Coronavirus – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Tue, 25 May 2021 18:01:46 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 Epidemiologia econômica: uma nova ferramenta para lidar com as epidemias https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3448&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=epidemiologia-economica-uma-nova-ferramenta-para-lidar-com-as-epidemias Tue, 25 May 2021 13:25:53 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3448 Epidemiologia econômica:

uma nova ferramenta para lidar com as epidemias

Por Araceli Hubert Ribeiro* e Giácomo Balbinotto Neto**

O objetivo deste artigo é falar sobre um novo campo da economia da saúde, a epidemiologia econômica, a qual busca estudar as doenças infecciosas do ponto de vista do comportamento dos indivíduos com o intuito de avaliar epidemias e sua trajetória com base no comportamento humano e nos custos diretos e indiretos destas doenças, assumindo o pressuposto de um comportamento racional [Becker (1976)].  Aqui iremos apresentar, brevemente, os principais fundamentos desta área, que apesar de estar em sua infância, tem se mostrado ser muito promissora, tanto em termos teóricos como empíricos, bem como relevante para os formuladores de políticas públicas em saúde.

A epidemiologia econômica é a relação entre o comportamento preventivo e a prevalência da doença, focada nas causas econômicas e consequências epidemiológicas da disseminação de doenças infecciosas que afetam a saúde púbica, ou seja, como o comportamento econômico dos indivíduos afeta o curso de uma doença infecciosa em uma população, podendo trazer consequências indesejadas ao nível individual e coletivo.

As doenças infecciosas merecem um estudo a parte da economia de saúde pública. Isto se dá em razão de uma característica única das doenças infecciosas que as tornam particularmente difíceis de analisar: o fato de elas serem transmitidas de pessoa para pessoa. Com isto, o comportamento individual se torna um aspecto central dentro da epidemiologia econômica, especialmente pelo fato de que as escolhas individuais feitas sobre tratamento e prevenção impactam outros indivíduos, gerando externalidades. O impacto das escolhas individuais em outros indivíduos é um conceito muito utilizado na economia, conhecido como externalidade e, em razão desse conceito tão central na economia do bem-estar, a abordagem econômica tem o potencial de contribuir muito para a compreensão de como o comportamento humano afeta as doenças infecciosas e qual é o papel governamental no controle destas doenças.  Um exemplo clássico na área de economia da saúde são as vacinas.

A área da epidemiologia econômica começou a ser desenvolvida juntamente com a pandemia de HIV/AIDS, na década de 1980, quando uma dimensão econômica foi adicionada aos modelos epidemiológicos clássicos utilizados para traçar o curso de um surto viral. Como o HIV se espalha principalmente por meio de relações sexuais, as decisões das pessoas em relação ao contato sexual têm um impacto claro na propagação do HIV, assim como na propagação de outras doenças sexualmente transmissíveis. Os indivíduos tomam diversas decisões que podem impactar a propagação de doenças, como por exemplo, o quão frequentemente lavam as mãos, se evitam sair de casa, se evitam o contato com pessoas possivelmente infectadas, se se testam para determinadas doenças, se usam ou não preservativos, dentre outros.

Segundo Phillipson e Posner (1993, p.3), a ideia de que uma doença contagiosa pudesse ser abordada do ponto de vista econômico havia recebido pouca atenção até o início dos anos 1980. Assim, a abordagem econômica das doenças contagiosas busca examinar as respostas públicas e privadas referentes a doenças contagiosas, de um ponto de vista do comportamento racional, enfatizando principalmente as respostas do comportamento humano a mudanças nos incentivos e a prevalência da doença.

Este ponto com relação ao comportamento racional merece ser mais detalhado. Aqui seguimos a argumentação de Phillipson e Posner (1993, pp. 1-10). Assim, para melhor compreendermos a epidemiologia econômica, parece ser plausível assumirmos que a “escolha racional” não implica necessariamente um comportamento consciente, deliberado ou informado. Na maioria das versões, segundo eles, uma escolha é racional se ela maximizar a utilidade esperada, onde a utilidade diz respeito ao bem-estar subjetivo do indivíduo, e esperado, graças à presença da incerteza, a qual faz com que a escolha possa ser possivelmente ruim. Segundo eles, a racionalidade implicaria que os meios se adequariam aos fins (suiting means to ends), quaisquer que sejam estes fins. Assim, devemos ter claro, segundo os autores, que a teoria econômica da escolha racional seria uma fonte de explicações e predições referentes ao comportamento, que incluiria o comportamento com relação aos perigos de uma doença contagiosa.

A epidemiologia econômica se apoia no comportamento racional das pessoas que buscam maximizar o bem-estar individual com base em incentivos, restrições e informações que chegam a elas. A importância disto, dada a dinâmica do comportamento humano dentro de uma epidemia, traz novas explicações para o entendimento de doenças infecciosas. Como destacaram Phillipson e Posner (1993, p.7), a epidemiologia econômica, busca também ilustrar o poder da análise econômica para iluminar o comportamento não mercado, que é um pouco afastado dos objetos de análise convencional da economia. Segundo Phillipson e Posner (1993, p.8), os modelos epidemiológicos padrões, de um modo geral, exageravam em suas previsões sobre o crescimento das doenças contagiosas, tais como a AIDS, a qual é transmitida principalmente através do comportamento voluntário. Assim, a economia pode ser utilizada para aumentar o poder preditivo e explanatório de tais modelos.

O principal ponto e crítica aos modelos epidemiológicos convencionais é que aqueles modelos falhavam em não considerar a importância dos incentivos na modelagem das respostas privadas tanto com relação às doenças comunicáveis, como com relação aos programas que buscam controlá-las. A razão disto, por exemplo, com relação à AIDS, era a falha em reconhecer que o aumento na prevalência de uma doença é (com certas qualificações) o equivalente a um aumento no preço do comportamento que cria o risco de contrair a doença, induzindo a uma resposta comportamental que iria limitar uma maior disseminação da mesma.

O estudo das epidemias, segundo Phillipson e Posner (1993, p.5), está baseado no pressuposto de que o mercado para atividades que criam o risco de contrair uma doença infecciosa (como o contato com uma pessoa infectada) é muito semelhante a outros mercados que os economistas estudam. Aqui, as trocas de contato são referidas no sentido econômico padrão na qual uma atividade é tomada como sendo mutuamente benéfica para as pessoas nela engajadas. Assim, no caso das doenças contagiosas, é assumido, também, que as pessoas iriam tomar medidas para se ajustar ao risco da infecção, especialmente com relação à prevalência da doença. Ainda segundo eles, os epidemiologistas, por exemplo, na predição do crescimento futuro ou no declínio de uma doença, abstraem o elemento de vontade (volitional element) – qual seja, a decisão de se engajar ou não num comportamento potencialmente transmissível, que os economistas, por sua vez, esperam que venha a ter um aspecto central no crescimento ou declínio até uma vacina ou cura ser desenvolvida. Assim, o modelo econômico das epidemiologias, chamado também de modelo de epidemia racional, implica estimativas menos alarmantes com relação ao futuro do crescimento das doenças contagiosas do que assumido pelos modelos epidemiológicos convencionais, dado que um crescente risco de infecção levaria os indivíduos racionais a substituir as atividades ariscadas, fazendo então, com que a doença fosse autolimitante.

 A epidemiologia econômica considera a possibilidade de a demanda por autoproteção contra uma doença ser sensível à prevalência da doença que é a proporção da população acometida por uma doença específica em um período determinado. Desta maneira, haveria uma relação recíproca entre autoproteção e a prevalência da doença, criando, assim, um loop de resposta como podemos ver na figura 1. A compreensão desta relação auxilia a identificação destes períodos durante o curso de uma epidemia e a resposta subsequente que os indivíduos possam vir a ter em relação à doença.

Figura 1: Relação recíproca entre autoproteção e prevalência da doença

Fonte: Adaptação de Bhattacharya et al., (2013, p. 453).
(1) autoproteção limita o crescimento da doença;
(2) baixa taxa de prevalência acarreta menos autoproteção.

Esta abordagem difere da abordagem epidemiológica tradicional, onde uma maior proteção acarreta um menor crescimento da doença, terminando a relação sem considerar que ela funcionaria como um ciclo e, portanto, não considera a resposta comportamental dos indivíduos que cria esse loop de resposta à prevalência da doença. A análise epidemiológica tradicional certamente discute como vários padrões de comportamento afetam a ocorrência da doença, porém ela não analisa as implicações de como o comportamento se modifica em resposta aos novos incentivos criados pelo crescimento de uma doença, nem analisa os efeitos dessas mudanças nas medidas de saúde pública (Bhattacharya et al., 2013).

Sob o ponto de vista econômico, se uma doença se tornar mais disseminada na população, a demanda por proteção privada (individual) aumenta em resposta. Os meios pelos quais as medidas preventivas aumentam em resposta ao surto da doença podem diferir entre as doenças. Por exemplo, para doenças evitáveis por vacina, estes meios podem representar o número de vacinações adicionais induzidas por cada nova infecção, enquanto para doenças sexualmente transmissíveis pode representar o aumento na correspondência de parceiros sexuais que têm o mesmo status de infecção (Philipson, 2000).

A sensibilidade à prevalência é chamada de elasticidade prevalência da demanda privada por prevenção contra doenças (elasticidade-prevalência). Como mencionado anteriormente, muitos modelos epidemiológicos não consideram que a demanda por proteção reaja à prevalência da doença, e com isso, acabam assumindo, mesmo que implicitamente, que a elasticidade-prevalência é igual a zero (Bhattacharya et al., 2013). Este ponto será aprofundado nos parágrafos a seguir.  Folland et al., (1994), explica mais detalhadamente a questão de intervenções serem ou não autolimitantes, e como isso pode ser identificado. O autor utiliza a equação 1 para apresentar a maneira que a autoproteção está relacionada com a prevalência:

Se Ep é baixo, zero, ou perto de zero, as pessoas demandarão pouca prevenção, resultando, desta forma, em maior prevalência futura. Ao contrário, se Ep é alto, muito maior que zero, então será demandada uma quantidade maior por prevenção, como, por exemplo, vacinas. Assim, existirá uma baixa prevalência futura. Estas demandas por prevenção, de acordo com o autor, alteram a taxa de prevalência da doença.

A elasticidade-prevalência é considerada uma grande contribuição da epidemiologia econômica para a compreensão da propagação de doenças infecciosas. Como explicado anteriormente, a demanda por autoproteção varia de acordo com a prevalência da doença na população, presumindo uma elasticidade-prevalência positiva, ao contrário da visão epidemiológica que assume uma elasticidade-prevalência zero. Além da prevalência, os indivíduos também reagem a outras medidas se percebidas como ameaças como, por exemplo, a taxa de mortalidade (Folland et al., 1994).

De acordo com modelos epidemiológicos, com a elasticidade-prevalência igual a zero, significa que com o aumento da prevalência de uma doença na população, a incidência também cresce, pois os indivíduos não são sensíveis ao surto da doença. Porém, se a elasticidade-prevalência for considerada positiva, enquanto uma doença se propaga, pessoas não infectadas buscam se proteger. Com isso, é possível que a incidência irá permanecer estável ou declinar enquanto a prevalência aumenta (Bhattacharya et al., 2013). A elasticidade-prevalência positiva assume, de acordo com a teoria da epidemiologia econômica, uma relação inversa entre prevalência e incidência.

Pode-se verificar esta relação em epidemias passadas, como, por exemplo, o caso do HIV nos Estados Unidos, mais precisamente, na cidade de São Francisco, que na década de 1980 representava 12,5% dos casos de HIV nos Estados Unidos.

 Algumas evidências empíricas relacionadas à epidemiologia econômica, a fim de exemplificar a sua aplicação direta com base em dados reais, têm indicado como os conceitos desta  nova área da economia da saúde podem ajudar na identificação do problema e nas suas possíveis soluções.

Uma diferença considerável entre modelos epidemiológicos e o modelo apresentado pelos autores é a suposição de que os indivíduos escolham seus parceiros sexuais de acordo com as probabilidades de infecção. Os modelos epidemiológicos descartam esta probabilidade de escolha e assumem uma escolha aleatória. Uma relação sexual que tem o potencial de transmissão de doença ocorre apenas quando parceiros potenciais decidem se relacionar sexualmente. Esta escolha, que é guiada por incentivos, é considerada não aleatória pelo modelo estudado. Esta ênfase nos incentivos, mencionada anteriormente, é a principal diferença para modelos epidemiológicos, neste caso.

A epidemiologia não é uma ciência social, portanto, não incluiu as respostas comportamentais e as preferências humanas individuais nos seus modelos. Como foi argumentado acima, o comportamento cria um efeito de feedback, relacionado à responsividade à prevalência, que tem a capacidade de causar um impacto substancial na propagação de doenças infecciosas. As preferências individuais, isto é, o comportamento individual necessita ser incorporado aos modelos de transmissão de doenças infecciosas, dado que a presença de externalidades implica que o comportamento individual é amplificado devido às consequências que pode ter para outros indivíduos.

Em resumo, modelos econômicos e as evidencias empíricas disponíveis têm mostrado que a demanda por prevenção é elástica à prevalência. Se a demanda for altamente elástica, é visto um declínio percentual na prevalência que levará a um declínio percentual maior nos esforços de prevenção dos indivíduos. Consequentemente, será cada vez mais caro atingir reduções adicionais na prevalência. Estimativas precisas da magnitude da elasticidade são, portanto, cruciais para prever o efeito das escolhas individuais e a necessidade de intervenção governamental.

Este breve artigo teve o objetivo de mostrar como as doenças infecciosas podem ser avaliadas sob a ótica das ciências econômicas. Esta análise não procurou diminuir a importância de outras abordagens, mas sim, ressaltar as recentes contribuições teóricas e empíricas que podem ser feitas pela economia e que não receberam, ainda, a devida atenção pelos epidemiologistas e pelos formuladores de políticas públicas em saúde. O ponto fundamental que buscamos destacar foi que a incorporação dos aspectos comportamentais nos modelos epidemiológicos tradicionais a fim de se ter uma melhor compreensão de como estes comportamentos afetam a trajetória de epidemias e, também, as políticas públicas adotadas para contê-las. Todos estes pontos se mostram críticos para avaliarmos a real eficiência das políticas públicas para doenças infecciosas.

Com o avanço da pandemia do novo coronavírus, esta área está obtendo notoriedade dentro da comunidade dos economistas. Estão sendo feitos diversos esforços para entender o comportamento de diferentes populações e políticas públicas frente à pandemia e o que pode ser feito para mudar os incentivos e restrições individuais para promover uma melhoria na saúde pública. A compreensão do que faz as pessoas tomarem decisões referentes a doenças específicas faz com que se abra um leque de opções e possibilidades de conter a propagação e o agravamento de doenças infecciosas, além de auxiliar o enfrentamento de possíveis epidemias futuras.

A epidemiologia econômica, seus modelos, implicações e evidências empíricas ainda se encontram na fase inicial do seu desenvolvimento, na sua infância para assim dizer, não sendo ainda completamente explorada em termos de implicações e políticas públicas em saúde que afetam o bem-estar de todos os agentes envolvidos.

Com a pandemia da Covid-19 vemos o quanto o comportamento humano tem o poder de alterar a trajetória de uma doença infecciosa. Isto apenas reforça a necessidade de explorarmos ainda mais o campo da epidemiologia econômica como uma forma de melhorarmos a nossa resposta a doenças infecciosas, procurando atingir um bem-estar coletivo. Este tema necessita ainda ser mais detalhado e refinado teoricamente, bem como testado com base em dados reais, especialmente em países que sofrem tanto com doenças infecciosas. Enfim, a epidemiologia econômica constitui-se em um importante tópico de pesquisa, não somente para os economistas, mas também para os profissionais da área da saúde e formuladores de política econômica.

 

Bibliografia

BECKER, G. S. The Economic Approach to Human Behavior. Chicago: University of Chicago Press, 1976.

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FOLLAND, S.; GOODMAN, A.; STANO, M. The economics of health and healthcare. 7. ed. New Jersey: Prentice Hall, 1994.

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PHILIPSON, T.; POSNER, R. A. Private Choices and Public Health: The AIDS Epidemic in an Economic Perspective. Cambridge: Harvard University Press, 1993.

TASSIER, T. The Economics of Epidemiology. Berlin: Springer-Verlag, 2013.

 

*Araceli Hubert Ribeiro é aluna do curso de graduação em Economia da UFRGS.

** Giácomo Balbinotto Neto é professor do PPGE/UFRGS – Economia Aplicada e IATS/UFRGS.

 

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A inflação da pandemia da Covid-19 https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3372&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-inflacao-da-pandemia-da-covid-19 Tue, 24 Nov 2020 11:39:34 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3372 Por Roberto Macedo

No meu último artigo, há duas semanas, argumentei que o noticiário sobre as causas da maior inflação em 2020 é limitado, em prejuízo da compreensão desse assunto. Três aspectos são enfatizados: o forte aumento dos preços de alimentos, como o arroz e o óleo de soja, e de preços industriais, este atribuído a uma escassez de insumos utilizados pelo setor, e a taxa de câmbio, em reais por dólar, que subiu bastante neste ano.

Na análise econômica, usualmente se distingue uma inflação de custos, como a dos aspectos citados, cabendo explicar por que aumentaram. E há a inflação de demanda, que pode ocorrer, por exemplo, quando um banco central amplia consideravelmente a oferta monetária e/ou é adotada uma política fiscal que expanda com vigor os gastos públicos. Essas fontes de inflação podem atuar conjuntamente.

No artigo citado, enfoquei a inflação de demanda, muito importante por dois aspectos, o lado fiscal da política macroeconômica governamental e o lado monetário e creditício da mesma política. A política fiscal tornou-se fortemente expansionista. Entre outras razões, pela adoção do auxílio emergencial e por outros dispêndios para a saúde. Isso teve o seu lado monetário mais claro com o auxílio emergencial, pois foi pago em dinheiro ou creditado em contas, alcançando dezenas de milhões de pessoas.

Mostrei também números de grande dimensão reveladores desse impacto monetário gerador de demanda. O papel-moeda em poder do público aumentou 35% entre março e setembro de 2020, os depósitos bancários à vista cresceram 25%, segundo o Banco Central, e esses aumentos foram significativos se comparados com os verificados em 2019, sem a covid-19. Ressaltei ainda as contas de poupança, cujo saldo total aumentou 18% entre março e setembro de 2020, ou R$ 152 bilhões. Pela primeira vez ultrapassou a imensa cifra de R$ 1 trilhão.

Outra fonte, o Fundo Garantidor de Créditos, revelou que o aumento foi mais forte, de 55% (!), nas contas de saldo mensal até R$ 5 mil, indicando que parte do auxílio emergencial aí ficou. Essas contas são também utilizadas, em parte, como depósitos à vista. E esse uso cresceu muito em 2020. Por exemplo, no mês de outubro, os depósitos na poupança passaram de R$ 218,1 bilhões em 2019, para R$ 279,6 bilhões em 2020; e as retiradas, de R$ 218,4 bilhões para R$ 272,6 bilhões no mesmo período.

Ainda do lado monetário, houve também aumento considerável das concessões de crédito, de apoio a pessoas físicas e jurídicas. Segundo o Banco Central, o saldo da carteira de crédito livre aumentou expressivos 26,5% para pessoas jurídicas e 8,7% para pessoas físicas, entre setembro de 2019 e setembro de 2020.

Concluí afirmando que essa forte expansão dos meios de pagamento pesou e continuará pesando na inflação de 2020. Acrescento que essa expansão coincidiu com forte queda do produto interno bruto (PIB), que foi de 2,5% no primeiro trimestre 2020 e de 9,7% no segundo. Assim, o grande aumento dos meios de pagamento, revelador de um também amplo aumento da demanda, encontrou a oferta em queda por causa do menor PIB, provocando assim pressões inflacionárias.

A previsão da inflação em 2020, medida pelo IPCA do IBGE, continuou subindo nas duas últimas semanas, como ocorre ininterruptamente há 14, segundo o boletim semanal Focus, do Banco Central. O último boletim, da semana passada, previa 3,25%. Em 5/6/2020 a previsão era de 1,53%, e havia caído desde o início do ano. Ou seja, a previsão mais do que dobrou desde junho.

Recentemente, o Banco Central divulgou seu Boletim Regional trimestral, de outubro, que reconhece o efeito dos programas de transferência de renda sobre a inflação, conforme estes trechos: “A pandemia da Covid-19 tem influenciado a inflação e os preços (..,) desde março (…) a depreciação cambial, os programas de transferência de renda e o aumento dos gastos com alimentação no domicílio pressionaram os preços dos alimentos. (…) a análise evidencia inflação de alimentos mais elevada no Norte e no Nordeste, inclusive para a faixa de renda mais baixa, o que sugere algum efeito do auxílio emergencial (…), mais significativo nessas regiões, sobre a demanda desses produtos”.

Usando esse diagnóstico para especular quanto ao futuro da inflação, a pressão inflacionária terá uma queda neste e no próximo trimestre com a redução e eliminação do auxílio, mais a expansão do PIB, que voltou a crescer no terceiro trimestre deste ano, queda que poderá ser arrefecida se o dinheiro acumulado em 2020 nas contas de poupança, ou de outras formas, for usado para consumo.

Passando a outros fatores, se o governo federal não tomar nos próximos três meses medidas efetivas para reduzir sensivelmente o déficit fiscal, que aumentou enormemente em 2020, isso poderá contribuir para agravar as preocupações quanto ao financiamento da dívida pública, criando pressões sobre o câmbio e sobre as próprias expectativas de inflação, que também poderão contribuir para agravá-la.

Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 19 de novembro de 2020.

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A Crise Econômica do Covid-19 no Brasil: Como Estamos Reagindo? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3260&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-crise-economica-do-covid-19-no-brasil-como-estamos-reagindo Thu, 28 May 2020 18:24:52 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3260 ⦁ Introdução

A resposta adequada da política econômica à crise do Covid-19 tem sido o tema mais relevante do debate atual sobre economia no mundo e no Brasil.

Nesse artigo procuramos analisar a resposta que está sendo dada pela equipe econômica no Brasil. Partindo de uma estratégia de austeridade fiscal, a equipe econômica optou por uma abordagem mais expansiva com vistas a compensar as consequências da Covid-19.

A pergunta que se faz é em que medida tal mudança constitui um reconhecimento da equipe econômica de que a austeridade anterior estava errada e que é preciso migrar para uma abordagem de gosto mais Keynesiano, na linha da “nova matriz econômica” executada entre 2008 e 2016?

Se o entendimento do que for “keynesiano” é simplesmente gastar mais no curto prazo para fazer frente à crise do Covid-19, a resposta é positiva. No entanto, voltar a uma abordagem de gastos públicos que continuamente ativem a economia, seja “cavando e enchendo buraco” (a eterna metáfora keynesiana), seja investindo ou consumindo, a resposta é claramente negativa. Não há dissenso de que uma mudança de direção temporária é necessária no curto prazo em resposta a um evento totalmente imprevisível e fora do controle como o covid-19. Mas isto não implica que se deva reverter a linha de austeridade para um prazo mais longo. Na verdade, indica a necessidade de reforçar aquele caminho, passada a tempestade.

A Revista The Economist reconheceu a necessidade de rápida e coordenada ação do Estado para fazer frente à emergência do Covid-19:

“Governments might have stumbled in the pandemic, but they alone can coerce and mobilise vast resources rapidly. Today they are needed to enforce business closures and isolation to stop the virus. Only they can help offset the resulting economic collapse.”

De fato, enquanto não há dúvida da necessidade da resposta rápida do governo no enfrentamento da crise do covid-19, esta estratégia não pode se estender muito dados os limites de sustentabilidade da dívida pública brasileira.
Como discutiremos abaixo, a resposta de curto prazo que está sendo implementada pela equipe econômica envolve convergir dois tipos de ações em resposta à crise: 1) proteger os mais vulneráveis e 2) compensar os súbitos choques de oferta e demanda gerados pela quarentena, evitando que eles se inercializem e gerem uma recessão desnecessariamente duradoura.

No longo prazo, no entanto, a convergência destes mesmos objetivos se realizará apenas com a volta da austeridade que permitirá retomar a meta de reduzir a relação dívida/PIB. Afinal, continua não se podendo gastar nas funções básicas do Estado, saúde, educação e segurança, em função não apenas da dívida muito elevada como do orçamento comprometido. A crise do Covid-19 nos revela, na realidade, o contrário, ou seja, o valor que deveríamos dar à disciplina fiscal para quando choques negativos gerados por eventos totalmente imprevisíveis ocorrerem. Ter mais graus de liberdade nas finanças públicas para conter os efeitos de crises como essa é fundamental,. A linha de expansionismo fiscal da “nova matriz econômica”, infelizmente, foi o que diminuiu esse espaço de manobra das finanças públicas brasileiras.

Ademais, não há qualquer contradição entre a resposta à crise no curto prazo e as reformas microeconômicas estruturais no longo prazo. Nesse caso, a maior produtividade que se espera com mais concorrência e desregulamentação da economia permite não apenas um melhor padrão de vida a todos, mas também uma maior capacidade de enfrentar eventuais crises como a atual com menos sacrifícios. Afinal, produzindo mais com menos em função da maior produtividade e com preços menores devido à maior concorrência se tem melhores condições de reduzir o sacrifício requerido durante este tipo de crise.

Na próxima seção fazemos uma síntese dos efeitos da crise nas economias mundial e brasileira pelas estimativas e indicadores disponíveis. Na seção III colocamos a pergunta sobre qual a melhor estratégia de enfrentamento da crise, proteger os mais vulneráveis ou aumentar investimentos públicos?

Na seção IV abordamos a natureza dos choques gêmeos de oferta e demanda, gerados pela crise do covid-19 e as reações da equipe econômica tanto na política fiscal quanto na monetária em cada um daqueles. Entendemos que, além destas políticas convencionais, há necessidade de manter o esforço de reformas microeconômicas de longo prazo. De fato, não há qualquer contradição, ao contrário, complementaridade, entre as políticas monetária e fiscal expansivas de curto prazo, o retorno o mais rápido possível ao ajuste gradual que vinha sendo seguido anteriormente e as políticas estruturais de longo prazo.

Na seção V, discutimos, do ponto de vista da teoria econômica, porque há necessidade de políticas fiscais e monetárias expansivas para uma crise desta envergadura. Cabe evitar que os choques de curto prazo se propaguem para o longo prazo e gerem efeitos permanentes na economia, ou seja, se inercializem. Aqui a magnitude elevada dos dois choques gerados pela quarentena repentina se torna uma variável chave para justificar o breve desvio da política econômica anterior de austeridade, especialmente para evitar a presença de tipping points que joguem o país em uma recessão desnecessariamente prolongada.

Na seção VI, destacamos a necessidade de se evitar um terceiro choque, o de concorrência, que ocorreria por uma maior concentração de mercado pós-Covid em função da saída permanente de empresas do mercado. Assim, evitar a crise de liquidez que afeta especialmente as pequenas e médias empresas é crucial. Os movimentos que o governo tem implementado nas políticas fiscal, monetária e de crédito são fundamentais neste aspecto.
Por fim, a seção VII conclui.

 

⦁ Covid-19: A Pior Recessão Mundial desde a Grande Depressão – “O Grande Lockdown”

A crise do Covid-19 gerou um impacto significativo e repentino na economia brasileira, mais fortemente sentido a partir do mês de março de 2020. Conforme o IBGE, o consumo aparente de bens industriais registrou uma queda de 11,9% na comparação entre março e fevereiro de 2020, na série com ajuste sazonal. O Indicador Ipea de Formação Bruta de Capital Fixo recuou 8,9% na comparação entre março e fevereiro de 2020, na série com ajuste sazonal.
O mais impressionante foi a deterioração das expectativas do mercado em relação ao PIB do Brasil em 2020 e 2021, conforme a pesquisa Focus do Bacen, à medida que foi se percebendo a real magnitude da crise do covid-19. De uma mediana das expectativas de mercado de crescimento do PIB no Brasil de +2,3% para 2020 em 07/02/2020, passou-se a uma expectativa de queda no PIB de -5,12% em 15/05/2020. O gráfico a seguir, tirado do Boletim Macrofiscal de 13/05/2020, apresenta a queda abrupta dos indicadores de serviços (PMS), industrial (PIM) e comércio (PMC).

Quadro I – Evolução Recente de Indicadores de Atividade no Brasil

O impacto da crise do Covid-19 é global. O quadro a seguir mostra as estimativas do FMI para a recessão esperada no mundo. Estima-se uma queda do PIB das economias mais avançadas em -6,1%, chegando a área do Euro a – 7,5% e os EUA a -5,9%. A China cai de um crescimento de 6,1% em 2019 para 1,2% em 2020. Para a América Latina e Caribe junto dos países ex-socialistas europeus, estima-se uma queda também de -5,2%, próximo ao estimado para o Brasil em -5,3%.

Quadro II – Estimativas de Crescimento do FMI no Mundo e Brasil para 2020/21

Com base nesses números, o FMI assim caracterizou a dimensão da crise econômica gerada pelo Covid-19 no mundo:
“The magnitude and speed of collapse in activity that has followed is unlike anything experienced in our lifetimes. This is a crisis like no other, and there is substantial uncertainty about its impact on people’s lives and livelihoods……… Under the assumption that the pandemic and required containment peaks in the second quarter for most countries in the world, and recedes in the second half of this year, in the April World Economic Outlook we project global growth in 2020 to fall to -3 percent. This is a downgrade of 6.3 percentage points from January 2020, a major revision over a very short period. This makes the Great Lockdown the worst recession since the Great Depression, and far worse than the Global Financial Crisis…….. the cumulative loss to global GDP over 2020 and 2021 from the pandemic crisis could be around 9 trillion dollars, greater than the economies of Japan and Germany, combined.”
Vejamos como o Brasil está reagindo a isso na próxima seção.

⦁ Investir ou Proteger os Vulneráveis na Crise?

Nelson Barbosa criticou a resposta inicial do governo brasileiro à crise do Covid-19. Em 18 de março de 2020, o ex-Ministro da Fazenda do governo Dilma apontava que a equipe econômica estaria excessivamente “focada em ações de longo prazo –“reformas, reformas, reformas”– sem qualquer medida de curto prazo”. Sua principal prescrição seria rever o teto de gasto e aumentar o investimento público.

A revisão do teto de gastos foi considerada desnecessária por Marcos Mendes, pois “a restrição ao aumento dos gastos tem algumas exceções. Uma delas é o envio de dinheiro para despesas imprevisíveis e urgentes, como em caso de guerra, comoção interna ou calamidade pública. O governo, portanto, pode usar esse dispositivo para ampliar os recursos em ações de contenção das transmissões do vírus e tratamento de pacientes infectados, sem pressionar ainda mais o teto”. De fato, ao final de março, o Supremo Tribunal Federal liberou regras fiscais mais flexíveis para a crise do covid-19.

O aumento do investimento público esbarra nos problemas do endividamento do setor público brasileiro. Em 2020, a necessidade de financiamento do setor público e a dívida bruta do governo central, como proporção do PIB, podem chegar a, respectivamente,13,8% do PIB e 93,1%, com as despesas extras para mitigar os efeitos da crise do Covid-19. Claramente se está em um limite das despesas públicas em que cabe escolher prioridades, ou retomar a estratégia de investimentos públicos de um lado ou mobilizar recursos para a saúde e ajudar os mais vulneráveis a atravessarem essa difícil fase do outro.

A eficiência da estratégia de investimentos públicos no Brasil é, em geral, bastante duvidosa. Segundo Frischtak e Davies (2015), por exemplo, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que contava com investimentos públicos, teve recorrentes problemas de custos elevados, atrasos sistemáticos e resultados ruins. O relatório de obras paralisadas do programa mostrou que em 30 de junho de 2018, 4.738 empreendimentos se encontravam paralisados, o que correspondia a 41% da carteira e um valor despendido de R$ 69 bilhões que até agora não gerou qualquer retorno à sociedade. Em Relatório de Assistência Técnica de dezembro de 2018, o FMI, mostra que de cada Real gasto em investimento público no Brasil, R$ 0,39 são desperdiçados. No caso específico de rodovias, a pesquisa da Confederação Nacional dos Transportes em 2019 mostrou que 74,7% da extensão das rodovias brasileiras em regime de concessão estavam em estado geral ótimo ou bom contra apenas 32,5% das rodovias geridas pelo poder público.

Dessa forma, não faz sentido, a não ser de forma residual, retornar à estratégia de investimento público. Independente da crise do covid-19, há um grande número de referências indicando que o caminho de parcerias com o setor privado por meio de concessões e PPPs é o mais adequado. E não apenas pela falta de eficiência relativa do investimento público, mas também pela falta de recursos públicos disponíveis.
A estratégia da equipe econômica, tomada com base em recursos despendidos pelo Tesouro Nacional pode ser avaliada a partir do quadro III a seguir. O Tesouro Nacional destinou um total de R$ 349,4 bilhões para o enfrentamento da Covid-19, sendo R$ 344,1 bilhões de recursos novos (98,48%) e o resto de realocações de outras rubricas de despesas do orçamento. Ou seja, o enfrentamento foi todo realizado com base, até agora, no incremento do déficit primário de 2020, sendo que 23,01% ainda está sem dotação (especialmente recursos novos para os estados). R$ 31,9 bilhões (9,13%) foram alocados para apoiar empresas, sendo R$ 16 bilhões (4,58%) de desonerações fiscais e R$ 15,9 bilhões (4,55%) de apoio a pequenas e médias empresas no Pronampe.

 

 

Quadro III – Despesas do Tesouro – Ações de Enfrentamento do Covid -19
Medidas Instrumentos R$ Bilhões
I) Suporte Direto às Empresas  31,9 9,13%
I.1) Desonerações Fiscais (II, IPI, PISCofins, IOF) Resoluções camex 17, 22, 28, 31, 32 e 33 16 4,58%
Decretos 10285, 10302, 10318, 10305
I.2)Pronampe (Crédito e Garantia a PMEs) Lei 13.999, de 2020 – Sem Dotação 15,9 4,55%
II)Despesas de Proteção Social Não Saúde 216 61,82%
II.1)Ampliação do Bolsa-Família MPV 929 3 0,86%
II.2)Benef. Manut. Emprego e Renda  MPV 935 51,6 14,77%
II.3)Coronavoucher MPV 937 123,9 35,46%
II.4)Programa de suporte a Empregos (Folha) MPV 943 34 9,73%
II.5)Transferencia para CDE (Tarifa social de energia) MPV 949 0,9 0,26%
II.6)Suplementação à Proteção Social no Sistema Único MPV 953 2,6 0,74%
de Assistência social
III)Despesas de Proteção Social Saúde 23,7 6,78%
III.1)Auxilio Estados e Municípios – Transferência MPV 940 9 2,58%
III.2)Fundo Nacional da Saúde 
III.3)Transferência ao Fundo Nacional de Saúde  MPV 947 2,6 0,74%
Aquisição EPIs e Respiradores
III.4)Auxílio Estados e Municípios – Transferência MPV 941 2 0,57%
Saúde
III.5)Cidadania – Segurança alimentar e nutricional MPV 957 0,5 0,14%
III.6)Transferência  suplementar ao Fundo Nacional  Sem dotação 4,5 1,29%
Saúde 
III.7)Ampliação de Recursos para Aquisição de 
Insumos Médicos Hospitalares (*) MP 924 5,1 1,46%
IV)Créditos a Estados e Municípios Não Saúde  76 21,75%
IV.1)Auxílio Estados e Municípios – Compensação FPE e  MPV 939 16 4,58%
FPM
IV.2)Auxílio Estados e Municípios Recursos Novos Sem dotação 60 17,17%
V)Outros  1,8 0,52%
V.1)Crédito Extraordinário da Presidência, MRE, MCTIC, MPVs 921, 929, 940, 942 1,6 0,46%
Defesa, MEC, Cidadania
V.2)Realocações Covid 19 (*) 0,2 0,06%
VI)Total de Despesas do Tesouro para Enfrentamento
da Covid-19 349,4 100,00%
VII) Total do Impacto Potencial no Deficit Primário de 2020  344,1 98,48%
(VI-III.7-V.2)
VII.1) Com dotação 263,7 75,47%
VII.2) Sem dotação 80,4 23,01%
(*) Resultado de Realocações de Recursos de Outras Despesas

 

As despesas de proteção econômico-social da população não diretamente relacionadas a gastos em saúde são a maior parte, com R$ 216 bilhões (61,82%). O coronavoucher para os mais vulneráveis ocupa mais da metade desse total de proteção social com R$ 123,9 bilhões (35,46%) alocados para três meses (R$ 200 Reais por mês por beneficiário), seguido do benefício pela manutenção de emprego e renda, que é um benefício pago ao trabalhador em caso de redução da jornada ou contrato suspenso direcionado a 24,5 milhões de trabalhadores com carteira assinada com R$ 51,6 bilhões (14,77%) e do Programa de Suporte a Empregos com R$ 34 bilhões (9,73%) para complementação da renda relativo ao financiamento de 2 meses da folha de pagamento de pequenas e médias empresas.

Já o total de recursos que incrementam as ações de saúde, inclusive com transferências para Estados, atingem R$ 23,7 bilhões (6,78%). Somando aqueles valores despendidos com recursos financeiros para proteção social e esses últimos para saúde teremos, portanto, (R$ 216 + R$ 23,7=) R$ 239,7 bilhões (68,6%) de direcionamento de gastos diretamente para a área social (desempregados + trabalhadores formais e informais + saúde) em resposta ao Covid-19. Se acrescentarmos os valores alocados ao Pronampe acima na conta de recursos para a área social, o percentual chega a (68,6%+4,55%=) 73,15%, ou seja, quase ¾ destinado ao objetivo de mitigar os efeitos sociais da crise.
Enfim, a parte IV relativa ao crédito a estados e municípios não relacionados a questões de saúde, que atinge R$ 76 bilhões representa pouco mais de 1/5 do incremento (21,75%). A relação com o covid-19 deriva, em tese, do elevado impacto que a crise terá sobre as finanças dos entes subnacionais, especialmente a frustração do ICMS. Nesse caso, não é claro até onde o governo federal, que também contará com grande impacto negativo em sua arrecadação, deveria deslocar recursos escassos de outras atividades mais relacionadas à proteção de vulneráveis, apoio à manutenção de empregos ou à saúde. Neste item, também não é claro por que transferir aos entes subnacionais é superior à proposta de Nelson Barbosa de investir em obras paralisadas e, principalmente, à ideia de poupar estes valores e evitar a elevadíssima pressão na dívida pública federal.

Mais do que isso, a estratégia utilizada promove uma desejável convergência das ações macroeconômicas de curto prazo com a requerida política social de apoio aos mais necessitados. Como destacado pelo ex-presidente do BACEN, Ilan Goldfajn, o “foco” da política econômica neste momento “em termos de política fiscal (deveria ser) em medidas que dão suporte e mitigam os efeitos da crise, asseguram que os mais vulneráveis conseguirão atravessar este período. Não é o momento de grandes planos, de obras públicas”.

Cabe entender como a crise do Covid gerou choques gêmeos repentinos de oferta e demanda para compreender tais escolhas. É o que faremos a seguir.

⦁ Os Choques Gêmeos de Oferta e Demanda

No início de março o economista Kenneth Rogoff (2020) alertou para uma peculiaridade da crise gerada pelo Coronavírus em relação às últimas duas recessões mundiais do século XXI: o Covid-19 implica um choque tanto de oferta quanto de demanda, ou seja, seriam “choques gêmeos” gerados pela crise. Pior, os choques ocorreram repentinamente pela necessidade de instituição imediata da quarentena. O problema destacado por Cochrane (2020) é que:

“Shutting down the economy is not like shutting down a light bulb. It’s more like shutting down a nuclear reactor. You need to do it slowly and carefully or it melts down”.

Inicialmente considerado como um rápido choque de oferta para a China e economias crescentemente dependentes de insumos daquele país como o Brasil, entendia-se que haveria um comportamento na forma de “V”: uma queda inicial seguida por uma rápida recuperação das economias envolvidas. Este otimismo inicial já foi revertido com a constatação de que o isolamento social naturalmente levou a um forte e repentino “choque de demanda” de curto prazo. E como as pessoas não vão trabalhar e produzir por estarem doentes ou em quarentena, gera-se também um choque de oferta.

Apesar da generalização do impacto dos “choques gêmeos” de demanda e oferta sobre os diversos setores, alguns foram mais rapidamente afetados pela pandemia como viagens aéreas, bares e restaurantes, turismo, academias de ginástica e grande parte do comércio.

Mas o setor industrial também está passando por problemas substanciais. Baldwin e Di Mauro (2020) resumem os três impactos principais sobre a manufatura (dois na oferta e um na demanda):

“The manufacturing sector is likely to get a triple hit. 1. Direct supply disruptions will hinder production, since the disease is focused on the world’s manufacturing heartland (East Asia) and spreading fast in the other industrial giants – the US and Germany. 2. Supply-chain contagion will amplify the direct supply shocks as manufacturing sectors in less-affected nations find it harder and/or more expensive to acquire the necessary imported industrial inputs from the hard-hit nations, and subsequently from each other. 3. There will be demand disruptions due to (1) macroeconomic drops in aggregate demand (i.e. recessions); and (2) wait-and-see purchase delays by consumers and investment delays by firms….. when faced with massive Knightian uncertainty (the unknown-unknowns) of the type that COVID-19 is now presenting to the world.”

No Brasil, do lado da indústria, sondagem da CNI com industriais no início de abril de 2020 aponta que 91% dos empresários reportaram impactos negativos do Covid-19, sendo que para 70% houve queda na demanda.
Mas a face mais delicada do choque de demanda é o impacto sobre os mais pobres do mercado informal como ambulantes que dependem de pessoas na rua para manter o seu negócio. O problema macroeconômico se encontra com a questão social como veremos a seguir, segmentando em medidas para o choque de demanda e para o de oferta.

Mitigação do Choque de Demanda

Na dimensão “mitigação do choque de demanda”, implementaram-se dois tipos de ações. Primeiro, medidas de transferência de renda aos grupos mais vulneráveis, o que inclui os trabalhadores informais e autônomos, que repentinamente perderam suas rendas, permitindo a eles atravessar a tormenta econômica com um mínimo de segurança. A Lei do chamado “coronavoucher” com a distribuição de R$ 600,00 por indivíduo em condição de vulnerabilidade ao longo de 3 meses foi uma importante medida nesta direção, junto à ampliação da possibilidade de saques do FGTS, não havendo melhores exemplos da convergência da macroeconomia e a área social.
Segundo, medidas de incentivo à manutenção do nível de emprego pelos empregadores, flexibilizando o contrato de trabalho de forma a evitar o desemprego e o desaparecimento da renda do trabalhador em um período de crise. Governo, trabalhadores e empresas darão sua cota de contribuição.

Do ponto de vista macroeconômico, estes dois tipos de políticas de sustentação de renda, que também se constituem em importantes políticas de alcance social, contribuem para mitigar o choque de demanda.
Como mostrado no Balanço da Secretaria Especial de Fazenda do Ministério da Economia de 01 de maio de 2020, o governo federal brasileiro implementou medidas relacionadas ao Covid-19 que resultarão em impacto no déficit primário do governo central de R$ 394,4 bilhões, o que representa 4,81% do PIB, bem maior que a média dos emergentes de 2,3% do PIB ou mesmo dos países mais avançados de 4,3% do PIB. Esta resposta constitui um mix de incremento de gastos com redução/diferimento de tributos. Ou seja, a resposta fiscal do governo brasileiro ao Covid-19, atuando para mitigar os efeitos do choque de demanda, tem sido bastante expressiva. O problema aqui é qual o espaço fiscal que o país tem para dar continuidade a esta estratégia por mais tempo com a relação dívida bruta/PIB passando dos 90% e podendo chegar aos 100% a depender das pressões políticas para tornar permanentes os gastos temporários derivados da crise?

De um lado, Nelson Barbosa defendeu que os limites para esta ou qualquer estratégia fiscal expansionista seriam bem amplos, pois “o restante da dívida pública pode ser pago ou rolado de modo infinito”. Segundo o ex-Ministro da Fazenda, o problema de financiamento da dívida pública é pequeno pois como o Banco Central poderá adquirir títulos do Tesouro, o aumento da demanda de moeda gerado pela recuperação econômica, em situação de desemprego e capacidade ociosa, permitiria que o aumento da quantidade de moeda não iria gerar inflação. Isso equivaleria a uma sustentabilidade de relações dívida/PIB bem elevadas.

De outro lado, Persio Arida é cético em relação aos limites da expansão fiscal, os quais seriam dados pela expectativa sobre a sustentabilidade do crescimento da relação:

“O drama não é o patamar da dívida, mas sim a percepção de que possa estar numa trajetória explosiva. É a perspectiva de um crescimento descontrolado da dívida/PIB que erode a confiança no nosso futuro, afugenta o investimento privado, aumenta a percepção de risco do país e leva à depreciação exagerada da moeda nacional.”

Levando em consideração a experiência brasileira recente de recessão grave com o desequilíbrio das contas fiscais gerados pela “nova matriz econômica”, entendemos esta avaliação de Arida mais equilibrada. Se utilizarmos a comparação do Brasil com outros países emergentes, apresentada no Boletim Macrofiscal de 13/05/2020, vemos que o Brasil estará com a maior relação dívida bruta/PIB (maior que 90%) e um esforço fiscal que está, junto a Peru e Tailândia e Chile, entre os maiores.

Ou seja, o espaço fiscal brasileiro é muito limitado e a resposta, até o momento, de concentrar os esforços de curto prazo na proteção dos vulneráveis e mitigação macroeconômica do choque de demanda é correta. Estender no tempo esta expansão fiscal pode mergulhar o país em uma crise ainda pior, a não ser que se conte com cortes em outras despesas. De qualquer forma, medidas sociais adicionais de proteção requererão maior focalização do gasto e atenção ao custo do programa e/ou redução de outras despesas.

Naturalmente que quanto mais confortável fosse a situação fiscal do país antes da crise, maior poderia ser o tempo de extensão da estratégia de expansão fiscal para o objetivo duplo de acomodação social e macroeconômica do choque de demanda. Com a maior frouxidão fiscal da “nova matriz econômica” até 2016, a capacidade de fazer frente aos problemas criados pelo covid-19 é naturalmente mais limitada. Igualmente, recorrer a aumento da carga tributária para financiar mais gastos poderia ser muito ruim para a recuperação econômica, especialmente para o investimento, a não ser que conte com uma reforma anterior que corrija as distorções existentes. Apesar de a carga tri0butária brasileira como proporção do PIB de 33,1% em 2018 estar próxima da média da OCDE (34,3%), está muito acima da média dos países da América Latina em 10 pontos percentuais (23,1%), estando acima da Argentina (28,8%), México (16,1%) e Chile (21,1%), ficando apenas atrás de Cuba (42,3%).

Quadro III – Relação Dívida/PIB e Gastos fiscais no Combate ao Covid-19: Brasil x Emergentes

Mitigação do Choque de Oferta

Na dimensão “contenção do choque de oferta” há dois tipos de ações requeridas. Primeiro, prosseguir na redução de entraves regulatórios e de barreiras à entrada na economia brasileira. Passar pela tormenta não nos deve impedir de continuar olhando para a frente no esforço de reformas microeconômicas favoráveis à competição e à produtividade. Na realidade, sinalizar a manutenção do compromisso do governo com o destravamento do ambiente de negócios no Brasil se tornou ainda mais essencial para evitar que os choques gêmeos de curto prazo contaminem o processo de recuperação econômica pós-COVID-19. O Brasil continua sendo o penúltimo pior país no índice do Product Market Regulation (PMR) da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE-2018), que mede o grau de barreiras à entrada e concorrência, como pode ser visto no quadro IV abaixo.

Isso restringe em demasia a atratividade do país para investimentos, sendo falso que a crise deveria representar uma reversão da agenda de reformas microeconômica. Rocha (2020), por exemplo, mostra o efeito da qualidade regulatória, que inclui a remoção de barreiras à entrada, no investimento em infraestrutura após a crise de 2008 no Brasil. A autora mostra que se atingíssemos a (melhor) qualidade regulatória do Chile aumentaríamos os investimentos em infraestrutura como proporção do PIB do atual patamar médio de 1,84% do PIB para 3,43% do PIB, abaixo do requerido (4,5% conforme o Banco Mundial), mas já acima do nível de reposição de 2,41%.
A continuidade das reformas gera ainda um efeito positivo sobre as expectativas na economia, o que será importante na disposição a investir, além de uma blindagem maior da economia brasileira a eventuais crises futuras.
Destacamos as reformas tributária e administrativa, o aprofundamento da flexibilização trabalhista, as alterações dos marcos legais do saneamento, ferrovias, petróleo e gás, cabotagem e as iniciativas de privatização da Eletrobras, portos, refinarias de petróleo, correios e o leilão de 5G, dentre outras. A abertura ao comércio exterior é chave nesta agenda.

Ademais, note-se como mesmo algumas das principais respostas ao choque de demanda mostradas acima estão em uma linha liberal. A flexibilização da legislação trabalhista é considerada um dos principais gargalos para aumentar o nível de emprego em tempos normais. No covid-19, flexibilizaram-se as regras trabalhistas para manter o nível de emprego, admitindo-se redução de jornada e de salários. A concessão do coronavoucher, à exemplo do bolsa família, se espelha na ideia do imposto de renda negativo de Milton Friedman. Na saúde houve a aprovação de uma lei de liberalização/flexibilização do uso da telemedicina (Lei 13.989/2020), apesar de só vigorar durante a pandemia. Ou seja, mesmo para o período da pandemia, reconhecem-se as virtudes de medidas liberais para mitigar os efeitos econômicos e sociais da crise.

Quadro IV – Indicador de Regulação no Mercado de Produto da OCDE em 2018

Segundo, o choque de oferta pode se tornar mais dramático no médio prazo em função do prolongamento do isolamento social e, por conseguinte, do próprio choque de demanda. Com o maior período de consumo baixo e de receitas de vendas reduzidas, várias empresas poderão ir à bancarrota se não contarem com outras fontes de capital para se financiarem.

Ainda não é clara a magnitude do comprometimento das empresas a partir do covid-19. Apesar de o SERASA/Experian registrar aumentos dos pedidos de recuperação judicial (46,3%) falências (25%) em abril de 2020 relativamente a março, estes números são inferiores a abril de 2019, especialmente falências (131 em abril 2019 para 75 em abril 2020). Na sondagem da CNI no início de abril, 6 em cada 10 empresas reportaram dificuldades para honrar pagamentos de rotina, ampliando a demanda por capital de giro de terceiros. 55% reportaram maior dificuldade em acessar o capital de giro no mercado após o covid-19.

Se uma falência generalizada ocorrer, vários ativos poderão sair de forma definitiva do mercado. Há a possibilidade de parte deles nem voltarem a produzir os mesmos bens ou serviços quando o coronavírus estiver sob controle e nem serem realocados em outros segmentos. Isso resulta na possibilidade de um choque de oferta mais amplo e duradouro. Segundo Cochrane (2020):

“Firms have to pay debts and wages. People have to make mortgage payments or pay the rent. “Left alone,” he writes, “there could be a huge wave of bankruptcies, insolvencies, or just plain inability to pay the bills. A modestly long economic shutdown, left alone, could be a financial catastrophe.”

Popov e Sundaram (2020) destacam a necessidade de o Estado intervir no caso de mudanças muito repentinas, como na crise do Covid-19 para evitar que o ajuste seja muito “doloroso, demorado e custoso”:
“sudden, large scale structural shifts may be more disruptive as time and effort are needed to reallocate resources. Thus, output drops in declining industries are not immediately compensated by production increases in the emerging new industries. In a market economy, adjustments typically increase unemployment: industries that become less profitable, due to higher costs, may lay off workers; growing unemployment lowers wages, and it may take a while before the lower labour costs make it worthwhile to raise production in other industries. Without government assistance to retrain laid off workers and encourage new investments, adjustment will be more painful, lengthy and costly”.

Assim, cabe evitar prolongamento desnecessário das recessões abruptas e profundas como o caso desta gerada pelo covid-19, que acabem por gerar irreversibilidades importantes na estrutura produtiva do país.

Dessa forma, é fundamental melhorar as condições de liquidez das empresas para evitar que os choques gêmeos tenham efeitos mais persistentes que o necessário. Nesse contexto, o governo federal tem adotado medidas importantes como o relaxamento de condições para empréstimos de instituições financeiras oficiais, com foco em pequenas e médias empresas com destaque para o Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe), e medidas de política monetária como a redução da taxa Selic pelo Banco Central de 4,5% a.a em dezembro de 2019 para 3% a.a no início de maio de 2020, a terceira queda do ano, e a redução da alíquota do compulsório sobre os recursos à prazo de 25% para 17%. Na arena fiscal, os vários diferimentos/redução de tributos ajudam na liquidez das empresas e atenuam o choque de oferta.

É fundamental, no entanto, garantir que os escassos recursos públicos sejam utilizados com parcimônia e cuidado, refletindo sobre os custos de oportunidade de realizar a operação de suporte com outros usos concorrentes, que na crise são inúmeros. Seguindo Goldberg (2020) podemos derivar alguns princípios a serem seguidos nestas operações:

1) aceitar que estamos mais pobres, ou seja, não faz sentido evitar todas as perdas do setor privado;
2) proteger empresas deveria ser visto como uma forma indireta de proteger pessoas, em particular trabalhadores; assim cabe avaliar se é mais vantajoso proteger pessoas diretamente ou via empresas;
3) avaliar se i) é melhor resgatar a empresa, preservando ativos que, operando em conjunto, valham mais do que quando separados ou ii) não fazer nada, deixando à iniciativa da própria empresa elaborar seu plano de recuperação com venda de ativos ou recuperação judicial ou falência, deixando que o mercado aloque os ativos “liberados” a novas companhias. Afinal de contas, como destacado por Cochrane (2020):

“Bankruptcy of a large corporation does not leave a crater behind. Bankruptcy is reorganization and protection, not liquidation. The point of bankruptcy is precisely to keep the business going. When a corporation files for bankruptcy, the stockholders are wiped out, bondholders lose a lot and become the new stockholders. The company rewrites a lot of contracts — union contracts requiring a plane to fly even with empty seats, contracts to buy fuel at high prices, gate leases, and so forth.”

4) focar em problemas de liquidez gerados pelo covid-19 e não de solvência que já venham de antes, o que tem a ver com a necessidade de reduzir problemas de moral hazard; na crise de 2008 se falou muito que os bancos tiveram comportamento excessivamente arriscado, sendo que o seu resgate, ao validar a indisciplina, geraria incentivos para indisciplinas futuras, o que seria o embrião da próxima crise. Na atual crise do covid-19, ao contrário, a nenhuma empresa ou setor pode ser imputada a responsabilidade pela covid-19. No entanto, isso não implica que as empresas em geral não devem “investir” em seus próprios hedges contra crises imprevisíveis como esta.

⦁ Persistência dos Choques Gêmeos

Há um extenso debate na literatura econômica sobre a persistência/inércia de choques sobre o produto da economia. Remete-se à ideia keynesiana de falhas de coordenação e rigidez no ajustamento de preços e salários, com significativo grau de dependência da trajetória (path-dependence). Kydland e Prescott (1982), por exemplo, mostram que como investir é uma atividade demorada, isso levaria a uma maior persistência dos efeitos de crises no PIB. Blanchard e Summers (1987) mostram que o principal fator explicativo do desemprego seria a trajetória recente do próprio desemprego baseado na diferença de poder de barganha entre trabalhadores empregados e desempregados (insiders/outsiders).
Os choques podem ter efeitos persistentes sobre o PIB e sua taxa de crescimento e da produtividade como destaca Stiglitz (1994):

“During recessionary phases, typically firms also reduce their expenditures in R&D and productivity-enhancing expenditures. The reduction in output reduces opportunities to “learn by doing.” Thus, the attempt to pare all unnecessary expenditures may have a concomitant effect on long-run productivity growth. In this view, the loss from a recession may be more than just the large, but temporary, costs of idle and wasted resources: the growth path of the economy may be permanently lowered”. 

Dosi, Pereira, Roventini e Virgilito (2018) trabalham com três hipóteses nessa linha de efeitos inerciais potenciais do choque de demanda que seriam:
⦁ o efeito sobre a interrupção dos gastos em P&D;
⦁ a redução do volume de entrantes gerando redução do dinamismo nos negócios que chamaríamos de “efeito destruição da concorrência”; e
⦁ a deterioração das habilidades dos desempregados.
Algumas evidências empíricas recentes são importantes acerca dos efeitos de longo prazo das recessões sobre o crescimento econômico. Blanchard, Cerutti e Summers (2015) estudaram 22 recessões nos últimos 50 anos em 23 países e mostraram que em uma grande proporção delas houve impacto não apenas no PIB mas também em sua taxa de crescimento por um bom tempo. Ball (2014) se concentrou no período da crise de 2007/8 e analisou 23 países até 2014, concluindo pela “super-inércia” da queda no produto:

“in most countries the loss of potential output is almost as large as the shortfall of actual output from its pre-crisis trend. This finding implies that hysteresis effects have been very strong during the Great Recession. Second, in the countries hit hardest by the recession, the growth rate of potential output is significantly lower today than it was before 2008. This growth slowdown means that the level of potential output is likely to fall even farther below its pre-crisis trend in the years to come”.

Esta evidência de Ball (2014) é especialmente relevante aqui: quanto mais forte o impacto da recessão inicial, mais persistentes tendem a ser os seus efeitos, o que remete à ideia de “tipping points”. Estes últimos seriam pontos de queda tão expressiva na demanda que induziriam o país a cair numa espiral recessiva mais dramática por um prazo excessivamente longo. Seria fundamental, portanto, não chegar a este “tipping point” no curto prazo sob o risco de se entrar numa recessão desnecessariamente grande e longa. Ou seja, choques muito abruptos predispõem mais a economia a tipping points.

Não foge à percepção o longo período de tempo que o Brasil tem passado para corrigir plenamente os efeitos da recessão que durou de 2014 a 2017. Ou seja, o tamanho e a longevidade da recessão iniciada pelo governo do Brasil de 2014 a 2017 demonstram a possibilidade de tipping points no Brasil que devem ser evitados.

III) Restrições à Liquidez e Impactos à Concorrência na Crise

Como vimos, um dos itens responsáveis pela persistência de uma recessão sobre o crescimento econômico na análise de Dosi, Pereira, Roventini e Virgilito (2018) é a “redução do volume de entrantes”, que representa o impacto da concorrência sobre o crescimento econômico.

O efeito de redução de volume dos entrantes apontado pelos autores, no entanto, pode ter o sinal inverso pois recessões teriam também o efeito de “depuração” dos agentes econômicos menos eficientes numa linha Schumpeteriana. Aghion e Howitt (1998, p. 239) exploram essa linha de quando os maus momentos da economia também podem ser virtuosos:

“This view was summarized by Schumpeter himself: “Recessions are but temporary. They are the means to reconstruct each time the economic system on a more efficient plan”. One can indeed think of several reasons why small recessions could have positive effects on productivity. There is first the “cleaning-up” or “lame-duck” effect emphasized by Schumpeter …whereby less productive firms are eliminated during recessions and average productivity increases accordingly”.

Um ponto importante aqui é que se o governo implementar medidas que ampliem o acesso ao crédito, é fundamental ter cuidado para apenas apoiar empresas realmente eficientes. Aquelas que já passavam por problemas anteriormente à crise do Covid-19 não devem ser beneficiadas ao custo de comprometer justamente aqueles efeitos potencialmente positivos das recessões sobre a produtividade. Ou seja, a crise do Covid-19 não deveria ser utilizada para operações de resgate de empresas pouco eficientes sob o custo de gerar uma retomada menos vigorosa.
Um outro ponto relevante é que o efeito negativo da crise do Covid-19 sobre a concorrência ressaltado por Dosi, Pereira, Roventini e Virgilito (2018) está associado diretamente ao problema da baixa disponibilidade de crédito na presença de choques severos de demanda:

“Constrained access to credit may represent an important barrier to entry, together with the usual setup costs, particularly during crises and the associated tight finance availability”.

É mais que reconhecido na literatura econômica a falha de mercado relacionada à segmentação dos mercados de crédito elaborada por Stiglitz e Weiss (1981). A segmentação de crédito relevante é, em geral, entre pequenas e médias empresas de um lado e as maiores do outro.
Nesse contexto, havendo uma escassez temporária de liquidez dos agentes econômicos, é bastante razoável presumir que a maior parte das falências recairá de forma desproporcionalmente elevada sobre as empresas menores. Como destacado por Baldwin e Di Mauro (2020):

“Given the nature of this shock, small and medium-sized businesses may be among the most exposed to liquidity issues, thus special facilities to keep lending to small businesses may be appropriate.”

E isso pode ocorrer menos por problema de solvência de longo prazo do que por falta de capital de giro que dê liquidez no curto prazo. Essas falências mais prevalecentes nas empresas menores poderão levar a uma maior concentração dos vários mercados da economia no curto prazo.

Em um prazo suficientemente longo, nos segmentos com poucas barreiras à entrada, é razoável supor que os mercados voltem a ser “repovoados” após bancarrotas geradas por falta de liquidez no curto prazo. No entanto, nos setores com maiores barreiras à entrada, esse “repovoamento” pode não ocorrer ou apenas ocorrer em um prazo muito longo quando (e se) ocorrer um ciclo de negócios favorável. Associando isso ao fato que pode ser mais fácil para as empresas maiores evitar a entrada de novos entrantes ou o retorno das antigas empresas que faliram na crise do que induzir a saída antes da crise, é plausível que os mercados pós-covid serão mais concentrados.

Até que novos entrantes consigam vencer estas barreiras no pós-crise, haverá evidentes prejuízos à concorrência. Isso implicará preços maiores no longo prazo, com danos permanentes ao consumidor, o que cabe ser evitado.
Assim, é fundamental que a correção da falha de mercado associada à segmentação do mercado de crédito corrija outra falha de mercado: mercados de produtos e serviços menos competitivos na economia brasileira.

IV) Conclusão

Os choques gêmeos de oferta e demanda de curto prazo gerados pelo Covid-19, ao se estenderem em razão da continuidade das medidas de isolamento social, podem se inercializar, reforçando-se mutuamente com efeitos secundários um no outro.

Isso não apenas tornaria os choques gêmeos mais persistentes no longo prazo, como poderia gerar o que seria um terceiro tipo de choque, este de natureza mais estrutural, de queda na concorrência em vários setores da economia simultaneamente. Isto porque as empresas menores e menos líquidas poderiam ser proporcionalmente mais afetadas pela crise de liquidez.

Afinal, a perda das receitas dos negócios gerada pela queda abrupta da demanda decorrente das medidas de isolamento social e a concomitante retração do crédito no mercado financeiro privado causada pela maior aversão ao risco podem fazer com que várias empresas eficientes e perfeitamente viáveis no longo prazo sejam obrigadas a sair do mercado de forma definitiva. Em particular, as empresas menores, menos líquidas, apresentam tendência maior a ter este destino, inercializando o choque concorrencial do Covid-19.

Assim, o momento excepcional de choques gêmeos repentinos e a necessidade de proteger as pessoas físicas e jurídicas mais vulneráveis gera uma convergência da otimização das políticas social e macroeconômica. É fundamental ainda evitar as irreversibilidades de longo prazo associadas ao risco de um volume de falências sem precedentes na economia brasileira por meio das medidas de incremento do crédito que estão sendo implementadas, especialmente para as pequenas e médias empresas.

O impacto fiscal negativo no curto prazo é inevitável. Mas isso não implica que a disciplina fiscal deva ser abandonada no longo prazo, sendo fundamental cuidar para sinalizar a estabilização da relação dívida/PIB na linha de Arida.

É errado, portanto, apontar que a crise do covid-19 deveria reafirmar a necessidade de políticas fiscais ativas ainda mais audaciosas na linha de Nelson Barbosa. Na verdade, sinaliza o oposto: é fundamental que o setor público esteja com suas contas em dia não apenas para evitar desequilíbrios macroeconômicos, mas também para ter mais graus de liberdade para atuar quando esse tipo de crise aparecer. Afinal, quando aparece uma despesa imprevista e inevitável para qualquer indivíduo, a vida será bem mais fácil se tiver dinheiro na conta do que dívida no banco. As dificuldades que o país tem passado nas finanças públicas, derivadas de anos de irresponsabilidade fiscal, tornam as dificuldades para enfrentar a crise muito maiores do que precisavam ser. Contrariamente ao afirmado por Nelson Barbosa de que a equipe econômica estaria sofrendo nessa crise de “Keynesianismo pós-traumático”, seria a própria economia que ainda se ressentiria do “trauma do Keynesianismo” irresponsável.

Mas, além da questão financeira, a manutenção de políticas fiscais ativas por mais tempo também é ruim pela perspectiva de gerar um indesejável aumento no tamanho do Estado que pode acabar por se perenizar. Afinal, um dos principais problemas para o ajuste fiscal do país é a tendência das novas despesas se tornarem permanentes. E isso torna o Leviathan maior do que nunca. Como destacado pela revista The Economist em 26 de março de 2020:

“For believers in limited government and open markets, covid-19 poses a problem. The state must act decisively. But history suggests that after crises the state does not give up all the ground it has taken. Today that has implications not just for the economy, but also for the surveillance of individuals……”

Por fim, a necessidade de manter a agenda de reformas estruturais no longo prazo continua intacta. Uma crise como a do Covid-19 demonstra como as reformas para promover a concorrência e a produtividade são importantes. Não à toa, em uma dramática conjuntura de busca da recuperação da Alemanha do pós-guerra, o então ministro das finanças alemão, Ludwig Erhard (1958), destacou a importância da competição como o instrumento mais importante na estratégia da política econômica daquele país:

“A competição é o meio mais promissor para alcançar e assegurar prosperidade. A competição torna as pessoas capazes, enquanto consumidores, de obter progresso econômico. Assegura que todas as vantagens que resultam da alta produtividade serão eventualmente aproveitadas por elas. Ao longo do caminho da competição, a socialização -no melhor sentido da palavra- do progresso e do lucro é melhor realizada. Ademais, o incentivo pessoal para a maior produtividade permanecerá vivo”.

Erhard também aponta a plena convergência entre a concorrência e a agenda social de qualquer governo:
“Uma política econômica apenas pode se chamar de “social” se ela permitir que o consumidor se beneficie do progresso econômico, dos resultados do aumento do esforço e da produtividade. E a melhor forma de alcançar este objetivo em uma ordem social livre é por meio da concorrência: este é o pilar central do sistema.”

E mais concorrência é chave como mecanismo de incentivo à produtividade que é o que, em tempos normais, assegura um padrão de vida mais elevado à população. Já na crise, a produtividade é o que garante a resiliência da economia com a recuperação mais rápida e a minimização dos sacrifícios requeridos, especialmente dos mais vulneráveis. Reduzir o custo do empreendedorismo, abrindo mercados e estimulando a concorrência se torna mais importante do que nunca. E espera-se que esta terrível crise deixe isso mais nítido do que nunca para toda a sociedade brasileira.

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