário é pesado e distorce os preços; a regulação econômica e a defesa da concorrência são frágeis. Por todos esses motivos o Brasil não consegue competir com outros países no mercado de bens e serviços mais sofisticados.

Quando vem um estímulo externo como o boom de commodities, os setores da economia brasileira que conseguem crescer são aqueles ligados aos serviços de menor conteúdo tecnológico. Esses setores tendem a contratar trabalhadores pouco qualificados. Com maior procura por trabalhadores pouco qualificados, os salários desse grupo cresceram em relação aos demais trabalhadores: daí a redução nas desigualdades salariais.

O raciocínio é o seguinte: o boom de commodities provocou a valorização das moedas dos países exportadores desses produtos, enquanto o aumento da renda se refletiu em maior consumo. Com um câmbio valorizado, o consumo de bens industrializados, disponíveis no mercado internacional (chamado de “bens comercializáveis”), passou a ser atendido por importações, como as TVs de tela plana do exemplo acima. Elas mais baratas e de melhor qualidade que os bens industriais produzidos nos países latino-americanos que, devido aos problemas de má infraestrutura e outros acima listados, não têm produtividade e competitividade para competir com os importados).

Já o aumento do consumo de bens não disponíveis no mercado internacional (serviços em geral, construção civil, produtos perecíveis) –  conhecido como “não-comercializáveis” – teve que ser atendido pelos produtores internos. Isso fez o preço dos serviços e demais bens não comercializáveis disparar em relação ao preço dos bens importados. O preço dos bens importados não subiu, pois o aumento de demanda pode ser atendido por importações crescentes. Já o preço dos bens e serviços não disponíveis para importação subiu, porque a oferta ficou limitada ao que é produzido dentro do país, não dando conta de atender a expansão da demanda.

Ocorre que o setor de serviços utiliza majoritariamente trabalhadores menos qualificados e de menor escolaridade que a indústria. Ou seja, subiu a demanda por trabalhadores menos qualificados no mercado de trabalho e caiu (ou cresceu mais lentamente) a demanda por trabalhadores mais qualificados. Adicionalmente, o próprio setor de commodities, em especial, das commodities agrícolas, é intensivo em mão de obra de menor qualificação. Em consequência, elevaram-se os salários dos menos qualificados em relação aos mais qualificados.

Os países latino-americanos, e o Brasil em particular, criaram mais empregos de balconista, cabeleireiro, trabalhador rural e atendente de call center, e menos vagas de operadores de equipamentos industriais robotizados, designers ou especialistas em telecomunicações.Isso explicaria a redução das desigualdades salariais no mercado de trabalho e a desigualdade de renda.

Note-se que tal distorção não é “culpa” do setor de commodities que, na verdade, é competitivo e gera grande benefício ao país. O problema está na má infraestrutura, no fechamento da economia à competição internacional, no sistema tributário caótico, na frágil regulação de setores oligopolizados, etc. Países como Canadá, Estados Unidos e Austrália, fortes exportadores de commodities, não sofrem o mesmo problema de competitividade do Brasil, pois têm políticas de comércio exterior mais aberta, melhor regulação, melhor infraestrutura, etc.

A história contada acima indica que a queda da desigualdade não é portadora apenas de boas notícias. Ela pode ser sintoma da incapacidade da economia de desenvolver setores de maior tecnologia e maior sofisticação. Com isso, o país perde empregos no segmento mais competitivo. Graças ao boom de renda vindo do exterior, esses empregos são substituídos por outros, menos produtivos, concentrados nos serviços de menor sofisticação. No curto prazo, observamos queda de desigualdade. Mas no longo prazo observaremos menor capacidade de crescimento econômico.

E o que é pior, como o ganho de renda vindo das commodities está fora do controle do governo, por ser determinado no mercado internacional, a reversão dessa tendência pode fazer murchar também o ímpeto do setor de serviços, o que fará com que o baixo crescimento passe a ser acompanhado, também, da interrupção da queda da desigualdade.

Esse pode ser um fator por trás da interrupção da queda da desigualdade em 2012 em relação a 2011. Ao decompor as fontes de variação desse índice, IPEA (2013) constata que no período 2011-2012 as rendas do trabalho deixaram de ser um fator de queda da desigualdade tendo, pelo contrário, levado a pequeno aumento do indicador.

Ou seja, a redução da desigualdade nas remunerações no mercado de trabalho, que foi o carro chefe da queda da desigualdade no período 2002-2011, não ocorreu em 2011-2012. Esse pode ser um indicador de que a dinâmica da expansão dos serviços esteja se esgotando. O fato de que os ganhos de renda vindo das commodities estão se estabilizando pode ser uma das causas dessa reversão.

Esse tipo de raciocínio ajuda a entender também porque a desigualdade não teria caído fortemente ao longo da década de 1990. Em primeiro lugar, porque naquele período, em vez de um choque favorável nos preços das commodities, o mercado internacional impunha ao Brasil e à América Latina um ambiente instável de crises financeiras internacionais e aumentos de juros, que reduziam a renda dos países da região.

Em segundo lugar, houve no Brasil uma série de reformas favoráveis ao crescimento econômico, tais como as privatizações e a abertura comercial com o exterior, que permitiram a entrada de tecnologias de ponta no país. Em um primeiro momento, essas reformas tendem a ter efeito concentrador de renda: elas aumentam a demanda por trabalho mais qualificado em áreas de maior tecnologia (basta imaginar a quantidade de novos engenheiros decorrente da expansão das telecomunicações nos anos 90). Porém, no longo prazo elas abrem caminho para a geração de empregos e o crescimento econômico, espalhando o benefício por toda a economia. Tome-se como exemplo os ganhos de renda que pequenos agricultores e profissionais autônomos tiveram a partir da disponibilidade de telefones celulares.

Em suma, parte significativa da queda da desigualdade a partir de 2002 “caiu do céu”: um presente para a América Latina, sob a forma de alta nos preços das commodities. Esse presente se converteu em queda da desigualdade devido, em parte, à incapacidade dos países da região, e do Brasil em particular, em oferecer às empresas condições de competitividade (infraestrutura, sistema tributário adequado, etc.), o que levou a expansão da economia a ser conduzida pelo setor de serviços de menor conteúdo tecnológico, menos produtivo e demandante de mão-de-obra menos qualificada. Nesse sentido, a queda da desigualdade seria um subproduto positivo gerado por uma fragilidade econômica do país.

II- A mudança no perfil de oferta da mão-de-obra

Outro fator de redução da desigualdade, que também parece ter atuado no sentido de reduzir as diferenças de remuneração no mercado de trabalho, foi o aumento da escolaridade da população. De fato, a média de anos de estudo da população brasileira subiu bastante desde meados da década de 1980. Entre 1950 e 1980 a média de anos de estudo no país cresceu apenas 1,07 anos, passando de 1,5 anos para 2,57 anos. Entre 1980 e 2010 houve crescimento contínuo e um salto de quase 5 anos na média, que passou a ser de 7,55.4

Essa maior quantidade de trabalhadores com mais escolaridade aumentou a oferta de trabalho qualificado e diminuiu a oferta de trabalho pouco qualificado (na suposição de que a escola pública agrega alguma qualificação efetiva ao trabalhador, apesar da sua baixa qualidade). Em consequência, aumentou o preço do trabalho menos qualificado (agora mais escasso) e caiu o preço do trabalho mais qualificado (agora mais abundante).

Note-se que o nível geral de educação (tanto em termos de anos de estudo quanto em termos da qualidade dessa educação) ainda é bastante baixo no país. Mas a evolução observada  teria sido suficiente para amenizar as fortes desigualdades de remuneração no mercado de trabalho.

Ocorre que os ganhos mais fáceis, obtidos pela simples inclusão das crianças na escola, já foi obtido. Daqui para frente, para que o aumento de escolaridade continue a pressionar para baixo a desigualdade e a pobreza, serão necessários avanços na melhoria da qualidade do ensino e aumento na taxa de escolarização de jovens, visto que o ensino fundamental já está universalizado desde meados da década de 1990.

Em especial, é preciso avançar em quantidade e qualidade no ensino médio. Como chama atenção Fernando Veloso em entrevista à Folha de S. Paulo5, ainda é baixo o percentual de jovens entre 15 e 17 anos frequentando a escola (84% segundo a PNAD 2012) e o currículo do ensino médio é ruim e divorciado da necessidade das empresas. Os jovens não chegam ao mercado de trabalho equipados para lidar com procedimentos intensivos em alta tecnologia. Isso significa que uma retomada do crescimento pode levar ao aumento da desigualdade, pois aumentará a demanda por trabalho mais qualificado, e os jovens mais pobres não têm tal qualificação, que não lhes é provida pela escola pública.

Lustig et al (2013) chegam a levantar a hipótese de que parte da queda do diferencial de salários entre pessoas com maior e menor escolaridade vem da deterioração da qualidade do ensino médio. Dado que o conteúdo aprendido pelos alunos desse nível de ensino não teria serventia para as empresas, elas se tornariam indiferentes entre contratar pessoas com ou sem ensino médio completo.

III – O papel do salário-mínimo

Um terceiro mecanismo que pode estar por trás da queda da desigualdade de salários no mercado de trabalho é a ativa política de elevação do valor real do salário-mínimo, perseguida pelo governo desde o segundo mandato de FHC, com intensidade acentuada a partir do primeiro governo Lula.

O salário-mínimo na década de 1990 era muito baixo e havia espaço para a sua elevação, sem prejudicar a rentabilidade das empresas. Porém, após seguidos anos de elevação acima da inflação, o salário-minimo real de 2013 é quase o dobro do seu valor em 1995.

É sabido que o salário-mínimo funciona como uma referência para a fixação de remunerações na base da pirâmide salarial. É comum tomá-lo como referência e reajustar remunerações superiores ao mínimo pelo mesmo índice de correção deste. O resultado é que variações no mínimo impactam fortemente salários maiores que o mínimo e, em cadeia, promovem aumentos das remunerações mais baixas.

Se por um lado isso reduz a desigualdade de remunerações (e faz a desigualdade no país cair), por outro lado acaba afetando o custo do trabalho para as empresas, que perdem lucratividade e competitividade.

A redução da desigualdade no curto prazo, por meio da elevação do salário-mínimo, se faz à custa de perdas de oportunidade de crescimento e geração de renda para todo o país no médio e longo prazos. Mais uma vez temos uma situação em que a queda da desigualdade não é apenas portadora de boas notícias. Há que se considerar, ainda, a possibilidade de os efeitos adversos do salário mínimo sobre a geração de emprego e estímulo ao investimento anularem o efeito redistributivo do aumento da remuneração daqueles que permanecerem empregados.

IV – A desigualdade parou de cair?

Tendo em vista os três fatores acima analisados (mudanças na demanda e na oferta de mão-de-obra e elevação real do salário-mínimo), cabe perguntar se eles continuarão a pressionar a desigualdade para baixo nos próximos anos.

Como já antecipado acima, o papel do boom de commodities sobre a demanda de mão-de-obra tende a arrefecer em função do esfriamento de tal mercado. Ademais, há que se levar em conta que esse não é o melhor caminho para se reduzir a desigualdade, afinal ele passa pela desindustrialização do país e pelo aumento de importância de setores de baixa produtividade, o que reduz o potencial de crescimento e geração de renda futura. Obviamente não se está sugerindo que o governo desestimule a exportação de commodities ou subsidie o setor industrial. O melhor a fazer é aproveitar o bom momento da economia internacional, porém consciente de que é preciso melhorar as condições de produção do Brasil, por meio de expansão da infraestrutura, melhoria na qualidade da educação, controle dos gastos públicos, racionalização do sistema tributário, entre outras medidas que aumentem a produtividade e viabilizem a diversificação da produção no Brasil, aumentando seu conteúdo tecnológico e diminuindo nossa dependência em relação ao comércio internacional de commodities.

Já do lado da oferta de trabalho, a maior escolaridade só continuará a reduzir a desigualdade se houver progressos na melhoria da qualidade da educação; em especial no ensino médio.

No que se refere ao papel do salário-mínimo, é preciso considerar que a política de elevação desse salário acima da inflação tem forte impacto sobre as despesas do governo. Em especial, sobre as contas da previdência social, cujos benefícios são indexados àquela remuneração básica. Assim, parece que em função de esgotamento fiscal não será possível manter tal política por muito tempo, a menos que se jogue para o alto qualquer intenção de manter o equilíbrio fiscal e a inflação sob controle. Mas se a inflação voltar, certamente o quadro distributivo se deteriorará, pois como todos sabem, a inflação é fortemente concentradora de renda.

Ainda que fosse possível aguentar por mais alguns anos o peso fiscal dos reajustes do salário-mínimo, seria preciso julgar se essa seria a melhor opção, tendo em vista as distorções introduzidas no mercado de trabalho, em especial o desestímulo à contratação de pessoal pouco qualificado, cuja produtividade tende a ser inferior ao salário-mínimo.

Em suma, não se pode dizer, ainda, que a parada na queda do Índice de Gini observada em 2012 é uma nova tendência de estabilidade da desigualdade, mesmo porque outros indicadores mantêm a tendência de queda. Mas não faltam motivos para se acreditar que isso seja possível. Ademais, o texto procurou deixar claro que a queda da desigualdade pode não ser portadora apenas de boas notícias. Ela pode ser resultado de fragilidades e desajustes econômicos que têm como custo a menor capacidade de crescimento e de geração de emprego no futuro.

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1 O presente texto está baseado nas seguintes referências bibliográficas:

Lustig, N., Lopez-Calva, L. e Ortiz-Juarez, E. (2013) Deconstructing the Decline of Inequality in Latin America. Banco Mundial. Policy Research Working Paper nº 6552, julho de 2013.

Banco Mundial (2012). The Labor Market Story behind Latin America’s Transformation.

Souza, P.H.G.F, Medeiros, M. (2013) The Decline in Inequality in Brazil in 2003-2009: the role of the State. Universidade de Brasilia. Economics and Politics Working Paper 14/2013.

Azevedo et all (2013) Fifteen Years of Inequality in Latin America. Banco Mundial, Policy Research Working Paper 6384.

Barros, R.P. et al (2009) Markets, the State and the Dynamics of Inequality: Brazil’s case study. UNDP. Research for Public Policy Inclusive Development 14-2009.

Ferreira, F.H.G. et al (2013) Economic Mobility and the Rise of Latin American Middle Class. Banco Mundial.

Lustig, N. et al (2011) The Decline in Inequality in Latin America: How Much, Since When and Why. Tulaine Economics Working Paper Series 1118.

Banco Mundial (2011) A Break of History: Fifteen Years of Inequality Reduction in Latin America.

IPEA (2012) A Década Inclusiva (2001-2011): desigualdade, pobreza e políticas de renda. Comunicado IPEA nº 155, de 2012.

IPEA (2013) “Duas décadas de desigualdade e pobreza no Brasil medidas pela Pnad/IBGE” – Comunicados do IPEA nº 159, de 2013.

2 Lustig, N., Lopez-Calva, L. e Ortiz-Juarez, E. (2013) Deconstructing the Decline of Inequality in Latin America. Banco Mundial. Policy Research Working Paper nº 6552, julho de 2013.

3 http://www.smh.com.au/business/world-business/heavenly-ironore-prices-bound-for-purgatory-as-china-reforms-20130730-2qvoz.html. Agradeço a Marcos Kohler pela indicação dessa estatística comparativa.

4 Fonte: Barro, R. e Lee, J-W (2010) A New Dataset of Educational Attainment in the World, 1950-2010. NBER Working Paper, nº 15.902.

5 “Desigualdade pode voltar a crescer, diz pesquisador” – Folha de S. Paulo, 12/10/2013.

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A desigualdade de renda parou de cair? (Parte I) https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2010&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-desigualdade-de-renda-parou-de-cair-parte-i https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=2010#comments Wed, 16 Oct 2013 15:16:36 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2010 O governo tem comemorado, ano após ano, a redução da desigualdade de renda no país. O Índice de Gini, uma das formas de mensurar tal desigualdade, tem caído sistematicamente desde o início da década de 2000, como pode ser visto no Gráfico 1. Criou-se um forte discurso oficial em torno da melhoria desse indicador: política social inclusiva, entrada dos pobres na classe média, expansão da classe C, crescimento da renda dos mais pobres em ritmo chinês, etc. Não seria exagero dizer que a queda da desigualdade é um dos carros-chefes da popularidade dos presidentes Lula e Dilma.

Usar o Índice de Gini tem sido muito útil para fins de propaganda oficial, pois a queda da desigualdade, medida por esse índice, aproximadamente coincide com a entrada do Partido dos Trabalhadores no governo. Essa coincidência temporal se torna uma importante ferramenta de propaganda do tipo “antes” e “depois”. Mostra-se o Gráfico 1 e fala-se: antes de o PT entrar no governo a desigualdade não se mexia; depois que o PT entrou no governo a desigualdade começou a cair.

Gráfico 1 – Evolução da Desigualdade de Renda no Brasil (Índice de Gini para a renda domiciliar per capita): 1977-2012

A Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (PNAD) de 2012, contudo, traz um dado preocupante. Pela primeira vez em mais de dez anos não há redução no Índice de Gini, que ficou praticamente estagnado. Em 2011 registrou o valor de 0,527 e em 2012 ficou em 0,526, como pode ser visto no Gráfico 1.

Em anos anteriores, quando o Índice de Gini caía fortemente, o governo se apressava a divulgar a boa nova, por meio de comunicados técnicos. Mais recentemente essa tarefa tem ficado a cargo do IPEA que, em 2012, analisando o resultado da PNAD 2011, publicou o Comunicado nº 155 (A Década Inclusiva: desigualdade, pobreza e políticas de renda), que centrou toda sua análise da evolução da desigualdade no Índice de Gini, comemorando os resultados virtuosos.

Curiosamente, agora que tal índice parou de cair, o IPEA mudou seu enfoque. No novo documento Comunicado IPEA nº 159 (Duas décadas de desigualdade e pobreza no Brasil medidas pela PNAD/IBGE), aquele órgão técnico coloca a análise do Índice de Gini em segundo plano, e passa a avaliar outras medidas de desigualdade que, ao contrário do Gini, continuaram a cair em 2012.

O IPEA passa a olhar para outros índices, como o de Theil ou a razão de 20% mais ricos em relação aos 20% mais pobres, que apresentaram queda de 2011 para 2012. Com base nisso, passa a adotar um tom otimista, de que a desigualdade continuou a cair e o sol continua a brilhar.

Não há nenhum problema em se avaliar a evolução de vários índices para se aferir com mais certeza a trajetória da desigualdade. Ademais, o fato de o Índice de Gini ter se estabilizado em um ano não quer dizer que ele não volte a cair mais adiante.

Contudo, ao adotar índices alternativos, o governo perde o discurso de que a desigualdade começou a cair quando o PT chegou ao poder, pois os demais índices de desigualdade já estavam caindo desde pelo menos meados da década de 1990. O Gráfico 2 mostra que entre o início e final dos anos 1990 houve uma queda significativa no Índice de Theil, e não tão acentuada no Índice de Gini. Além disso, já a partir dos últimos anos daquela década observa-se uma nítida tendência de queda para o Índice de Theil, e uma não tão nítida tendência de queda para o Gini.

Outro problema que distorce os resultados é escolher um ano base inadequado para comparação. Especificamente, o Comunicado Ipea usou o ano de 1992 como base para o cálculo da evolução da desigualdade no período pré-PT (vide Tabela 3, à pg. 11 do Comunicado IPEA nº 159). Com isso, aquele documento argumenta que a desigualdade teria crescido antes de 2003.

Ocorre que, como pode ser visto nos Gráficos 2 e 3, abaixo, o ano de 1992 representou um ponto de abrupta queda em todos os indicadores de desigualdade (vide pontos indicados por uma seta nos gráficos abaixo), que logo no ano seguinte voltou a subir.

Assim, se tomarmos 1992 e compararmos com 2002, teremos a impressão que houve aumento da desigualdade no período 1992-2002, como quer fazer crer o documento do IPEA, pois em 1992 ela era muito baixa. Mas 1992 não é um ponto representativo. Se mudarmos a base de comparação para o ano seguinte (1993) veremos que a desigualdade, em vez de subir, teve expressiva queda na comparação de 1993 com 2002 em todos os quatro índices apresentados nos Gráficos 2 e 3.

Usar o ano de 1992 como base leva, portanto, à errônea conclusão de que a desigualdade não caiu até 2002, antes de o PT chegar ao poder.

Gráfico 2 – Índices de Desigualdade no Brasil: Gini vs. Theil (1981-2009)

Gráfico 3– Índices de Desigualdade no Brasil: Razão entre 10% mais ricos e 40% mais pobres vs. Razão 20% mais ricos e 20% mais pobres (1981-2009)

Mas, por que não devemos utilizar 1992 como ano base? As melhores práticas nos ensinam que não se deve usar um ponto atípico como base de comparação. Nota-se, nos dois gráficos acima, forte oscilação das diferentes medidas de desigualdade ao final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Isso parece ser resultado de erros de medida na estatística. Com a inflação em níveis elevadíssimos, ficava difícil mensurar com precisão a renda das pessoas, em uma pesquisa como a PNAD que simplesmente pede aos entrevistados que lembrem, de cabeça, qual a sua renda no mês de referência. Como para 1992 a desigualdade é significativamente inferior à dos anos que o antecederam e que o sucederam, sem haver qualquer fator real que nos levasse a justificar sua queda, reforça-se a hipótese de erro de mensuração.

A Tabela 1, abaixo, coloca a questão em números. Ela mostra que na comparação de 1992 com 2002, todos os índices de desigualdade subiram, a exceção da relação entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres, com o que o IPEA conclui que a desigualdade antes de o PT assumir o governo estava em tendência de alta.

Porém, se mudarmos a base de comparação para 1993 veremos que a desigualdade caiu em todos os índices.

Tomar como base um ano atípico, dentro de um período cuja estatística tem baixa qualidade, parece ser um procedimento pouco ortodoxo. Por isso, nem 1992, nem 1993, são bases adequadas de comparação. O mais prudente é tomar como base um ano após o fim da hiperinflação. Assim, a Tabela 1 adota como bases tanto o ano de 1995, quanto o de 1996. Nos dois casos temos que, para todos os índices, a desigualdade era menor em 2002 do que nos respectivos anos de comparação.  Note, ainda, que, coincidentemente, o Índice de Gini, até recentemente o preferido do governo, foi justamente aquele que menos melhorou antes de 2002.

Tabela 1 – Variação nos índices de desigualdade de renda em diferentes períodos de comparação

É verdade que a queda da desigualdade foi mais intensa a partir de 2002/2003 do que no período anterior. Isso não se discute. Porém tal queda não foi integralmente decorrente de políticas do governo. Segundo cálculos do próprio IPEA, a dinâmica da economia privada, em grande parte impulsionada pela alta internacional no preço das commodities, foi responsável por mais da metade da queda da desigualdade. Ademais, quando as políticas de governo influenciaram na queda da desigualdade, criaram efeitos colaterais negativos, reduzindo o crescimento da economia.

Esse, porém, é um assunto que será tratado em outro texto, a ser publicado na próxima semana.

Por ora, resta lamentar que, diante da importância do Índice de Gini para avaliar a distribuição de renda, o Comunicado nº 159, do IPEA, não tenha analisado se a estagnação daquele índice é um sinal preocupante ou se está ocorrendo somente um simples desvio de percurso Lamenta-se também a mudança de enfoque, do Índice de Gini para outros indicadores de distribuição de renda, com o uso de uma base de comparação conveniente à conclusão que se desejava chegar. Isso só reforça a hipótese de que tal mudança foi motivada para sustentar o discurso político do governo.

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