Coronavirus – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Thu, 16 Dec 2021 17:33:52 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 Covid 19 – Comparação de mortes no Brasil e outros países https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3542&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=covid-19-comparacao-de-mortes-no-brasil-e-outros-paises Thu, 16 Dec 2021 17:33:52 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3542 Covid 19 – Comparação de mortes no Brasil e outros países

 

Por Roberto Macedo* 

 

Quando a epidemia da Covid-19 começou a se espalhar, em março de 2020, passei a seguir o desenvolvimento dela entre países e regiões por meio de um gráfico que o jornal britânico Financial Times oferece diariamente. O gráfico tem várias opções para o leitor, e passei a seguir mais o que permite examinar a média móvel de sete dias de mortes (por 100 mil habitantes), para os países e regiões de meu interesse, sempre incluindo o Brasil.

Neste artigo, depois de alguns meses sem examinar esses dados e, estimulado pelo noticiário recente sobre o assunto, que indica forte queda dessas mortes no Brasil e aumentos em alguns países e na União Europeia, ainda que de menor dimensão que no passado, resolvi rever esse gráfico. Desta vez cobrindo todo o período desde o início da pandemia até o início de dezembro deste ano, conforme dados do Financial Times do último dia 13 de dezembro. O novo gráfico vem a seguir.

Média móvel dos últimos sete dias

Atribuídas à Covid-19, na União Europeia (EU), nos Estados Unidos (US), 
Reino Unido (UK), Itália(It) e Brasil (BR)

O gráfico cobre dados da União Europeia, Estados Unidos, Reino Unido, Itália e Brasil, assim ordenados conforme as curvas de cada caso, na ordem em que aparecem, de cima para baixo, nos últimos pontos de cada linha no canto inferior direito do gráfico.

A referência a esse canto, de antemão, já significa que no final do gráfico essa região e esses países apresentam valores menores do que os alcançados no início e no meio do gráfico.

O mais interessante é que o Brasil está na melhor posição de todo o grupo nesse final do gráfico, o que vem sendo atribuído ao sucesso mais recente de seu programa governamental de vacinações e do empenho com que a população busca esse programa. Pelo gráfico, nota-se que a pandemia demorou um pouco a atingir taxas mais altas no Brasil, mas no início de 2021 era o país que tinha piores números e só não foi recordista porque a Itália mostrou uma taxa pior uns três meses antes. Enquanto isso, pela televisão, recentemente vi que em alguns países, que não o Brasil, ainda ocorrem manifestações de grandes grupos contrários à vacinação.

Outro desenvolvimento recente foi o surgimento da variante Ômicron, que reacendeu um sinal de alerta quanto à possibilidade de o mundo enfrentar nova onda de agravamento da pandemia. No caso brasileiro esse alerta tem particular importância, pois o sucesso que o gráfico mostra quanto ao nosso país poderia ensejar danos ao empenho no programa de vacinação, tanto pelo governo como por segmentos da população.

Como no início da pandemia, não há alternativa: o remédio consiste em insistir em vacinação, vacinação e vacinação!

 

* Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP, consultor da Fundação Espaço Democrático e membro do Instituto Fernand Braudel.

Artigo publicado no site da Fundação Espaço Democrático em 14 de dezembro de 2021.

 

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Vacinas? Independência ou mortes! https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3437&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=vacinas-independencia-ou-mortes Fri, 07 May 2021 13:03:09 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3437 Vacinas? Independência ou mortes!

Dependência de importações vem prejudicando a imunização no Brasil

Por Roberto Macedo

O panorama da vacinação contra a Covid-19 no País é claramente insatisfatório e lamentável. Faltam muitas vacinas, o Brasil não se preveniu para comprá-las em meados do segundo semestre do ano passado, com destaque para a recusa das fabricadas pela Pfizer. Depois veio a segunda e mais forte onda da pandemia e a dificuldade de aquisição foi muitíssimo agravada. É preciso implorar aos fabricantes, a governos de outros países e a instituições internacionais, mas não há como atender rápida e satisfatoriamente à demanda de um país tão grande e populoso como o Brasil.

A Fiocruz e o Instituto Butantan vêm fazendo grande esforço para ampliar sua produção, mas esbarram numa dificuldade paralela: a também escassa disponibilidade do IFA, o insumo farmacêutico ativo, principal ingrediente das vacinas, não produzido no Brasil, que vem da China. Juntamente com as vacinas, tem altos custos de transporte aéreo. Tanto a Fiocruz como o Butantan estão construindo novas plantas para produzir o IFA, mas isso toma um tempo que mantém o atual caminho definido por séria escassez de vacinas e muitas mortes.

Por essas e outras razões apresentadas mais à frente, esse quadro de muitas dificuldades aponta na direção de que o Brasil, além de produzir o IFA para as duas vacinas oferecidas pelas instituições citadas, apoie mais iniciativas de fabricar imunizantes totalmente nacionais, na sua concepção e nos insumos utilizados, e também mais voltadas para variantes surgidas no País ou aqui mais atuantes. Segundo Januario Montone, consultor de projetos na área de saúde, é provável que a pandemia tenha vindo para ficar e, mesmo se aliviada, poderá exigir revacinação periódica. E podem surgir outros vírus.

Fiocruz e Butantan desenvolvem suas próprias vacinas, a Butanvac no segundo caso, e são iniciativas dignas de apoio, dada a competência dessas duas instituições. Vou me referir a outras iniciativas, menos conhecidas, que também parecem merecedoras de apoio.

A Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto tem um projeto que seria apoiado pelo governo federal. A vacina já tem até nome, Versamune, e o ministro Marcos Pontes, da Ciência, Tecnologia e Inovação, anunciou-a como 100% brasileira. Na lei do orçamento federal de 2021, aprovada pelo Congresso Nacional, receberia R$ 200 milhões, mas foram vetados pelo presidente Bolsonaro ao sancionar a lei. Esta teve de abrir mais espaço para as abjetas emendas parlamentares, cujos projetos não têm, de longe, a mesma prioridade das vacinas.

Conforme O Estado de S. Paulo de 27 de abril, a Universidade Federal do Paraná também desenvolve sua própria vacina, que está em fase de testes. Recebeu apoio do governo do mesmo Estado, que investiu R$ 700 mil nas pesquisas, mais R$ 250 mil em bolsas para doutorandos ligados ao projeto. Esse primeiro valor não será suficiente para toda a fase de testes e outros custos envolvidos.

Outro projeto é o da Universidade Federal de Minas Gerais, a prefeitura de Belo Horizonte decidiu financiá-lo, investindo cerca de R$ 30 milhões na produção do imunizante, que serão usados para o teste de sua segunda fase. Mas também aí serão necessários recursos para a terceira fase e outros custos envolvidos.

Esses valores são muito díspares e não tenho condições de avaliar as efetivas necessidades, o que deveria ser parte do processo de apoiá-las. E há outros projetos em andamento. Segundo o jornal O Globo de sábado passado, conforme informação do Ministério da Saúde, o País tem hoje ao menos 17 vacinas contra a Covid-19 em estudo, mas a reportagem não teve acesso à lista delas. Creio que o setor público não deve apoiar todas, e para evitar politicagens deveria criar uma comissão de alto nível, inclusive ético, para selecionar algumas para apoio.

Cabe também pensar em parcerias entre esses projetos e com o setor privado, que, além da parte de gestão e tecnologia, poderia ajudar também em áreas como a do marketing, até mesmo pensando em exportar após atendidas as necessidades nacionais. Segundo Edward Luce, jornalista do Financial Times, em artigo no jornal Valor de sexta-feira passada, as vacinas Pfizer e Moderna receberam recursos para pesquisas, do governo dos Estados Unidos.

Olhando ainda mais à frente, pode-se pensar ainda num programa de ajuda a países muito pobres e pequenos, para vários dos quais as vacinas hoje não passam de uma miragem, o que poderia também ajudar a melhorar a imagem internacional do Brasil, que está péssima.

Em síntese, nosso país está sendo atropelado pela pandemia, o governo federal está mais voltado para CPI do Senado e, no caso das vacinas, bate cabeça para corrigir seus gravíssimos erros. Mas é bom saber que dentro e fora dele há iniciativas que, se adequadamente incentivadas, poderão superar a dependência do Brasil das indústrias farmacêuticas de outros países. Os depósitos e prateleiras dessas indústrias não estão em condições de atender a todos os que as procuram.

 

 Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 6 de maio de 2021.

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A esquina do futuro https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3430&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-esquina-do-futuro https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3430#comments Tue, 30 Mar 2021 22:24:33 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3430 A esquina do futuro

O exercício pleno da cidadania está atrelado à educação, ao conhecimento

Por Luís Eduardo Assis

Já dizia o escritor inglês H. G. Wells: a história da civilização é uma disputa entre a educação e a barbárie. A ideia de que é preciso desvendar mistérios através de métodos científicos é relativamente recente na história da humanidade, mas sem ela não teríamos conseguido os extraordinários avanços dos últimos séculos. Demoramos milhares de anos para aprender que o avanço do conhecimento nos torna melhores. O método científico – que ainda hoje alguns apalermados refutam – é indissociável da ideia de progresso, algo também recente do ponto de vista histórico. Há enorme correlação entre o índice de desenvolvimento humano e o nível de educação dos países. Soa como uma platitude, mas aqui em terras tabajaras a necessidade de fazer avançar o nível educacional só encontra consenso na sua manifestação genérica e superficial.

Ninguém se diz a favor da ignorância, mas as políticas públicas para combatê-la acabam esbarrando na falta de recursos, na incúria da elite e na cristalização de interesses corporativos. Gastamos pouco, gastamos mal e os resultados beiram a calamidade. O exame Pisa, realizado a cada três anos, teve sua última edição em 2018 e avaliou o desempenho acadêmico de jovens de 15 anos em 79 países. O Brasil ficou em 59.º em leitura, 67.º lugar em ciências e 73.º em matemática.

Tudo sugere que a pandemia teve um impacto devastador sobre um esforço que já rendia poucos frutos. Estudo da Unicef divulgado em janeiro mostra que aumentou a evasão escolar durante a pandemia. Em 2019, o IBGE identificou uma taxa de abandono de 2,2% entre crianças e jovens de 6 a 17 anos. Já em outubro de 2020, o porcentual registrado pela Unicef foi de 3,8%, ou seja, 1,38 milhão de pessoas não frequentavam a escola. A este contingente devem ser acrescentados outros 4,1 milhões que afirmaram estarem matriculados, mas não participaram de nenhuma atividade nas escolas. O abandono escolar atinge mais os alunos pobres, cujo atendimento já era insatisfatório e que não tiveram acesso ao ensino remoto. Uma tragédia dentro de um drama.

Em estudo divulgado em julho de 2020 (Consequências da Violação do Direito à Educação), o Insper estimou que, em 2018, 557 mil jovens com 16 anos não concluíram a educação básica. Isto vai provocar uma perda de renda ao longo de toda a vida laboral de cada um destes jovens de R$ 395 mil, o que significa que o custo total do abandono escolar para esta faixa etária alcança a cifra astronômica de R$ 220 bilhões. Para efeito de comparação, o orçamento do MEC para a Educação Básica em 2020 foi de R$ 42,8 bilhões (aliás, 34% menor que o de 2012).

O problema das consequências é que elas chegam depois, já dizia Marco Maciel. O que o governo tem a dizer sobre o abandono escolar provocado pela pandemia? Se o sistema educacional brasileiro já vinha mal antes como evitar que fique ainda pior? O Ministério da Educação não tem planos – nem sequer diagnóstico. No meio da tragédia da covid-19, gastou tempo e esforços na busca da regulamentação do ensino domiciliar, uma abjeta excrescência ideológica. Para um governo que recusa o passado e não reconhece o presente, pensar a longo prazo é um luxo inacessível. A propósito, qual é mesmo o nome do atual ministro da Educação? Quando a pandemia arrefecer, malgrado o descaso do presidente, voltaremos a frequentar pizzarias, mas os jovens que nos entregam as pizzas hoje não voltarão para as escolas.

Haverá uma geração a quem será privado o conhecimento e, desta forma, o exercício pleno da cidadania. Não se trata apenas de fomentar a ignorância; é a barbárie que está à espreita. Há um despacho na esquina do futuro, já dizia Marcelo Yuka.

 

Luís Eduardo Assis é economista, foi diretor de Política Monetária do Banco Central e professor de economia da PUC-SP e FGV-SP. E-mail : luiseduardoassis@gmail.com.

 

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo dia 29 de março de 2021.

 

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Por que não vacinas para a Covid-19 fora do SUS? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3400&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-que-nao-vacinas-para-a-covid-19-fora-do-sus Wed, 03 Feb 2021 15:50:43 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3400 Por que não vacinas para a Covid-19 fora do SUS?

Por César Mattos[1]e Cleveland Prates[2]

“Um comerciante é um homem que  …não dá nem toma o imerecido”

Ayn Rand – A Virtude do Egoísmo

 

  1. Introdução

Com a aprovação de duas vacinas no Brasil, Astrazeneca e Coronavac, entrou definitivamente no debate nacional a oferta privada de vacinas contra a Covid-19, como uma complementação à aquisição realizada pelo Estado via SUS.

No entanto, já apareceram reações negativas, até mesmo de onde não se esperava. O pPresidente médico do Hospital Albert Einstein de São Paulo, por exemplo, declarou que “Não acho correto vender vacina no setor privado enquanto estiver faltando na rede pública. Estamos vivendo uma pandemia, não podemos privilegiar quem pode pagar pela vacina.”[3].

Em matéria no Nexo, Bortoni afirmou que “a possibilidade de que empresas comprem vacinas e imunizem seus funcionários é vista por alguns especialistas como imoral, pois pessoas saudáveis estariam passando na frente das que mais necessitam[4]. Na mesma matéria, é citado o professor de bioética Alcino Eduardo Bonella, da Universidade Federal de Uberlândia, que “disse ser condenável do ponto de vista ético que clínicas privadas pudessem vender os imunizantes “sem que exista no setor público a vacina disponibilizada para todo mundo”. Gonzalo Vecina Neto, ex-presidente da ANVISA também se manifestou dizendo que a “compra de vacina contra o coronavírus pelo setor privado não é proibida, mas é antiética”.[5]

Em entrevista a Renata Lo Prete no G1, o médico sanitarista Adriano Massuda, pesquisador do Centro de Estudos em Planejamento e Gestão de Saúde da FGV, por sua vez, até reconhece que a vacina fornecida pelo setor privado, com fins comerciais, pode ter um “efeito coletivo”, mas que não justificaria o “efeito negativo sobre a inequidade” do acesso às vacinas, o que se constituiria em um problema moral e ético[6].

Mesmo o economista Armínio Fraga se posicionou contrariamente à provisão privada de vacinas pois não seria “justo alguém entrar num leilão [de vacinas] para algo que é um bem público”[7]. Ademais, o economista seria contrário “devido ao temor de que ela pudesse inflacionar o mercado (já que as empresas pagariam muito mais pelas doses)”, o que acreditamos que seria a única motivação plausível, mas neste caso equivocada.

Nosso objetivo aqui é expor porque estas reservas em relação à provisão privada e comercial da vacina não fazem sentido e mostrar a razão da utilização de mecanismos de mercado se constituir em uma ação complementar fundamental na estratégia de vacinação.

Do ponto de vista econômico, há de fato sentido no Estado entrar e até mesmo assumir a liderança na distribuição de vacinas, especialmente em uma pandemia como a da Covid-19, dado que, como veremos mais à frente, estamos tratando de um caso clássico de geração de externalidades positivas. Não obstante, esta conclusão não autoria afirmar que o setor privado deva ser excluído deste processo. Ao contrário, ele poder ser fundamental na elevação da oferta no país e agilizar o fim da pandemia.

Visando dar maior clareza à linha de argumentação aqui desenvolvida, decidimos segmentar em oito tópicos os principais aspectos desta discussão, conforme pontuado ao longo da continuação do texto.

  1. Vacina como uma forma de gerar externalidades positivas

Vacinas são um exemplo clássico de um bem que gera o que se denomina em economia, de externalidade positiva. Mais precisamente, qualquer um que se vacina se torna um canal de transmissão a menos do vírus, o que beneficia todo o resto da sociedade. Em outras palavras, o ato de se vacinar afeta positivamente todos os demais indivíduos (gera externalidades positivas), mesmo àqueles que ainda não se vacinaram. Entretanto, o benefício gerado (a externalidade) não é internalizada por todo mundo, o que até poderia criar um incentivo para que algumas pessoas não se vacinem, caso tenham que pagar por isso. Portanto, há sentido que o Estado corrija esta “falha do mecanismo de mercado” induzindo a esta “internalização”, por cada pessoa, dos benefícios coletivos gerados pela imunização.

Em outras palavras, o mecanismo de mercado, de forma isolada, geraria uma quantidade de vacinação inferior ao socialmente desejável. Isso, no entanto, não quer dizer que a alternativa ao mercado seja uma imunização exclusiva pelo Estado. Ao contrário, o argumento da externalidade positiva não internalizada apenas aponta que o mecanismo de mercado sozinho não é suficiente, mas não implica que ele não seja útil e nem relevante na estratégia global de vacinação.

Tomando por base esta discussão inicial, a conclusão óbvia é que quanto mais vacinas conseguirmos trazer para o país, mais rapidamente ampliaremos o número de pessoas vacinadas e mais a coletividade se beneficiará do aumento marginal da quantidade de pessoas vacinadas.

  1. Vacina é um bem privado sob o ponto de vista econômico

Algumas pessoas têm usado o argumento de que as vacinas seriam bens públicos e que, portanto, deveriam ser fornecidas exclusivamente pelo Estado. A definição clássica e econômica de bem público pressupõe dois critérios: (i) não rivalidade no consumo; e (ii) não exclusão. A não rivalidade no consumo implica afirmar que o consumo de um bem ou serviço por uma pessoa não impede que outra pessoa também consuma o mesmo produto. Já o critério de “não exclusão” indica que qualquer um que crie um determinado produto não tem condições de impedir que terceiros também façam uso dele. Neste sentido, se alguém, por exemplo, tiver intenção de investir no desenvolvimento de um dado bem ou serviço, não terá como impedir que outros “peguem carona” no seu investimento. O grande dilema que se forma, portanto, é que todos gostariam de ter disponível este produto ou serviço, mas ninguém individualmente estaria disposto a investir na sua consecução, uma vez que teriam como impedir que outros usufruíssem dele sem pagar para assim recuperar o investimento realizado. Neste sentido, só o Estado teria condições de prover ou coordenar o provimento deste serviço. São exemplos clássicos, iluminação pública, exército e justiça.

Note-se, entretanto que as vacinas não preenchem os dois critérios aqui descritos. Em primeiro lugar porque o consumo de uma dose por uma pessoa compromete o consumo da mesma dose por outra pessoa, ou seja, a vacina é um bem que envolve “rivalidade no consumo”. No mesmo sentido a vacina não atende ao critério da “não-excludabilidade”. Se o detentor do produto desejar excluir quem não pagar no consumo, ele pode fazê-lo sem qualquer dificuldade.

Em realidade, as vacinas assumem interesse público pelo efeito sobre um bem vital, que é a saúde da população, e mais ainda pela questão da externalidade positiva acima apontada. Mas a vacina não é um “bem público”.

A questão que resta, portanto, é se a vacina privada e paga por meio do mecanismo denominado “mercado” reduziria a quantidade de vacina disponível para a rede pública dentro do mecanismo “fila” ou se ela se tornaria mais uma opção para a população brasileira, contemplando, inclusive, as preferências dos vários grupos da sociedade.

  1. Há heterogeneidade do produto pelo lado da demanda e da oferta

Nas discussões públicas apontadas até o momento passou despercebido o fato de que há diferenças consideráveis tanto pelo lado da demanda quanto pelo lado da oferta.

Visto pelo lado da demanda, as pessoas têm preferências próprias ou temores específicos com relação ao processo de vacinação. Existem grupos que simplesmente não pretendem se vacinar (os negacionistas). Há outros cuja opção por vacinar pode ser deixada de lado ao longo do tempo, principalmente sabendo-se que o benefício marginal pode se reduzir na medida em que mais gente vacinada pode reduzir o número de contaminados e tornar-se algo menos preocupante para alguns. Há ainda outros que mesmo pretendendo vacinar, têm medo de ter alguma reação adversa com um tipo ou outro da vacina disponibilizada. Em outras palavras, a preferência individual de cada pessoa pode não coincidir com as escolhas do governo, sendo que algumas delas podem estar dispostas a pagar para ter acesso a algo que o Estado não fornecerá.

A preferência do consumidor pode ainda estar associada à urgência que gostaria de tomar a vacina. Pessoas que não necessariamente estão em algum grupo de risco ou aquelas que estão, mas em um lugar na fila pública mais atrás, podem estar dispostas a tomar a vacina antes por qualquer razão que seja. Uma delas, e bastante razoável inclusive sob o ponto de vista público, é o caso de pessoas que têm que sair par trabalhar todos os dias e tem maior probabilidade de contrair a doença, seja no caminho do trabalho, seja no próprio ambiente de trabalho. Como é de conhecimento público, não há como se prever, com certeza absoluta, a reação de cada pessoa à doença e pessoas mais avessas ao risco podem estar dispostas a pagar para não ter que passar por isso.

Neste aspecto, é interessante perceber que o Estado, ao arbitrar a construção da fila, se preocupou com pessoas de mais idade (plenamente justificável pelo risco do agravamento), mas deixou de lado o risco de que profissionais que trabalhem em setores de maior risco (vide o caso dos frigoríficos em Santa Catarina[8]) possam contrair a doença e morrer, deixando desamparadas crianças cujo sustento e futuro possa se comprometer substancialmente por essa perda familiar. A questão posta é: será que esta fila arbitrada como está representa de fato as preferências individuais e principalmente da sociedade como um todo?

Podemos ainda estender este argumento para o caso no qual os demandantes sejam empresas que pretendam comprar a vacina para proteger seus funcionários. Algumas delas podem entender (por ter um conhecimento mais claro do seu negócio) que o risco de manter as pessoas no ambiente de trabalho é elevado e/ou que mantê-las em casa implique perda de produtividade elevada com impacto sobre seus resultados. Quanto mais isso for verdade, mais dispostas essas empresas estarão em pagar pela vacina e reduzir as perdas incorridas, que envolve não só a questão financeira, como também a vida de seus funcionários.

O que parece que também não está sendo visto nesta discussão é que a redução da atividade econômica associada à pandemia e à falta de vacinação implica perdas de emprego e elevação da pobreza, que traz consigo outras doenças e também perdas de vidas. Fato é que o Estado não tem condições de gerenciar e arbitrar todos os casos que podem ser encontrados em nossa sociedade, por se tratar de uma situação de “preferência revelada” (preferência dos consumidores), que só pode ser resolvida pelos mecanismos de mercado via ajuste de preços.

Este aspecto se soma ainda à heterogeneidade pelo lado da oferta. É fato que estamos tratando de um mercado oligopolístico com diferenciação de produtos. As vacinas têm, muitas vezes, processos de produção diferentes, com nível distinto de eficácia e efeitos adversos, além de preços variando de laboratório para laboratório. E tudo isso nos dias de hoje é claramente entendido pela sociedade, sendo que muitas pessoas poderiam se sentir mais confortáveis em tomar uma vacina de um laboratório e não de outro. Se lembrarmos que as compras do governo brasileiro estão concentradas em apenas duas vacinas (a Coronavac e a da Astrazeneca), a possibilidade do setor privado trazer novos tipos de vacina, longe de atrapalhar as compras governamentais, será uma forma de atender às diferentes preferências das pessoas e acelerar o processo de vacinação.

  1. A entrada do setor privado não restringirá a oferta do setor público brasileiro

Principal argumento para não permitir que o setor privado compre vacinas neste momento é o de que há uma forte restrição de oferta neste momento e que isso traria uma questão ética no sentido de quem o Estado brasileiro teria menos condições de elevar a oferta e que as pessoas que teriam dinheiro se vacinariam antes. Em nosso entender esta é uma não discussão pelos condicionantes observados neste mercado.

Em primeiro lugar, há que se destacar que os laboratórios que estão desenvolvendo as vacinas não têm uma “quota” fixa por país. O número de vacinas disponível para os setores público e privado conjuntamente no Brasil, portanto, não pode ser tomado como constante. Ou seja, não é um “jogo soma zero” entre vacinas SUS e vacinas setor privado, ainda que reconhecendo haver uma restrição global momentânea de oferta.

Astrazeneca e Pfizer recentemente anunciaram que ainda não iriam disponibilizar vacinas para o setor privado neste momento da pandemia. Mas isso não implica que elas sempre recusariam ou recusarão o “cliente” no setor privado, mas sim que já fizeram acordos com vários “clientes governos” pelo mundo afora. Ademais, só há muito pouco tempo as vacinas começaram a ser liberadas pelos respectivos órgãos reguladores, o que constitui um risco próprio de Estado, dado requerer ação de governo.

Mas será que o setor privado estaria disputando com o setor público brasileiro neste momento de escassez global de oferta de vacinas? Não há dúvida de que, considerando o mercado mundial como um todo, no presente momento, já existe uma disputa ocorrendo. Mas ela não é entre setor público e privado de cada país, mas sim entre países (incorporando a soma de setor público e privado para cada país), mas apenas em relação ao que ainda não foi contratado pelos vários governos dos vários países. Ou seja, pela oferta futura ainda não contratada.

A grande parte dos países desenvolvidos já contrataram até mais do que precisavam para imunizar toda a sua população. Para esta parcela já contratada não há mais disputa entre setor público e privado nem no plano global.

Reforce-se, o que existe hoje é uma disputa entre países. A Astrazeneca há pouco tempo, por exemplo, avisou que não iria cumprir o cronograma de liberação das vacinas e a presidente da Comissão Europeia (CE), Ursula von der Leyen, afirmou em 26/01/21[9] no Fórum de Davos, que os laboratórios devem honrar os compromissos assumidos pela Europa, que investiu “bilhões para desenvolver as primeiras vacinas contra a Covid-19”.

A Presidente da CE chegou a ponderar que “a aliança Covax, a UE, junto com 186 Estados, garantirá milhões de doses para países de baixa renda”. No entanto, deixou também claro que o mecanismo “fila” priorizará naturalmente, em primeiríssimo lugar, os cidadãos europeus. Não à toa, Von der Leyen asseverou que “por isso, vamos montar um mecanismo de transparência nas exportações de vacinas”, visando a identificar as entregas fora da UE de doses produzidas na Europa[10]. Ou seja, nada diferente de mais uma aplicação do “farinha pouca, meu pirão primeiro”.

Assim, a disputa “estado x estado” é, muito de longe, a restrição relevante para definir a restrição de oferta de vacina que o Brasil enfrentará; principalmente se compararmos a uma eventual disputa com o setor privado brasileiro ou estrangeiro, que por um acaso deseje ofertar comercialmente a vacina aqui dentro do país.

De qualquer forma, a população mundial hoje é de 7,8 bilhões de pessoas, com a população brasileira representando cerca de 2,7% deste total. Ou seja, o Brasil representa menos de 3% da demanda global pela vacina em um mercado que é mundial. Não há qualquer sentido em se afirmar que é a demanda do setor privado brasileiro que fará faltar o produto “vacina para covid-19” para o setor público brasileiro, mas sim a pressão dos outros mais de 97% de demanda que ocorre agora no mundo, e tudo isso fortemente concentrado nos clientes “governos”. Mesmo para aqueles que argumentam que preço se elevaria para o governo, a entrada do setor privado brasileiro seria muito residual para encarecer o produto; sem falar que os preços já foram previamente definidos pela, respectivas indústrias farmacêuticas.

  1. A irrazoabilidade dos argumentos apontando sobre a falta de ética

Há especialistas da área de saúde fazendo alegações de que a entrada do setor privado representaria um problema de ordem ética. O médico Adriano Massuda, por exemplo, chegou a fazer o paralelo da fila da vacina contra o covid-19 com a fila de transplantes de órgãos em que a alocação é regida exclusivamente pelo mecanismo “fila”, respeitando as compatibilidades entre doador e recebedor[11]. Em sua visão, o processo de vacinação deveria seguir o mesmo rito.

Nada mais falacioso. A oferta de órgãos não ocorre pela decisão voluntária de um empresário produzir, mas sim pelo acaso da morte de alguém, o que não pode ser comparado com o mercado mundial da vacina da covid-19, mesmo sob um ambiente de restrição de oferta.

Há pouco tempo houve revolta na mídia acerca da requisição do Supremo Tribunal Federal (STF) para a Fiocruz em priorizar os funcionários do Tribunal. Começavam ali as tentativas de “fura-fila”. A Fiocruz felizmente recusou esta priorização e o próprio STF voltou atrás, inclusive com punição do servidor requisitante, que nunca ficou claro se agiu sozinho ou com a “benção” de cima.

A resposta da Fiocruz se baseou na ordem de prioridade estabelecida pelo Ministério da Saúde. Como o objetivo principal da estratégia de vacinação é minimizar o número de pessoas que pegam a doença e, principalmente, o número de mortes, o Ministério da Saúde concentrou a sua estratégia em vacinar “profissionais de saúde da linha de frente” (que têm naturalmente maior chance de serem contaminados e de transmitirem a doença para seus pacientes), “idosos com mais de 75 anos ou institucionalizados”, com mais chances de efeitos severos e morte na população[12], indígenas e quilombolas[13].

De fato, é eticamente questionável que um grupo qualquer passe na frente dos outros quando há um mecanismo de “fila” com priorização definida por “chance de pegar” e “morbidade” adotado pelo Ministério da Saúde em um contexto momentâneo de restrição de oferta. Mas aqui, repita-se, estamos falando do mecanismo “fila”, e não do mecanismo “mercado”. Daí que cabe indagar se o mesmo argumento utilizado para negar aos servidores do STF a vacina gratuita intermediada pelo SUS poderia ser utilizado para negar a vacina a quem pode e deseja pagar pela vacina paga e intermediada pelo setor privado?

Aqui, novamente, há que se entender que não está se verificando disputa neste momento entre setor público e privado brasileiros. A importação do setor privado para comercialização não ocorrerá se não for permitido o “mecanismo mercado”, o que infelizmente poderá implicar perda de oportunidade para o setor público (que poderia até economizar neste processo) e de bem-estar para a população.  Isto porque, por exemplo, cidadãos brasileiros mais ao final da fila, mas dispostos a pagar, simplesmente vão perder a oportunidade de se vacinar mais rapidamente, sem que isso afete aqueles cidadãos brasileiros que estão no início da fila do Estado e continuarão a ser igualmente vacinados.

Ficam piores também os próprios cidadãos que foram considerados prioritários, que têm mais risco de se contaminar ou morrer, porque eles podem ser contaminados por aqueles que foram impedidos de pagar para se vacinar. Ou seja, é o Estado impedindo o setor privado de, além de vacinar mais pessoas, acelera o processo de geração de externalidades positivas da vacina, inclusive para os que considera prioritários.

Daí se tem o argumento pretensamente ético da “iniquidade” que distingue “quem pode pagar” de “quem mais precisa”. Qualquer mecanismo via mercado, fora da fila, seria “injusto”, “antiético” e “egoísta”? Ora, por que pagar por uma vacina no setor privado, que não diminuirá a oferta disponível para o setor público, apresenta tais adjetivos?

  1. Eficiência pública e privada e questões de ordem prática

Em economia, é conhecido o critério de bem-estar de Pareto: Se você pode melhorar alguém, sem piorar outrem, por que não fazê-lo? É precisamente o mesmo caso aqui. Mais do que isso, se alguém está em 5º na fila e opta por não esperar e pagar para vacinar, ele sai da fila e a vacina chega mais rápido para todos na fila do 6º em diante.

Ademais, o Estado gasta menos com a mesma política pública. É o mesmo que temos hoje entre a população que paga um plano de saúde e não entra nas filas do (ou recorre bem menos ao) SUS. Resolve o seu problema mais rápido e desafoga o sistema para os mais pobres. Será que há um problema ético também em se pagar um “plano de saúde” para si mesmo e sua família?

E isto é completamente distinto de agentes públicos aproveitarem sua posição para conseguir a vacina de graça ou mesmo por um preço menor do que seria no mercado, além de passar na frente de todos dentro da “fila”. O fato de se estar disposto a pagar o que o mercado está pedindo e de isso não reduzir a quantidade de vacina para a “fila” do setor público afasta plenamente o argumento de “injustiça”, falta de ética ou o que for.

Resta aos defensores da tese da “iniquidade” o mesmo argumento que Margaret Thatcher chamava à atenção no parlamento britânico quando um membro do partido trabalhista a questionou sobre o “aumento da desigualdade”, ainda que reconhecendo os efeitos positivos da política econômica sobre o crescimento econômico e redução da pobreza: “As pessoas em todos os níveis de renda estão melhores do que estavam em 1979”. O honorável cavalheiro está dizendo que ele preferiria que os pobres estivessem mais pobres, desde que os ricos estivessem menos ricos. Dessa forma, nunca seria gerada riqueza para melhores serviços sociais como nós temos hoje. Que política?”[14]

Mas a situação está bem pior na prática. Um conjunto de 72 empresas estavam negociando aquisição da vacina da Astrazeneca com o objetivo de conseguir 33 milhões de doses, sendo que 50% seriam doadas ao SUS e 50% ficariam com as empresas participantes, que poderiam imunizar seus empregados. Com a resistência assinalada acima que também resultou em divergências quanto ao percentual a ser doado ao SUS, várias empresas parecem estar dispostas a sair da iniciativa[15]. Ou seja, se já seria um absurdo impedir que empresas privadas comprem vacinas já autorizadas pela Anvisa para imunizar seus empregados e a quem mais desejassem, imagine-se havendo qualquer percentual de doações para o mecanismo “fila” do próprio Estado!?

Outro ponto relevante da hesitação do setor privado em fechar negócios com os laboratórios estrangeiros nas novas vacinas, pelo menos no caso brasileiro, é que, tal como ocorreu com equipamentos para tratamento da pandemia como respiradores, agulhas e seringas, havia (como ainda há) grande probabilidade de expropriação pelos governos nos três níveis da federação. Se o próprio governo federal cogitou fazer isso com as vacinas em relação ao governo paulista (com atitude bem bloqueada pelo STF), mais provável seria isso ocorrer com as empresas privadas. Ou seja, qualquer iniciativa do setor privado em ofertar vacinas tem que ser muito conversada com os governos antes, para evitar que haja este tipo de expropriação.

De outro lado, a Associação Brasileira das Clínicas de Vacina (ABCVAC) e a importadora Precisa Medicamentos fecharam cinco  milhões de doses da vacina Covaxin, desenvolvida pelo laboratório indiano Bharat Biotech contra a Covid-19, a serem destinadas às clínicas privadas no Brasil. Esta vacina, no entanto, ainda está realizando testes na fase 3 e precisa passar pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que têm demandado testes em brasileiros, o que já tem atrasado desnecessariamente a aprovação da Pfizer e Sputinik Russa[16].

  1. Considerações finais

Conforme apontamos ao longo deste texto, parece haver um equívoco consolidado na opinião pública de que a provisão de vacina pelo setor privado implicaria uma competição indesejável com o setor público. Em nossa visão, este equívoco está associado a uma intepretação equivocada, principalmente de profissionais da área saúde, de que o Estado é a única forma de prover um bem que eles consideram “público” em um ambiente de restrição de oferta.

O que procuramos demonstrar aqui foi que apesar de estarmos tratando de uma questão pública de saúde, a vacina, em si mesma, não deve ser entendida como um bem público no sentido clássico econômico. Reforçamos que ela pode e deve ser ofertada pelo Estado não só por uma questão de imunização individual, mas também e principalmente pela externalidade positiva que gera, na medida em que cada indivíduo a mais vacinado reduz o risco dos demais de contrair a doença.

Não obstante, a entrada do setor privado brasileiro, conforme apontamos ao longo do texto, longe de competir com o setor público nacional, só elevará a quantidade de vacina disponível no Brasil e acelerará o processo em curso. Isto porque a competição na realidade já vem ocorrendo entre países e não entre setor público e privado. Vale destacar ainda que muito da demanda dos países desenvolvidos já foi contratada e que estamos tratando de uma oferta futura ainda não disponibilizada e negociada.

A possibilidade de que novas vacinas de outros laboratórios sejam também trazidas para o país é um argumento a mais a favor da atuação do setor privado, na medida em que a diversificação (além da ampliação) da oferta poderá contemplar demandas específicas.

Desta forma, consideramos que neste momento de escassez, em que urge uma rápida resposta de incremento de oferta interna, os mecanismos “fila” e de “mercado” devem caminhar juntos. Renegar o mecanismo de mercado terá seu custo medido em mais vidas desnecessariamente perdidas.

 

[1] Doutor e em Economia e consultor da Câmara dos Deputados.

[2] Economista especializado em regulação, defesa da concorrência e áreas correlatas. Atualmente é sócio-diretor da Microanalysis Consultoria Econômica, coordenador do curso de regulação da Fipe e professor de economia da FGV-Law/SP.

[3]https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/01/27/nao-podemos-privilegiar-quem-pode-pagar.ghtml.

[4]https://www.nexojornal.com.br/expresso/2021/01/26/A-corrida-por-fora-de-empres%C3%A1rios-pela-vacina-contra-a-covid-19.

[5] https://www.fm.usp.br/fmusp/noticias/compra-de-vacina-contra-coronavirus-pelo-setor-privado-nao-e-proibida-mas-e-antietica.

[6] https://g1.globo.com/podcast/o-assunto/noticia/2021/01/27/o-assunto-377-publico-x-privado-fila-paralela-da-vacina.ghtml.

[7]https://valor.globo.com/live/noticia/2021/01/28/busca-de-vacinas-pelo-setor-privado-e-compreensivel-mas-nao-acho-boa-ideia-diz-arminio.ghtml.

[8]https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/bbc/2020/07/22/covid-19-se-alastra-em-frigorificos-e-poe-brasileiros-e-imigrantes.htm.

[9]https://veja.abril.com.br/mundo/uniao-europeia-cobra-que-pfizer-e-astrazeneca-entreguem-vacinas-sem-atraso/

[10] Von der Leyen inclusive encrencou com as vacinas a serem destinadas ao Reino Unido. Ver https://veja.abril.com.br/blog/mundialista/fiasco-total-a-chefona-da-europa-queima-largada-na-guerra-das-vacinas/

[11] O que não implica que não se poderia melhor otimizar o mecanismo “fila”, introduzindo-se princípios de mercado sem que seja requerida qualquer transação financeira. O prêmio Nobel Alvin Roth explica no capítulo 3 “Trocas que salvam Vidas” em seu livro “Como funcionam os mercados: a nova economia das combinações e do desenho de mercado” Porfolio Penguin, 2016 como as filas de transplantes podem ser aprimoradas para ampliar a oferta de órgãos para pacientes à espera de transplantes.

[12]Em reportagem de 19/12/20, o Poder360 (https://www.poder360.com.br/coronavirus/pandemia-volta-a-ter-mais-mortes-mas-faixa-etaria-da-letalidade-se-mantem/#:~:text=A%20maior%20propor%C3%A7%C3%A3o%20de%20v%C3%ADtimas,13%2C6%25%20da%20popula%C3%A7%C3%A3o) mostra que as pessoas com mais de 60 anos representavam 74% do total de mortos pela pandemia, mesmo sendo apenas 13,6% da população.

[13] Dependendo da localização, estes dois grupos podem ter, de fato, mais ou menos acesso aos recursos do SUS. A depender do grau de integração de aldeias e comunidades com pessoas de fora, também têm menos contato com pessoas contaminadas, reduzindo sua vulnerabilidade. Também não encontramos evidência de que tais grupos seriam realmente mais vulneráveis que outros grupos de cidadãos pobres, especialmente nos aglomerados urbanos das grandes cidades brasileiras. Particularmente as pessoas que utilizam transporte coletivo nas cidades devem ter uma chance de pegar e de transmitir maior (e sua vacinação gerar mais externalidades positivas) que estes grupos teoricamente mais isolados.

[14] https://blog.acton.org/archives/53033-what-margaret-thatcher-understood-about-income-inequality.html

[15] https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/01/28/empresas-reveem-posicao-sobre-negociacao-para-compra-de-vacina.ghtml

[16] https://oglobo.globo.com/sociedade/vacina/covid-19-clinicas-privadas-fecham-acordo-por-5-milhoes-de-doses-de-vacinas-da-india-diz-valor-24857066

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A Vacina para a Covid-19 e a Regulação de Riscos no Brasil https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3388&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-vacina-para-a-covid-19-e-a-regulacao-de-riscos-no-brasil Thu, 07 Jan 2021 20:03:21 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3388 A Vacina para a Covid-19 e a Regulação de Riscos no Brasil[1]

 Por César Mattos

Nunca estivemos tão atentos a um processo de autorização de vacinas e medicamentos na Anvisa como no caso da prevenção à Covid-19.

Os últimos lances deste drama estão ocorrendo no processo de autorização das vacinas da Pfizer[2], Coronavac e Astrazeneca. No caso da Pfizer, a empresa alega que a Anvisa está demandando requisitos mais rigorosos que seus congêneres americano, europeu e britânico, para os quais já foi concedida a autorização, tendo, inclusive, iniciado a imunização. O Instituto Butantan, que está produzindo a Coronavac, a “vacina chinesa”, anunciou que iria começar a vacinar em janeiro de 2021, mesmo sem a autorização da Anvisa[3]. Já a Astrazeneca, com a chamada “vacina de Oxford”, já conseguiu a aprovação no Reino Unido e, tendo parceria com a Fiocruz, está com perspectiva de apresentar documentos para autorização à Anvisa em janeiro. A agência reguladora já sinalizou até 10 dias para a aprovação[4] após protocolo, apesar de o ministro da Saúde ter falado de 60 dias[5].

O ponto que desejamos desenvolver aqui diz respeito aos trade-offs ou escolhas feitas pela agência nas análises de medicamentos e vacinas e suas implicações para o bem-estar social. Primeiro, por que se requer a intervenção de uma agência reguladora para autorizar ou não a aplicação de uma vacina? A necessidade de intervenção do Estado aqui é evidente pela elevada assimetria de informação do consumidor de produtos de saúde em relação à sua eficácia e segurança, uma falha de mercado a ser corrigida por um órgão sanitário, no caso do Brasil, a Anvisa. A questão aqui qual o grau de exigência sobre os testes e estudos sobre a eficácia e segurança dos produtos realizados pelas empresas farmacêuticas deve ser exigido pelo regulador?

A partir da década de 60, os países passaram a ser mais rigorosos nos requisitos de segurança. Nos EUA, em 1962, as Emendas Kefauver-Harris ao Federal Food, Drug and Cosmestic Act fortaleceram os requisitos de segurança em razão da tragédia da talidomida que resultou no nascimento de crianças com malformações em virtude de ingestão durante a gravidez. Vários países desenvolvidos também adotaram regulações similares. Isso implicou aumento substancial dos custos de desenvolvimento de vacinas e medicamentos. Não à toa o assustador tamanho das bulas nos capítulos sobre “efeitos adversos”.

Se, de um lado, este aumento no rigor dos testes levou a uma maior garantia para os pacientes sobre a eficácia e os riscos de efeitos adversos, também aumentou muito o período requerido de estudos e testes, adiando significativamente o tempo para que as pessoas pudessem usufruir dos benefícios de vacinas e medicamentos. Ou seja, há um “custo da espera” que pode ser muito caro quando há mortes decorrentes da doença que se pretende tratar com medicamentos ou prevenir com vacinas como na Covid-19.

O World Economic Forum[6] publicou um artigo em junho de 2020 mostrando o tempo médio atual de desenvolvimento de uma vacina em cinco estágios[7]. São entre 2 e 5 anos só para a pesquisa de descoberta, 2 anos para testes pré-clínicos, entre 1 e 2 anos para saber se a vacina é segura, 2 a 3 anos para saber se ela ativa uma resposta imune no corpo humano, 2 a 4 anos para saber se ela protege mesmo o corpo da doença e, enfim, entre 1 e 2 anos para a aprovação regulatória. São pelo menos 10 anos de desenvolvimento com um custo médio de US$ 500 milhões em que se parte de cerca de 100 vacinas potenciais para se chegar a apenas uma efetiva.

O fato é que desde a década de 90 as principais agências sanitárias no mundo começaram um movimento inverso ao da época da talidomida, passando a considerar o “custo da espera” em que se aguarda para disponibilizar uma vacina ou remédio em função do elevado rigor dos requisitos dos reguladores. Em função desse custo, houve pressão sobre a Food and Drugs Administration americana (FDA) para acelerar a autorização do coquetel de medicamentos antirretrovirais da AIDS na década de 90 e que acabou por ser autorizado com substanciais atalhos na via crucis burocrática usual. Como o “custo da espera” estava muito evidente pela quantidade de pessoas morrendo, a aceleração da autorização se tornou inevitável.

Em 1997, o FDA Modernization Act de 1997 criou um Fast Track para medicamentos “cuja intenção seja o tratamento de uma condição séria e que ameaça a vida”, o que claramente tinha sido o caso dos antirretrovirais. Isto reduziu o tempo de desenvolvimento em cerca de 2,5 anos. A União Europeia também introduziu procedimentos Fast-Track quando os benefícios esperados compensam os riscos e pacientes precisam ter acesso mais rápido ao medicamento devido a uma “necessidade médica não preenchida de outra forma”. A aprovação será condicional, tornando-se definitiva após mais estudos.

O dilema da agência reguladora pode ser compreendido como uma escolha entre as probabilidades de dois tipos de erros que ocorrem quando se desacelera (acelera) o processo de autorização, sendo mais (menos) rigoroso nos testes exigidos para a autorização de um medicamento ou vacina.

O erro tipo I ocorre quando o regulador é muito rigoroso, fazendo atrasar o cronograma de liberação do medicamento ou vacina. Pessoas que ficam doentes ou mesmo morrem e que poderiam ter sido imunizadas (curadas ou com sintomas atenuados) pela liberação mais tempestiva de uma vacina (um remédio) são custos associados a este erro.

O erro tipo II ocorre quando o regulador é menos rigoroso, tornando mais célere o cronograma de liberação do medicamento ou vacina. Envolve não apenas a probabilidade de constatar a não eficácia da vacina ex-post, mas também efeitos adversos. Estes últimos podem ocorrer em um prazo maior e apenas serem identificados com mais tempo de pesquisa. Por exemplo, no caso da vacina contra a dengue[8], pesquisas pós autorização indicaram que os pacientes sem histórico de infecção podiam desenvolver quadros mais graves se tomassem a vacina. Isso limitou a aplicação da vacina apenas àqueles que já tiveram a doença.

O quadro a seguir resume o dilema decisório da Anvisa.

Quadro I – Balanço de “Tipos de Erros” no Rigor da Anvisa no Processo de Autorização

Efetividade e Segurança da Vacina ou Medicamento
Vacina ou medicamento é eficaz e seguro Vacina ou medicamento NÃO é eficaz e seguro
Rigor da Anvisa no Processo de Autorização Menor Decisão correta Erro tipo II
Maior Erro tipo I Decisão correta

Elaboração própria.

 

O problema é que toda vez que se procura diminuir a probabilidade de um dos tipos de erros, aumenta-se a probabilidade do outro tipo de erro. É um trade-off ou uma escolha que se faz ex-ante com base na informação disponível. É possível que se constatem custos significativos gerados pela realização de qualquer um desses erros ex-post. Assim, é possível que uma vacina da Covid-19 gere problemas de saúde até agora não detectados? Claro que sim. E esta probabilidade é tanto maior quanto menor o tempo de testagem da vacina.

No caso da imunização contra a Covid-19, assim como em qualquer pandemia, o “custo da espera” decorrente do erro tipo I é simplesmente gigantesco, devendo ser medido não apenas nas pessoas que ficarão doentes e eventualmente morrerão, mas também no elevado custo econômico que a quarentena tem gerado e que se torna exponencial com o alongamento da crise sanitária na presente segunda onda do vírus.

De outro lado, a probabilidade de erro tipo II não é pequena. Se o tempo de desenvolvimento destas vacinas da Covid-19 foi reduzido da média de 10 anos para menos de um ano, é evidente que o risco de efeitos adversos também é mais elevado. A não ser que tenha havido um salto gigantesco na tecnologia de testagem das novas vacinas, este risco não é desprezível. No caso da vacina da Pfizer, em meados de dezembro de 2020 se detectaram casos de reações alérgicas graves à vacina[9], mas sem mortes. Isto levou os reguladores de EUA e Reino Unido a indicarem para os pacientes com histórico de grave reação alérgica a medicamentos e alimentos não tomar a vacina. Este custo associado ao erro tipo II, no entanto, parece pequeno relativamente à eficácia deste imunizante que chegou a 95%.

Baseado em uma avaliação custo/benefício de que, na epidemia da Covid-19, o erro tipo I é mais relevante que o erro tipo II, o Brasil criou dois importantes instrumentos: I)a Lei 14.006, de 28 de maio de 2020 permitiu uma autorização excepcional e temporária para a importação e distribuição de materiais, medicamentos, equipamentos e insumos da área de saúde, sem registro na Anvisa, mas considerados essenciais na pandemia do coronavírus, desde que registrados por pelo menos uma das seguintes autoridades sanitárias estrangeiras: Food and Drug Administration (FDA) americana, European Medicines Agency (EMA), Pharmaceuticals and Medical Devices Agency (PMDA) britânica e a National Medical Products Administration (NMPA) chinesa e ; II) o Guia 42/2020 da Anvisa sobre os requisitos mínimos para submissão de solicitação de autorização temporária de uso emergencial, em caráter experimental, de vacinas Covid-19[10], para acelerar as autorizações.

Note-se que esta aceleração do processo de autorização do Guia 42/2020 para a Covid-19 não implicou a Anvisa abrir mão da análise da vacina. Como destacado no Guia, o órgão regulador fará, ainda que de forma muito expedita, uma análise custo/benefício que tem por base o reconhecimento da matriz de erros do quadro I, considerando “os dados apresentados, a população-alvo, as características do produto, os resultados dos estudos pré-clínicos e clínicos e a totalidade das evidências científicas disponíveis relevantes para o produto, ou seja, os resultados provisórios de um ou mais ensaios clínicos que atendam aos critérios de eficácia e segurança para o uso pretendido, devendo os benefícios da vacina superar seus riscos, de forma clara e convincente”.

Mais do que isso, o Guia 42/2020 requer que a empresa farmacêutica fará uma “avaliação contínua de seus benefícios e riscos em manter o uso da vacina na condição de uma autorização temporária e emergencial” e terá “um plano adequado para a coleta de dados de segurança entre indivíduos vacinados sob a referida autorização”. Ou seja, a eventual detecção de um erro tipo II deve ser realizada o mais rápido possível, minimizando os custos associados.

O risco e incerteza, por sua própria natureza, são relacionados à ansiedade e ao medo, com elevada carga emocional que detona uma reação de irracionalidade na avaliação do público e dos políticos em relação às ações dos reguladores quando a percepção (e não obrigatoriamente a sua realização) de qualquer um desses erros acontece. Na área da saúde esta reação é particularmente exacerbada, havendo sempre uma grande necessidade de encontrar culpados pela realização destes riscos, especialmente em um quadro de excessiva politização da vacina como no caso do Brasil da Covid-19.

Pode-se simplesmente alcunhar o regulador de incompetente por não ter sido capaz de prever tudo que iria acontecer. Ou seja, o público e, principalmente, os políticos têm a expectativa de um regulador “deus ex machina”, infalível, desconsiderando a existência (e inevitabilidade) de ocorrer pelo menos um dos dois tipos de erros, o que acaba por comprometer a decisão acertada ex-ante. A ciência não dá respostas 100% confiáveis, especialmente com tão pouco tempo como no caso presente das vacinas para a Covid-19.

Se, de um lado, o regulador não tiver qualquer rigor na aprovação de vacinas e medicamentos, corre um grande risco de incorrer no erro tipo II, aprovando um produto sem efeito e/ou com substanciais efeitos colaterais negativos. De outro lado, se o regulador desejar prevenir todo efeito adverso, ele demorará demais em aprovar medicamentos ou vacinas e incorrerá no erro tipo I. Não há como e nem é desejável prevenir todo efeito adverso sob pena de aumentar demasiadamente o “custo da espera”, o que é especialmente válido na pandemia que vivemos.

O comportamento do regulador em relação aos dois tipos de erros em seu processo decisório depende bastante também do quanto o efeito de cada um deles é mais visível para a sociedade. O viés do regulador será maior na direção de evitar aquele erro cujos efeitos aparecem mais, que não obrigatoriamente são os que apresentam a pior combinação de probabilidade de ocorrer X consequências negativas.

Podemos afirmar que erros tipo II, em grande parte dos casos, têm maior visibilidade quando se realizam. Isso gera um viés ex-ante do lado de evitar erros tipo II. Já no caso atual das vacinas para a Covid-19, o erro tipo I adquiriu uma visibilidade incomum dado i) ser uma pandemia, ii) um número de mortes alto[11], iii) um delongado período com medidas de distanciamento social em que se constata uma segunda onda do vírus e iv) vários países já iniciaram a vacinação.

O fato é que a existência de vieses decorre muito fortemente do grau de visibilidade das consequências dos erros, em uma típica aplicação de economia comportamental, o que está longe de ser uma característica apenas brasileira. E isso decorre de dois fatores. Primeiro, a “vaidade burocrática” do regulador faz com que este possa estar mais preocupado com a sua reputação evitando os erros mais visíveis do que a maior proteção à saúde da população.

O segundo fator é, de longe, o mais relevante. Diz respeito à capacidade do regulador de se proteger da acusação de que teve culpa nas consequências negativas geradas em alguma decisão, especialmente frente a órgãos de controle. Conforme Black (2010)[12], o Better Regulation Commission – BRC- (2008) britânico destaca que “a natureza do “jogo de acusação” torna os reguladores excessivamente avessos ao risco, sendo que os incentivos são viesados no sentido de prevenir todo o risco possível. O BRC reporta que a grande parte dos servidores ingleses contatados foram céticos de que, em uma inquirição por um órgão de controle, eles poderiam contar com a defesa de que “naquele momento parecia um risco gerenciável e eu decidi tomá-lo”.

Este tem sido um problema dramático para os gestores do Poder Executivo brasileiro em sua relação com os órgãos de controle, Tribunal de Contas da União, Ministérios Públicos Federal e Estaduais, Controladoria Geral da União ou mesmo direto no Judiciário.

A despeito da percepção do erro tipo I ter ficado muito aguçada na Covid-19, é plausível que o custo percebido pelo erro tipo II para o regulador frente ao órgão de controle continue maior que o custo percebido pelo erro tipo I, mesmo com as consequências para a população sendo tão severas neste último.

Vamos considerar apenas os efeitos da vacina sobre o número de mortes para exemplificar como isso pode funcionar. Suponha que se estime que possa ocorrer um efeito adverso grave pela vacina que cause a morte em uma pequena parcela dos vacinados, digamos 70 pessoas[13]. Suponha que se estima que se a Anvisa tivesse aguardado mais um ano de testes, antes de autorizar a vacina, este problema poderia ter sido identificado e prevenido.

Agora suponha que se estime que adiantar a autorização da vacina antes de concluídos estes testes por um ano evite um número de mortes de cerca de 70 mil pessoas por Covid-19. Apesar das dificuldades éticas em comparar a vida de indivíduos, é razoável postular que, com os dados ex-ante, a antecipação da autorização, com a estimativa de 70 mil pessoas salvas, compense a estimativa de morte de 70 pessoas por efeitos adversos. Daí que a antecipação seria a decisão correta ex-ante, buscando evitar um erro tipo I, ainda que haja também um erro tipo II, só que com consequências bem menos desastrosas.

No entanto, se houver percepção dos reguladores da Anvisa que os órgãos de controle poderão responsabilizá-los por aquelas 70 mortes em função da antecipação, independente dos 70 mil salvos, pode haver um viés convencional de evitar a ocorrência do erro tipo II, mesmo à custa do erro tipo I.

Mais do que isso, estimativas podem estar erradas. Se o número de mortos pelos efeitos adversos acabar sendo bem maior, por exemplo, gerando 1000 mortos, a possibilidade de responsabilização pelos órgãos de controle aumenta. Torna-se mais plausível que os órgãos de controle entendam, com base em um número de mortos pelos efeitos adversos maior, que os reguladores da Anvisa poderiam sim ter previsto que a probabilidade de efeitos adversos era, na realidade, maior. Como não se vê o número de pessoas salvas com a antecipação, os órgãos de controle podem também ex-post questionar a estimativa ex-ante de 70 mil salvos.

Ademais, de um lado, com a decisão da antecipação, as 70 vítimas dos efeitos adversos são identificáveis, têm um nome, família conhecida. As 70 mil vidas poupadas são uma estimativa, sendo todas anônimas. Ninguém sabe a princípio quem seriam elas, nem elas próprias. Sendo assim, é plausível que os órgãos de controle responsabilizarão os reguladores pelas 70 ou 1000 vítimas dos efeitos adversos. Quanto maior o número de fatalidades com os efeitos adversos, maior a possibilidade de contestação de uma antecipação da autorização da vacina.

De outro lado, é possível também que se a Anvisa atrasar a antecipação também haja reação dos órgãos de controle. Nesse caso, o regulador fica na tradicional sinuca de bico: se avançar o bicho pega e se ficar o bicho come. A questão é qual o risco maior para o regulador da Anvisa frente aos órgãos de controle, as vítimas dos efeitos adversos com a antecipação ou as vítimas da Covid-19 com a postergação da antecipação?

A visão convencional é que os órgãos de controle não devem punir a Anvisa por seguir os protocolos burocráticos estabelecidos, mas terão um espaço maior para questionamento com novidades como é o caso de uma antecipação de autorização de uma vacina ou mais vacinas com menos de um ano de testes. Especialmente considerando que este tipo de contestação será realizada mais tarde, fora do atual calor do momento da “segunda onda”, quando tudo parece valer a pena pela imunização à Covid-19, a sensibilidade do órgão de controle para os trade-offs erro tipo I x erro tipo II, se torna menor. Mais uma vez, isto pode gerar um viés na direção de aceitar mais o risco do erro tipo I e menos o risco do erro tipo II. E isto independe das reais consequências de cada um destes erros sobre a saúde e bem-estar da população.

Este problema ficou popularizado no Brasil como o “apagão das canetas” em que há várias situações em que o regulador opta por burocratizar/dificultar a atividade econômica do privado visando reduzir ao máximo a probabilidade do erro tipo II, o que eleva a probabilidade do erro tipo I.

O rigor a mais que as farmacêuticas estão indicando nas demandas da Anvisa sobre os estudos e testes das vacinas, ainda que com um procedimento extraordinário como o Guia 42/2020, pode ser um reflexo deste problema.

E este balanço equivocado também se aplica a outras áreas da política pública como no licenciamento ambiental, por exemplo: é melhor para o burocrata ser excessivamente rigoroso e atrasar obras de enorme impacto social (gerando erro tipo I) do que arriscar que alguma contingência que realize um erro tipo II gere uma contestação de um órgão de controle que implique um processo que o comprometa financeiramente. De fato, o que mais se ouve no Poder Executivo federal com o “apagão das canetas” é “no meu CPF, nem pensar”.

Mudanças recentes na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, Decreto-Lei nº 4.657, de 1942, procedidas pela Lei nº 13.655, de 2018, constituíram um grande avanço e podem mitigar este problema de desvalorização do erro tipo I. O novo art. 28, por exemplo, restringiu os casos em que o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas apenas para os casos de dolo ou erro grosseiro. Isso afasta, em tese, o caso em que o burocrata do órgão de controle simplesmente discorda da avaliação ex-ante do regulador sobre o balanço de erros tipo I e tipo II com base na realização do erro tipo II ex-post e insiste em responsabilizá-lo.

Outra mudança relevante ocorreu no art. 20 do Decreto-Lei nº 4.657, de 1942, em que se determinou que cabe decidir com base nas consequências práticas da decisão e não em valores jurídicos abstratos sem vínculo com o mundo real, o chamado “consequencialismo” bastante advogado na disciplina de “Direito e Economia”. É fundamental que os órgãos de controle considerem que a aplicação relevante destes dispositivos deve ser realizada com base nos dados e análises à disposição do regulador ex-ante, ou seja, no momento da decisão.

Não é claro ainda se estas inovações “pegaram” ou não nos órgãos de controle, remanescendo o medo e, portanto, o viés favorável dos reguladores a enfatizar o erro tipo II, com todo o seu custo em termos de erro tipo I ou o “custo da espera”. Na terrível pandemia da Covid-19, a aplicação destes dispositivos poderá representar muitas mortes a menos.

 

César Mattos é doutor em Economia e consultor da Câmara dos Deputados.

[1] Agradeço a Gabrielle Troncoso da Anvisa por comentários a versões preliminares deste artigo. Erros remanescentes (tipo I e tipo II) são de minha exclusiva responsabilidade.

[2] Segundo a Pfizer (https://static.poder360.com.br/2020/12/Pfizer-uso-emergencial-Brasil-28dez2020.pdf), a Anvisa requereu “a análise dos dados levantados exclusivamente na população brasileira, sendo que “outras agências regulatórias que possuem o processo de uso emergencial analisam os dados dos estudos em sua totalidade, sem pedir um recorte para avaliação de populações específicas”. A Anvisa, por sua vez, replica que não exigiu (e não exige) estudos específicos para a população brasileira. A decisão de conduzir estudos com brasileiros teria sido da própria Pfizer (3 mil dos 44 mil voluntários eram brasileiros). O que a agência teria solicitado seria uma análise em separado dos 3 mil brasileiros, já que os testes já haviam sido realizados. Se, de um lado, não é claro como uma amostra de 3 mil voluntários brasileiros permitirá alguma inferência útil para o Brasil diferente dos 44 mil cidadãos voluntários do mundo, o atendimento da demanda da Anvisa, por sua vez, também não demandaria mais tempo ou recursos relevantes da empresa.

[3]https://www.terra.com.br/noticias/brasil/coronavac-sera-aplicada-sem-registro-da-anvisa-diz-doria,2122298ff79addd47818f462aee1a7510n3kyigq.html.

[4] https://congressoemfoco.uol.com.br/governo/anvisa-vacina-coronavirus/.

[5] Se a agencia reguladora chinesa conseguir aprovar em até 3 dias, como destaca a reportagem (https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/12/14/sao-paulo-documentos-registro-coronavac-anvisa.htm), o prazo da Anvisa ficaria de 72 horas também.

[6] https://www.weforum.org/agenda/2020/06/vaccine-development-barriers-coronavirus/.

[7] No caso de medicamentos são quatro fases que estão bem resumidas no INCA https://www.inca.gov.br/pesquisa/ensaios-clinicos/fases-desenvolvimento-um-novo-medicamento.

[8] https://saude.abril.com.br/medicina/anvisa-muda-indicacao-da-vacina-contra-dengue-quem-deve-tomar-agora

[9] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-55346473.

[10] https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2020/anvisa-define-requisitos-para-pedidos-de-uso-emergencial-de-vacinas/guia-uso-emergencial.pdf.

[11] No início de 2021 chegando muito próximo a 200 mil mortos no Brasil.

[12] Black,J.: “The role of risk in regulatory processes”. In Baldwin, R, Cave, M e Lodge, R.: The Oxford Handbook of Regulation. Oxford Economic Press, 2010.

[13] Note-se que, neste exemplo, trocamos as probabilidades entre os dois tipos de erros pelas consequências dos dois tipos de erros em número de mortes. Assim, em lugar do trade-off entre as probabilidades de cada tipo de erros, podemos pensar em termos do trade-off entre as consequências dos dois tipos de erros, sendo que espera-se que ambos vão ocorrer.

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Globalização remodelada pela pandemia https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3376&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=globalizacao-remodelada-pela-pandemia Mon, 14 Dec 2020 13:00:26 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3376 Por Otaviano Canuto

O artigo foi reproduzido de ‘Poder 360’, onde foi publicado no dia 11 de dezembro de 2020.

 

O comércio mundial mergulhou durante a pandemia global. Segundo a Organização Mundial do Comércio (OMC), o volume do comércio mundial de mercadorias deve cair em mais de 9% esse ano, seguindo-se um aumento em torno de 7% em 2021. O comércio de mercadorias deverá permanecer bem abaixo de sua trajetória anterior, que por sua vez já era menos exuberante do que foi nas décadas que precederam a crise financeira global em 2008.

A crise da Covid-19 trouxe uma série de restrições comerciais, ainda que muitas tenham se revelado temporárias. Muitos países reagiram na fase inicial da pandemia endurecendo restrições comerciais às exportações de alguns produtos médicos e alimentícios. Em meados de abril, mais de 80 países estavam impondo proibições de exportação de alimentos, dispositivos médicos e equipamentos de proteção individual usados ​​para conter a disseminação do vírus.

Muito se tem discutido sobre a hipótese de que a experiência global com a pandemia poderia acentuar tendências subjacentes a um retrocesso da globalização comercial via cadeias globais de valor. Assistimos a um renascimento das discussões sobre riscos imprevistos – ou subestimados – da fragmentação internacional da produção.

Por um lado, há vozes que afirmam que a dependência do comércio deverá ser diminuída, inclusive via repatriação da produção, como forma potencial de redução de riscos. Por outro, essa contenção do comércio também criaria custos de eficiência substanciais, se for além dos fatores estruturais que explicam a evolução do comércio global antes da pandemia.

 

ESCOLHAS PELOS GERENTES DAS CADEIAS DE VALOR

Como aconteceu nos eventos relacionados ao tsunami no início da década de 2010, graves interrupções no fornecimento de insumos e produtos finais, desde peças automotivas e eletrônicos de consumo a equipamentos de proteção durante a pandemia, destacaram a presença de riscos de se concentrar muita produção e abastecimento em um pequeno número de locais de baixo custo, assim como na confiança no gerenciamento de estoques adotando just-in-time. Tarifas aumentadas em alguns casos, restrições de acesso a mercados e outras manifestações de atritos geopolíticos também podem levar algumas empresas a revisitar suas cadeias de abastecimento.

Em alguns casos, pode prevalecer a visão de que vale a pena adotar múltiplas fontes regionais, bem como manter mais “estoques de segurança”, mesmo que essas opções impliquem custos mais altos. Durante a guerra comercial entre China e Estados Unidos disparada pelas tarifas de Presidente Trump, o deslocamento de atividades intensivas em mão-de-obra da China por parte de investidores estrangeiros em direção a Vietnam, México e outros  ocorreu com parcial duplicação de capacidades instaladas.

Os tipos e a intensidade de mudanças vão variar muito de acordo com os setores industriais, já que as empresas terão que considerar se a resiliência compensará a perda de eficiência e maiores custos. Existe uma tendência já em curso antes da pandemia, em alguns segmentos, de colocar a produção em locais mais próximos dos clientes, especialmente quando a adoção de sistemas de manufatura avançados da Indústria 4.0 for capaz de compensar os custos de mão de obra mais altos. Equipamentos médicos, produtos biofarmacêuticos, semicondutores e eletrônicos de consumo, por exemplo, são prováveis ​​candidatos a também estarem sujeitos a pressões geopolíticas e governamentais. Em última análise, a consequência da Covid será um perfil mais elevado a ser atribuído a essas considerações, em intensidades distintas conforme setores e opções empresariais.

 

POLÍTICAS GOVERNAMENTAIS E ATRITOS GEOPOLÍTICOS

Os governos também devem dar maior ênfase à produção doméstica para reduzir o risco de choques futuros de abastecimento, especialmente de suprimentos e equipamentos médicos. A Alemanha expressou interesse em internalizar mais cadeias de suprimentos, por exemplo, assim como a Coreia do Sul está explorando medidas para encorajar o remanejamento da produção de manufaturas. Isso não se traduzirá necessariamente em negligência total dos ganhos mais amplos com a globalização, mas reforçará seletivamente a busca por maior autossuficiência.

Dados os custos revelados – fracassos – das políticas comerciais unilaterais no estilo seguido pelo presidente Trump nos Estados Unidos, não é provável que voltem com o futuro presidente Biden. Mas pode haver esforços plurilaterais para ampliar a agenda de restrições ao comércio como um quid-pro-quo nas negociações sobre regras e padrões trabalhistas e ambientais.

No caso da alta tecnologia, uma potencial dissociação entre EUA e da China – o que pode até levar a dispositivos e sistemas de tecnologia da informação (TI) em ambos os mercados não mais interoperáveis ​​- pode ter fortes repercussões. A China, por sua vez, emitiu sinais de busca por mais autossuficiência ao falar em “dupla circulação” externa e doméstica e ao buscar garantir maior diversidade de fontes de importação de commodities. Mais uma vez, a crise da Covid não criou tais atritos, mas deu lugar a um aumento do seu perfil.

 

AGENDA DE MUDANÇA CLIMÁTICA

O futuro do comércio também está sendo redefinido de outras maneiras. A pandemia teve um efeito indireto positivo de aumento no relevo da agenda de mudança climática. Recuperação verde é o mote. Por exemplo, como parte da Estratégia do Acordo Verde europeu para reduzir as emissões de gases de efeito estufa, a Comissão Europeia está considerando levar adiante a proposta de estabelecer um imposto sobre o carbono nas importações. Esse imposto poderia redefinir a competitividade global em uma série de setores, especialmente se acompanhado pelos Estados Unidos.

Portanto, ao intensificar forças geopolíticas e econômicas já em ação, o impacto perturbador da pandemia no comércio internacional deixará uma marca duradoura. A pandemia está acelerando a história, ou seja, algumas tendências recentes estão sendo acentuadas. A pandemia não reverterá a globalização, mas a remodelará.

Quanto ao Brasil, cabe lembrar que estamos no outro extremo em comparação com os que estão considerando “des-globalizar”, mesmo que parcialmente. Já pagamos um preço elevado por ser uma das economias mais fechadas comercialmente do mundo…

Otaviano Canuto é membro sênior do Policy Center for the New South não-residente do Brookings Institute e diretor do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor-executivo do Banco Mundial, diretor-executivo do Fundo Monetário Internacional (FMI) e vice-presidente no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

]]> A Resposta Fiscal à Crise do Covid-19 no Brasil https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3362&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-resposta-fiscal-a-crise-do-covid-19-no-brasil Mon, 16 Nov 2020 20:04:27 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3362 “Ao Infinito e Além” 

Buzz Lightyear   

Personagem do Cartoon da Pixar “Toy Story”

 Por César Mattos

 

  1. Introdução

 

A reação das políticas econômicas no mundo à inusitada crise do Covid-19 tem sido o principal tema econômico de 2020. Conforme o FMI (2020)[1]:

“A magnitude e a velocidade do colapso na atividade que se seguiu é diferente de qualquer coisa que experimentamos em nossas vidas. Esta é uma crise como nenhuma outra, e há substancial incerteza sobre o seu impacto na vida das pessoas”

Nesse artigo procuramos analisar a resposta econômica que está sendo dada à crise do Covid-19 no Brasil. Partindo de uma estratégia de austeridade fiscal em 2019, a equipe econômica desviou a trajetória na direção de uma abordagem expansionista, tal como ocorreu no resto do mundo. As duas perguntas chave são: 1) em que medida esta resposta foi na dose correta e 2) isso deveria constituir um retorno, no período pós-Covid, à “nova matriz econômica” executada entre 2008 e 2016[2], ampliando gastos públicos com intuito de reativar a economia?

Não há dissenso de que uma mudança de direção da política econômica foi urgente e imprescindível no curto prazo em resposta a um evento imprevisível e fora de controle como o Covid-19. Conforme o Banco Mundial (2020)[3]:

Ante um choque face ao qual não se pode fazer um ’seguro‘ como a epidemia Covid-19, somente os governos podem servir como os “seguradores” de último recurso. Todavia, dada a restrição de recursos, é importante explicar claramente como as perdas serão gerenciadas. Uma declaração desse tipo coordenaria as expectativas e ajudaria os agentes econômicos a se adaptarem ao novo ambiente, numa espécie de pacto social sobre como gerenciar a crise”.

No caso do Brasil, como veremos, buscou-se mitigar as perdas de empresas e governos subnacionais, assim como preservar empregos e garantir renda às famílias mais afetadas pela paralização da atividade econômica, mas a circunstância política acabou gerando um significativo aumento de renda para os mais pobres pelo Coronavoucher e não uma redução de perdas. Em ambos os casos, é possível que a ação do governo tenha, de fato, diminuído o tempo de recessão e contribuído para a tão desejada recuperação em “V” na economia.

No entanto, este ganho social do Coronavoucher pode se constituir tão somente em um “voo de galinha social”. De fato, as medidas expansivas, principalmente a do Coronavoucher, não podem se estender muito, dado o limite de sustentabilidade da dívida pública brasileira.

Afinal, o cenário fiscal piorou muito com as medidas adotadas, fazendo a relação dívida/PIB crescer a níveis ainda mais perigosos do que antes. A crise do Covid-19 nos revela o valor que deveríamos dar à disciplina fiscal nos momentos normais da economia, para quando choques negativos gerados por eventos imprevisíveis como este ocorrerem. Ter graus de liberdade no orçamento para conter os efeitos de crises como essa é fundamental,. O Brasil entrou na crise sem ter esse espaço fiscal.

A linha de expansionismo fiscal da “nova matriz econômica”, adotada no passado recente, infelizmente, diminuiu essa margem de manobra.

Findo o período mais crítico da pandemia, será essencial retomar a agenda de ajuste fiscal e reformas econômicas. Elas serão essenciais para evitar que o país tombe por conta de uma crise da dívida pública e, ao mesmo tempo, aumentarão a concorrência e a produtividade, que são cruciais para acelerar o crescimento e a reabertura de empregos.

Na próxima seção fazemos uma síntese do movimento de rápido declínio no segundo trimestre e célere recuperação no terceiro trimestre da economia brasileira. A seção III sumaria a mobilização de recursos pelo governo para o enfrentamento da crise do Covid-19, destacando a magnitude do Coronavoucher e seu impacto na crise fiscal e na melhoria da renda dos mais pobres, a importância dos programas de mitigação do desemprego e de crédito para pequenas e médias empresas e a ajuda aos entes subnacionais. A seção IV mostra que a reação fiscal do Brasil foi proporcionalmente maior que em outros países e grupos de países similares. A seção V apresenta o atual debate em outros países e no Brasil sobre a Nova Teoria Monetária que tem servido de argumento para defender uma política fiscal ainda mais expansiva no pós-pandemia. Decididamente o Brasil não conta com esta margem de manobra, arriscando-se ao total descontrole da dívida pública. Discute-se ainda a necessidade absoluta de manter a regra do teto de gastos como ela se encontra, sem exceções adicionais. A seção VI conclui.

  1. Covid-19: A Pior Recessão Mundial desde a Grande Depressão

 

Inicialmente considerado como um rápido choque de oferta mundial, entendia-se que a crise repentina do Covid-19 gerada pela necessidade da quarentena geraria uma trajetória da economia em forma de “V”[4]: uma queda inicial seguida por uma rápida recuperação. Este otimismo inicial foi revertido rapidamente em grande parte dos países com a perspectiva de prolongamento da quarentena, gerando choques gêmeos de oferta e demanda, dado que muitas pessoas não poderiam trabalhar e produzir[5] e, ao mesmo tempo, parou-se de consumir vários bens e serviços.

A crise do Covid-19 gerou um impacto significativo e repentino na economia brasileira, mais fortemente sentido a partir do mês de março de 2020. Conforme o IBGE, a retração do PIB no 2º trimestre de 2020 foi de 9,7% em comparação ao 1º trimestre de 2020, com ajuste sazonal, com fortes retrações de 12,3% na indústria e 9,7% nos serviços. Foi a queda mais abrupta do PIB desde o início da série em 1996, conforme pode ser visto na figura I.

Fonte: IBGE

O mais impressionante foi a rapidez e amplitude da deterioração das expectativas do mercado em relação ao PIB do Brasil, conforme a pesquisa Focus do Bacen, à medida que foi se percebendo a real magnitude da crise. De uma mediana das expectativas de mercado de crescimento do PIB no Brasil de +2,3% para 2020 em 07/02/2020, passou-se a uma expectativa de queda no PIB de -5,89% em 22/05/2020[6]. Este pessimismo tem arrefecido em função da percepção de que o pior da recessão gerada pela quarentena já passou, com a retomada da atividade econômica que parece se consolidar no segundo semestre de 2020. De fato, a pesquisa do Boletim Focus de 23/10/2020[7] alterou a perspectiva mediana do mercado para o PIB de 2020 para -4,81%.

O indicador dessazonalizado do comércio ampliado do IBGE até agosto de 2020 mostra, de fato, uma recuperação em “V”, inclusive indo para um patamar superior ao pré-pandemia.

Fonte:IBGE

Conforme a Sondagem da Indústria da CNI de setembro de 2020[8]a indústria operou acima do usual para o mês, com utilização da capacidade instalada acima do registrado nos últimos anos” com altas na produção industrial desde junho e na contratação de trabalhadores desde julho também corroborando, por enquanto o comportamento em “V”.

Como mostra a Secretaria de Política Econômica em 10/09/2020[9] tanto o comércio quanto a indústria apresentam uma retomada em “V”, o que derivaria das “políticas de proteção do governo federal implementadas para o curto prazo”, apesar de o setor de serviços ainda apresentar retomada mais lenta. De fato, as projeções mais pessimistas como a do FMI de junho de 2020[10] que previam uma queda de -9,1% no PIB brasileiro se mostraram exageradas, mas a consolidação desta recuperação no quarto trimestre pode ser atenuada em função da redução do auxílio emergencial de R$ 600 para R$ 300[11] e depois sua remoção.

O impacto da crise do Covid-19 é global. O FMI estimava, em junho de 2020, uma queda do PIB, neste mesmo ano, no mundo de -4,9%[12], o que, em outubro se tornou mais ameno em -4,4%[13], mais agudo nas economias mais avançadas de -5,8% e mais leve nas economias emergentes de -3,3%.

  • A Mobilização de Recursos Fiscais para o Covid-19

III.1) Visão Geral

O total de recursos mobilizados pelo Governo Federal em resposta à Covid pode ser visualizado na Figura III a seguir.

Figura III – Recursos Mobilizados pelo Governo Federal no Enfrentamento ao Covid-19 Até 22 de Outubro de 2020 (em R$ bilhões)

Com Impacto no Resultado Primário de 2020 (I + II) 614,2
Redução de Receitas (I) 27,5
Despesas (II) 587,5
Auxílio Financeiro Emergencial (R$ 600,00 mensais por 5 meses) – Coronavoucher – MPV 937, 956, 970, 988; Lei 13.982 , MP 999, 1000 321,8
Benefício Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda – MPV 935; Lei 14.020 51,6
Programa Emergencial de Suporte a Empregos (Folha de Pagamentos – PESE Funding União) – MPV 943; Lei 14.043 17,0
Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe) – MPV 972, 997; Lei 13.999, 10.042 27,9
Programa Emergencial de Acesso a Crédito (PEAC – Fundo Garantidor para Investimentos – FGI) – BNDES – MPV 975, 977, Lei 14.042 20,0
Programa Emergencial de Acesso a Crédito (PEAC) – Maquininhas – MPV 1.002; Lei 14.042 10,0
Medidas de suporte direto aos Entes Subnacionais com Impacto no Primário 105,6
Sem Impacto no Resultado Primário (III + IV + V + VI + VII) 3.813,5
Alteração na programação financeira sem impacto no resultado anual (III) 442,8
Extraorçamentários (IV) 68,4
Apoio a Estados e Municípios (V) 85,1
Medidas de Crédito (VI) 232,0
Regulatórias – Liberações de Liquidez e Capital –  (VII) 2.985,2
Total (Com e sem impacto no primário) 4.427,7

Fonte: Secretaria Especial de Fazenda do Ministério da Economia[14].

O governo mobilizou, até início de setembro de 2020, um total de R$ 4,4 trilhões entre recursos que impactam (R$ 614,2 bilhões) ou não (R$ 2.985,2 bilhões) o resultado primário. Este esforço a mais no resultado primário, nos cálculos do Ministério da Economia (ME), corresponde a 8,6% do PIB. Note-se que este valor cresceu em relação aos R$ 349,4 bilhões inicialmente projetados de impacto no resultado primário pelo ME em abril de 2020, um incremento de 75,8%. Vejamos estes itens nas próximas seções.

III.2) Coronavoucher: O Bolsa Família Turbinado da Covid-19

O item mais relevante, que responde por mais da metade do efeito total sobre o resultado primário, foi o Coronavoucher de R$ 600,00 por beneficiário, que inicialmente tinha prazo de dois meses, mas foi estendido por mais dois meses pelo mesmo valor, e depois por R$ 300,00 de setembro até o final de 2020. Foram destinados R$ 321,8 bilhões a este item o que representou até agora 52,4% do efeito sobre o primário. Esse valor é quase 2,6 vezes a estimativa inicial do Coronavoucher de R$ 123,9 bilhões originalmente prevista.

Não há dúvida que o Coronavoucher foi fundamental para a proteção dos mais vulneráveis, além de ter compensado o choque de demanda, fazendo com que a mitigação de um grave problema macroeconômico de curto prazo se encontrasse com a questão social.

No entanto, o custo fiscal é muito elevado. Como mostra Duque(2020)[15], o programa atingiu o expressivo número de 66 milhões de beneficiários em agosto de 2020, sendo metade da população brasileira morando com pelo menos um membro que recebia a transferência. Foram despendidos inicialmente cerca de R$ 50 bilhões por mês, um valor muito significativo frente aos R$ 30 bilhões por ano do Bolsa Família, R$ 56 bilhões por ano do Benefício de Prestação Continuada e R$ 17 bilhões anuais do Abono Salarial. O benefício foi tão elevado que implicou um considerável incremento de renda dos 40% mais pobres, que chegou a 200% entre “os mais pobres dos mais pobres”. Veremos que este incremento pode ser bem maior.

Apesar de ser desejável uma melhora na distribuição de renda e redução na pobreza, o efeito simplesmente dramático nas contas públicas faz com que essa transferência não possa continuar indefinidamente. Nesse contexto, o Coronavoucher se constituiu em uma “revolução temporária” na distribuição de renda do país. O aumento de renda justamente no meio de uma crise, que inevitavelmente faz o Brasil e o mundo mais pobres, é uma contradição. É como se o(a) chefe de família ficasse desempregado(a) e chegasse em casa anunciando aumento de mesada para todos os filhos!

O importante em uma crise é mitigar os seus efeitos nos mais pobres e não promover uma revolução social. Pior, criou expectativa de perenidade impossível de se manter a não ser por reduções expressivas muito difíceis de realizar em outras despesas[16]. Aqui inverteu-se a lógica Maquiavélica: um grande “bem” de uma vez só que será retirado a conta gotas.

A intenção inicial na área econômica com o Coronavoucher em 18/03/2020 parecia ser de simplesmente estender para todo o grupo de trabalhadores informais[17] o benefício financeiro do bolsa família que hoje é de R$ 41,00 por pessoa, podendo uma mesma família chegar a R$ 205,00 se tiver cinco ou mais pessoas[18][19]. Este valor, no entanto, acabou crescendo, e de forma acelerada, com o governo passando a anunciar que ia liberar um auxílio de R$ 200, a equipe econômica admitindo ampliar para R$ 300, o Congresso anunciando que iria deliberar sobre um projeto de lei de 2017 que resultava num benefício de R$ 500 e, finalmente, o Poder Executivo “cobrindo a aposta” e subindo o valor para R$ 600. Todo esse incremento na prodigalidade da política social em uma semana[20]. Um exemplo da lógica de Buzz Lightyear – citada na epígrafe – na política fiscal brasileira: a política do “Ao Infinito e Além”.

Assim, o benefício passou de R$ 41,00 para R$ 600,00 por pessoa, um aumento de mais de 13 vezes. Cada família pode acumular até dois benefícios, ou seja, R$ 1.200. No caso da mulher que sustenta o lar sozinha, o benefício seria de R$ 1.200. Ou seja, para esta mulher sozinha o incremento do benefício em relação às pretensões iniciais da equipe econômica seria de mais de 28 vezes! Além da informalidade, o requisito seria de ter uma renda familiar mensal por pessoa de até meio salário mínimo (R$ 522,50) ou renda familiar mensal de até três salários mínimos (R$ 3.135,00).

Naturalmente que não faria sentido conceder um benefício social de R$ 600,00 para os informais que não estão no bolsa família e, portanto, teoricamente com maior renda que o grupo do bolsa família, e manter estes últimos com o mesmo benefício anterior de R$ 41,00. Assim, foi dada a opção de o beneficiário do bolsa família ficar com este último benefício ou optar pelo Coronavoucher, que é obviamente mais vantajoso. Assim, o grupo do bolsa família e, especialmente, as chefes de família sozinhas do bolsa família, tiveram incrementos de renda durante a pandemia de até 28 vezes.

De outro lado, a implementação de um programa desta envergadura em período tão curto de tempo foi notável. Esta rapidez extremamente necessária, no entanto, abriu brechas para fraudes. O Tribunal de Contas da União (TCU) apontou em processo votado em 26/08/2020[21] que o total de pagamentos indevidos poderia chegar a R$ 42,1 bilhões, o que derivaria das dificuldades para a identificação da real composição familiar nos domicílios, inclusive para comprovar a existência ou não de uniões conjugais com a coabitação dos casais.

A extensão do Coronavoucher, com redução do  benefício para R$ 300,00[22] trouxe regras mais restritivas que o programa original. Foram excluídos da elegibilidade ao programa pessoas que estavam morando no exterior, presidiários e quem conseguiu emprego formal com carteira assinada após receber o auxílio. A questão relevante é por que estes grupos já não foram excluídos desde o início com um mínimo de respeito à escassez de recursos?

Enfim, um valor muito alto do benefício e um número de beneficiários excessivo podem ter criado, tal como o Brasil já se acostumou na seara econômica, um “voo de galinha” na política social, gerando uma ilusão desnecessária, justamente no meio de uma crise como a do Covid-19.

Outro ponto relevante é que o Coronavoucher[23] reduziu o incentivo à procura de emprego. Apesar deste ser um efeito em geral negativo, neste momento específico induziu as pessoas a cumprirem a quarentena.

III.3) Os Programas Direcionados às Micro e Pequenas Empresas

A dificuldade de cumprir as obrigações tributárias com a súbita crise de demanda trazida pelo Covid-19 era evidente. Assim, implementaram-se renúncias fiscais no valor de R$ 20,6 bilhões, especialmente diferimento de tributos.

Dada a falta de demanda e de liquidez, o governo também implementou um conjunto de programas de crédito para a manutenção do emprego e para a sobrevivência das empresas durante a pandemia, especialmente pequenas e médias. De fato, nesse contexto, é bastante razoável presumir que a maior parte das falências recairá de forma desproporcionalmente elevada sobre as empresas menores e o foco nessas últimas foi correto[24].

A figura a seguir resume as principais características dos cinco programas de crédito e garantias com impacto no primário criados para a crise do Covid-19.

Figura IV – Programas de Crédito para o Enfrentamento ao Covid-19 com Impacto no Resultado Primário

 

  Benefício pela Manutenção de Emprego Programa de Suporte a Empregos (PESE) Pronampe PEAC – Maquininhas PEAC FGI
Lei 14.020/20 14.043/20 13.999/20 14.042/20 14.042/20
Hipótese de Aplicação Redução da Jornada ou contrato suspenso Manutenção de empregos Garantia de operações de crédito para Investimentos e capital de giro. Financiamento e Garantia de operações de crédito Garantia de operações de crédito
Elegibilidade Empresas com receita bruta anual entre R$ 360 mil e R$ 50 milhões Empresários, Sociedades simples, Sociedades empresárias e Sociedades cooperativas, organizações da sociedade civil e empregadores rurais Microempresas e  Empresas de pequeno porte Microempreendedores individuais, a microempresas e a empresas de pequeno porte que possuam volume faturado nos arranjos de pagamento das maquininhas Empresas de pequeno e médio porte, associações, fundações de direito privado e sociedades cooperativas que em 2019 tenham receita bruta entre R$ 360 mil e R$ 300 milhões
Recursos R$ 51,6 bilhões R$ 17 bilhões R$ 27,9 bilhões R$ 10 bilhões R$ 20 bilhões
Financiamento e Alocação de risco Financiados 100% pela União. Não há risco pois é a fundo perdido 85% financiados pela União com o risco da União,15% custeados pelas instituições financeiras, com o risco delas Garantia de 100% da União por cada operação garantida por meio do FGO. Garantia limitada a até 85% da carteira de cada agente financeiro. Financiado 100% pela União.Garantia da União deduzidos os 8% de recebíveis pelo arranjo de pagamento Garantia de até 30% do valor total liberado para o conjunto das operações de crédito no PEAC-FGI
O que financia ou permite financiar? Cálculo será realizado com base no valor mensal igual ao seguro desemprego que o empregado teria direito. Até 100% da folha de pagamento do contratante, mas apenas até duas vezes o valor do salário mínimo por empregado Até 30% (trinta por cento) da receita bruta anual de 2019 O valor do crédito por contratante é limitado ao dobro da média mensal das vendas de bens e prestações de serviços do contratante liquidados por meio de arranjos de pagamento, observado o valor máximo de R$ 50 mil Garantia de até 30% do valor total liberado para o conjunto das operações de crédito no PEAC-FGI
Condições de Pagamento Fundo perdido Juros de 3,75% ao anoCarência de 6 meses e 36 meses para pagamento Selic mais 1,25%.36 meses para pagamentoCarência de 8 meses Juros de até 6% ao ano, prazo de 36 meses, carência de 6 meses. Carência entre 6 e 12 meses. Prazo total entre 12 e 60 meses. Taxa de juros conforme regulamento.Taxa média da carteira de 1%. Acima disso, há redução da cobertura.
Condicionalidade principal e Garantias Garantia provisória do emprego, excetuando pedido de demissão ou justa causa Não rescindir sem justa causa o contrato de trabalho de seus empregados entre a data da contratação e o sexagésimo dia após a liberação dos valores referentes à última parcela da linha de crédito Garantia pessoal do proponente em montante igual ao empréstimo contratado Os contratantes deverão ceder fiduciariamente às instituições financeiras 8% dos seus direitos creditórios a constituir de transações futuras de arranjos de pagamentos Dispensada a exigência de garantia real ou pessoal.Instituição Financeira pode, no entanto, requerer garantia na negociação com a empresa.

Fonte: Leis 14020/20, 14043/20, 13999/20, 14042/20 e 14042/20.  Elaboração própria.

Em um contexto de elevada incerteza gerado pela covid-19, o principal problema identificado foi que, apesar de várias medidas do Banco Central para ampliar a liquidez, o sistema financeiro não estava emprestando, especialmente para as pequenas e médias empresas.

Assim, dois programas, o Benefício pela Manutenção do Emprego e o Programa de Suporte a Empregos (PESE), procuraram evitar demissões, seja custeando a manutenção do emprego no primeiro, seja financiando a redução da jornada e/ou a suspensão temporária do contrato de trabalho no segundo.

O primeiro é um programa a fundo perdido enquanto o segundo conta com 85% do financiamento da União, que assume o risco de default destes 85%. Assumindo que o programa é que viabiliza a que se mantenham empregos, como o valor repassado iguala o seguro desemprego, então é como se a União estivesse pagando este benefício, mas sem precisar que o trabalhador tenha que se desempregar. Assim, adotando esta premissa de efetividade do programa, o seu custo seria despendido de qualquer forma, na forma de seguro desemprego e com a desvantagem de o trabalhador estar desempregado.

Já o PESE não constitui uma transferência a fundo perdido, mas envolve assunção de risco pela União em função de um problema de moral hazard já que a instituição financeira terá menos incentivos (apenas na proporção dos 15% de sua exposição) a avaliar o risco dos tomadores. De qualquer forma, como o alcance do PESE é apenas duas vezes o salário mínimo por trabalhador, a vantagem do empregador era proporcionalmente menor que o benefício pela manutenção do emprego que tem o limite dado pelo que seria pago pelo seguro-desemprego. Daí que foram beneficiados no primeiro programa 9,6 milhões empregados contra apenas 2,4 milhões no PESE[25]. Não à toa o valor originalmente alocado para o PESE foi de R$ 34 bilhões, tendo se reduzido pela metade em favor especialmente do PRONAMPE.

O PRONAMPE e o PEAC FGI já não focam na manutenção de empregos, mas na oferta de garantias às empresas menores, o que se baseou no diagnóstico de que o problema do sistema financeiro não era de liquidez (com as medidas do BACEN, isso não faltava), mas de maior incerteza de repagamento em função da crise. Ademais, atuar por garantias permitiria que o mesmo recurso pudesse apoiar mais de uma operação de crédito[26].

O risco de 100% alocado ao Tesouro no caso do PRONAMPE pode gerar o mesmo problema de moral hazard do caso do PESE, já que a instituição financeira não incorre em qualquer risco por default dos tomadores até 85% do valor total dos financiamentos. Há dispositivos que procuram reduzir este problema quando se define que a instituição financeira deve adotar procedimentos para a recuperação de crédito não menos rigorosos do que aqueles usualmente empregados em suas próprias operações de crédito ou ainda a obrigação de empreender os “melhores esforços” para recuperar o crédito, também existentes nos PEACs.

Alguns “esforços burocráticos” para a recuperação do crédito podem ser observados pelo Estado para efeito de verificar o cumprimento destes dispositivos. No entanto, o moral hazard não ocorre apenas no momento da recuperação do crédito, mas também no momento da seleção dos tomadores pelas instituições financeiras. Quanto mais o risco não for do intermediário financeiro menos ele se esforça para selecionar apenas os tomadores com mais chance de repagamento. O moral hazard, infelizmente, é um custo quase inevitável em programas numa situação de emergência como a da covid-19.

O Pronampe gerou, de fato, grande incentivo à adesão dos bancos. O total alocado neste programa foi de R$ 27,9 bilhões, por meio do Fundo Garantidor de Operações (FGO), mais de 75% em relação ao valor inicial de R$ 15,9 bilhões em função de sua elevada procura. De fato, todo o valor alocado originalmente foi consumido e em muito pouco tempo, e os R$ 12 milhões alocados na segunda fase do programa em setembro também foram rapidamente exauridos.

Tanto o custo menor de não precisar realizar uma análise mais detida do perfil do tomador, dado o risco ser do governo, quanto o escopo muito mais amplo de uso dos recursos (investimento e capital de giro em lugar de apenas manter empregos) contribuíram para a maior atratividade do PRONAMPE.

Por fim, o somatório desses programas direcionados a empresas e empregos com impacto no primário somam R$ 126,5 bilhões, o que representa menos de 40% do total alocado ao Coronavoucher. Como parte desses R$ 126,5 bilhões não serão efetivamente gastos e mesmo o Benefício para o Emprego, a fundo perdido, está economizando pagamento de seguro desemprego na hipótese de que os trabalhadores beneficiados seriam demitidos, tem-se que o custo fiscal real do conjunto destes programas é bem menor que estes R$ 126,5 bilhões.

Decerto que em todos estes programas envolvendo empréstimos e garantias da União, a questão do moral hazard, que é o que revelará o real custo fiscal do programa, apenas poderá ser avaliada plenamente com os dados de inadimplência após o fim do período de repagamento. São “ativos contingentes” que vão depender da diligência dos intermediários financeiros em buscarem o cumprimento do repagamento pelos tomadores. Tal diligência é uma obrigação estabelecida explicitamente nas próprias leis, restando saber como (e se) este dispositivo será aplicado na prática para a União recuperar estes valores[27].

Em 30 de outubro de 2020, o Senador Jorginho Mello protocolou proposta de novo Pronampe com mais R$ 10 bilhões aumentando a taxa de 1,25% + Selic a.a. para 6% + Selic a.a. e reduzindo o percentual de garantia da União de 85% para 25% por instituição financeira. Nesse caso o moral hazard se torna muito menor, apesar de continuar existindo.

III.4) Ajuda a Entes Subnacionais e Flexibilização da Política Monetária

As medidas de auxílio a Estados e Municípios com efeito no primário atingiram R$ 105,6 bilhões, sendo R$ 76,2 bilhões alocados a transferências não relacionadas diretamente aos gastos de saúde. Soma-se a isto os R$ 81,8 bilhões sem impacto no primário, nenhum deles ligados ao enfrentamento da pandemia e mais ligados à renegociação de dívidas, e teremos um efeito total no governo federal de R$ 190,6 bilhões de ajuda aos entes subnacionais.

De um lado, rubricas como o Auxílio a Estados e Municípios na forma de Transferência ao Fundo Nacional da Saúde, da Medida Provisória 940 de R$ 9 bilhões ou as Transferências adicionais a Estados, Municípios e Distrito Federal para financiamento das ações de saúde da Medida Provisória 969 de R$ 10 bilhões estão, a princípio, diretamente associadas aos gastos adicionais relativos à Covid-19, e deveriam ser repassadas para conter a pandemia e seus efeitos.

De outro lado, não é claro até onde o governo federal, que também contará com grande impacto negativo em sua arrecadação, deveria deslocar recursos escassos de outras atividades mais relacionadas à proteção de vulneráveis, apoio à manutenção de empregos ou à saúde, para renegociações de dívida desconectadas da questão do Covid-19, reforçando o moral hazard federativo do país. Desse total de R$ 182,3 bilhões diretamente transferido para entes subnacionais, apenas 12% foram diretamente relacionados à saúde. À exemplo do do Coronavoucher, estes itens indicam excessiva e custosa politização da crise.

O valor mais significativo de mobilização de recursos para a crise, mas de natureza regulatória sem impacto no primário, foi o da flexibilização da política monetária pelo Banco Central, que incluiu, por exemplo, a redução da alíquota do compulsório sobre os recursos à prazo de 25% para 17%[28], e que injetou um total de R$ 2.985,2 bilhões no sistema bancário, cerca de 67% dos recursos mobilizados.

  1. IV) Reação Fiscal ao Covid-19: Brasil x Mundo

A mudança da estratégia macroeconômica do governo brasileiro em função da crise da Covid-19 foi na mesma direção de outros países ao incrementar repentinamente os déficits e dívidas do setor público. A diferença é que, baseado no World Economic Outlook do FMI de outubro de 2020, o Brasil tanto incrementou seu déficit e sua dívida (em proporção ao PIB) em relação a 2019 mais que outros países similares, como também partiu de uma situação fiscal mais deteriorada tanto em relação a países similares como em relação à média dos países avançados.

Vejamos nas duas Figuras abaixo, sobre déficits (valor negativo) e dívida bruta do Brasil comparativamente à média dos países avançados e grupos de países similares que incluem os outros BRICS, Rússia, Índia, China e África do Sul, além dos latino-americanos Argentina, Chile, Colômbia, Peru e México, os asiáticos Indonésia, Coreia e Filipinas, além da Turquia.

Fonte: World Economic Outlook, October, 2020

Fonte: World Economic Outlook, October, 2020

O Brasil atingirá um déficit maior (-14,7% do PIB) que a média dos países avançados (-11%) e dos países similares . O país similar que mais se aproxima é a Colômbia, com -10,2%. Esse país, no entanto, passou de uma dívida de 52,29% do PIB em 2019 para 68,23%, bem inferior ao Brasil que já atingia quase 90% desta relação em 2020 (metodologia FMI) e passará para 101,4%, sendo o único país da base de comparação com mais de 3 dígitos.

Alguns dos países selecionados tiveram incremento de dívida entre 2019 e 2020 superior ao do Brasil de 11,93%. De fato, a dívida da Colômbia em relação ao PIB aumentou quase 16 pontos percentuais, a da Índia quase 17 pontos, Peru 12,3 pontos e África do Sul 16,6 pontos. O país que terá a maior relação dívida/PIB em 2020, a Índia, chegará a 89,3%, mais de 12 pontos inferior ao nível do Brasil.

A questão é que a relação dívida/PIB brasileira partiu de um nível elevado e crescendo de 87,1% em 2018 para 89,5% em 2019, chegando a 101,4% em 2020.

Note-se que o problema não é apenas a dívida chegar neste valor, mas continuar a crescer no cenário base conforme o próprio Relatório das Projeções da Dívida Pública Brasileira do Tesouro Nacional de 30/10/2020[29], em sua metodologia para a Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG). De fato, o Tesouro estima que, no cenário base, a DBGG atinja 96,0% do PIB, 20,2 pontos percentuais em relação a 2019, prosseguirá crescendo nos próximos anos, atingindo seu máximo de 100,8% do PIB em 2026, encerrando a década em 2029 em 98% do PIB.

Passar a marca de 100% da relação dívida/PIB como projetado pelo FMI (ou chegar muito perto como na estimativa do Tesouro) para 2020 e 2021 e não conseguir reduzi-la para menos de 90% constitui uma péssima notícia. O clássico estudo de Reinhart e Rogoff (2010)[30] mostra que, em uma série histórica de 200 anos para 44 países, níveis de dívida/PIB superiores a 90% estão associados a “resultados em termos de crescimento econômico notavelmente mais baixos”.

Com uma situação tão dramática, é surpreendente que se discuta, inclusive dentro do governo, em prosseguir na política fiscal expansiva no período pós-pandemia para ajudar na recuperação da economia. Essa discussão acontece também em outros países como veremos na próxima seção.

  1. A Nova Teoria Monetária (NTM), Dívida Pública e Teto de Gastos

A revista The Economist afirma que, com inflação sob controle e taxas de juros muito baixas no mundo todo, haveria uma tendência de haver políticas monetária e fiscal bem mais expansivas do que antes:

 

“Não se engane que o papel do Estado irá magicamente retornar ao normal depois que a pandemia passar e o desemprego se reduzir. Sim, os governos e os bancos centrais vão reduzir seus dispêndios e os resgates. Mas a nova era da economia reflete o clímax de tendências de longo prazo. Mesmo antes da pandemia, a inflação e as taxas de juros estavam sob controle a despeito de um boom de empregos. Hoje o mercado de títulos ainda não mostra qualquer sinal de preocupação sobre a inflação no longo prazo. Se este mercado estiver correto, os déficits e a impressão de dinheiro podem muito bem se tornar as ferramentas padrão da política econômica por décadas”.  

Se, de um lado, The Economist vê “oportunidades” neste relaxamento para melhorar a infraestrutura e outros gastos urgentes ao redor do mundo, também aponta os “graves riscos” de tal estratégia como uma volta inesperada da inflação, além da constatação de que “the new machinery is vulnerable to capture by lobbyists, unions and cronies”.

Muito da visão positiva de autoridades monetárias e fiscais “mais relaxadas” no mundo tem se baseado na chamada Nova Teoria Monetária (NTM)[31], que está muito longe de um mínimo consenso razoável na academia internacional[32]. No Brasil, Lara Resende (2020)[33] tem defendido a NTM.

Nelson Barbosa[34] vai mais longe defendendo que os limites para esta ou qualquer estratégia fiscal expansionista seriam bem amplos, pois “o restante da dívida pública pode ser pago ou rolado de modo infinito[35], em uma abordagem Buzz Lightyear da dívida pública. Como o Banco Central poderá adquirir títulos do Tesouro, o aumento da demanda de moeda gerado pela recuperação econômica, em situação de desemprego e capacidade ociosa, permitiria que o aumento da quantidade de moeda não gerasse inflação. Assim, relações dívida/PIB bem mais elevadas do que antes teriam passado a ser sustentáveis.

Bacha (2019)[36] crítica a NTM, mas destaca, concordando parcialmente com Lara Resende, que quando a taxa de crescimento econômico supera a taxa de juros, como é o caso de vários países desenvolvidos atualmente, haveria, sim, maior espaço para políticas fiscais expansivas consistentes com a redução da relação dívida/PIB. O autor destaca, no entanto, que este não é o caso do Brasil.

De fato, a variação do PIB nominal nos dois últimos anos foi de 5,75% em 2019 e 4,5% em 2018, enquanto que o custo médio acumulado em 12 meses do estoque da Dívida Pública Mobiliária Federal Interna foi de 9,37% ao ano em dezembro de 2018 e 8,66% em dezembro de 2019[37]. Ou seja, nos últimos dois anos, a condição para que políticas fiscais expansivas possam ser consistentes com a redução da relação dívida/PIB não se verifica. Em 2020, mesmo com a expressiva queda na taxa de juros básica da economia haverá também queda estimada no PIB em mais de 5%, o que inviabiliza a condição.

Para 2021, assumindo a realização da previsão de crescimento econômico do Focus de 23/10/2020 de 3,42%% (e 2,5% em diante) e de um IPCA de 3,1%, podemos ter um crescimento do PIB nominal de 6,6%. Considerando a significativa queda na Selic, o Relatório das Projeções da Dívida Pública Brasileira do Tesouro Nacional projeta um custo médio da dívida pública federal de 5,4% em 2020, aumentando para 5,9% em 2021, o que poderia ser interpretado como uma janela de oportunidade para aumento nas despesas sem ampliar a dívida.

A redução dos juros projetados, no entanto, não se mantém para um prazo maior, o que se infere pelo grande aumento do diferencial entre os juros longos (que capturam melhor a expectativa do mercado quanto à sustentabilidade da trajetória da dívida pública) e os mais curtos[38]. De fato, o Tesouro Nacional projeta a continuidade do incremento do custo da dívida pública federal para 6,7% em 2022, 6,9% em 2023 e 7,1% de 2024 em diante com base em uma expectativa de aumento progressivo da Selic.

Se o déficit primário e a Selic aumentarem e o PIB cair em relação ao cenário básico, se deteriorará ainda mais a percepção acerca da sustentabilidade da dívida pois o custo médio da dívida ficaria ainda maior e as condições para retomar o crescimento da economia piores. O Relatório das Projeções da Dívida Pública Brasileira do Tesouro Nacional estima que desvios de um ponto percentual nessas três variáveis em relação ao cenário base levariam a relação dívida/PIB para uma trajetória explosiva, atingindo 125,2% em 2029 e crescendo.

Adicionalmente, os riscos da dívida brasileira têm crescido com a redução significativa dos prazos da dívida e aumento do percentual de dívida flutuante. De fato, o percentual de títulos vincendos em 12 meses aumentou de 29,9% ao final de 2019 para 38,3% em agosto de 2020, enquanto o percentual de dívida flutuante, que absorve imediatamente os eventuais choques da Selic, aumentou de 49,8% para 54,5% no mesmo período.

Considerando o repique do IPCA em setembro de 0,64%, bem acima das expectativas, e do rápido ajuste para cima da expectativa de inflação para 2020 que passou de 2,05% para 2,99% em um mês e de 3,01% para 3,1% em 2021, é possível que o Banco Central tenha que voltar a aumentar a Selic mais rápido que se imaginava, concretizando cenários piores para a evolução da dívida pública.

Este processo geraria uma espiral negativa da relação dívida/PIB de consequências muito ruins para a economia. Isso implica que continuar elevando despesas no pós-pandemia fará com que o país viva ainda mais perigosamente. Ainda que o mundo reveja as políticas fiscal e monetária mais parcimoniosas como argumentado pela The Economist, a situação fiscal brasileira, que já era crítica antes da crise, ficou ainda mais delicada com o fenomenal incremento de gastos de 2020. A indisciplina fiscal da “nova matriz macroeconômica” pré-2016 e a reação fiscal muito contundente do Brasil à crise do Covid-19 cobram o seu preço

Barbosa (2020)[39] criticou a resposta inicial do governo brasileiro à crise do Covid-19, tendo como principal prescrição a revisão do teto de gastos. Marcio Holland, o criador do termo “nova matriz econômica” também defendeu como parte da estratégia em relação à crise do Coronavirus, a eliminação do teto[40].

A revisão do teto de gastos foi considerada desnecessária por Marcos Mendes[41], pois “a restrição ao aumento dos gastos tem algumas exceções. Uma delas é o envio de dinheiro para despesas imprevisíveis e urgentes, como em caso de guerra, comoção interna ou calamidade pública. O governo, portanto, pode usar esse dispositivo para ampliar os recursos em ações de contenção das transmissões do vírus e tratamento de pacientes infectados, sem pressionar ainda mais o teto”. De fato, ao final de março, o Supremo Tribunal Federal liberou regras fiscais mais flexíveis para a crise[42] e o governo utilizou-as. Ou seja, o teto de gastos não foi obstáculo à muito significativa reação da política fiscal brasileira à crise do Covid-19.

A grande missão do teto de gastos é obrigar o governo a fazer escolhas sobre políticas públicas, um mandamento fundamental da vida dos indivíduos, das famílias e dos países frente às inevitáveis restrições de seus orçamentos. Como argumenta Megale (2020)[43], dada a recusa do país em fazer escolhas, e na “ausência do teto, como acontecia até 2016, a tendência era aumentar gastos em todas as áreas, cabendo ao Ministério da Fazenda buscar uma forma de financiá-los. Essa foi a dinâmica das contas públicas brasileiras por muitas décadas…., quando a despesa cresceu mais do que o PIB….. Determinava-se o orçamento – em geral, deficitário – e estabelecia-se a quantidade de moeda necessária para equilibrá-lo. Mesmo com o fim da hiperinflação em 1994, o crescimento dos gastos continuou.”

Acreditamos ser um equívoco pensar neste momento em rever a regra de teto. Qualquer sinalização no sentido de removê-la ou mesmo ampliar a lista de despesas que constituem exceções ao teto seria um grande risco.

Em especial, a redução havida na taxa de juros nos últimos anos até o menor valor histórico atual da Selic de 2% se deve à previsibilidade e estabilidade futura da dívida, garantida pelo teto. Ainda que já se prevejam incrementos dos juros em um prazo mais longo, o abandono do teto apenas fará acelerar este processo, aprofundando o crowding-out de menos investimentos privados por mais despesas públicas, resultando em menos crescimento econômico.

           

  1. Conclusão

Os choques gêmeos de oferta e demanda de curto prazo gerados pelo Covid-19, ao se estenderem em razão da continuidade das medidas de isolamento social, podiam gerar uma recessão demasiadamente longa e profunda. As empresas menores e menos líquidas foram proporcionalmente mais afetadas pela crise. Assim, o momento excepcional de choques gêmeos repentinos e a necessidade de proteger as pessoas físicas e jurídicas mais vulneráveis gerou na crise do Covid-19 uma convergência das políticas social e macroeconômica, que se basearam em expansão fiscal. O impacto fiscal negativo no curto prazo era, portanto, inevitável.

Isso, no entanto, não implica que a disciplina fiscal deva ser abandonada no longo prazo com medidas como a eliminação do teto de gasto, pois este é fundamental para sinalizar a estabilização da relação dívida/PIB[44]. É errado, portanto, apontar que a crise do Covid-19 deveria reafirmar a continuidade de políticas fiscais ativas no pós-pandemia. Na verdade, sinaliza o oposto: é fundamental que o setor público esteja com suas contas em dia não apenas para evitar desequilíbrios macroeconômicos, mas também para ter mais graus de liberdade para atuar quando esse tipo de crise aparecer.

Afinal, quando aparece uma despesa imprevista e inevitável para qualquer indivíduo, a vida será bem mais fácil se tiver dinheiro em caixa do que se tiver dívida no banco. O desequilíbrio nas finanças públicas, derivadas de anos de irresponsabilidade fiscal, tornam as dificuldades para enfrentar a crise muito maiores. Contrariamente ao afirmado por Nelson Barbosa, de que a equipe econômica teria sofrido nessa crise de “keynesianismo pós-traumático”, seria a própria economia que ainda se ressentiria do trauma da irresponsabilidade fiscal embutida na chamada “Nova Matriz Econômica”.

A resposta da política fiscal brasileira à crise do Covid-19, apesar de estar na direção correta, acabou sendo bem mais forte que a grande parte dos outros países emergentes, o que foi excessivo dada a já delicada situação fiscal do país antes da crise do Covid-19. Os países com maior similaridade ao Brasil que tiveram respostas mais fortes à crise tinham relações dívida/PIB bem mais confortáveis e, portanto, mais graus de liberdade para reagirem assim.

Se, de um lado, é possível que a rápida recuperação econômica do Brasil esteja relacionada a este sobre estímulo, também é razoável postular que isso comprometeu a nossa margem de manobra fiscal daqui para a frente, e que cobrará um preço muito alto, com menor crescimento, de 2021 em diante.

O Brasil seria, portanto, igual a um maratonista que chegou ao 10º Km na frente de todos os outros corredores, só que com quase nenhum fôlego para os próximos 32 Kms. Nosso maior problema agora é chegar ao final da prova sem morrer pelo caminho. O caminho da continuidade da expansão fiscal é a senha para não passar do Km 20.

O programa que, apesar de imprescindível, acabou gerando um custo fiscal elevado demais foi o Coronavoucher. A discussão sobre o valor do benefício foi quase um “quem dá mais”. Infelizmente, a politização excessiva e com pouca reflexão sobre o valor do benefício e o conjunto de pessoas de elegíveis estão impondo um custo econômico muito significativo ao País.

Discutir incrementos de determinadas despesas sem contrapartida na redução de outras despesas de forma a respeitar o teto de gastos no pós-pandemia constitui um delírio pior que o do personagem Buzz Lightyear que desejava ir “ao infinito e além”.

Entrar numa crise de confiança fiscal ou introduzir novos tributos como ocorreu ao longo da década de 90 não deveriam estar no cardápio. Respeitar o teto neste momento faria esta regra demonstrar a sua principal virtude: obrigar o Estado a fazer escolhas das prioridades e não deixar que a inflação ou o acúmulo de dívidas interna e externa façam o trabalho. Seria a prova de fogo da regra do teto e, por conseguinte, da consolidação do amadurecimento da prática democrática no orçamento público no Brasil.

César Matos é consultor legislativo da Câmara dos Deputados, doutor em Economia, ex-secretário de Advocacia da Concorrência e Competitividade do Ministério da Economia e ex-conselheiro do CADE.

Referências

[1] World Economic Outlook. April, 2020. https://blogs.imf.org/2020/04/14/the-great-lockdown-worst-economic-downturn-since-the-great-depression/

[2] O termo da “nova matriz econômica” surgiu de uma entrevista do então secretário Marcio Holland ao jornal Valor em https://valor.globo.com/brasil/coluna/pais-mudou-sua-matriz-economica-diz-holland.ghtml.

[3] A Economia nos Tempos de Covid-19. Banco Mundial – 12 de abril de 2020. https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/33555/211570PT.pdf?sequence=11

[4] Como destacam Baldwin e Di Mauro,B. (Economics in the Time of COVID-19. Eds. Baldwin.R. e Di Mauro CEPR Press., 2020 . https://cepr.org/sites/default/files/news/COVID-19.pdf): “Esta percepção sobre a recuperação em forma de “V” era mais razoável quando o COVID-19 era essencialmente um problema chinês a este país estava lidando com isto a forçawas essentially a Chinese problem and China was dealing with it forcefully. De lá pra cá tudo mudou. Enquanto uma crise curta e aguda ainda é possível, este resultado se configura cada vez menos o resultado mais provável. Ver uma explicação didática sobre as letras possíveis da recuperação realizada por Otaviano Canuto em https://www.cmacrodev.com/qual-sera-o-formato-da-recuperacao-economica-pos-coronavirus/

[5] Conforme Delaporte, I e Pena, W. (Working from home under Covid-19: Who is affected? Evidence from Latin American and Caribbean countries in Covid Economics Vetted and Real-Time Papers Issue 14, 6 May 2020) apenas entre 13% a 27% da força de trabalho no Brasil é capaz de trabalhar remotamente. Ou seja, pelo menos ¾ da força de trabalho no Brasil não produziu, a não ser pelos serviços essenciais cuja quarentena foi aliviada (ver Decreto nº 10.329, de 28 de abril de 2020 http://www.in.gov.br/web/dou/-/decreto-n-10.329-de-28-de-abril-de-2020-254430286?inheritRedirect=true&redirect=%2Fweb%2Fguest%2Fsearch%3FqSearch%3Ddecreto%252010.329).

[6] https://www.bcb.gov.br/content/focus/focus/R20200522.pdf

[7] https://www.bcb.gov.br/content/focus/focus/R20201023.pdf

[8] https://bucket-gw-cni-static-cms-si.s3.amazonaws.com/media/filer_public/03/bb/03bb8f68-af80-4bc7-97ae-9d44841d2bf3/sondagemindustrial_setembro2020.pdf

[9] https://www.gov.br/fazenda/pt-br/centrais-de-conteudos/publicacoes/conjuntura-economica/estudos-economicos/2020/ni-setores-da-atividade-economica-apresentam-recuperacao-em-v.pdf

[10] https://www.imf.org/en/Publications/WEO/Issues/2020/06/24/WEOUpdateJune2020

[11] https://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-10/com-recuperacao-incerta-brasil-se-apoia-na-muleta-do-auxilio-emergencial-para-economia-caminhar.html

[12] Conforme o FMI, a queda do PIB mundial havida na crise financeira global chegou a apenas 0,1%.

[13] https://www.imf.org/en/Publications/WEO/Issues/2020/09/30/world-economic-outlook-october-2020#Full%20Report%20and%20Executive%20Summary

[14] https://www.gov.br/economia/pt-br/centrais-de-conteudo/apresentacoes/2020/outubro/apresentacao_wr_tcu.pdf

[15] Duque,D. :“Uma avaliação do Auxílio Emergencial: Parte 1” https://blogdoibre.fgv.br/posts/uma-avaliacao-do-auxilio-emergencial-parte-1

[16] O Instituto Fiscal Independente – IFI – (https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/576808/RAF44_SET2020.pdf), em relatório de 14 de setembro de 2020, é cético em relação a esta alteração do mix de despesas dada a crescente participação das despesas obrigatórias: “ Em termos gerais, a projeção da IFI para a despesa obrigatória é superior à do governo, o que reduz, no nosso cenário, o espaço para realização das despesas com custeio administrativo e investimentos, entre outras necessárias ao funcionamento da máquina”

[17] Atualmente, o público alvo são famílias com renda mensal de até R$ 89,00 por pessoa.

[18] Ver as regras do bolsa família, inclusive valores, em https://www.caixa.gov.br/programas-sociais/bolsa-familia/Paginas/default.aspx#:~:text=Destinado%20%C3%A0s%20fam%C3%ADlias%20em%20situa%C3%A7%C3%A3o,a%20R%24%20205%2C00.

[19] Como mostra reportagem da CNN de 18/03/2020, “Guedes disse que a distribuição começará em até duas semanas, sendo que o valor do cupom “não pode ser maior nem menor do que o do Bolsa Família”. https://www.cnnbrasil.com.br/business/2020/03/18/coronavoucher-tera-valor-do-bolsa-familia-e-duracao-de-4-meses-diz-guedes

[20] A história do incremento prodigioso dos valores do Coronavoucher em https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/03/24/coronavirus-veja-regras-do-auxilio-de-r-200-do-governo-para-informais.htm

[21] https://economia.ig.com.br/2020-08-26/auxilio-emergencial-r-42-bilhoes-foram-gastos-em-fraudes-diz-tcu.html

[22] Ver Medida Provisória 2000, de 2020: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8885822&ts=1599584920386&disposition=inline

[23] Carta de Conjuntura do IPEA nº 48 do terceiro trimestre de 2020 sobre o mercado de trabalho, com base nos microdados da PNAD Covid-19 de 28/08/2020.

[24] Baldwin e Di Mauro (2020) destacam esse efeito desproporcionalmente maior nas pequenas e médias empresas e a necessidade de programas específicos para este alvo.

[25] https://www.bcb.gov.br/app/pese/. Dados verificados em 29/10/2020.

[26] Ver Fernandes (2020) (,C.: Passos para a elaboração de um Programa de Crédito Governamental em situações de emergência: o caso do Covid-19http://www.brasil-economia-governo.org.br/2020/09/04/passos-para-a-elaboracao-de-um-programa-de-credito-governamental-em-situacoes-de-emergencia-o-caso-do-covid-19/)

[27] O BNDES, por sua vez, também está implementando outros programas de crédito envolvendo o setor de saúde, sucroalcooleiro, audiovisual, cadeias produtivas de grandes empresas, dentre outros, sem recursos fiscais. Ver em https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/bndes-contra-coronavirus.

[28] Ver https://valorinveste.globo.com/mercados/brasil-e-politica/noticia/2020/03/23/banco-central-reduz-aliquota-de-compulsorio-sobre-depositos-a-prazo-de-25percent-para-17percent.ghtml. Todas as medidas de política monetária e seus respectivos efeitos podem ser encontradas no último slide do balanço das ações do covid-19 da Secretaria Especial de Fazenda em https://www.gov.br/economia/pt-br/centrais-de-conteudo/apresentacoes/2020/2020-05-01-transparencia.pdf com impacto total de aumento de liquidez de quase R$ 3,2 trilhões.

[29] https://www.gov.br/economia/pt-br/centrais-de-conteudo/apresentacoes/2020/outubro/2020-10-30-rpdp.pdf/view

[30] Reinhart,C and Rogoff, K.: “Growth in a time of debt”. American Economic Review, Vol. 100, nº 2 May, 2010.

[31] Ver Kelton,S.: “The Deficit Myth: Modern Monetary Theory and the Birth of the People’s Economy”. New York. Public Affairs, 2020.

[32] Ver críticas em Rogoff,K.: Modern Monetary Nonsense. Mar 4, 2019. Project Syndicate (https://www.project-syndicate.org/commentary/federal-reserve-modern-monetary-theory-dangers-by-kenneth-rogoff-2019-03?barrier=accesspaylog) e Yang,E.: Modern Monetary Theory is Playing With Fire  – August 8, 2020 (https://www.aier.org/article/modern-monetary-theory-is-playing-with-fire/?gclid=Cj0KCQjwy8f6BRC7ARIsAPIXOjhtsSXOy68LfzBRB8-miECRKdokrFZWiBANAq6eX2bTwTLtz5ar3OcaAt5YEALw_wcB). Olivier Blanchard também criticou a Nova Teoria Monetária, mas sem descartar a possibilidade de flexibilização da política fiscal em certas circunstâncias (https://www.youtube.com/watch?v=o2uUut7QCT8).

[33] Resende, L.: Consenso e contrassenso: Por uma economia não dogmática. Portfolio Penguin.2020. Em entrevista sobre o livro para o Valor(https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2020/02/07/livro-de-andre-lara-resende-reune-ensaios-que-criticam-visao-dominante-da-teoria-economica.ghtml), o autor reconhece que a NTM é basicamente a mesma ideia da Teoria Geral de Keynes, defendendo que “essa exigência do equilíbrio fiscal é contraproducente em momentos de recessão e em momentos em que há necessidade de investimentos em infraestrutura”.

[34] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/nelson-barbosa/2020/04/de-onde-veio-o-dinheiro.shtml

[35] Daí a referência da epígrafe deste artigo à conhecida frase da personagem Buzz Lightyear em Toy Story: “Ao Infinito e além”.

[36] https://valor.globo.com/brasil/noticia/2019/03/25/comentarios-ao-texto-de-andre-lara-resende-por-edmar-bacha.ghtml

[37] Ver Relatório Anual da Dívida de 2019 https://www.tesourotransparente.gov.br/publicacoes/relatorio-anual-da-divida-rad/31542

[38] Os dados do Tesouro Direto são bem eloquentes em relação ao elevado diferencial juros longos/curtos.

[39] Em 18 de março de 2020, Barbosa escreveu artigo intitulado “Coronavírus contagia bom senso dos economistas ortodoxos” em https://www1.folha.uol.com.br/colunas/nelson-barbosa/2020/03/coronavirus-contagia-bom-senso-dos-economistas-ortodoxos.shtml?origin=folha.

[40]http://blogs.correiobraziliense.com.br/vicente/wp-content/uploads/sites/16/2020/03/artigo_medidas-coronavirusMarcioHollandv2_25_03_2020.pdf

[41] https://gauchazh.clicrbs.com.br/economia/noticia/2020/03/teto-de-gastos-nao-limita-combate-ao-coronavirus-dizem-analistas-ck7umk8k5007401qlvwi0efxp.html

[42] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/03/ministro-do-stf-libera-regra-mais-flexivel-para-gastos-na-pandemia.shtml

[43] http://www.brasil-economia-governo.org.br/2020/08/21/manter-o-teto-seguir-as-reformas-a-estabilidade-do-brasil-em-jogo/

[44] https://iepecdg.com.br/artigos/estabilizar-divida-a-longo-prazo-importa-mais-que-conter-seu-aumento-na-pandemia/

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A Microeconomia do Controle de Preços e a Cesta Básica no Brasil do Covid-19 https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3334&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-microeconomia-do-controle-de-precos-e-a-cesta-basica-no-brasil-do-covid-19 Mon, 28 Sep 2020 18:14:22 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3334 “We must look at the price system as such a mechanism for communicating information if we want to understand its real function—a function which, of course, it fulfils less perfectly as prices grow more rigid” 

Friedrich Hayek 

“The Use of Knowledge in Society” 1945

 

 

I) Introdução 

 

A quarentena gerada pela crise do Covid-19 gerou choques gêmeos de oferta e demanda. De um lado, como muitas pessoas pararam de trabalhar, deixou-se de produzir, resultando em um choque de oferta. De outro lado, as pessoas em casa reduziram seu consumo, especialmente em serviços, resultando em um choque de demanda. 

 

A oferta e a demanda de um bem ou serviço não obrigatoriamente se reduziram na mesma proporção em razão destes choques, o que pode ensejar excessos de oferta com reduções significativas de preços ou de demanda com aumentos significativos de preços. 

 

Em alguns casos, como ocorreu com os itens de alimentação arroz, feijão, leite e óleo de soja, da cesta básica, acabou que o choque de demanda foi positivo, o que implicou incremento de preços em 2020. 

 

O inciso X, do art. 39, do Código de Defesa do Consumidor, a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, por sua vez, veda ao fornecedor de bens e serviços “elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços”. Com base nisso, os Procons passaram a questionar aqueles aumentos em todo o país, buscando avaliar se houve aumento de custos que “justificasse” o incremento. A Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça (Senacon/MJ) também notificou supermercados e cooperativas para explicarem estes aumentos de preços (1). O Ministério da Economia, por sua vez, pediu esclarecimentos à Senacon sobre esta notificação. A Senacon acabou por instaurar uma Comissão para tratar dos aumentos de produtos da cesta básica no âmbito do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor (CNDC) do Ministério da Justiça.

 

Nesse texto, procuramos analisar, com base na microeconomia convencional, o controle de preços abusivos e de reajuste de preços abusivos. Na próxima seção, sumariamos um pouco da experiência brasileira com controle de preços. Na seção III, apresentamos a dificuldade de definir preços abusivos. Na seção IV apresentamos o problema da assimetria de informação do regulador de preços e suas implicações para o bem-estar em mercados competitivos quando se busca controlar preços abusivos. Aqui trazemos a perspectiva de Hayek (1945) (2) do mercado como um mecanismo de processamento de informações eficiente. A seção V trata do controle dos reajustes abusivos de preços. A relação entre concorrência e controle de preços é objeto da seção VI. A seção VII reflete sobre situações em que controles de preços podem ser eficientes em setores não competitivos. A seção VIII avalia a natureza dos incrementos de preços da cesta básica durante a crise do covid-19 no Brasil. A seção IX conclui.  

 

II) Controle de Preços no Brasil

 

Até 1990 havia no Brasil pelo menos dois órgãos encarregados do controle de preços na economia, o CIP (Conselho Interministerial de Preço) e a SUNAB (Superintendência de Abastecimento e Preços). Ambos foram extintos como parte de um conjunto de reformas que alterou o paradigma brasileiro de desenvolvimento para uma economia mais orientada para o mercado. 

 

A história destes órgãos revela um sem número de planilhas de custo que o burocrata analisava para avaliar se podia ou não podia incrementar os preços. Eram várias reuniões com as partes discutindo o que era razoável ou não considerar das planilhas no cálculo do “preço justo”. 

 

Uma coisa é certa: a precificação na economia brasileira era burocratizada. O espaço para corrupção naturalmente era grande. É duvidoso, de qualquer forma, se a capacidade de fiscalização do Estado era suficientemente grande para que tal controle se constituísse em uma restrição real para os empresários. 

 

É possível, na verdade, que o resultado líquido da política de controle de preços, ao contrário do originalmente pretendido, tenha sido capaz de aumentar e não reduzir os preços. Os controles do CIP podem ter, de fato, funcionado como instrumentos para a coordenação de cartéis, estabelecendo pontos focais para limites inferiores (ou pisos) dos preços (3). Isto pode ter se derivado tanto da elevada assimetria de informação dos reguladores quanto de um processo clássico de captura. Uma história anedótica deste processo é contada pelo ex-Ministro da Fazenda Mário Henrique Simonsen: quando tentou extinguir o controle de preços no setor automotivo, a principal resistência veio dos próprios empresários do setor que pediam para continuarem sendo “controlados”!!! (4)

No Plano Cruzado, os controles de preços geraram filas nos supermercados, açougues e outros comércios. Não raramente, o consumidor voltava para casa, após longos períodos de espera, sem ter conseguido adquirir o bem. O ex-ministro Simonsen lançava mão inclusive de um exemplo histórico revelador. Na Babilônia, Nabucodonosor talvez tenha sido o primeiro governante a ter tentado implementar uma política de controle de preços, punindo com a morte na fogueira os infratores. Tal política acabou sendo abandonada simplesmente por ter gerado escassez do óleo utilizado nos sacrifícios!! 

 

III) Definição de “Preços Abusivos” 

 

O primeiro problema relevante é definir “preços abusivos”. Qual deveria ser o referencial teórico para definir se um preço real seria abusivo ou não? 

 

Na teoria microeconômica convencional, o referencial abstrato da estrutura de mercado de concorrência perfeita gera, pelo livre jogo da oferta e demanda, preços iguais aos custos marginais em um prazo mais longo. Tal resultado seria ótimo socialmente por maximizar a soma dos excedentes econômicos na economia. Em um prazo mais curto, os preços poderiam ser diferentes do custo marginal, mas estariam sempre convergindo para este: reduzindo (aumentando) em direção ao custo marginal se o preço de mercado fosse superior (inferior) ao custo marginal com base no movimento de livre entrada e saída de empresas. O fato é que pelo referencial da microeconomia convencional, poder-se-ia pensar no “preço justo” como o custo marginal, sendo tão mais abusivo quanto mais distante (para cima) estivesse deste preço.   

 

No entanto, como dito acima, a estrutura de concorrência perfeita é, tão-somente, uma abstração teórica utilizada como referência para a análise dos mercados reais, sendo o conjunto completo de suas características encontráveis em pouquíssimos mercados. Dessa forma, sendo a concorrência perfeita, na prática, uma exceção, o equilíbrio de preço igual a custo marginal seria, também, uma exceção, o que implica que boa parte dos preços observados na economia seriam abusivos por tal critério, tornando a referência pouco funcional. 

 

Também se sabe que o maior preço que deverá se verificar em um mercado sem interferência do governo é o de monopólio. Este preço resulta da regra de maximização de lucros do monopolista que é a receita marginal igualando o custo marginal. Assumindo que o objetivo principal do monopolista é o lucro, ele nunca deverá fixar preços acima deste valor, mesmo sem interferência do governo. Isto porque um preço maior fará cair a quantidade mais que proporcionalmente ao aumento dos preços. Ou seja, se o monopolista abrir mão deste preço maior em favor de uma maior quantidade, a receita a mais é maior que o custo a mais, aumentando liquidamente o lucro. Simplesmente não é verdade que quanto maior o preço, melhor para o empresário.     

 

Dessa forma, se o limite superior dos preços praticados no mercado é o preço de monopólio, se existir de fato esta categoria de “preços abusivos”, certamente o preço de monopólio terá que ser pelo menos um deles. 

 

Como os monopolistas, caso sejam racionais, praticam, quando não se sujeitam à regulação de tarifas, preços de monopólio, sob o critério de preço abusivo igual a preços de monopólio, eles sempre estarão abusando, por definição. Se este é o caso, entende-se que qualquer preço de monopolista, sem interferência do poder público, é abusivo e, portanto, todo monopolista deveria já ser condenado a priori por qualquer preço que esteja praticando!!!!

Em síntese, há problemas sérios na definição de preços abusivos.

 

IV) Preços Abusivos e a Vantagem Informacional do Mercado em Setores Competitivos

 

Toda a discussão da sessão passada se baseia na premissa de que o regulador de preços conhece as curvas de custo marginal e demanda. Esta premissa, no entanto, não se verifica. Não há um item contábil chamado “custo marginal” que se possa acessar facilmente, quanto mais uma curva de custo marginal que se derive das informações disponíveis da empresa. A curva de demanda também não é algo que o regulador tenha acesso. Pior, mesmo para a empresa não é claro nem o que significa o “custo marginal”, muito menos como calculá-lo. O empresário também não dispõe de um modelo econométrico que calcule, a cada momento, a sua curva de demanda, o que não o impede de ter uma boa ideia por tentativa e erro no mercado na fixação de seus preços. 

 

Ou seja, a falta de informação sobre as variáveis fundamentais para se implementar o arcabouço microeconômico convencional para controlar preços é muito significativa. Nem mesmo o regulado dispõe desta informação.

 

Como nos modelos de economia da regulação (5), a assimetria de informação implica o regulador abrir mão de rents para as companhias controladas. No limite, se o teto de preços que define abusividade for igual ou estiver acima do monopólio, a perda de bem-estar é a mesma da situação sem controle de preços. Nesse caso, a assimetria de informação é tão substancial que os rents deixados para as firmas reguladas simplesmente se igualam aos de monopólio, tornando a intervenção redundante. 

 

Pior, é possível que, ao sinalizar um determinado nível de preços acima do que seria o preço competitivo, o controlador induza um ponto focal de preço mais alto do que seria caso não houvesse o controle. É o regulador se tornando o “maestro” dos cartéis como o ex-ministro Simonsen constatou no passado.

De outro lado, também por desconhecimento das condições de oferta e demanda, os preços controlados podem ser tão baixos que a situação financeira da empresa fica comprometida, podendo, no limite, induzir-se uma situação falimentar. Também, e principalmente, deve gerar um excesso de demanda em um prazo mais longo, em função da diminuição da quantidade ofertada com as empresas saindo mercado em função de seus prejuízos, tornando mais aguda a pressão por preços maiores.

 

O fato é que quanto mais o regulador procura reduzir este risco de preços regulados muito baixos, mais se incorre no risco de preços regulados muito altos e redundância da regulação acima assinalado e vice-versa. Podemos chamarmos o erro de regular “preços muito baixos” como erro tipo I e o erro de regular “preços muito altos”, erro tipo II. Como em qualquer teste de hipóteses estatístico, toda a vez que desejamos reduzir um desses tipos de erro, aumentamos o outro. 

 

Essa vulnerabilidade natural a ambos os erros de qualquer sistema de controle de preços é bem menor quando se deixa o mecanismo de mercado funcionar livremente. Não à toa, Hayek (1945) enfatizava que uma das principais virtudes do mercado é implementar naturalmente um gigantesco mecanismo de processamento de informações que seria superior à coordenação centralizada. 

 

Os sinais emitidos pelo sistema de preços balizam as decisões de investimento e, por conseguinte, as variações de oferta no médio e longo prazos. Nesse sentido, preços maiores (menores) passam a mensagem para os ofertantes que devem investir mais (menos). O comando desta mensagem contém o próprio incentivo para o aumento de oferta: preços maiores sinalizam rentabilidades maiores e, por conseguinte, maior valor presente dos projetos de investimento. Uma sinalização permanente de preços menores distorce esta cadeia de transmissão da informação, comprometendo o aumento da oferta no médio e longo prazos e o enxugamento espontâneo do excesso de demanda. O corolário é que controles de preços nunca gerarão resultados melhores que o mercado.

 

A análise gráfica de oferta-demanda padrão facilita o entendimento do ajuste de preços em mercados suficientemente competitivos. Quando o mercado funciona livremente, o preço gravitará em torno do equilíbrio Pe, com a quantidade transacionada igualando a chamada “quantidade de equilíbrio” que implica que não há pressões nem para cima e nem para baixo do preço. Mais que isso, a este preço, atinge-se o ótimo social em “qe”, que é aquele que maximiza a soma dos excedentes do consumidor e do produtor. 

 

Agora, vamos introduzir um controle de preços ou de teto de preços em um nível que não seja igual a Pe. Se o preço controlado for Ps<Pe, então a quantidade transacionada será qs<qe, gerando um excesso de demanda dado pela diferença entre a quantidade demanda a este preço “qsd” e a quantidade ofertada a este preço “qs”, “qsd-qs”. Como o regulador não permite que os preços subam, haverá algum mecanismo de ajuste para corrigir este desequilíbrio, tal como filas, alocação do bem ou serviço aos amigos do vendedor, dentre outros, ou mesmo mercado paralelo a um preço superior. 

 

A principal ineficiência é que há agentes demandantes que estariam dispostos a pagar mais para ter o bem ou serviço e agentes ofertantes dispostos a aumentar sua oferta em resposta a um aumento de preços. Os consumidores que conseguem ter acesso ao bem ou serviço são beneficiados em detrimento dos que não conseguem acesso ao bem ou serviço e/ou ao empresário. Isto implica não se tratar de uma questão distributiva apenas entre consumidores e empresários, mas também entre consumidores que têm acesso e os que não têm acesso ao bem ou serviço ao preço Ps. O curioso é que um eventual mercado paralelo é que pode restabelecer a “justiça” entre consumidores.  

 

Vejamos o caso de o preço teto fixado em Pd. O empresário fará preços menores para conquistar clientes. O controle de preços será uma restrição redundante e os próprios empresários deverão puxar o preço para o nível de equilíbrio de mercado Pe, restabelecendo a quantidade ótima “qe”.

 

Não obstante, este processo de ajuste pode acabar não ocorrendo quando o setor não for suficientemente competitivo. Nesse caso, é possível que o regulador induza uma coordenação tácita entre os oligopolistas. O preço Pd pode acabar servindo como um farol (6). É plausível que, na ausência deste ponto focal, os agentes tivessem bem mais dificuldades em, de forma tácita, alcançar preços tão altos, a não ser que apelem para um cartel explícito. O fato é que o controlador de preços estaria induzindo uma colusão tácita na linha do que o ex-ministro Simonsen constatou no passado.

 

V) Reajuste Abusivo de Preços

 

É usual que os reguladores de preços se importem mais com a variação dos preços, até mais do que com seu nível. Seria, portanto, uma política de controle de “reajustes abusivos” de preços. 

 

Esta possibilidade se encontra inscrita no inciso X, do art. 39, do Código de Defesa do Consumidor, o qual proíbe aumentos de preços “sem justificação”. A primeira dúvida é quais justificações são plausíveis? Só aumentos de custos? E se houver um choque positivo de demanda, seria justificativa possível? A própria redação do dispositivo já constitui grande gerador de incertezas.

 

Gráfico I

Controle de Preços em um Regime de Oferta e Demanda Padrão

 

 

O impacto distorcido do controle de preços também pode ser analisado pela dificuldade da autoridade em perceber mudanças nessas curvas e realizar mudanças de acordo enquanto o mecanismo de mercado procede aos ajustes de forma muito mais célere (7). Assuma que o regulador estava definindo um teto de preços em “Pe”. Vamos supor que ocorra um choque de demanda positivo, ou seja, um deslocamento repentino da curva de demanda para cima para D2. O novo preço de equilíbrio de mercado é Pd2, o qual se iguala ao novo custo marginal quando q=qd2. Ou seja, para incrementar a quantidade em resposta ao aumento na demanda, é preciso um preço maior. Se o regulador demora a ajustar as suas expectativas ao novo cenário e ainda pensa que o “preço justo” é igual a “Pe”, então a quantidade permanecerá no valor de “qe” que, após o deslocamento para cima da demanda, deixou de ser ótimo. A principal distorção é que a quantidade atual não responde a alterações na demanda em função do controle de preços. O excesso de demanda gerado será dado pela quantidade demandada na nova curva de demanda, D2, ao preço Pe, “qed”, menos a quantidade consistente a “Pe” na curva de oferta, “qe”, “qed-qe” que terá que ser racionado de alguma forma menos eficiente que o mecanismo de mercado. O controle de preços não permite que os consumidores incorporem (internalizem) em suas decisões de compra o fato de o produto que teve a demanda aumentada está relativamente mais escasso do que antes. 

 

Uma análise muito similar pode ser realizada assumindo um choque de oferta negativo em que a curva de oferta se desloca para O2. Uma quebra de safra em um produto agrícola, por exemplo, pode ser o responsável por este movimento. Vamos supor novamente que o novo preço de equilíbrio também é “Pd2”, mas agora com uma nova quantidade de equilíbrio qsd2, se fosse permitido o livre funcionamento do mercado com aumento de preços. No entanto, o nosso regulador mais uma vez não percebe que o novo preço “justo” agora é maior e mantém a regulação do preço teto em Pe. Mais uma vez se gera um excesso de demanda a este preço regulado “Pe” no valor da diferença da quantidade demandada “qe” na curva de demanda e da quantidade ofertada ao nível de “Pe” na nova curva de oferta O2, “qe-qod”. Mais uma vez, o controle de preços não permite que os consumidores incorporem (ou internalizem) em suas decisões de compra o fato de que o produto que teve a oferta reduzida está relativamente (e absolutamente) mais escasso do que antes. 

 

Muitas vezes o regulador defende a necessidade de controle de preços para evitar que empresários oportunistas gananciosos se aproveitem de catástrofes naturais que gerem choques de oferta para se aproveitar da situação fragilizada dos consumidores e realizem aumentos abusivos de preços. Essa análise demonstra que deixar os empresários realizarem estes reajustes abusivos de preços em resposta ao choque de oferta é a melhor forma de corrigir a escassez do produto o mais rápido possível. 

 

De qualquer forma, em geral, consideram-se aumentos de preços acima da inflação e/ou acima dos aumentos de custos do setor como potencialmente “abusivos”. Este foi o caso do Brasil, no período de alta inflação pré-1994. Alguns economistas até mesmo argumentavam que o principal vilão da inflação seriam os setores oligopolistas e monopolistas (8) e não as políticas fiscal e monetária. 

 

A questão é que se a definição de preços abusivos já é particularmente complicada, o problema com a definição de reajustes abusivos de preços é ainda pior. A teoria microeconômica mostra que mercados monopolistas, concentrados ou cartelizados, geram níveis de preços superiores aos da concorrência perfeita. Mas não se demonstra que estruturas de mercados concentradas geram reajustes sistematicamente maiores que os setores competitivos.

 

A teoria até pode justificar reajustes de preços excessivos precisamente no momento em que os mercados se concentram ou cartelizam. Afinal de contas, se não for de outro jeito, a pergunta relevante é porque o cartel ou monopólio já não aumentou os preços antes, quando já eram monopólios ou cartéis? Nessas estruturas, preços são naturalmente elevados, sendo que o ajuste a ser feito apenas objetivaria manter o valor real daquele preço monopolista. Tudo o mais constante, o reajuste tenderia a se igualar à inflação do período. 

 

O aumento de preços seria maior em uma situação de monopólio ou cartel somente no caso de erros de percepção passados da(s) firma(s) sobre as reais condições de custo e demanda. O problema, aqui, entretanto, não seria de poder de mercado, mas de informação incorreta da própria firma. Este problema pode ocorrer, igualmente, em condições de concorrência ou de poder de mercado.  

 

Se também não for um problema de informação errada, a conclusão é que os empresários não estariam maximizando lucros previamente e, de repente, decidiram fazê-lo, conduzindo os preços para níveis mais próximos ao valor de monopólio. Assumir que os agentes, do nada, passaram a ser racionais, quando não eram antes, não é, de fato, uma hipótese muito confortável analiticamente. 

VI) Preços Abusivos e Concorrência

 

Quando preços sobem espera-se um aumento da quantidade ofertada. Este incremento vem de duas fontes. Primeiro, as empresas que já estão no mercado produzem mais, podendo até aumentar sua capacidade produtiva, em resposta ao incremento da rentabilidade gerada pelos preços maiores. Segundo, empresas que não estavam no mercado se sentem atraídas pela rentabilidade maior e entram. Ou seja, esta segunda fonte de aumento da quantidade ofertada está associada ao aumento da concorrência. 

 

Se o regulador, no entanto, não deixa o preço subir, nenhum dos dois efeitos ocorre, inclusive o da maior concorrência. Não à toa, a OCDE enfatiza em seu toolkit sobre advocacia da concorrência (9): “a existência de um limite máximo de preços pode levar à redução substancial dos incentivos à inovação e à oferta de produtos novos e/ou de elevada qualidade”.

 

Muitas vezes, o regulador, para avaliar preços ou reajustes abusivos, considera as margens do empresário. Quanto mais altas as margens, maior a probabilidade de se concluir pela abusividade. O problema é que quando há altas margens de lucro de um empresário específico, estas podem ser resultado de um custo menor, resultado direto da busca por maior eficiência ou de um poder de mercado adquirido por ter gerado mais qualidade no produto ou serviço, diferenciando-o em relação aos concorrentes. Assim, a verificação de uma margem de lucros alta pode estar associada justamente àquilo que se deseja fomentar concorrência que é a maior eficiência que traz preços menores e/ou mais qualidade aos consumidores.  

 

Na verdade, os agentes buscam ter menores custos e, portanto, menores preços e melhor qualidade, “vencendo” a concorrência para terem maior margem de lucro. Se os “louros” da vitória da batalha competitiva não puderem ser apropriados em função do controle de preços, a competição não será tão vigorosa assim, em primeiro lugar. Ou seja, a expectativa de que o “troféu” da concorrência não será “entregue”, pois o regulador quer margens menores, compromete justamente o processo de concorrência que é o que traz preços menores em um prazo mais longo. Assim, o controle de preços pode estar gerando preços menores no curto prazo, mas comprometendo o processo que os faz menores em um prazo mais longo e de forma sustentável que é a concorrência.  

 

O problema principal é que o “chamuscado” sinal de preços baseado em controles artificiais de preços provê sinalizações equivocadas aos potenciais entrantes. Preços baixos em função do controle desestimulam a entrada, gerando um processo de retroalimentação negativa. Há pouca concorrência no setor, o que gera preços altos que são alvo de políticas de controle de preços, justamente o que garante que aquela competição se manterá restrita. 

 

O problema é que é sempre difícil saber, ao certo, quando a emergência da competição se tornou factível no setor. E isto só será revelado se os sinais transmitidos pelos mecanismos de mercado estiverem autorizados a funcionar. Se o setor se tornar mais competitivo enquanto o regulador setorial permanece considerando-o não competitivo, é possível que o controle tarifário torne a falta de vigor concorrencial autossustentável. Este é o pior dos mundos, no qual o regulador de preços não percebe que é ele quem sustenta a falta de concorrência ao tentar resolver os efeitos do problema com o controle tarifário. 

 

Não à toa na regulação baseada no Poder de Mercado Significativo em telecomunicações na Europa e no Brasil, um critério para o regulador regular é se o segmento tende, dentro de um horizonte de tempo previsível, para uma estrutura concorrencial. Caso positivo, a manutenção da regulação é desnecessária e, pior, disfuncional. Manter este controle pode frustrar a expectativa dessa trajetória esperada do segmento rumo à concorrência. O controle de preços só faria sentido se não houvesse perspectiva de o segmento se tornar competitivo em um horizonte de tempo previsível. 

 

VII) Controle de Preços em Setores Monopolistas: Quando faz Sentido Regular Preços?

 

Quando um setor apresenta características de monopólio natural, um controle de preços pode fazer sentido. Em vários setores de infraestrutura como gás, saneamento, energia elétrica, dentre outros, este é o caso. Vejamos o gráfico clássico da teoria do monopólio abaixo. 

 

Suponha que o mercado tenha uma estrutura de monopólio ou um cartel que mimetiza perfeitamente o resultado do monopólio. O preço de monopólio é Pm. A área FHD constitui a perda de peso morto ou perda de eficiência gerada pelo monopólio. Uma política de controle de preços bem-sucedida é aquela que estabelece um preço entre Pc e Pm, de forma a diminuir o peso morto. No limite, quando o preço controlador por igual ao que seria o preço competitivo em Pc, o peso morto será igual a zero (10)

 

Assuma um controle de preços em Pr. A primeira parte da nova curva de receita marginal do monopolista com preço controlado torna-se a linha horizontal a partir de Pr até tocar a curva de demanda em “A”. Isto porque, até este ponto, se o monopolista estivesse sem restrição, ele sempre desejaria cobrar um preço maior que “Pr” (até Pm). A partir deste ponto “A”, a curva de receita marginal com controle de preços apresenta uma descontinuidade e volta para o seu traçado original a partir de Qa e que destacamos com uma linha cheia no gráfico. O equilíbrio será a intersecção da curva de custo marginal com a linha vertical A-curva de receita marginal. No entanto, como até “A” não se precisa reduzir o preço para aumentar a demanda (que está controlado em Pr), há incentivo a produzir até Qa>Qm, gerando uma soma de excedentes do produtor e consumidor maior do que no monopólio, incrementando o bem-estar.

 

Gráfico 2

Perda de Peso Morto em Monopólio e Controle de Preços

 

 

Aqui, no entanto, pode haver também os mesmos problemas do mercado competitivo com assimetria de informação. Se o regulador acreditar que as curvas de custo marginal e demanda estão mais deslocadas para cima do que elas são, ele pode acabara definindo um preço teto acima de Pm, o qual se torna redundante do ponto de vista regulatório. Igualmente, se o regulador definir um preço abaixo de Pc, a quantidade ofertada cai abaixo da quantidade demandada em Pc, definindo uma quantidade abaixo daquela que otimiza o bem-estar social em Pc. Os riscos tipo I e II são os mesmos.

 

Uma outra hipótese na qual o controle de preços pode aumentar bem-estar é quando há um elo não competitivo em uma cadeia produtiva de forma a evitar que um agente verticalizado discrimine seus rivais em outros elos mais competitivos da cadeia. Assim, um operador verticalmente integrado de gás, por exemplo, pode cobrar preços muito elevados para que seus concorrentes tenham acesso ao seu gasoduto que constitui monopólio natural. Deixar que isso aconteça equivale a comprometer a concorrência nos elos mais competitivos da cadeia como a produção e comercialização, justificando que se controle o preço de acesso. Além de gasodutos, pode-se pensar em monopólios em elos não competitivos nos segmentos de portos especializados, ferrovias, transmissão de energia elétrica, entre outros.   

 

Não obrigatoriamente a perspectiva de não haver concorrência em um horizonte de tempo previsível, torne desejável um controle de preços. Peguemos, o caso da concessão de patentes. O Estado concede um monopólio temporário que funciona como um esquema de incentivo para incentivar a inovação. Neste monopólio, o dono da patente pode cobrar os preços de monopólio, sem ser ameaçado pelos concorrentes potenciais. No curto prazo, este monopólio claramente compromete o objetivo de preços menores e, por conseguinte, a eficiência alocativa. Essas rendas e preços de monopólio são a recompensa que a sociedade aceita dar ao inovador. Se o regulador, no entanto, resolve manter o monopólio, mas vai controlar preços para gerar benefícios à sociedade no curto prazo, a recompensa esperada pelo inovador e, portanto, o incentivo a inovar, se reduz. A economia terá menos inovações do que teria se não houvesse a perspectiva do controle de preços. Isso acontece com frequência no setor de medicamentos. 

 

VIII) Comportamento do Preço dos Alimentos em 2020 e Abusividade

 

O comportamento dos preços dos alimentos, de fato, apresentou trajetória acima da inflação. O quadro abaixo traz os dados da média do IPCA acumulado no ano até agosto de 2020 compilado pelo IBGE em várias áreas metropolitanas, com destaque para itens de alimentação. Enquanto o IPCA em geral apresentou um aumento médio de 0,7% no Brasil, o item “alimentação e bebidas” teve um aumento maior que atingiu 4,91%, com mais destaque ao subitem “alimentação no domicílio” de 6,1% contra um incremento bem menor do subitem “alimentação fora do domicílio” em 2,18%. Esse diferencial está claramente relacionado à quarentena: muitas das pessoas que trabalham passaram a comer em casa o que antes comiam fora de casa. Ou seja, o incremento de preços está muito provavelmente relacionado ao choque de demanda da crise do covid-19 

 

Dos itens da cesta básica mencionados há um incremento maior no caso do arroz (19,25%), mas com alguma variação entre as regiões metropolitanas entre a maior alta detectada em Salvador (27,855) e a menor em Porto Alegre (11,72%). O preço do feijão variou conforme o tipo, sendo menor para o carioca (12,12%) e maior para o fradinho (35,91%). No caso do feijão carioca, houve inclusive uma redução de preço de 12,21% em Campo Grande.

 

Frutas (13,86%), Leite e derivados (11,28%), óleo de soja (18,63%) e hortaliças e verduras (11,61%) também tiveram altas expressivas no período. Esses movimentos altistas sugerem um elemento comum do lado da demanda que estaria relacionado à quarentena e com o incremento da renda gerado pelo Coronavoucher. Com mais de 66 milhões de pessoas recebendo R$ 600,00 por seis meses e dado o comportamento da grande parte dos preços de alimentação, é razoável que tenha havido e continua havendo uma pressão temporária na demanda. Dado que esse incremento atingiu especialmente as faixas de renda mais baixas, é plausível que haja uma elasticidade renda positiva para alimentos a despeito de serem considerados bens com elasticidade preço baixa. 

 

Quadro I 

Variação de Preços de Alimentos em 2020 (Acumulado até Agosto)

 

 

Há, no entanto, pelo menos dois elementos destoantes deste padrão de alta que foram as carnes (-1,89%), especialmente filet mignon (-18,44%) e macarrão (0%), mas estes não são comentados. Há um viés comportamental natural de focar no que aumentou mais e negligenciar o resto.

 

Na verdade, quando colocamos alimentação e bebidas junto com os outros itens do IPCA, descobrimos que o padrão altista foi muito particular deste item como podemos ver no quadro a seguir. 

 

De fato, houve quedas nos itens de transporte (-3,46%) e vestuário (-3,21%) e variações pequenas nos outros itens, inclusive saúde e cuidados pessoais que no meio de uma pandemia teve variação de apenas 1,6%.

 

 

O ponto importante é que não há uma tendência generalizada de alta da inflação. Ao contrário, como mostra o último comunicado do Copom (11), tirando os temores sobre o regime fiscal pós-pandemia, a inflação, em geral, está sob controle e abaixo da meta, havendo apenas uma alta temporária no preço dos alimentos gerada por um choque positivo e transitório de demanda. 

 

Dois elementos sugerem que esta alta dos alimentos deverá ser revertida em tempo não muito longo: 1) a redução gradual do escopo da quarentena com as pessoas fazendo menos refeições em casa, o que deve reduzir o item da alimentação no domicílio; e 2) a remoção gradual do auxílio emergencial que resultou em aumento de renda substancial para as classes de menor renda. 

 

Para se ter uma ideia, para alguém que recebia bolsa família, o benefício passou de R$ 41,00 para R$ 600,00 por pessoa, um aumento de mais de 13 vezes. Cada família pode acumular até dois benefícios, ou seja, R$ 1.200. No caso da mulher que sustenta o lar sozinha, o benefício seria de R$ 1.200. Ou seja, para esta mulher sozinha o incremento do benefício em relação ao bolsa família seria de mais de 28 vezes!!   

 

De acordo com Duque (2020) (12), o benefício do coronavoucher foi tão elevado que implicou um considerável incremento de renda dos 40% mais pobres, que chegou a 200% entre os mais pobres.

 

Dificilmente este incremento não se reverteria em pressão de preços. Com a redução de R$ 600 para R$ 300 e sua eliminação a partir de janeiro de 2021, os preços dos alimentos não terão mais combustível para queimar. 

 

  1. IX) Conclusão

Como vimos na seção V, seja por choques de oferta como de demanda, entender o preço inicial (Pe da parte teórica) como o “justo” e aumentos de qualquer magnitude como abusivos e que devem ser reprimidos gerará excesso de demanda e mecanismos não eficientes de alocação do produto. Pior, o ajuste por excelência do mercado, por aumento na quantidade ofertada resultante do incremento de preços não ocorrerá, postergando-se a correção do desequilíbrio.

 

O inciso III do art. 3º da Lei de Liberdade Econômica (LLE), em tese, busca evitar esta ineficiência ao definir como direito “definir livremente, em mercados não regulados, o preço de produtos e de serviços como consequência de alterações da oferta e da demanda”. Esta definição está plenamente de acordo com a análise desenvolvida na seção V deste artigo. Quando há deslocamentos nas curvas de oferta e demanda, a tentativa do Estado de fazer com que preços não subam gera perdas de eficiência econômica e posterga o desejável ajuste da oferta com base na sinalização de preços.    

 

O inciso II do § 3º do art. 3º, por sua vez, define que este dispositivo não se aplica “à legislação de defesa da concorrência, aos direitos do consumidor e às demais disposições protegidas por lei federal”. Esse dispositivo deixa claro que o inciso III do art. 3º da LLE não compromete a implementação do comando do inciso X do art. 39 do Código do Consumidor. 

 

No entanto, como destacado em nossa análise neste artigo, se entendermos como “justa causa” para o consumidor também o direito de não enfrentar métodos de racionamento ineficientes como filas, alocação do bem ou serviço aos amigos do vendedor ou de não precisar recorrer ao mercado paralelo criado por se bloquear o incremento de preço de curto prazo, os reajustes deixam de poder ser caracterizados como abusivos.   

 

No caso presente de tentativa de contenção dos reajustes da cesta básica, dado o choque de demanda que ocorreu, aquela apenas terá o condão de atrapalhar o processo de ajuste que inevitavelmente ocorrerá após a mitigação dos fatores que originaram o problema. O desincentivo à ampliação da oferta gerado por controles desse tipo poderá, inclusive, fazer com que os preços não voltem aos patamares anteriores. 

 

Os Procons não parecem desconhecer essa dinâmica básica das economias de mercado. O Presidente do Procon de São Paulo falou que em circunstâncias normais a mão invisível do mercado “resolve o problema com o tempo: os preços sobem, mais produtores entram no mercado, a oferta aumenta e os valores nas etiquetas retrocedem. Em alguns momentos, porém, é preciso que a mão invisível do mercado seja substituída pela mão visível das autoridades. Não para controlar preços, mas para evitar abusos econômicos” (13)

 

Ora, a crise do covid-19 não gerou qualquer tipo de “revogação” da lei da oferta e procura e nem de seus mecanismos de ajustes. Houve um choque de demanda positivo que afetou alguns preços da cesta básica e não há nada que vá impedir que os incrementos de preços sejam revertidos com a reversão dos fatores causadores daquele choque. E se por um acaso estes fatores não reverterem, é fundamental manter a sinalização para que haja incentivo ao aumento de oferta dos produtos, ou seja, manter os preços mais elevados. 

 

Não há qualquer razão para desconfiar da mão invisível neste caso. Mas há muitas razões para desconfiar que a mão visível dos Procons trará algo de bom, a não ser um ganho político para os seus dirigentes.

 

 

César Mattos é Doutor em Economia e Ex-Secretário de Advocacia da Concorrência e Competitividade da SEPEC do Ministério da Economia.

 

(1) https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/ministerio-da-justica-e-seguranca-publica-notifica-cooperativas-e-supermercados-para-que-expliquem-elevado-aumento-de-produtos-da-cesta-basica.

(2) Hayek,F.: “”The Use of Knowledge in Society”. The American Economic Review, Vol. 35, No. 4. (Sep., 1945).

(3) O ex-ministro Simonsen, em artigo na Revista Exame de 14/04/93, defende que o “CIP ..de 1968 a 1980 funcionou de fato como um administrador governamental de cartéis privados”.

(4) A dúvida aqui era quem controlava quem?

(5) Laffont, J.J. and Tirole, J.: A Theory of Incentives in Procurement and Regulation. The MIT Press, 1993.

(6) Abusando da teoria dos jogos de oligopólio repetidos, pelo teorema Folk, quando os competidores em um oligopólio possuem taxa de desconto intertemporal suficientemente baixa ou, de forma equivalente, quando os competidores são suficientemente “pacientes”, qualquer estratégia dos jogadores de escolherem cobrar valores entre os preços de cartel e os de oligopólio de Cournot são sustentáveis, havendo infinitos equilíbrios.

(7) Ver essa mesma análise, menos pormenorizada, na Nota Técnica n.º 8/2020/CGEMM/DPDC/SENACON/MJ.

(8) Tavares, M. Conceição e Belluzzo, L. G. (1985). “As Ilusões da Inflação”, Revista Senhor, 206. 27 fev.

(9) https://www.oecd.org/daf/competition/46969642.pdf.

(10) Note-se que, em um oligopólio, o preço de equilíbrio estaria entre Pm e Pc, de forma que o conjunto de tetos de preços que representariam uma política de controle de preços bem-sucedida tende a ser menor.

(11) https://www.bcb.gov.br/detalhenoticia/17188/nota.

(12) Duque,D. :“Uma avaliação do Auxílio Emergencial: Parte 1” https://blogdoibre.fgv.br/posts/uma-avaliacao-do-auxilio-emergencial-parte-1

(13) Isto É dinheiro. 18/09/2020.

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Mais sobre a gravíssima situação da economia brasileira https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3272&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=mais-sobre-a-gravissima-situacao-da-economia-brasileira Thu, 09 Jul 2020 15:21:09 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3272 A pandemia da covid-19 pegou a economia fragilizada por depressão que a acometeu desde 2015, começando então com uma “recessão técnica”, que os economistas definem como uma queda do Produto Interno Bruto (PIB) por dois trimestres consecutivos. Vieram oito quedas trimestrais, prejudicando todo o biênio 2015-2016. Essa recessão só findou após o aumento do PIB por dois trimestres consecutivos, no início de 2017. Mas esse crescimento foi fraco, e isso continuou em 2018 e 2019, sem que o PIB voltasse ao seu valor de 2014.

Em números: as taxas de variação do PIB nesse período foram -3,55% (2015), -3,28% (2016), 1,32% (2017), 1,32% (2018) e 1,14 (2019). Do que fica claro que as positivas dos últimos três anos não reconduziram o PIB ao seu valor de 2014. Usando um índice, com o PIB de 2014 = 100, ele chegou a 97,1 em 2019. E mais: a julgar pela variação do PIB prevista para 2020 pelo último boletim Focus, do Banco Central – uma queda de 6,5% –, o índice deste ano cairia para 90,8, bem mais longe do valor 100 de 2014, acumulando queda de 9,2% (!) relativamente a ele.

É como se o PIB caísse num buraco em 2015, fosse mais fundo em 2016 e, após rastejar rumo à superfície no triênio seguinte, ainda não havia chegado lá em 2019. Esse buraco configura uma depressão, algo mais forte e duradouro do que uma recessão.

Para complicar, e muito, esse quadro, 2020 começou mal e segue ainda pior. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou o PIB do primeiro trimestre e, já atingido em março pela pandemia em andamento, seu valor teve contração de 1,5%. A queda no segundo trimestre deverá ser bem maior e, pelo referido conceito de “recessão técnica”, haverá quem diga que o Brasil terá iniciado nova recessão. Para um diagnóstico mais adequado, contudo, é preciso acrescentar que será outra recessão dentro da mesma depressão em andamento. E para quem optar, como usualmente faço, por diagnóstico que também alcance passado mais longínquo, essa depressão surgiu no contexto de uma estagnação, definida como um crescimento do PIB abaixo do seu potencial, o que aqui ocorre desde a década de 1980!

Com esse forte aumento do buraco em que a economia se meteu desde 2015, o ministro da Economia, Paulo Guedes teve de acomodar suas crenças liberais à dura realidade imposta pela pandemia em curso, partindo para forte ação intervencionista, conhecida como keynesiana, aumentando fortemente o déficit e a dívida do governo. Também não vi outra opção.

Nesse contexto, há quem enfatize que os maiores gastos do governo também estimulam a economia, como no caso do auxílio emergencial em três prestações mensais de R$ 600, e as últimas notícias são de que haverá mais duas. Mas as reflexões não podem parar por aí. Boa parte desse dinheiro foi para contas de poupança, tanto porque houve limitações da Caixa ao seu dispêndio imediato, como também porque numa crise há quem opte por poupar mais em face do seu medo do que vem pela frente.

Outro fator relevante a ponderar é que, com a forte queda do PIB, indicadores importantes da situação financeira do governo, como o da sua dívida como proporção do PIB, vão se agravar, tanto pelo forte aumento da dívida quanto pela também forte redução do PIB. Isso vai provocar novas incertezas quanto ao futuro da economia, em particular nos investidores, e em prejuízo da retomada do crescimento.

Além disso, ao aumentar sua dívida o governo toma dinheiro emprestado de empresas e famílias que poupam e investem na expansão da capacidade produtiva do País uma proporção maior de seus recursos do que o governo, o que também prejudica o crescimento do PIB.

Em resumo, a gravíssima situação da economia coloca o Brasil diante de um imenso desafio, e o governo e sua equipe econômica precisam mostrar claramente como pretendem enfrentá-lo, sem o que a desconfiança quanto ao futuro aumentará, em prejuízo das decisões de consumir e investir e, assim, também do PIB. Está faltando um rumo claro e confiável para a retomada do crescimento.

Concluo com uma percepção não tão ruim quanto à covid-19 no Brasil. Aqui o noticiário, como de hábito, enfatiza mais as más notícias, e destaca números acumulados de casos e de mortes, o que sempre leva a novos recordes. Examino mais o número de mortes por dia, sempre olhando como fica o Brasil num gráfico atualizado diariamente pelo jornal Financial Times, que apresenta esse número em média móvel de sete dias, e alcança dezenas de outros países. Ontem esse gráfico continuava a mostrar o Brasil como o que tem o maior número, mas este está estável há cerca de 25 dias, em torno de mil mortes por dia, e não é recorde internacional. Isso estaria a indicar que o impacto da doença se estabilizou, só que sem começar a cair, como na maioria dos países, os quais mostram antes da queda uma estabilização mais curta do que a evidenciada pelo Brasil. Tal situação permanece muito grave, mas pelo menos não tanto como os números que aqui mais frequentam as manchetes.

 

Artigo publicado no jornal O Estado de S.Paulo em 2 de julho de 2020.

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Covid-19 e teoria econômica: a diferença entre risco e incerteza https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3265&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=covidd-19-e-teoria-economica-a-diferenca-entre-risco-e-incerteza Wed, 03 Jun 2020 16:42:03 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3265 De acordo com o Laboratório de Estudos Espaciais do Centro de Pesquisas Computacionais da Rice University, até o dia 20 de maio de 2020, a pandemia causada pelo novo coronavírus havia causado a morte de mail de 18 mil pessoas em todo o território nacional[1].  Segundo a Sociedade Brasileira de Cardiologia, até essa mesma data mais de 150 mil cidadãos se tornaram vítimas fatais de doenças cardiovasculares no país[2]. Somente no mês de maio, foram mais de 21 mil óbitos até o momento.

Comparando-se os valores relativos a óbitos por causas tradicionais com aqueles provocados pelo novo coronavírus, poder-se-ia estranhar a grande preocupação originada pela pandemia do Covid-19 na nação. O que torna tão diferente essa nova epidemia dos desafios de saúde que os brasileiros enfrentam há anos e que dominam as causas de mortalidade?

O efeito da pandemia do novo coronavírus sobre a sociedade nos oferece a oportunidade de ilustrar dois conceitos fundamentais da Teoria Econômica moderna, os conceitos de risco e de incerteza e, pela própria situação que enfrentamos, entender a dramática distinção entre eles.

Ambos os conceitos de risco e de incerteza estão associados ao fato de vivermos em um mundo “não-determinístico”, ou seja, um mundo em que não temos informação completa sobre os fenômenos que nos cercam. A diferença fundamental entre esses conceitos diz respeito ao nível de incompletude dessa informação.

No caso de uma situação de risco, conseguimos antecipar o que pode ocorrer e até mesmo determinar probabilidades razoáveis sobre os possíveis acontecimentos. Quando nos deslocamos em nossa típica cidade brasileira, por exemplo, sabemos que corremos o risco de sermos assaltados no caminho. No entanto, por conhecermos a cidade, temos uma boa ideia de que regiões são mais perigosas, que horários são mais arriscados, que trajetos são mais seguros, que meios de transporte oferecem menor probabilidade de assalto. Com toda essa informação, temos como calcular com alguma precisão os riscos que corremos e escolher um deslocamento sem que o pânico nos domine. Trata-se de um caso em que corremos riscos, mas as consequências e suas respectivas probabilidades são relativamente conhecidas e isso nos permite tomar decisões com alguma segurança.

Em uma situação de incerteza, por outro lado, a informação é mais limitada, é difícil estimarmos as diferentes probabilidades do que pode acontecer e, em alguns casos, não conseguimos sequer prever tudo que é passível de ocorrer. Se tivermos que nos deslocar em uma cidade desconhecida que se sabe ter alta taxa de criminalidade em um país estrangeiro, pelo total desconhecimento prévio do local, estaremos em uma situação de incerteza: não sabemos que bairros são mais seguros, que vias são mais perigosas, às vezes nem mesmo a que tipos de crimes estaremos sujeitos. Nesse caso é bem mais difícil decidir com segurança e não será de se estranhar que um certo pânico tome conta de nós…

Uma doença que há anos acomete nosso país é a dengue. Em 2019 foram mais de 1,5 milhão de casos em todo o país. Essa doença, no entanto, é relativamente bem conhecida. Sabemos como diagnosticá-la, como tratá-la e como ela é transmitida. Ainda que não exista vacina contra essa enfermidade, apesar de todos esses casos, morreram menos de 800 cidadãos pela dengue em 2019[3]. Trata-se de uma situação de risco, certamente, mas não é de se estranhar que a dengue não cause comoção e que haja até certa displicência na sociedade, que precisa ser relembrada constantemente por campanhas públicas sobre a importância da medida básica de se evitar acúmulo de água, por exemplo.

Compare agora com o Covid-19. Nada se sabia sobre essa nova doença até finais de 2019 e ela parecia relativamente circunscrita à província chinesa de Hubei no início do ano. Muitas informações contraditórias foram sendo reveladas: que não era transmissível pelo ar, que o vírus não resistiria ao calor, que seria uma simples gripe, etc., até que, de repente explodiram os casos no mundo. Vimos a Coréia do Sul, outros países da Ásia e até mesmo um navio de turismo serem fortemente atingidos. Em poucas semanas a Itália se tornou epicentro mundial da pandemia e as vítimas fatais se multiplicassem.

Sobre essa nova cepa de coronavírus muito pouco se sabe até hoje, nem mesmo se uma pessoa pode ser por ele reinfectada. Trata-se de uma claríssima situação de incerteza em que não conseguimos estimar as probabilidades associadas à pandemia. Quantos serão infectados? Que órgãos de nosso corpo, além do pulmão, o vírus atinge? Por que algumas pessoas ficam com respirador por semanas e sobrevivem enquanto outras morrem em poucos dias? Que remédios poderiam ajudar: a cloroquina, anticoagulantes, antiparasitário, corticoides? Nem mesmo sabemos quantas pessoas de fato já foram contaminadas ou qual é a verdadeira taxa de letalidade da doença.

Confrontados com essa situação de grande incerteza, entende-se a dificuldade que temos em tomar decisões e nos coordenarmos como sociedade.

Sentindo na pele, com o surgimento do Covid-19, a dramática diferença entre risco e incerteza que é tão cara à Teoria Econômica, fica a esperança de que rapidamente acumulemos uma quantidade suficiente de informações seguras a respeito desse novo coronavírus e da nova pandemia, de forma a conseguirmos passar de um ambiente de incerteza para um ambiente de risco e podermos, então, tomar as decisões mais acertadas.

Até lá, resta-nos manter o isolamento social, uma vez que uma das poucas certezas que temos sobre esse vírus é que ele tem alta transmissibilidade e que uma pessoa infectada já pode contagiar outros antes mesmo que os sintomas da doença nela se manifestem.

[1] https://www.coronavirusnobrasil.org. Acessado em 20/5/2020.

[2] http://www.cardiometro.com.br/. Acessado em 20/5/2020.

[3] Mais precisamente, foram 782 óbitos. Vide Panorama Farmacêutico, 14/02/2020. Disponível em: https://panoramafarmaceutico.com.br/2020/01/14/brasil-teve-aumento-de-488-nos-casos-de-dengue-em-2019/ acesso em 6/5/2020/

Maurício Bugarin é do Departamento de Economia da Universidade de Brasília.

bugarinmauricio@gmail.com, www.bugarinmauricio.com

*Artigo originalmente publicado no jornal Nexo no dia 21 de maio de 2020 e aqui reproduzido com a anuência do autor.

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