Reformas Estruturais – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Wed, 31 Aug 2022 13:16:37 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 Limitações ao Ajuste Fiscal pelo Lado da Receita https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3674&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=limitacoes-ao-ajuste-fiscal-pelo-lado-da-receita Wed, 31 Aug 2022 13:16:37 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3674 Limitações ao Ajuste Fiscal
pelo Lado da Receita
[1]

Por Carlos Alexandre A. Rocha*

O teto de gastos integra o Novo Regime Fiscal (NRF), introduzido pela Emenda Constitucional 95/2016. Com duração prevista até 2036, o NRF prevê limites máximos para as despesas primárias de cada um dos Poderes e órgãos autônomos da União (a Defensoria Pública, o Executivo e as subdivisões do Judiciário, do Ministério Público e do Legislativo). Os tetos individualizados têm como base os montantes pagos em 2017 corrigidos, anualmente, pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

O NRF tem caráter anticíclico. Acumulam-se recursos (ou diminui-se a pressão por novos passivos) durante a fase favorável do ciclo econômico e preservam-se os gastos, em termos reais, durante a fase desfavorável.O seu pleno funcionamento permitiria que o atual déficit primário estrutural fosse substituído, futuramente, por um superávit capaz de estabilizar ou mesmo reduzir a razão entre a dívida pública e o produto interno bruto (PIB).

Trata-se, portanto, de uma estratégia de ajuste fiscal diferida ao longo do tempo centrada na contenção dos gastos primários. Ou seja, o teto de gastos precisa desempenhar, para que seja efetivo, o papel de uma poupança precaucional. Na ausência da poupança, porém, o teto perde a sua razão de ser. É o que apontam as sucessivas flexibilizações das suas regras aprovadas no último triênio (Emendas Constitucionais 102/2019, 109, 113 e 114/2021 e 123/2022), além de medidas similares implementadas ou tentadas pelo Governo Federal no mesmo período, como apontado pela Instituição Fiscal Independente (IFI) em seu relatório “Considerações sobre o Teto de Gastos da União”.[2]

Em face de tantas alterações, vários especialistas argumentam que o novo regime perdeu a capacidade de balizar as expectativas dos agentes econômicos sobre o comportamento do resultado primário e da dívida do Governo Federal nos próximos exercícios. O ex-ministro Delfim Netto, p. ex., sustentou, ainda em outubro de 2021, que o teto de gastos é um artefato de comprometimento com uma trajetória futura das finanças públicas federais. O seu esvaziamento implicava perder a baliza para avaliar a (in)sustentabilidade da dívida pública.[3]

Mais recentemente, Cecília Machado, professora da FGV-RJ, argumentou que o ativismo fiscal via emendas à Constituição representava o fim da possibilidade de suavizar e diferir temporalmente novos ajustes fiscais que se façam necessários.[4]

Samuel Pessôa, pesquisador da FGV-RJ, por sua vez, alerta que a flexibilização do teto dos gastos precisa ser precedida da construção de uma situação fiscal estruturalmente solvente. O caminho para isso, na falta de um ajuste pelo lado da despesa, seria convencer a sociedade a entregar mais imposto ao Estado.[5]

Com efeito,em termos de ajuste fiscal, observou-se, no passado recente, uma clara preferência por cortes nas despesas futuras, como demonstrado pela reforma da previdência,[6]e por uma corrosão inflacionária do valor nominal das obrigações do setor público. A contenção estrutural dos gastos públicos correntes foi evitada de forma reiterada. Tomando-se isso como um dado da realidade brasileira, é cabível o entendimento de que a reversão do alto nível de endividamento do Governo Federal passa por uma nova elevação da carga tributária, como antecipado por Pessôa.

No entanto, mesmo essa opção está longe de ser trivial, para além do desafio político inerente à construção de um consenso a esse respeito. Um aspecto que não tem recebido, s.m.j., a devida atenção é que eventual aumento na arrecadação precisaria proporcionar recursos líquidos de transferências e vinculações. De outra forma, o Governo Federal continuaria sem contar com os meios necessários para o gerenciamento da sua dívida.O quadro a seguir resume os usos predefinidos de um aumento de R$1.000,00 nos principais tributos ou cestas de receitas (contribuições sociais, impostos em geral e receita corrente líquida – RCL):

 Usos Predefinidos para uma Arrecadação de R$ 1.000,00,
por Tributo ou Cesta de Receitas

 

Vinculação Valor
Compartilhamento com os entes subnacionais1
Imposto sobre produtos industrializados (IPI) 600,00
Imposto sobre a renda (IR) 500,00
Contribuição de intervenção no domínio econômico (CIDE) 290,00
Com a revogação do NRF
Vinculação da receita de impostos à educação 180,00
Vinculação da RCL à saúde 150,00
Vinculação da RCL às emendas parlamentares individuais e de bancada 22,00
Na vigência da Desvinculação de Receitas da União (DRU)2
Vinculação à seguridade social das contribuições sociais 700,00
Vinculação ao objeto da CIDE (após o rateio federativo)
497,00
Fonte: elaboração própria.

Notas:

(1)inclui os programas de financiamento ao setor produtivo das regiões CO, N e NE;

(2)duração até 31/12/2023, conforme a Emenda Constitucional 93/2016.

O acréscimo de R$ 1.000,00, para que represente um ganho para as políticas setoriais favorecidas em relação à regra de correção pelo IPCA, contida no NRF, deve ser entendido como uma elevação da receita em termos reais (ou seja, descontada a variação do nível de preços). No quadro, cada linha representa um uso predefinido para o incremento ora tratado, por tributo ou cesta de receitas– de modo mais simples, dado um aumento real de R$ 1.000,00 na receita x, cada linha aponta quanto caberia ao uso y. Exceto no que tange à CIDE, cada vinculação é tratada isoladamente, sem efeitos cumulativos.

Ressalte-se, todavia, que as superposições entre as vinculações, como na CIDE, são recorrentes. No IR, p. ex., metade do montante arrecadado é repassado inicialmente para os entes subnacionais e os respectivos setores produtivos por meio dos Fundos de Participação dos Estados e do Distrito (FPE) e dos Municípios (FPM) e dos Fundos Constitucionais de Financiamento do Centro-Oeste (FCO), do Norte (FNO) e do Nordeste (FNE). O restante compõe a cesta geral de impostos e a RCL. Caso o NRF seja extinto, as vinculações em prol da educação, da saúde e das emendas parlamentares individuais e de bancada serão restabelecidas. Com isso, R$ 90,00 irão para a primeira, R$ 75,00 para a segunda e R$ 11,00 para as últimas. Sobrariam R$ 324,00 para usos diversos.

Um novo imposto, a seu tempo, repassaria 20% para os governos estaduais. Com o fim do NRF, o restante sofreria a incidência das três vinculações recém-discriminadas. Do total de R$ 1.000,00 arrecadados, sobrariam R$ 518,40 – eficiência de 51,8% na geração de receita desimpedida.

Eventual recriação da contribuição provisória sobre a movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira (CPMF) teria desempenho semelhante ao do IR, mas dependeria da contínua renovação da DRU. Trata-se de tributo vinculado à seguridade social, mas, com a DRU, 30% da arrecadação poderia ser usada livremente. Ou seja, cada R$ 1.000,00 arrecadado proporcionaria apenas R$ 300,00 para, p. ex., a gestão da dívida.

No entanto, na presença de déficit primário no orçamento da seguridade social, a recriação da CPMF também permitiria o uso do artifício conhecido como “substituição de fontes”. Atualmente, as receitas específicas da seguridade social são insuficientes para custear as despesas correspondentes. Com isso, o Tesouro Nacional emprega recursos ordinários na cobertura do déficit. No exercício em curso, p. ex., estima-se que a diferença entre despesas e receitas da seguridade alcançará R$ 170 bilhões[7](contra um déficit de R$ 292 bilhões, em 2017)[8]. São recursos que poderiam ser liberados para outros usos se a CPMF retornasse.[9]Isso, porém, requereria a persistência do quadro deficitário na ausência da nova contribuição, o que é incerto e até mesmo indesejável em face da recém-aprovada reforma da previdência.Não constitui, por essa razão, uma solução estrutural para a demanda por recursos livres.

Essa miríade de vinculações dificulta não só o gerenciamento do Orçamento Geral da União (OGU), mas também a formatação de qualquer programa de ajuste fiscal. Descartando-se o artifício da substituição de fontes e assumindo-se, à luz das competências e obrigações tributárias do Governo Federal, que a razão entre os seus potenciais de arrecadação livre e de arrecadação total seja igual a 50% (percentual similar ao obtido por um novo imposto),um programa que exigisse uma elevação da receita livre da ordem de R$ 226 bilhões (ou 2,6% do PIB de 2021)[10]requereria que a receita total aumentasse cerca de R$ 452 bilhões (ou 5,2% do PIB de 2021) – uma meta desafiadora mesmo diferida por um prazo longo.

O Brasil é um país complexo e carente, no qual os pleitos da sociedade se multiplicam quase ao infinito. Conciliar meios e fins é o desafio deste, do próximo e de qualquer governo. Este texto assinala que escolhas precisam ser feitas. Se a estratégia de conter os gastos públicos não foi bem-sucedida, será preciso rediscutir a contribuição da sociedade para o funcionamento do Estado. Mesmo isso, contudo, não está isento de problemas – políticos, naturalmente, mas também operacionais, o que é menos evidente. A presente análise permite entender por que um tributo como a CPMF é sempre lembrado quando se buscam alternativas para um ajuste fiscal rápido. A perspectiva de uma “troca de fontes” instantânea é por bastante sedutora. Trocam-se benefícios presentes por custos futuros, mantendo a economia em um nível de baixa eficiência. Resistiremos?

 

[1] Adaptado do documento “Teto de Gastos: Problemas e Alternativas”, disponível em:https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td311.

[2] Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/575583.

[3] Videhttps://www1.folha.uol.com.br/colunas/antoniodelfim/2021/10/sem-teto-a-casa-cai.shtml.

[4] Videhttps://www1.folha.uol.com.br/colunas/cecilia-machado/2022/07/sem-mais-promessas.shtml.

[5] Videhttps://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2022/06/a-esquerda-e-o-teto-de-gastos.shtml.

[6]Emenda Constitucional 103/2019.

[7] Videhttps://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/raio-x-do-orcamento/2022/raio-x-do-orcamento-2022-ploa.

[8] Videhttps://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/planejamento-e-orcamento/orcamento/publicaoes-sobre-orcamento/informacoes-orcamentarias/arquivos/estatisticas-fiscais/2-resultado-primario-da-seguridade-social/2-resultado-da-seguridade-anual.xlsx/view.

[9] A análise dos problemas econômicos introduzidos pela CPMF extrapola os limites do presente trabalho. Discussão sobre esse tema consta do documento “Os Impactos Econômicos da CPMF: Teoria e Evidência”, disponível em: https://www.bcb.gov.br/pec/wps/port/wps21.pdf.

[10] Conforme simulação contida no documento “Evolução das Contas da União: Ajuste, Desajuste, Pandemia e Desafios”, disponível em: https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td304/view.

 

* Carlos Alexandre A. Rocha é consultor legislativo do Senado Federal e especialista em finanças públicas. As opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade do autor.

 

]]>
Fragmentação política e políticas públicas https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3617&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=fragmentacao-politica-e-politicas-publicas Thu, 02 Jun 2022 15:44:22 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3617 Fragmentação política e políticas públicas

Para Marcos Mendes, o atual sistema político-eleitoral é o principal fator por trás do fracasso dessas políticas.

 Por Roberto Macedo*

Marcos Mendes é um economista de destaque entre seus pares e tem recebido merecida atenção da mídia, como neste jornal e na Folha de sábado passado, ao lançar outro livro. Tem graduação e mestrado em Economia pela Universidade de Brasília e doutorado na mesma área pela Universidade de São Paulo (USP). É consultor legislativo do Senado Federal – cargo obtido por concurso público –, e tem se afastado para exercer outras atividades da sua área de interesse, finanças públicas. Em 2016, no governo Temer, tornou-se assessor especial do ministro da Fazenda.

Seu livro mais conhecido é Por que é difícil fazer reformas econômicas no Brasil? (Elsevier, 2019). Adotei-o como livro-texto do curso de Economia Brasileira que atualmente leciono na USP. Fui atraído pela pergunta que intitula o livro, pois sei dessa dificuldade, procurando entendê-la e buscar soluções, conforme se depreende de artigos meus neste espaço.

O livro começa examinando a dificuldade de que trata seu título, inclusive internacionalmente, ao abordar exemplos de vários países, como Índia e México. Dedica um capítulo à coesão social, cuja ausência dificulta o processo de reforma, no que examina o caso da Austrália.

Ensina que “(…) a maior propensão a fazer reformas liberalizantes, voltada à estabilidade fiscal e aumento da produtividade, ocorre em países que: são pequenos; fizeram reformas antes da abertura política; estão num dos extremos da escala de democracia – plenamente democráticos ou autoritários –; têm sistemas político-eleitorais que facilitam a formação de maiorias no Parlamento; têm clara delimitação e separação dos Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo; são países com governos unitários; têm Constituições pouco detalhistas ou facilmente alteráveis; são vizinhos de outros países que foram bem-sucedidos na promoção de reformas; têm oportunidade de aderir a blocos econômicos com países vizinhos que tenham economias maiores e mais desenvolvidas; e têm elevado nível de coesão social, representado por baixa desigualdade de renda e baixos índices de violência, que levam a alto nível de confiança mútua. O Brasil não possui essas características”.

Contudo, Mendes não desiste e busca o enfrentamento dos difíceis problemas. Ressalta que “(…) precisamos estar preparados para mais de duas décadas de debates e resistência ao novo (…), não sendo uma corrida de 100 metros, e mais uma maratona”. Dedica um capítulo à dificuldade para fazer reformas no Brasil e o capítulo final, com o título O que fazer, tem 20 seções temáticas que se desdobram num grande número de propostas específicas.

No novo livro, Para não esquecer: políticas públicas que empobrecem o Brasil, que ainda não li, Mendes organizou uma coletânea em que especialistas discutem políticas que fracassaram. Na entrevista a este jornal, citada no início deste meu artigo, indagado sobre o principal fator por trás da baixa qualidade das políticas públicas, apontou o sistema político-eleitoral que gera representação muito fragmentada, com muitos partidos que, de sua parte, também têm interesses muito pulverizados. E, muitas vezes, os parlamentares respondem mais ao interesse de grupos específicos – quando não ao próprio interesse, acrescento – do que ao de uma programação político-partidária.

No momento, por exemplo, estão focados na sua reeleição ou na eleição de outros, recorrendo, inclusive, a mecanismos espúrios, como as emendas de relator, que cevam clientelas políticas municipais em troca de votos. Essas emendas constituem um financiamento indireto de campanhas eleitorais, beneficiando desigualmente os incumbentes, e estes sendo também beneficiados relativamente a candidatos sem mandato, embora a Constituição, no seu artigo 5.º, estabeleça que todos são iguais perante a lei. Mas o que ocorre é um show de desigualdades mediante essas emendas.

Em que pese a fragmentação política, Mendes argumentou, no primeiro livro citado, que uma reforma política não seria a “mãe de todas as reformas”. Após examinar as dificuldades de uma reforma rápida desse tipo, propôs uma gradual e citou a dos regimentos internos da Câmara e do Senado Federal, elaborados à época do regime militar, com seu sistema bipartidário. E argumentou que: “Sua extensão para o contexto multipartidário (…) torna a tramitação dos projetos morosa e muito sujeita a chicanas e obstruções excessivas”. Em conversa recente, contudo, ele disse que os regimentos foram revistos, infelizmente com maus resultados, pois o Centrão os tornou mais expeditos para passar suas boiadas, também impulsionadas pelas sessões remotas trazidas pela pandemia de Covid.

Mas ao menos uma obstrução ainda ocorre pela prerrogativa que o presidente da Câmara tem de decidir isoladamente sobre o andamento de pedidos de impeachment do presidente da República. Soube que há muitos pedidos desse tipo, mas ele não coloca o assunto em discussão. É um presente do Centrão ao presidente da República. E que custa muito caro para o País.

 

* Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 2 de junho de 2022.

 

]]>
Pacheco e os quinquênios para juízes e promotores https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3611&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=pacheco-e-os-quinquenios-para-juizes-e-promotores Fri, 22 Apr 2022 14:25:49 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3611 Pacheco e os quinquênios para juízes e promotores

 

Em lugar do adicional salarial de 5% a cada cinco anos, deveriam ser reduzidos os salários iniciais dessas carreiras.

 

Por Roberto Macedo*

 

Refiro-me a Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, e à matéria intitulada Pacheco defende penduricalho para juízes e promotores, mas critica supersalários, no site da Folha de S. Paulo no dia 25 do mês passado. A matéria tem razão ao chamar de penduricalho a ideia de recriar os quinquênios a que tinham direito os membros da magistratura e do Ministério Público. Isso significaria adicional salarial de 5% a cada cinco anos, e seria mais um privilégio descabido, por razões que apresentarei mais adiante.

A ideia integra a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 63, conhecida como PEC do Quinquênio, apresentada em 2013, ou seja, há quase dez anos, e que “(…) passou os últimos dez anos praticamente esquecida no Senado”. Se isso ocorreu, já é um bom sinal de sua inconveniência, na avaliação de senadores, mas recentemente retornaram as pressões para que essa PEC voltasse a andar, e o assunto chegou a manchetes como a da matéria citada.

Pacheco criticou a falta de progressão nas remunerações de juízes e promotores ao longo da carreira. Textualmente: “(…) temos de entender que também não é lógico, é uma distorção um profissional, promotor de Justiça, no início da carreira receber a mesma remuneração de alguém no final da carreira”.

Nisso ele tem razão, mas o problema está na solução proposta pela PEC, de recriar os quinquênios, pois trata-se de um bônus automático que não estimula a busca do aprimoramento profissional e até incentiva a não opção pela aposentadoria com o objetivo de ampliar a coleção individual de quinquênios.

Para corrigir o problema, minha sugestão parte da referida constatação de salários idênticos no início e no final da carreira. Mas cabe perguntar: que salários são esses? Num site voltado para ensinar candidatos a concursos, soube da existência de um, para juiz federal substituto e juíza federal substituta da Terceira Região, e nesse site é dito que o salário inicial (!) mensal é de R$ 32.004,65 (!). Certa vez, ouvi que num cursinho para concursos os que buscavam o de juiz discutiam entre si qual o carro que comprariam se passassem, um Audi, um BMW ou outro na mesma linha. Não sei se isso de fato ocorreu, mas faz sentido.

Insisto: é neste altíssimo salário inicial que está a distorção. Se fosse a metade, já estaria ótimo. Com o que conheço do mercado de trabalho, não sei de outra carreira, fora da magistratura e do Ministério Público, que tenha um salário inicial tão alto. Se começasse com a metade desse valor para os novos ingressantes, poderiam ser criadas funções ao longo da carreira para quem demonstrasse qualificações para a ascensão funcional.

Perguntei a alunos do curso de Economia da Universidade de São Paulo (USP) já próximos da formatura qual seria o salário que poderiam ter logo depois, para início de carreira. A resposta foi que um salário em torno de R$ 10 mil mensais seria considerado adequado.

Vou dar, também, o exemplo da carreira de magistério na USP, onde, depois de me aposentar, voltei a lecionar em 2019 como professor voluntário. O cargo inicial da carreira é de professor assistente, para o qual já se exige o título de doutor. Depois de alguns anos, é preciso mostrar serviço, como publicações e carga docente, para obter o título de livre-docente, que credencia seus diplomados a disputar o concurso de professor adjunto. Finalmente, há o concurso para professor titular, com número limitado de cargos, e só uns poucos chegam a eles.

Dei uma olhada no edital de concurso de juízes e vi que é aberto a bacharéis em Direito formados há mais de três anos e que comprovem exercício profissional na área num período de mesma duração. Entre os degraus da carreira proposta, poderia haver uma combinação de carreira acadêmica via mestrado, doutorado e livre-docência, com a experiência profissional ao longo dela, como o número e o alcance de decisões processuais e o exercício de cargos administrativos. Mais alternativas poderiam ser discutidas, se houver a opção por um salário inicial menor, o que também poderia alcançar outras carreiras, no contexto da reforma administrativa que vem sendo discutida.

O altíssimo salário inicial também pode ser enquadrado na discussão dos supersalários no setor público. Disse Rodrigo Pacheco: “Ninguém defende o supersalário, por isso que existe um projeto no Senado, para poder disciplinar o que é subsídio e o que é verba indenizatória”. Mas há que discutir valores, e talvez Pacheco não tenha percebido que o salário inicial citado é, também, um supersalário. E as carreiras que a PEC contempla também são beneficiadas com férias de 60 dias, o que aumenta o salário médio por mês de trabalho efetivo.

Ainda sobre a verba indenizatória, soube que os quinquênios estão sendo solicitados como indenizações para escapar ao teto de remuneração e evitar a incidência do Imposto de Renda. É a primeira vez que ouço dizer que quinquênio não é remuneração, mas indenização. Quem defende isso deveria é ser multado por falta de lógica.

 

Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no jornal O Estado de S .Paulo, em 21 de abril de 2022.

 

]]>
Congresso tem sido o maior protagonista da agenda de reformas https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3565&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=congresso-tem-sido-o-maior-protagonista-da-agenda-de-reformas Wed, 26 Jan 2022 11:08:08 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3565 Congresso tem sido o maior protagonista da agenda de reformas

 

Histórico recente revela que o Parlamento é tão ou mais importante que o Ministério da Economia como agente formulador de reformas na legislação econômica.

 

Por Rogério Schmitt*

 

Estamos entrando no último ano do governo Bolsonaro e também no último ano da atual legislatura do Congresso. Resolvi então aproveitar este período de recesso parlamentar – e também de (pelo menos até outro dia) férias presidenciais – para fazer um levantamento das reformas econômicas mais importantes aprovadas nos três primeiros anos do corrente ciclo de governo.

Vou deixar de lado a agenda de reformas macroeconômicas, também conhecidas como reformas estruturantes (pois elas quase sempre envolvem mudanças no texto da Constituição Federal). A única reforma macro aprovada nesse período foi a da Previdência (Emenda Constitucional 103, promulgada em novembro de 2019). E os outros itens principais da agenda de reformas estruturantes (a tributária e a administrativa) dificilmente serão aprovados em um ano eleitoral.

Mas, ao contrário do que uma análise política mais descuidada poderia sugerir, esses últimos anos estiveram longe de ser uma fase de paralisia na agenda de reformas. Ao contrário: as reformas microeconômicas estão vivendo um período extremamente favorável. O levantamento apresentado a seguir (que talvez ainda esteja incompleto) conseguiu identificar um total de 17 importantes propostas de reformas micro já aprovadas entre 2019 e 2021.

As reformas microeconômicas correspondem ou a projetos de regulação de mercados e setores específicos da economia, ou a projetos que visam melhorar o ambiente de negócios como um todo. A segunda característica importante destas propostas é o fato de serem mudanças legais de natureza infraconstitucional. Por fim, a agenda de reformas micro também se define por sua orientação pró-mercado, com o objetivo de criar incentivos para maiores investimentos privados.

O quadro abaixo enumera as 17 reformas econômicas aprovadas pelo Congresso Nacional e sancionadas pela Presidência da República nos três primeiros anos do atual ciclo de governo. O ritmo de aprovação das reformas não foi homogêneo: mais lento nos dois primeiros anos (3 reformas aprovadas em 2019 e 2 em 2020), e bem mais intenso na segunda metade do período (nada menos que 11 reformas foram sancionadas em 2021, e uma já em janeiro de 2022).

Cada item dessa lista teve uma história e poderia virar um artigo próprio. Mas aqui apresento somente um panorama geral. Além disso, o impacto econômico efetivo dessas reformas não se esgota no curto prazo e, portanto, nem poderia ser avaliado aqui.

Achei, porém, interessante registrar a origem institucional de cada reforma microeconômica aprovada, ou, em outras palavras, se a respectiva lei foi originalmente proposta pelo Poder Executivo, pela Câmara ou pelo Senado. No entanto, a aprovação de reformas microeconômicas tipicamente pressupõe alguma cooperação entre as maiorias legislativas e o Palácio do Planalto. Vale, por fim, registrar que diversos projetos dessa lista começaram a sua tramitação legislativa em períodos de governo anteriores (a Lei de Falências, por exemplo, desde 2005).

Seja como for, outra descoberta contraintuitiva revelada pelo quadro é que praticamente dois terços (64,7%) das reformas econômicas aprovadas no período surgiram de projetos de lei originalmente apresentados por senadores (41,2%) ou por deputados (23,5%). Dito de outro modo: é o Congresso Nacional – e não o governo ou o Ministério da Economia – que vem sendo o principal formulador da agenda de reformas microeconômicas no País. E ainda vale ressalvar que das seis reformas que se originaram do Poder Executivo, metade tramitou como medida provisória.

E que outras reformas microeconômicas já aparecem no meu radar para o ano que está em curso? É só conferir este outro quadro, que enumera meia dúzia de reformas (sem contar as que porventura ainda possam ser apresentadas no futuro) com algum potencial para aprovação ao longo de 2022.

Naturalmente, nem todos os novos projetos da agenda de reformas micro serão necessariamente aprovados neste ano. Mas a maioria deles está relativamente próxima disso, seja porque já foram aprovados em uma das casas do Congresso, ou porque estão em regime especial de tramitação (medida provisória ou pedido de urgência). No cenário mais otimista, talvez somente a aprovação do novo marco legal do petróleo acabe ficando para o próximo período de governo.

Resumo da ópera: 1) o quadriênio que estamos prestes a completar será certamente mais lembrado pelos avanços na agenda de reformas micro do que na agenda de reformas macro; e 2) o Congresso é tão ou mais importante que o Ministério da Economia como agente formulador de reformas na legislação econômica.

 

 

* Rogerio Schmitt é cientista político e colaborador do Espaço Democrático.

 

Artigo publicado no site da Fundação Espaço Democrático em 24 de janeiro de 2022.

]]>