Instituições – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Thu, 07 Oct 2021 13:44:21 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 Mudam-se os tempos, permanece o patrimonialismo https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3507&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=mudam-se-os-tempos-permanece-o-patrimonialismo Thu, 07 Oct 2021 13:44:21 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3507 Mudam-se os tempos, permanece o patrimonialismo

 

Por Luiz Alberto Machado*

 

Tenho absoluta convicção de que uma das razões da dificuldade para a consolidação da cidadania no Brasil reside no caráter patrimonialista que envolve nossa formação política.

A concepção patrimonialista da história político-econômica do Brasil é, de certa forma, uma contraposição à teoria da dependência, que surgiu por volta da década de 1960 e ganhou enorme popularidade nos anos seguintes. Tal teoria, que explicava o atraso relativo dos países latino-americanos a partir de uma relação perversa que os vinculava aos países desenvolvidos na nova divisão internacional do trabalho, ganhou projeção a partir da publicação do livro Dependência e desenvolvimento na América Latina, de autoria de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto. Propunha que o subdesenvolvimento dos países latino-americanos era consequência inevitável da exploração a que estavam submetidos por parte dos países desenvolvidos – chamados de centrais –, situação a que estariam condenados a permanecer em razão das relações internacionais vigentes.  Dava, portanto, a certeza de que a responsabilidade pelo nosso subdesenvolvimento era integralmente dos países desenvolvidos, não restando aos países latino-americanos outro destino que não o de desempenhar o papel de vítimas da história.

Esse tipo de ponto de vista, que praticamente nos isentava de qualquer responsabilidade pelo subdesenvolvimento da região, jogando toda a culpa pelo nosso atraso nas costas dos países desenvolvidos, incomodou alguns pensadores que enxergavam nessa postura uma forma confortável de encarar a questão. Assim, agindo a princípio de forma assistemática, já que desenvolviam suas pesquisas e seus trabalhos em instituições e locais diferentes, acabaram dando origem a uma corrente de interpretação que se convencionou chamar de patrimonialista e que tem no deslocamento do foco central de sua análise da realidade latino-americana de fora para dentro dos países da região uma de suas marcas principais.

O Estado brasileiro, em sua conformação histórica, corresponde a um tipo de dominação política que na tipologia de Max Weber se denomina “organização estatal-patrimonial”. Trata-se de categoria que permite abarcar em toda a sua complexidade e profundidade o fenômeno do poder entre nós brasileiros, já que não restrita a variáveis puramente econômicas, como no marxismo, por exemplo. A tentativa de reduzir a formação do Estado à simples expressão de interesses de classe tem-se revelado insuficiente para explicar a história política de nosso país, sobretudo por desconsiderar as variáveis culturais como fatores configuradores da ordem política.

O mando político, no mundo hispânico, foi tradicionalmente entendido como patrimônio pessoal do governante – uma extensão do poder doméstico – e nisso consiste o aspecto nuclear da dominação patrimonial. Despojado de sua dimensão pública, o poder, nos moldes do patrimonialismo, constitui, nas palavras de Max Weber, “um direito próprio (do soberano) apropriado em igual forma que qualquer outro objeto de possessão”.

Diversos autores, com base nessa concepção weberiana, desenvolveram interessante análise da formação político-econômica do Brasil por meio da qual têm procurado identificar a origem de uma série de problemas que, até hoje, assolam o País. Entre esses autores, destacam-se Raymundo Faoro, José Nêumanne Pinto, Antonio Paim, Ricardo Vélez Rodríguez, Simon Schwartzman e José Júlio Senna. Em suas análises, realçam as principais características das relações entre o Estado e a sociedade no contexto do patrimonialismo brasileiro: (i) o centralismo; e (ii) o estatismo e seus subprodutos: autossuficiência do poder; raquitismo da vida civil; insolidarismo; privatização da coisa pública.

Uma das interpretações que mais me agrada entre as dos analistas que enfatizam o caráter patrimonialista da formação do Estado no Brasil é a do jornalista José Nêumanne, apresentada nos capítulos iniciais de seu livro Reféns do passado. Nele, Nêumanne chama a atenção para a enorme influência na época do Brasil-colônia de três instituições trazidas prontas pela coroa portuguesa – o Estado, o exército e a igreja – e de seus respectivos estamentos, o estamento burocrático, os militares e o clero. Direta ou indiretamente a influência desses estamentos esteve presente nos grandes acontecimentos da história política brasileira. Seus membros, sempre que necessário, colocavam os interesses do estamento a que pertenciam acima dos próprios interesses nacionais. A característica comum a essas instituições é o fato de não serem porosas à participação da opinião pública, assumindo, no Brasil e no exterior, vida própria, independente da vontade popular.

Na nossa história recente, temos tido oportunidade de presenciar exemplos claros desse caráter patrimonialista em episódios que redundaram no impeachment dos presidentes Collor e Dilma Rousseff, nos escândalos do mensalão e do petrolão durante os governos do presidente Lula e nas frequentes ações do presidente Bolsonaro em que fica flagrante a influência de seus filhos ou a preocupação de protegê-los diante de qualquer denúncia, como no caso das rachadinhas. São casos evidentes de usar o poder ou a coisa pública em benefício de interesses de grupos particulares. Podem variar em grau de intensidade, mas não deixam de marcar presença.

Em decorrência disso, além dos frequentes casos de corrupção, impunidade, empreguismo e nepotismo, ocorre uma brutal perda de eficiência, que compromete a produtividade, reduz a competitividade da economia nacional e mancha a imagem internacional do Brasil.

 

* Luiz Alberto Machado é economista pela Universidade Mackenzie (1977), mestre em Criatividade e Inovação pela Universidade Fernando Pessoa (Portugal, 2012), assessor da Fundação Espaço Democrático e conselheiro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no Blog de Fausto Macedo, O Estado de S. Paulo, em 29 de setembro de 2021.

]]>
Ao escolher o presidente, Câmara ignorou seus representados https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3402&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=ao-escolher-o-presidente-camara-ignorou-seus-representados Fri, 05 Feb 2021 14:56:56 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3402 Ao escolher o presidente, Câmara ignorou seus representados

Os congressistas deveriam explicar aos eleitores o seu voto e a razão

Por Roberto Macedo

A Carta Magna de 1988 diz no seu artigo 1.º, parágrafo único, que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. A julgar por isso, a recente eleição de Arthur Lira (PP-AL) para presidente da Câmara seria inconstitucional, tamanha a distância que a maioria dos seus deputados manteve do povo.

O que se viu foi um processo de vassalagem a um candidato que não teria vencido se não fosse o apoio recebido do presidente Jair Bolsonaro, até mesmo sob forma que anteriormente abominava, o toma lá de verbas e cargos, e o dá cá de votos, vistos como o melhor para lhe evitar incômodos, como um processo de impeachment e comissões parlamentares de inquérito. E também para facilitar medidas para aumentar sua popularidade e suas chances de reeleição em 2022. O anterior presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, não se curvava diante de Bolsonaro, já Lira deve responder com gratidão.

Quanto a isso, merece destaque a reportagem Por eleição, Planalto libera R$3 bi a parlamentares, publicada por este jornal no último dia 29. Lamentavelmente, negociações de liberação de recursos para parlamentares em troca de apoio político no Congresso é prática antiga e comum em Brasília, mas o que chamou a atenção agora foi a dimensão do valor e a coincidência com o período pré-eleitoral nas duas Casas do Congresso.

Quanto a essas negociações, o jornalista Carlos Brickmann fez esta comparação: “Para evitar o constrangimento de levar uma proposta indecente a um parlamentar decente”, o que procurasse o governo ou fosse chamado para negociar deveria portar um código de barras para mostrar o valor de seu interesse, e acelerar as negociações.

Nos Estados Unidos, propostas legislativas feitas por congressistas em favor de seus redutos eleitorais são chamadas de earmarks, como aquelas plaquinhas colocadas em orelhas de bovinos. Lá são combatidas por uma instituição chamada CAGW (Cidadãos contra o Desperdício Governamental), como não cabíveis num orçamento federal que deve ser voltado para o bem comum, e não para interesses específicos e locais. Aqui caberia iniciativa similar, pois tais emendas parlamentares e outras verbas que recebem violam outro dispositivo constitucional, o de que todos são iguais perante a lei, pois no processo eleitoral os candidatos já incumbentes são beneficiados por essas dotações relativamente aos candidatos sem mandato. Assim, elas constituem indiretamente um financiamento público de campanhas, que distorce a competição entre candidatos.

Voltando à representação dos eleitores, a brasileira é extremamente frágil. Vivi em países com voto distrital, em que o eleito passa a representar um distrito, e não apenas aqueles que o elegeram, e tem o hábito de prestar contas aos moradores distritais ao longo de seu mandato, sem o que poria em risco a renovação dele. Houvesse isso aqui, os congressistas deveriam estar agora explicando em quem votaram na segunda-feira passada e a razão. Muitos enfrentariam problemas, pois a avaliação de Bolsonaro vem caindo e está perto de 30% a proporção dos que veem sua gestão como ótima ou boa. Aliás, a representatividade dos parlamentares eleitos no Brasil é tão baixa que é como se eles fossem parlamentares cometas, pois só aparecem diante do eleitor a cada quatro anos, em busca de votos.

No Senado, o resultado pareceu-me diferente do da Câmara e não tão ruim. Foi eleito o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) por maior margem relativa de votos, tendo como adversária apenas uma concorrente simbólica, Simone Tebet (MDB-MS), que disputou individualmente. Seu próprio partido deixou de apoiá-la. Bem articulado, Pacheco teve apoio até do PT.

Li na Agência Brasil reportagem sobre seu discurso de posse e destaco estes trechos: “Defendeu a independência da Casa, o combate à corrupção, a geração de empregos, o combate à pandemia, a estabilidade econômica e a preservação do meio ambiente. (…) (O Senado deve) atuar com vistas no trinômio saúde pública, desenvolvimento social e crescimento econômico, com o objetivo de preservar vidas humanas, socorrer os mais vulneráveis, gerar emprego e renda. (…) também citou as reformas, sobretudo a tributária. (…) votações de reformas que dividem opiniões (…) deverão ser enfrentadas com urgência, mas sem atropelo”. Em tese, tudo muito bonito.

Pacheco chegou ao Congresso em 2014, como deputado federal, e no seu primeiro mandato alcançou a presidência da importante Comissão de Constituição e Justiça, o que demonstra poder de articulação, ratificado pela eleição recente. Seu currículo não levanta tanto as sobrancelhas como o de Arthur Lira, mas tem sido criticado por conflito de interesses entre suas ações políticas e negócios da família.

O que quero mesmo é um Brasil melhor, mas tenho minhas dúvidas quanto à eficácia, nessa direção, dos novos presidentes da Câmara e do Senado, principalmente do primeiro. Certo mesmo é que vou acompanhar de perto o trabalho deles.

 

Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 4 de fevereiro de 2021.

 

]]>