Economia – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Sun, 13 Mar 2022 00:39:26 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 O papel das Instituições Fiscais Independentes (IFIs) e o caso da IFI do Brasil https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3589&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-papel-das-instituicoes-fiscais-independentes-ifis-e-o-caso-da-ifi-do-brasil Mon, 07 Mar 2022 20:33:15 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3589 O papel das Instituições Fiscais Independentes (IFIs) e o caso da IFI do Brasil*

 

Por Felipe Scudeler Salto[1] e Rafael da Rocha Mendonça Bacciotti[2]

 

  1. O que esperar de uma IFI?

As Instituições Fiscais Independentes (IFIs), ou Conselhos Fiscais, são organismos públicos com mandato para realizar análises técnicas e apartidárias sobre política fiscal e orçamentária. O objetivo é melhorar a disciplina fiscal, promover maior transparência das contas públicas e elevar a qualidade do debate público nas temáticas de finanças públicas e economia em geral.

A ampliação do número de conselhos fiscais ao redor do mundo representa uma inovação institucional importante no campo da política fiscal (Mulas-Granados, 2018). Em resposta aos efeitos negativos da crise econômica e financeira de 2008, diversos países, particularmente, os que compõem a Organização para a Cooperação do Desenvolvimento Econômico (OCDE), criaram instituições fiscais independentes para fortalecer a credibilidade da política fiscal (Kopits, 2016).

Essa tendência de aumento é observada, principalmente, entre os países membros da União Europeia, tendo ganhado mais força com a aprovação, no Parlamento, do Regulamento nº 4733[3], de 2013. Como parte da resposta da região à crise da dívida pública, o Regulamento atribuiu mandato a um “órgão independente”, em nível nacional, para monitorar o cumprimento das regras da política fiscal e fornecer ou endossar previsões macroeconômicas e fiscais realistas para a elaboração do orçamento (FMI, 2013 e Ribeiro, 2020).

A dinâmica desfavorável do nível de endividamento foi amplificada pelas políticas de estímulo e pelas perdas acumuladas de receitas. Somou-se a isso o fato de o conjunto de regras numéricas utilizadas para controlar a discricionariedade da política fiscal, no processo orçamentário, não garantir, isoladamente, a condução prudente das contas públicas. Esses fatores favoreceram o surgimento de fiscal watchdogs (vigilantes ou cães de guarda), no pós-crise, com apoio crescente obtido junto aos organismos multilaterais.

A OCDE, por exemplo, divulgou, em 2014, os princípios orientadores para o design e operacionalização das IFIs. Trata-se de codificação de valores mínimos de governança que resultou de discussões e sistematização de boas práticas –, reconhecendo o potencial papel positivo dessas instituições[4].

O Fundo Monetário Internacional, por sua vez, mapeia a existência de 39 IFIs operando em 2016 (último levantamento disponível)[5], 25 das quais apareceram depois da crise econômica e financeira de 2008, como se observa no Gráfico 1.  As IFIs veteranas, existentes antes da crise, como o “Congressional Budget Office” (CBO) dos Estados Unidos e o caso pioneiro na Holanda – “Central Planning Bureau” (CPB) –, diferem da nova geração de IFIs, por terem aparecido em resposta a eventos históricos locais e  singulares (Bjios, 2014).

 

 

  1. Revisão de literatura: viés deficitário da política fiscal

Do ponto de vista teórico, as IFIs aparecem, na literatura, ao lado das regras fiscais (mecanismos que introduzem, por certo período, restrições ou limites quantitativos para alguma das variáveis fiscais como: dívida, resultado, resultado estrutural, despesa ou receita). São tidas como soluções institucionais mais comuns para atenuar o viés deficitário (tendência crescente do déficit e do nível de endividamento público ao longo do tempo) e a pró-ciclicidade do gasto público (tendência a gastar receitas extraordinárias sobretudo nos momentos de alta do ciclo econômico ao invés de poupá-las para que possam ser utilizadas para estimular o retorno da atividade econômico para o equilíbrio nos momentos de baixa), que acentua a volatilidade do ciclo econômico.

A literatura documenta diversas fontes que estariam por trás da geração de déficits persistentes e da tendência à pró-ciclicidade, que impactam a discricionariedade da política fiscal em muitas economias emergentes e avançadas, afetam a dinâmica da dívida pública (favorecendo a recorrência de crises fiscais) e reduzem o bem-estar social.  As implicações negativas sobre a estabilidade macroeconômica fundamentam a ênfase colocada na restauração e manutenção de posições fiscais sólidas. (Hemming e Joyce, 2013)

Calmfors e Wren-Lewis (2011) lista diversas classes teóricas de explicações:

(i) assimetrias de informação entre o público e o governo: os eleitores podem não conhecer a posição fiscal do seu país ou as projeções macrofiscais podem ser pouco realistas, por exemplo;

(ii) a impaciência, principalmente dos governos, em razão de objetivos eleitorais, pode levá-los a desejar aumentar o produto interno acima de seu nível natural, por meio de ações fiscais expansionistas;

(iii) conflito intergeracional: geração de eleitores pode não levar em conta que a carga futura aumentará, por exemplo, no caso em que a política fiscal atribua peso pequeno à pressão de gastos associada com o envelhecimento da população (Carlin e Soskice, 2015);

(iv) a competição entre os partidos políticos pode fazer com que os governos não internalizem totalmente o custo da dívida;

(v) o problema dos recursos comuns leva atores do processo orçamentário a pressionar por mais gastos ou incentivos tributários; e

(vi) a inconsistência temporal de compromissos de interesse nacional firmados ex ante, que podem deixar de ser desejáveis por questões eleitorais, por exemplo.

Na sequência, os autores exploram as potencias contribuições que os conselhos fiscais poderiam dar no sentido de reduzir o viés deficitário e fortalecer a disciplina fiscal:

(i) avaliação ex-post para averiguar o comportamento passado da política fiscal, se houve cumprimento das metas ou não;

(ii) avaliação ex-ante sobre a probabilidade de cumprimento das metas fiscais;

(iii) análise de sustentabilidade ou equilíbrio de longo prazo das finanças públicas;

(iv) análise de transparência das contas públicas;

(v) mensuração do custo e do impacto fiscal de proposições de políticas públicas;

(vi) projeções macroeconômicas; e

(vii) formulação de recomendações normativas sobre a política fiscal.

A Tabela 1, extraída de FMI (2013), sintetiza diversas explicações potenciais do viés deficitário, posicionando-as ao lado das funções que as IFIs poderiam exercer no decorrer de seus mandatos para atenuar as imperfeições e distorções existentes na condução da política fiscal, de modo a reduzir a assimetria de informação entre os formuladores de política e os eleitores.

 


  1. Critérios para avaliação de efetividade das IFIs no desempenho fiscal

Apesar da experiência relativamente recente com conselhos fiscais na maior parte dos países, a literatura, a partir de análises econométricas complementadas por nuances narrativas de estudos de casos, tem avançado no sentido de avaliar se eles têm obtido sucesso (se têm sido efetivos) na tarefa de influenciar os formuladores de políticas na direção de políticas fiscais sólidas. (Lledó, 2018)

Além do fato de serem, em sua maioria, instituições novas e heterogêneas entre si, existem muitos desafios metodológicos associados à avaliação empírica do impacto dos conselhos no desempenho fiscal, que derivam, entre outros fatores: i) da existência de causalidade reversa, uma vez que governos mais comprometidos com a disciplina fiscal tendem a ser mais sensíveis à promoção de reformas institucionais e ii) do fato de não serem os únicos elementos no arcabouço institucional encarregadas de encorajar políticas fiscais sustentáveis (Lledó, 2018).

Hagemann (2011) indica que a existência de conselhos fiscais bem desenhados é uma condição necessária para melhorar a performance fiscal, embora a falta de comprometimento político com um objetivo de médio prazo e, em alguns casos, com o próprio mandato dos conselhos, limitaria melhorias duradouras.

Debrun e Kinda (2014), utilizando dados em painel de uma amostra de 58 economias avançadas e emergentes, de 1990 a 2011, e cientes dos desafios de endogeneidade associados à estimação econométrica, relacionam a presença de IFIs com o desempenho fiscal (medido pelo nível do resultado primário), controlados por outros efeitos que influenciam o desempenho fiscal, como o hiato do produto e o nível de endividamento. A conclusão do estudo sugere que a existência de conselhos em si não é suficiente para promover disciplina fiscal (a correlação é positiva, mas não significante em termos estatísticos), o que ocorre apenas quando o conselho apresenta certas características e atribuições:

  1. i) grau de independência com relação às disputas políticas;
  2. ii) papel no monitoramento de regras fiscais;
  3. ii) produção ou avaliação de projeções macrofiscais;
  4. iv) impacto na mídia: como os conselhos fiscais não exercem influência direta sobre a condução da política fiscal, esse canal é importante para ampliar a presença no debate público.

Beetsma et al (2018), utilizando a base de dados sobre conselhos do FMI atualizada até 2016, também traz evidencias empíricas no sentido de que a presença de conselhos fiscais bem desenhados parece reduzir o viés otimista nas projeções orçamentárias e favorecer o cumprimento das regras fiscais.

Lledó (2018) constata, a partir da revisão de diversos estudos empíricos e casos narrativos, que conselhos bem desenhados, dotados de certas características (independência com relação a disputas políticas e impacto na mídia) e funções (produzir ou avaliar projeções macroeconômicas e monitorar o cumprimento de regras fiscais), parecem ter maior capacidade em promover políticas fiscais sólidas.

 

  1. A situação da IFI brasileira em relação às demais

Como se observou na seção 3 deste capítulo, parece haver um consenso na literatura de que o desenho de um conselho efetivo, capaz de melhorar o desempenho da política fiscal, passa, principalmente, pela presença constante no debate público, pelo grau de independência e pelo papel na produção ou avaliação de projeções macroeconômicas e no monitoramento do cumprimento de regras fiscais.

A base de dados da OCDE sobre as IFIs (OCDE, 2019)[6] possibilita mapear algumas dessas características chave e situar o Brasil – que é o único país, além dos membros da organização, monitorado nessa base – em relação aos países membros da Organização.

A base é bastante ampla e permite acessar informações sobre o contexto para estabelecimento, base legal, modelo institucional, relacionamento com o legislativo, independência, liderança, recursos, mandato e funções, publicações, acesso à informação, transparência, apoio consultivo e acordos de avaliação.

Segundo o monitoramento, 28 dos 36 países membros têm IFIs em operação. O Brasil, único país não pertencente à OCDE, também é acompanhado pelo órgão multilateral em sua base de dados que mapeia as principais características dessas instituições.

Na prática, como se observa na Tabela 2, 73% desses organismos se envolvem com projeções macrofiscais (sendo que, algumas delas, como o CBO, dos Estados Unidos, produzem projeções alternativas que servem de base de comparação para as projeções do governo; outras preparam as projeções utilizadas pelo governo, como o OBR do Reino Unido e o CPB da Holanda; enquanto outras endossam ou opinam sobre as previsões oficiais); 70,3% são incumbidas de monitorar o cumprimento das regras fiscais, ao passo que 64,9% têm um papel na análise de sustentabilidade fiscal de longo prazo. Por outro lado, 40,5%, 29,7% e 10,8% apuravam o custo fiscal de iniciativas do governo, realizavam suporte a parlamentares com análises sobre o orçamento e avaliação do custo de plataformas eleitorais, respectivamente.

 

Tabela 2. Funções de uma IFI de acordo com a OCDE

  IFI / Brasil IFIs que compõem a base de dados
  Sim
Projeções macroeconômicas e fiscais  

x

73,0%
Monitoramento de regras fiscais  

x

70,3%
Análise de sustentabilidade fiscal de longo prazo  

x

64,9%
Apuração do custo de iniciativas do governo  

x[7]

40,5%
Suporte direto a parlamentares com análises sobre orçamento  

29,7%
Avaliação do custo de plataformas eleitorais  

10,8%
Fonte: OECD Independent Fiscal Institutions Database (2019). Elaboração dos autores.

 

Mesmo que as IFIs ao redor do mundo tenham papéis e estruturas distintas (“there is no one size fits all model”), refletindo diferentes arcabouços fiscais e circunstâncias que estão por trás da origem de seu estabelecimento, elas apresentam funções convergentes, sendo que a maioria delas exerce as funções principais mapeadas por Debrun e Kinda (2014) para a mensuração de sua efetividade.

Segundo Von Trapp e Nicol (2018) e OCDE (2019), o grau de independência de um conselho fiscal pode ser avaliado por meio de quatro pilares, delineados nos princípios de boas práticas contidos em OCDE (2014).

  1. i) independência técnica: avaliada de acordo com o processo de seleção de pessoas para as IFIs, isto é, se ocorre com base no mérito e na competência técnica, se a duração do mandato é estabelecida de forma independente do ciclo eleitoral e se os critérios para a demissão das lideranças são especificados em legislação;
  2. ii) independência legal/financeira: refere-se ao marco jurídico da instituição e à proteção dos recursos financeiros contra contingenciamentos e interferências políticas. As variáveis desse pilar buscam analisar se a instituição foi estabelecida por legislação primária, se possui uma dotação orçamentária própria para assegurar os recursos para o desempenho de suas atividades e se há um compromisso plurianual de financiamento;

iii) independência operacional: trata-se da autonomia das IFIs em relação às suas operações, considerando-se, ainda, se fazem ou não recomendações normativas de políticas (o que pode colocar em risco a reputação por meio do viés partidário). As variáveis para mensurar a independência operacional incluem os seguintes tipos de critérios: se a instituição tem liberdade para definir o programa de trabalho e para produzir análises por iniciativa própria, se faz recomendação de política e se possui equipe qualificada própria para a execução do mandato.

  1. iv) acesso à informação e transparência: refere-se aos mecanismos de garantia legal para eventuais pedidos de informações requeridas ou viabilizadas por memorandos de entendimento, ao plano de trabalho e demais documentos operacionais publicados e se relatórios e metodologias subjacentes às análises também ficam disponíveis ao público interessado.

A Tabela 3, construída a partir das informações obtidas na base de IFIs da OCDE, coloca em perspectiva a IFI brasileira em relação às instituições dos países membros no quesito da independência. Do ponto de vista formal, observa-se a presença de muitas das medidas delineadas nos quatro pilares, indicando que a IFI brasileira segue as recomendações internacionais. Na seção 5, passaremos a tratar especificamente do caso brasileiro.

Há, de toda forma, certa distância em relação às demais nos itens “dotação orçamentária própria” (presente em 47% das IFIs que compõe a base de dados) e no número de funcionários (apesar de possuir equipe qualificada própria, a quantidade de colaboradores permanentes encontra-se bem abaixo da média dos pares: 9 x 27). O orçamento da IFI brasileira é vinculado ao do Senado Federal, ainda que exista garantia de espaço orçamentário para contratação de pessoal, em ato específico da Comissão Diretora do Senado Federal, como discutiremos à frente. Essas são questões importantes para os próximos passos no processo de “institutional building” da IFI brasileira.

 

Tabela 3. Aspectos relativos à independência

Pilares de independência IFI/ Brasil IFIs que compõem a base de dados
Sim
Independência técnica

Seleção de pessoas baseada no mérito e na competência técnica?

x

 

100%

Termo do mandato estabelecido de forma independente ao ciclo eleitoral?

 

x

 

97%

Critérios para a demissão das lideranças especificados em legislação?

 

x

 

72%

 

Independência legal/financeira

 

 

Instituição estabelecida por legislação primária?

 

x

 

83%

Dotação orçamentária própria?

 

 

47%

Compromisso plurianual de financiamento?

 

 

14%
 

Independência operacional

Liberdade para definir o programa de trabalho?

 

x

 

94%

Liberdade para produzir análises por iniciativa própria?

 

x

 

94%

Faz recomendação de política?

 

 

14%

Número de funcionários que compõem a equipe?

 

9[8]

27[9]

 

Acesso à informação e transparência

Acesso à informação requerida é assegurado pela legislação?

 

x

 

25%

Acesso à informação apenas por memorando de entendimento?

 

 

11%

Acesso à informação por ambos?

 

 

42%

Plano de trabalho e demais documentos operacionais são publicados?

 

x

 

89%

Relatórios e metodologias subjacentes também ficam disponíveis ao público?

 

[10]

 

69%

Fonte: OECD Independent Fiscal Institutions Database (2019). Elaboração dos autores.

Pontes (2018), a partir dos dispositivos da resolução que criou a IFI brasileira, mostra que a instituição apresenta elevado grau de aderência da base normativa e procedimental nas dimensões relativas à independência no desempenho de atribuições e no que se refere à abrangência de atribuições previstas para uma IFI frequentemente apontadas pela literatura e identificadas na experiência internacional – reforçando a impressão inicial que fica da simples análise comparativa a partir dos dados extraídos da base da OCDE.

Uma avaliação mais robusta da aderência em relação às boas práticas internacionais viria da própria OCDE, que produz com frequência relatórios técnicos sobre as IFIs que compõem sua rede[11] com avaliações detalhadas (realizadas pelos pares, membros da própria OCDE e acadêmicos) sobre o desempenho de uma instituição em relação aos princípios de boas práticas, identificando aspectos que podem ser aprimorados como forma de preservar a viabilidade no longo prazo. As análises abrangem tipicamente os elementos de inputs (recursos humanos e financeiros, acesso à informação e independência), outputs (qualidade das publicações e metodologias empregadas) e de impacto do trabalho da IFI em termos da influência no debate público e da ampliação da transparência.

Importante mencionar, de toda forma, que já há um reconhecimento internacional da IFI brasileira com relação à credibilidade de seus trabalhos. No documento “OECD Economics Surveys – Brazil”[12], publicado em 2018, a organização expressou que o Brasil progrediu em sua estrutura fiscal com o estabelecimento de um conselho fiscal que publica relatórios mensais de alta qualidade.

Finalmente, vale destacar que o Fundo Monetário Internacional (FMI) também tem acompanhado o trabalho da IFI do Senado Federal, por meio de reuniões e visitas da chamada Missão do Artigo IV. Em 2017, o FMI reconheceu em texto público a importância da criação da IFI no Brasil[13].

 

  1. Histórico da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal

A Instituição Fiscal Independente (IFI) foi criada pela Resolução do Senado Federal nº 42, de 2016[14], com o objetivo de melhorar a transparência e a disciplina das contas públicas. A IFI é um órgão do Senado, mas com independência para realizar suas funções legais, seguindo as boas práticas internacionais, conforme discutidas nas seções anteriores. Ela é dirigida por um Conselho Diretor e conta com um Conselho de Assessoramento Técnico (CAT), de caráter consultivo, indicado pelo Diretor-Executivo do Conselho Diretor. A independência é garantida pelo mandato fixo dos Diretores e do Diretor-Executivo.

Antes de discutir a experiência da IFI brasileira, destaca-se que as funções da IFI não invadem atribuições do Tribunal de Contas da União (TCU) ou mesmo das Consultorias do Senado e da Câmara. O TCU é um órgão de controle, uma corte de contas com poder judicante. As Consultorias prestam assessoria direta aos parlamentares. A IFI, por sua vez, produz informações – este é o seu poder – na área de contas públicas, por meio de publicações que auxiliem na tarefa de ampliar a transparência e a disciplina fiscal, sem poder judicante e não tendo a missão de prestar consultoria direta[15].

A instalação da IFI se deu no dia 30 de novembro de 2016[16], com a posse do primeiro Diretor-Executivo, o economista Felipe Salto[17], para exercer um mandato de seis anos, sem recondução. Os próximos Diretores-Executivos terão sempre mandatos de quatro anos.

Cabe esclarecer que a indicação do Diretor-Executivo se dá pela Presidência do Senado Federal, conforme o inciso I do parágrafo 2º do artigo 1º da Resolução nº 42. O indicado deve passar por duas etapas para assumir o mandato fixo: arguição pública e aprovação pelo Senado Federal, conforme o parágrafo 3º da mesma Resolução. Segundo o dispositivo, os indicados devem ter notório saber nos temas de competência da IFI e reputação ilibada. Esses requisitos são checados pelo parlamentar relator do processo de indicação e, também, na sabatina realizada pela Comissão Diretora do Senado Federal. A aprovação do indicado deve se dar tanto pela Comissão Diretora quanto pelo Plenário do Senado.

O primeiro Diretor-Executivo indicado foi aprovado pela Comissão Diretora do Senado Federal, em 29 de novembro de 2016[18], após arguição pública realizada pelo colegiado. No mesmo dia, foi aprovado por 50 votos favoráveis no plenário[19]. Houve um voto contrário e duas abstenções. No dia 30 de novembro, como mencionado, ocorreu a cerimônia de posse e o início dos trabalhos da IFI.

Os objetivos da IFI estão bem definidos na Resolução nº 42 e envolvem o trabalho técnico de projeção e análise econômica e fiscal. Isso se dá por meio do cumprimento dos quatro dispositivos legais, fixados no artigo 1º da Resolução:

“I – divulgar suas estimativas de parâmetros e variáveis relevantes para a construção de cenários fiscais e orçamentários;

II – analisar a aderência do desempenho de indicadores fiscais e orçamentários às metas definidas na legislação pertinente;

III – mensurar o impacto de eventos fiscais relevantes, especialmente os decorrentes de decisões dos Poderes da República, incluindo os custos das políticas monetária, creditícia e cambial; e

IV – projetar a evolução de variáveis fiscais determinantes para o equilíbrio de longo prazo do setor público.”

O objetivo fixado no inciso I consiste em elaborar projeções macroeconômicas, a exemplo da trajetória do PIB, da inflação, dos juros reais e nominais, da taxa de câmbio, dentre outras variáveis relevantes para os cenários fiscais. O inciso II determina que a IFI acompanhe as metas fiscais vigentes, comparando-as aos indicadores fiscais, a exemplo do teto de gastos (fixado pela Emenda Constitucional nº 95, de 2016) e da meta de resultado primário (prevista na Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei Complementar nº 101, de 2000).

No inciso III, a instituição recebe a incumbência de definir eventos que tenham impacto relevante nas contas públicas e elaborar suas avaliações sobre tais assuntos, a exemplo das reformas previdenciária, tributária e administrativa. Por fim, o quarto inciso manda que a IFI projete a evolução das variáveis fiscais relevantes ao equilíbrio de longo prazo, a exemplo da dívida pública, do déficit primário e nominal, das receitas e despesas do governo federal.

Após a instalação da IFI, o Diretor-Executivo Felipe Salto montou uma equipe, a partir da regulamentação da Resolução nº 42, de 2016, feita pelo Ato nº 10 da Comissão Diretora do Senado Federal, de 2016[20]. O referido ato forneceu os subsídios para recrutar servidores e realocou cargos para contratação de pessoal de fora do Senado. Ainda sem o Conselho Diretor completo, portanto, a IFI passou a funcionar, no âmbito do Senado, mas com total independência para realizar seus estudos e análises.

Isso está em linha com a revisão de literatura apresentada na seção 4. Ainda que a IFI não possua um orçamento autônomo, o espaço fiscal fixo para contratação de pessoal está garantido por lei. Como mencionado, esta é uma área em que a IFI poderá avançar, ganhando mais estrutura e recursos para poder realizar suas atribuições legais. Entende-se que este é um processo de “institutional building”, que está diretamente associado aos resultados produzidos pela instituição.

Vale dizer, no período de quatro anos de funcionamento completados em novembro de 2020, a IFI já havia conquistado um amplo reconhecimento da imprensa, critério importante destacado por Debrun e Kinda, supracitados. Mais à frente, mencionaremos alguns números a fundamentar essa análise. Este reconhecimento foi fundamental para solidificar a posição da instituição diante do parlamento e mesmo para obter melhorias e avanços operacionais e de estrutura, como a própria conquista de um espaço físico adequado para a realização das atividades da IFI.

Logo no início do funcionamento do novo órgão, após recrutar dois servidores do Ministério do Planejamento – um da Secretaria de Orçamento Federal (SOF) e um do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) – e dois servidores efetivos do Senado Federal – um da Consultoria de Orçamentos (Conorf) e outro da Consultoria Legislativa (Conleg) –, a IFI elaborou um modelo de relatório mensal e publicou sua primeira versão em fevereiro de 2017[21]. Logo em seguida, recrutou um economista com experiência em contas públicas para reforçar a equipe, além da secretária, que também exerce funções de auxiliar administrativa.

Ainda sobre a questão da equipe, é importante destacar que, conforme o artigo 2º da Resolução 42, a equipe deve ter sempre 60%, no mínimo, de mestres ou doutores nas áreas de atuação da IFI, requisito sempre cumprido, incluindo todos os servidores efetivos e comissionados que compõem ou compuseram a equipe e a Diretoria.

Esse primeiro trabalho mencionado foi denominado “Relatório de Acompanhamento Fiscal” (RAF), que viria a ser o principal produto da IFI, com periodicidade mensal[22]. Ele já está na 48ª edição, publicada em janeiro de 2021[23]. Sua aceitação por parlamentares, imprensa, especialistas do mercado e academia tem sido muito positiva. Para divulgar o primeiro trabalho da IFI, em fevereiro de 2017, realizou-se coletiva à imprensa[24], da qual participaram jornalistas especializados dos principais veículos de comunicação e economistas e servidores públicos do Executivo e do Legislativo. Apenas no mês de fevereiro de 2017, houve onze menções à IFI na imprensa nacional. Também o Poder Executivo comentou projeções e cálculos publicados no primeiro RAF, cumprindo-se, assim, desde o início, uma função precípua de toda IFI, que é a de estabelecer um contraponto saudável com a área econômica do governo, a partir do acompanhamento macrofiscal.

Em janeiro de 2017, foi publicado um artigo do Diretor-Executivo da IFI, na página A2 do jornal O Estado de S. Paulo, que é útil para entender o contexto, a lógica e os objetivos do novo órgão do Senado: “O papel da Instituição Fiscal Independente”[25]. Nele, o economista explicou as razões da criação do novo órgão em um quadro de crise econômica e fiscal. É importante mencionar que a IFI foi uma resposta do Senado àquela situação conjuntural bastante grave das contas públicas e da atividade econômica. Vale dizer, a economia passava por um biênio, de 2015 a 2016, que viria a ser o pior da série histórico do PIB. As contas públicas também já seguiam por alguns anos apresentando déficit e crescimento da dívida/PIB. Nesse sentido, há um claro paralelo com as experiências de criação e consolidação de instituições ou conselhos fiscais, conforme relatadas pelos autores citados nas seções anteriores deste capítulo.

Para completar a primeira formação do Conselho Diretor, conforme determinado pela Resolução nº 42, a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) e a Comissão de Transparência (CTFC)[26] do Senado Federal precisavam fazer suas indicações, proceder à sabatina e aprovação, para em seguida haver a deliberação em plenário. Foram indicados os economistas Gabriel Barros[27], para a vaga da CAE, e Rodrigo Orair[28], para a vaga da CTFC, completando, ainda em meados de 2017, a primeira formação do Conselho Diretor da IFI, ao lado de Felipe Salto.

Cabe ainda explicar a lógica dos mandatos não coincidentes prevista na Resolução 42. O mandato do primeiro Diretor indicado pela CAE, conforme a resolução, seria de quatro anos. Já o mandato do Diretor indicado pela CTFC, de dois anos. Assim, o primeiro Diretor-Executivo teria seis anos, o primeiro Diretor indicado pela CAE, quatro anos, e o primeiro Diretor indicado pela CTFC, dois anos. Os segundos indicados para todas as três vagas teriam sempre mandatos fixos de quatro anos, preservando-se a descontinuidade inicial. A recondução é proibida. Em caso de vacância, substitui-se o Diretor por meio do mesmo processo descrito acima, para que se complete o período remanescente do mandato original, seja para o Diretor-Executivo seja para os demais Diretores.

Essa descontinuidade inicial serve para que as trocas de Diretoria nunca ocorram de maneira concomitante. Esta é uma forma de preservar a blindagem político-partidária da IFI, isto é, a sua independência técnica em relação a essas questões. O mecanismo está em linha com as boas práticas e um dos critérios utilizados pela OCDE, por exemplo, para avaliação da independência das IFIs.

Transcorridos quase quatro anos desde a instalação da IFI, já houve duas trocas na Diretoria. O primeiro Diretor indicado pela CAE renunciou após dois anos de mandato, o que ensejou a indicação de um novo nome para completar o período faltante para os quatro anos. Já o Diretor indicado pela CTFC cumpriu o seu mandato completo e, ao término dos dois anos, a referida comissão indicou um novo nome para exercer, então, conforme a regra da Resolução nº 42, um mandato de quatro anos.

A substituição do Diretor indicado pela CAE transcorreu sem maiores percalços. Foi indicado o economista Josué Pellegrini, que já participava da equipe da IFI, como analista, além de ser Consultor Legislativo do Senado Federal. Pellegrini é Doutor em Economia pela USP, tem livros publicados na área de economia e contas públicas e foi diversas vezes premiado pelo Tesouro Nacional com artigos relevantes. Além disso, tem vasta experiência em docência, tendo sido um dos professores que ajudou a montar a Faculdade de Economia da USP de Ribeirão Preto. O Presidente da CAE fez a indicação, seguida do mesmo processo: sabatina, aprovação na comissão e no plenário. Pellegrini completará o mandato de quatro anos, portanto, conforme prevê a Resolução 42, contando os dois anos iniciais cumpridos pelo primeiro Diretor indicado pela CAE.

Quanto à substituição do Diretor indicado pela CTFC, com o término do mandato, seguiram-se os trâmites já explicados. O indicado foi o economista Daniel Couri, que fazia parte da equipe da IFI desde a sua instalação, sendo Consultor de Orçamento do Senado. Seu mandato será de quatro anos. Couri tem Mestrado em Economia pela UnB e experiência como servidor do Tribunal de Contas da União (TCU) e da Secretaria de Orçamento Federal (SOF) do Ministério do Planejamento.

Portanto, a atual formação do Conselho Diretor conta com os economistas: Felipe Salto, Josué Pellegrini e Daniel Couri. Todas as decisões sobre a definição dos assuntos a serem tratados pela IFI, dentro do plano de trabalho definido na própria Resolução nº 42, são colegiadas. Ouvem-se os membros da equipe, discutem-se os temas relevantes e fixam-se prazos para as publicações. O Relatório de Acompanhamento Fiscal (RAF) é a publicação fixa da IFI e mais importante, no sentido de que cumpre pelo menos três dos quatro objetivos fixados na Resolução nº 42. Além dos doze trabalhos anuais, a IFI ainda publica Estudos Especiais, Notas Técnicas e Comentários da IFI, de acordo com temas discutidos nas reuniões de Equipe e Conselho Diretor, levadas também em consideração as sugestões colhidas nas reuniões do CAT. Sempre no mês de dezembro, realiza-se reunião de planejamento para definir algumas diretrizes a esse respeito.

A equipe técnica da IFI também foi sofrendo alterações em relação ao seu quadro inicial. Como explicado, dois servidores do Senado tornaram-se Diretores, ao longo dos últimos quatro anos. Além disso, os dois servidores cedidos pelo Ministério do Planejamento saíram da equipe, tendo sido substituídos por outros economistas contratados com o espaço orçamentário contido no Ato nº 10 de 2016. Hoje, a IFI conta com um economista com doutorado, dois economistas com mestrado e dois economistas com nível de graduação, além de uma secretária e assistente administrativa. Além disso, há dois estagiários[29] a auxiliar a equipe e os Diretores. Os três diretores funcionam também como analistas, isto é, participam ativamente da elaboração dos produtos da IFI, além de exercerem suas funções administrativas no Conselho Diretor. É importante notar, para que se tenha a dimensão do orçamento de pessoal destinado à IFI, que a formação acima descrita já preenche praticamente 100% do orçamento disponível[30].

Destaca-se que, dentro do processo de “institutional building”, a IFI conseguiu que o Conselho de Assessoramento Técnico (CAT) fosse instalado, em 2019, pelo Presidente do Senado Davi Alcolumbre, conforme prevê o parágrafo 9º do artigo 1º da Resolução 42. Os cinco nomes apontados pelo Diretor-Executivo Felipe Salto foram: Yoshiaki Nakano, Diretor da Escola de Economia de São Paulo da FGV e ex-Secretário da Fazenda de São Paulo; José Roberto Afonso, pesquisador e professor do IDP e Doutor em Economia pela Unicamp; Monica de Bolle, professora da Johns Hopkins University; Gustavo Loyola, ex-Presidente do Banco Central; e Bernard Appy, Diretor do Centro de Cidadania Fiscal.

O CAT foi regulamentado pelo Ato nº 8 do Presidente do Senado, de 25 de março de 2019[31]. Nele, o instala-se o Conselho com os membros indicados pelo Diretor-Executivo da IFI. Os membros não são remunerados e exercem a função de ampla assessoria consultiva, em reuniões organizadas semestralmente. A primeira reunião do Conselho de Assessoramento Técnico foi pública e transmitida pela TV Senado. O evento contou com a presença de autoridades do Executivo e do Legislativo, economistas do mercado e jornalistas[32].

A instalação formal do CAT, ainda que a IFI já contasse com o apoio informal de economistas que vieram a compor o Conselho, foi um passo que completou, por assim dizer, as etapas principais de construção da instituição previstas na Resolução nº 42.

 

  1. Balanço de quatro anos

A IFI é inspirada em experiências internacionais importantes, a exemplo do “Congressional Budget Office” (CBO), nos Estados Unidos, e do “Office for Budget Responsibility” (OBR), no Reino Unido, já mencionados anteriormente. A OCDE congrega essas experiências e acompanha suas atividades por meio de uma rede, da qual a IFI brasileira passou a fazer parte, na categoria de “key partner country”, em base de dados publicada pelo organismo multilateral citada na seção 4.

O Conselho de Finanças Públicas (CFP) de Portugal é uma terceira referência fundamental, não apenas pela proximidade cultura e linguística, mas pela forma de atuação e modelo de governança. A IFI já participou de dois encontros anuais da rede de IFIs da OCDE, na Coreia do Sul e em Portugal. No encontro de Seul, em 2018, o Diretor-Executivo da IFI firmou um memorando de entendimentos para troca de experiências no campo técnico entre a IFI sul-coreana – “National Assembly Budget Office” (NABO) – e a IFI do Senado Federal do Brasil[33]. Na ocasião, o Diretor-Executivo da IFI também fez uma apresentação sobre a IFI brasileira[34].

A rede da OCDE é muito rica, do ponto de vista da troca de experiências, sobretudo para a instituições mais recentemente criadas, como é o caso da IFI brasileira. Como resultado dos diálogos e contatos, a IFI tem conseguido estabelecer trocas constantes de informações, mesmo à distância, coletar informações de outras instituições ao redor do mundo, além de reportar à OCDE os avanços obtidos. Em 2020, o Estudo Especial sobre o modelo macroeconômico da IFI foi enviado à equipe da OCDE, traduzido para o inglês, e a receptividade foi positiva. O avanço no uso de instrumentos e modelagem adequada, nas tarefas das IFIs, é algo fundamental para se buscar um resultado satisfatório em termos de análises e projeções econômicas e fiscais, incluindo simulações de impacto, a exemplo dos estudos publicados pela IFI em 2019, ao longo da tramitação da reforma da previdência no Congresso Nacional.

Por ocasião do aniversário de quatro anos da IFI, no fim de novembro, o jornal O Estado de S. Paulo publicou duas reportagens relatando as atividades e resultados obtidos pela instituição, inclusive trazendo a opinião de economistas da OCDE a respeito da IFI brasileira[35]. A atuação junto à imprensa é fundamental para o desempenho da IFI, como mostramos na revisão de literatura deste capítulo. A esse respeito, a IFI consolida, diariamente, em seu site[36], as citações de seus trabalhos pela imprensa. A partir disso, é possível observar que, em quatro anos de funcionamento, a IFI teve 2.692 aparições na imprensa nacional, o que corresponde a uma média de 1,8 ao dia. A evolução, entre o fim de 2016 e 2020, pode ser vista na Tabela 4 a seguir[37].

 Tabela 4. Aparições da IFI do Senado Federal na imprensa

Do ponto de vista do número de publicações, a IFI já produziu 48 Relatórios de Acompanhamento Fiscal (RAFs), 14 Estudos Especiais (EEs), 45 Notas Técnicas (NTs) e 9 Comentários da IFI (CIs), totalizando 2.911 páginas publicadas. O RAF contém, na sua versão atual, três seções básicas: Contexto Macroeconômico, Conjuntura Fiscal e Orçamento[38]. O objetivo do produto é analisar os principais indicadores econômicos e fiscais, acompanhar as publicações do governo cotejando suas projeções e análises às realizadas pela IFI, acompanhar o cumprimento das metas fiscais e apresentar os cenários projetados pela instituição.

Duas vezes ao ano, em maio e em novembro, são revisados os três cenários de estimativas da IFI: base, otimista e pessimista, e reapresentados no RAF, que então assume formato um pouco distinto. Em anos atípicos, com foi 2020, em razão da crise pandêmica da Covid-19, a IFI acaba apresentando maior número de revisões. Em 2020, foram quatro RAFs contendo revisões dos cenários prospectivos para dívida e déficit público, receitas e despesas do governo central, PIB, inflação, taxa de juros, taxa de juros real, taxa de câmbio, mercado de trabalho, dentre outras variáveis. Além dos textos, também veiculamos arquivo em planilha eletrônica com todos os dados, tabelas e gráficos contidos na publicação[39].

Os EEs servem ao propósito de analisar um tema com maior profundidade e pode ser metodológico ou temático. Têm como característica trazer revisão de literatura, comparação internacional e uso de instrumentos metodológicos para avançar sobre determinado assunto. A IFI já realizou EEs sobre: estimativa do hiato do produto; projeções de dívida bruta; situação fiscal dos estados; previdência; metodologia de projeção do PIB; reservas internacionais; operações compromissadas; despesas de pessoal; previdência estadual; balanço patrimonial da União; Regra de Ouro; dentre outros[40].

As NTs são estudos de menor alcance, mas também seguem rigor técnico e analítico, servindo, normalmente, para explorar assuntos que subsidiarão as projeções, cálculos de impacto e elaboração de cenários pela IFI. Dentre os temas tratados em NTs, estão: gastos em Defesa Nacional; cálculos de efeito fiscal do Benefício Emergencial do Emprego (BEm); análises das finanças dos estados; cálculo de impacto do Auxílio Emergencial a Vulneráveis (AE); impacto do Programa de Contrato Verde e Amarelo; custo de carregamento das reservas internacionais; impacto dos juros na dívida pública; análise das propostas de reforma tributária; diversos trabalhos sobre a reforma da previdência; Orçamento Impositivo; Desvinculação das Receitas da União (DRU); FAT e BNDES; Abono Salarial; Benefício de Prestação Continuada (BPC); relação Tesouro-Banco Central; riscos fiscais da União; FGTS; impacto de decisão do STJ sobre aposentadorias; teto de gastos; elasticidade receita-PIB; deflator do PIB; gastos tributários; capacidade de pagamento dos estados (capag); cálculos sobre o resultado primário mensal; atividade econômica e PIB; análise da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO); dentre outros.

Por fim, os Comentários da IFI (CIs), criados mais recentemente, em 2019, servem para manifestações que precisem ser mais rápidas a respeito de algum evento da conjuntura ou, ainda, posicionamentos institucionais do Conselho Diretor. Um exemplo recente foi a análise do teto de gastos assinada pelos três membros do Conselho Diretor da IFI[41].

Vale registrar que eventos da conjuntura política, fiscal e econômica influenciam a escolha dos temas. Em 2019, por exemplo, a IFI publicou diversos trabalhos sobre a reforma da previdência, acompanhando sua tramitação e elaborando cálculos de impacto de cada medida e alteração proposta no parlamento. Os cálculos foram utilizados para cotejamento com os números do governo federal, cumprindo-se, assim, a função de qualificar o debate público e colaborar para a transparência e a disciplina fiscal. Já em 2020, a crise da covid-19 requereu revisões mais frequentes dos cenários e cálculos de impacto fiscal das diversas medidas anunciadas, incluindo análises com microdados sobre o Auxílio Emergencial a Vulneráveis, as transferências a estados e municípios, o apoio às empresas e os gastos em saúde.

A respeito deste último tópico, em 2020, a IFI desenvolveu um painel de dados para acompanhamento da execução do chamado Orçamento de Guerra, instituído por Emenda Constitucional, para facilitar o acesso da sociedade a informações sobre os gastos relacionados à covid-19[42]. Além desta base especial, a IFI mantém, em seu site, um repositório de dados com séries calculadas pela instituição ou dados por ela trabalhados[43].

Além dos produtos publicados, a IFI realiza outras atividades: organização de seminários técnicos (ou webinários, como em 2020[44]); participação em Comissões do Senado Federal e da Câmara dos Deputados; participação específica na CAE para apresentar revisões de cenários e acompanhamento fiscal (prevista na Resolução nº 42); reuniões com organismos multilaterais, membros dos órgãos da área econômica do Executivo, órgãos de assessoramento do Legislativo, Tribunal de Contas da União, economistas do mercado, parlamentares e jornalistas; realização de palestras ou conversas com instituições privadas e públicas para apresentação dos trabalhos da IFI; participação em seminários acadêmicos; publicação de artigos e concessão de entrevistas à imprensa; e reuniões com acadêmicos da área de economia e contas públicas.

Por fim, ainda sobre as atividades da IFI, nestes quatro primeiros anos, vale destacar o recebimento de dois Prêmios do Tesouro Nacional. Um deles, na 1ª colocação, foi concedido ao trabalho sobre reservas internacionais (custo, nível ótimo e relação com a dívida pública) publicado pelo Diretor Josué Pellegrini, na forma de Estudo Especial[45], e submetido à referida premiação, ocorrida em 2017. O segundo prêmio, uma menção honrosa, também no âmbito do Prêmio de Monografias em Finanças Públicas do Tesouro Nacional, foi concedido em razão do Estudo Especial desenvolvido pelo analista da IFI Alessandro Casalecchi, pelo então Diretor Rodrigo Orair, com apoio do estagiário Pedro Henrique Oliveira. O trabalho versa sobre as despesas dos regimes próprios dos servidores civis da União[46].

Além disso, o reconhecimento dos parlamentares tem sido crescente. A IFI recebe demandas que são, sempre que possível, adequadas aos trabalhos desenvolvidos pela instituição, preservando, assim, sua independência. Realiza, com frequência, reuniões com parlamentares para discutir questões fiscais, cenários e conjuntura econômica. O uso dos relatórios da IFI pelos gabinetes parlamentares é também um indicativo relevante.

Os desafios, para os próximos anos, concentram-se no maior fortalecimento institucional, incluindo questões de estrutura e orçamento, na manutenção do ritmo de publicações e da repercussão na imprensa especializada e geral, na ampliação da equipe e no desenvolvimento de mais trabalhos envolvendo o cálculo de medidas que tenham efeito fiscal relevante. Na parte de elaboração de projeções e no acompanhamento das metas fiscais, entende-se que a IFI já avançou de maneira significativa, mas pode dar novos passos para consolidar metodologias de projeção, por meio de publicações técnicas, tempestivamente. Uma questão adicional, que deve ser debatida, é a eventual vinculação constitucional da IFI, a partir da experiência acumulada até aqui e do modelo vigente, fundamentado na Resolução do Senado, que tem força de lei.

 

  1. Conclusões

Neste capítulo, discutimos o contexto geral de criação e consolidação das Instituições Fiscais Independentes (IFIs) ou Conselhos Fiscais, à luz da literatura relevante e da experiência internacional. Em seguida, discute-se o caso da IFI do Senado Federal, o conselho fiscal brasileiro, criado em novembro de 2016 como resposta à crise econômica e fiscal vivenciada pelo Brasil. Uma preocupação central dos países europeus, principalmente, que criaram boa parte de suas instituições no pós-crise de 2008, é o chamado “viés deficitário” da política fiscal e a necessidade de se ter maior acompanhamento e transparência nas contas públicas. As regras fiscais, isoladamente, não se mostraram suficientes para levar a condutas fiscais mais responsáveis, o que está na gênese das IFIs.

Os estudos disponíveis sobre a efetividade da atuação das IFIs indicam que elas exercem seu papel em contextos em que está garantida a independência de seu corpo diretivo, sobretudo na definição dos estudos, análises e trabalhos que escolhe desenvolver. Também a imprensa é fundamental para a atuação dos “watchdogs”, pelo fato de que essas instituições têm o único poder de produzir informações. Assim, para que sua atuação seja efetiva para ajudar a qualificar o debate e melhorar a disciplina fiscal, o uso dos dados produzidos pela imprensa torna-se uma dimensão central.

No caso da IFI brasileira, os quatro anos de atuação revelam que são bastante positivos os resultados colhidos, com ampla presença na mídia e crescente consolidação interna, no Senado Federal, ao qual a IFI está vinculada. O desafio, daqui em diante, é avançar na estrutura de pessoal, orçamentária, mantendo e ampliando o escopo dos produtos entregues pela instituição.

 

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Referências bibliográficas

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[1] Felipe Scudeler Salto é diretor-executivo da IFI e membro do Instituto Fernand Braudel.

[2] Rafael da Rocha Mendonça Bacciotti é analista da IFI.

[3] Pode ser consultado em: https://eur-lex.europa.eu/legalcontent/EN/TXT/PDF/?uri=CELEX:32013R0473&from=EN

[4] Disponível em: http://www.oecd.org/gov/budgeting/recommendation-on-principles-for-independent-fiscal-institutions.htm

[5] Disponível em: https://www.imf.org/external/np/fad/council/

[6] OECD Independent Fiscal Institutions Database (2019), http://www.oecd.org/gov/budgeting/OECD-Independent-Fiscal-Institutions-Database.xlsx  

[7] A IFI brasileira estima o custo de eventos fiscalmente relevantes, por exemplo, a reforma previdenciária que teve aprovação definitiva em 2019 e as medidas de combate à crise do coronavírus ao longo de 2020.

[8] No Brasil, a equipe é composta por 8 analistas (já incluídos os 3 diretores) e 1 secretária e assistente administrativa. Note-se que os 3 diretores também produzem estudos técnicos, junto com os analistas.

[9] Média simples do número de funcionários (tempo integral) das 36 IFIs em operação.

[10] No Brasil, a IFI explica e mostra suas hipóteses e tem como objetivo publicar todas as metodologias e questões técnicas no futuro. Em setembro de 2020, por exemplo, foi publicado o Estudo Especial n. 13 sobre a metodologia de previsões das variáveis macroeconômicas, que pode ser acessado aqui – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-1/estudos-especiais/2020/setembro/estudo-especial-no-13-metodologia-de-previsao-das-variaveis-macroeconomicas-set-2020-1

[11] Disponíveis na página da OCDE sobre o “Network of Parliamentary Budget Officials and Independent Fiscal Institutions”: http://www.oecd.org/gov/budgeting/parliamentary-budget-officials/

[12] Disponível em: http://www.oecd.org/economy/surveys/Brazil-2018-OECD-economic-survey-overview.pdf

[13] Veja aqui a matéria da Agência Senado sobre o assunto, com o link para acesso ao relatório do FMI – https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/08/07/fmi-destaca-criacao-da-instituicao-fiscal-independente

[14] A Resolução 42 foi um projeto inserido na chamada “Agenda Brasil”, do Senado Federal, tendo sido desenvolvida pelo então Presidente Renan Calheiros e pelo Senador José Serra, com apoio do corpo técnico do Senado, destacando-se o papel do servidor do Senado Federal Leonardo Ribeiro neste processo. Acesse aqui a íntegra da Resolução – https://legis.senado.leg.br/norma/582564/publicacao/17707278

[15] Ainda que, como resultado do trabalho, os parlamentares se beneficiem do trabalho, acessando os relatórios, dialogando com a equipe e o corpo diretivo da IFI sobre conjuntura, cenários etc.

[16] Matéria jornalística sobre a posse do 1º Diretor-Executivo e início das atividades da IFI – https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/11/30/diretor-executivo-da-instituicao-fiscal-independente-toma-posse

[17] Salto tem experiência em análise das contas públicas, tendo trabalhado em consultoria, academia e no Legislativo. Possui Mestrado em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e experiência em docência na mesma instituição. Foi também Assessor Legislativo no Senado e, à época, havia publicado o livro “Finanças públicas: da contabilidade criativa ao resgate da credibilidade” (Editora Record, 2016. Prêmio Jabuti – 2017), junto com o economista Mansueto Almeida, ex-Secretário do Tesouro Nacional. Foi um dos primeiros economistas do mercado a falar sobre a chamada “contabilidade criativa”, ainda em novembro de 2009, em parceria com o ex-Ministro da Fazenda Mailson da Nóbrega. https://www.estadao.com.br/noticias/geral,contabilidade-criativa-turva-meta-fiscal,474130

[18] Matéria jornalística sobre a criação da IFI – https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/11/29/felipe-salto-e-aprovado-para-direcao-executiva-da-instituicao-fiscal-independente

[19] Vídeo da aprovação em plenário da primeira indicação à Diretoria-Executiva da IFI – https://www12.senado.leg.br/noticias/videos/2016/11/senado-aprova-indicacao-de-felipe-salto-para-diretor-da-instituicao-fiscal-independente

[20] Acesse aqui o Ato nº 10 e modificações feitas no mesmo ano, pelo Ato nº 18 – https://www12.senado.leg.br/ifi/sobre-1/copy_of_sobre

[21] O Relatório de Acompanhamento Fiscal (RAF) nº 1 pode ser acessado aqui – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-1/relatorio/2017/fevereiro-de-2017/raf-relatorio-de-acompanhamento-fiscal-fev-2017

[22] Reportagem da Agência Senado sobre o primeiro relatório da IFI – https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/02/02/instituicao-fiscal-aponta-que-emenda-do-teto-de-gastos-nao-conseguira-tirar-pais-do-vermelho

[23] Acesse aqui o RAF nº 48 – https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/583296/RAF48_JAN2021.pdf

[24] Vídeo sobre a 1ª coletiva à imprensa realizada pela IFI –  https://www12.senado.leg.br/noticias/videos/2017/02/instituicao-fiscal-independente-retomada-economica-depende-de-novas-medidas

[25] Leia aqui a íntegra do artigo – https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,o-papel-da-instituicao-fiscal-independente,10000097557

[26] Esta Comissão foi alterada, desde a publicação da Resolução 42, mas a sua designação atual é esta: CTFC. A alteração implicou mudança no texto da Resolução 42, que pode ser vista no link indicado anteriormente, no texto compilado da norma.

[27] Gabriel Barros já era membro da equipe de analistas da IFI, com experiência em análise das contas públicas, no setor privado, em banco e no Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da FGV

[28] Rodrigo Orair é pesquisador do Ipea, com experiência na análise das contas públicas e da economia nacional, sobretudo no assunto sistema tributário nacional.

[29] Para fins da comparação apresentada na seção 4, não consideramos os estagiários, pois ainda em processo de formação.

[30] Veja os currículos dos Diretores e Equipe da IFI aqui – https://www12.senado.leg.br/ifi/sobre-1/copy_of_equipe

[31] Acesse aqui o Ato do Presidente do Senado Federal que criou o CAT – https://legis.senado.leg.br/diarios/ver/100325?sequencia=145#diario

[32] Os anais do evento inaugural podem ser encontrados aqui – https://www12.senado.leg.br/ifi/conselho/sobre-1

[33] Veja aqui o Memorando de Entendimentos – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-1/apresentacoes-e-outros-documentos/2018/julho/memorando-de-entendimento-entre-o-national-assembly-budget-office-da-republica-da-coreia-e-a-instituicao-fiscal-independente-do-senado-federal-do-brasil

[34] Acesse aqui o documento apresentado em Seul – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-1/apresentacoes-e-outros-documentos/2018/julho/the-creationand-operationof-theindependentfiscal-institutionof-thebrazilianfederal-senate-oecd

[35] Matérias sobre os quatro anos de atividades da IFI – 1. https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,ifi-faz-parte-de-rede-global-de-monitoramento,70003533490 e 2. https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,como-funciona-o-cao-de-guarda-das-contas-publicas,70003533476

[36] Veja o “IFI na Mídia”, em nosso site –  https://www12.senado.leg.br/ifi/

[37] Além disso, os membros da IFI publicaram, no período, 39 artigos de opinião em diferentes veículos.

[38] Durante algum tempo, a IFI publicava algumas análises tópicas dentro do próprio RAF, mas passou a criar produtos específicos para atender a esse objetivo.

[39] Os arquivos completos dos Relatórios de Acompanhamento Fiscal (RAF) podem ser acessados aqui – https://www12.senado.leg.br/ifi/relatorio-de-acompanhamento-fiscal

[40] Todos os Estudos Especiais (EEs) da IFI podem ser acessados aqui – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-estudos-especiais.

[41] Comentários da IFI (CI) nº 9 – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-1/comentarios-da-ifi/ci-comentario-da-ifi-no-9-consideracoes-sobre-o-teto-de-gastos-da-uniao

[42] O painel covid pode ser acessado aqui – https://www12.senado.leg.br/ifi/covid-19/painel-de-creditos-covid-19

[43] Acesse aqui para consultar o repositório da IFI – https://www12.senado.leg.br/ifi/dados/dados

[44] No canal da IFI, no YouTube, podem ser encontrados os vídeos das gravações dos webinários realizados em 2020 e outros vídeos elaborados pela instituição ou decorrentes de entrevistas – www.youtube.com.br/instituicaofiscalindependente.

[45] Veja aqui a íntegra do Estudo Especial nº 1 – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-1/estudos-especiais/2017/marco-de-2017/estudo-especial-no-01-o-custo-fiscal-das-reservas-mar-2017

[46] Veja aqui a íntegra do Estudo Especial nº 10 – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-1/estudos-especiais/2019-1/julho/estudo-especial-no-09-despesas-do-rpps-dos-servidores-civis-uniao-jul-2019

 

* Capítulo do livro Governança Orçamentária no Brasil, organizado por Leandro Freitas Couto e Júlia Marinho Rodrigues (Brasília: IPEA, 2021), disponibilizado em early view no site do IPEA.

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O crime compensa? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3479&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-crime-compensa Wed, 14 Jul 2021 19:36:21 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3479 O crime compensa?

Por Luiz Alberto Machado*

Chama a atenção o volume de matérias divulgadas na mídia ou nas redes sociais envolvendo temas relacionados ao crime e à corrupção no Brasil.

Mesmo admitindo que há crime e corrupção no mundo todo e que a pandemia  expandiu os estímulos à prática de atos ilícitos em razão da redução do nível de atividade econômica e da menor oferta de empregos formais, a sensação que se tem é que no Brasil o volume supera o normal.

Sensação, aliás, confirmada pela Transparência Internacional, organização não governamental dedicada à produção de um índice comparativo da percepção de corrupção em 180 países. A escala do índice vai de 0 a 100, em que 0 significa que o país é percebido como “altamente corrupto” e 100 é a avaliação de um país percebido como “muito íntegro”. Notas abaixo de 50 indicam níveis graves de corrupção.

Na última edição do IPC (Índice de Percepção da Corrupção), publicada janeiro de 2021, a nota do Brasil (38) ficou abaixo da média da América Latina (41) e mundial (43) e distante da média dos países do G20 (54) e da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) (64).

A combinação de elevado volume de matérias sobre crimes e de alto índice de percepção da corrupção leva à seguinte pergunta: o crime compensa no Brasil?

Uma possível resposta a essa pergunta pode ser buscada na teoria econômica, graças, sobretudo, à contribuição de Gary Becker, ganhador do Nobel de Economia em 1992, “por haver estendido os domínios da análise microeconômica ao vasto campo do comportamento humano e das suas interações, incluindo o comportamento não mercadológico”.

Becker, que se engajara, de 1964 a 1967, numa linha de pesquisa liderada por Jacob Mincer e Theodore Schultz voltada à teoria do capital humano, ampliou consideravelmente a problemática neoclássica (base da teoria do capital humano) ao estender para diversos outros fenômenos da vida social o mesmo argumento utilizado na análise do investimento em capital humano, fundamentada na racionalidade dos indivíduos. Nas mais diferentes situações – para se casar, para se dedicar ao crime, para consumir drogas, para ter filhos, para comprar um eletrodoméstico ou para se divorciar – o indivíduo toma sua decisão comparando racionalmente os custos e os benefícios, tendo em mente a maximização de sua satisfação.

Como observa Shikida[1], “a economia do crime, portanto, é uma das abordagens no campo das ciências sociais aplicadas que procura entender as motivações para o crime a partir da análise econômica. No artigo “Crime and punishment: an economic approach”, publicado em 1968, Becker, utilizando-se de modelagem matemática, ressaltou que uma pessoa propensa ao crime pondera, racionalmente, os custos e benefícios esperados de sua prática ilícita, para, a partir daí, escolher atuar (ou não) no mercado econômico ilegal”.

Detalhando mais o argumento, o indivíduo racional compara os ganhos que pode obter com as atividades ilícitas aos seus custos, considerando as possibilidades de ser capturado e a extensão da pena. Pode parecer simples, mas há uma série de variáveis envolvidas nessa análise. Pelo lado dos benefícios, o indivíduo compara o que será possível ganhar e em quanto tempo de “trabalho”. Leva em conta, alternativamente, quanto ganharia no exercício de uma atividade profissional regular, na qual provavelmente teria que trabalhar em tempo integral. Pelo lado dos custos, ele vai levar em conta as chances de ser flagrado, de ser condenado e de efetivamente ter que cumprir a pena. Se, por exemplo, for um indivíduo de baixa qualificação, sem maiores oportunidades de obter um emprego com remuneração elevada, a perspectiva de correr risco na atividade criminosa torna-se mais atraente. Se ele considerar que a chance de ser flagrado e condenado é remota em razão do número reduzido de policiais, do despreparo dos mesmos ou dos equipamentos limitados de que dispõem, a perspectiva torna-se mais atraente ainda. Se, ainda por cima, ele constatar que a legislação oferece uma série de atenuantes e que por falta de presídios a tendência dos juízes é de aplicar penas suaves, sendo, portanto, muito remota a hipótese de ter que passar um período muito longo de tempo atrás das grades, a chance de optar pelo crime é muito grande. Afinal, com essas variáveis todas, a conclusão a que o indivíduo chega é de que “o crime compensa”.

Evidentemente, se as variáveis fossem outras, como por exemplo: de um lado, o indivíduo possui bom nível de qualificação, a atividade econômica está em fase de expansão, estão surgindo boas oportunidades de emprego e a chance de obter salários elevados é alta; e de outro lado o sistema de segurança é eficiente, recebe polpudos investimentos públicos, resultando num efetivo policial bem preparado e equipado, capaz de exercer com competência o combate ao crime, agindo tanto na prevenção como na repressão, o sistema judicial é ágil, permitindo a tramitação rápida dos processos e as penas são duras, tendo que ser cumpridas à risca, a possibilidade de se sair bem na atividade criminosa se reduz acentuadamente, e o indivíduo irá pensar muito mais antes de se dedicar a ela, já que na sua percepção, “o crime não compensa”.

Diante de tais considerações, a conclusão inevitável é de que no Brasil o crime compensa, pois, além de graves problemas na educação, que geram enorme quantidade de profissionais com baixa qualificação, temos um número muito baixo de crimes esclarecidos ou de atos de corrupção efetivamente punidos. E, quando ocorre a punição, a possibilidade de cumprimento integral da pena também é muito baixa.

Entre outros prejuízos decorrentes dessa situação, está o afugentamento de investimentos estrangeiros diretos, algo fundamental para um país cuja população – ou por não ter condições ou por uma questão cultural – não cultiva o hábito da poupança, pré-requisito indispensável para o investimento. Por isso, a atração de capitais provenientes do exterior é essencial para a preservação da nossa incipiente taxa de investimento.

 

* Luiz Alberto Machado é economista, mestre em Criatividade e Inovação e conselheiro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no Blog de Fausto Macedo em O Estado de S. Paulo em 14 de julho de 2021.

[1] Disponível em http://www.brasil-economia-governo.org.br/2021/06/07/economia-do-crime/.

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Economia do crime https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3453&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=economia-do-crime Mon, 07 Jun 2021 14:09:25 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3453 Economia do crime: o caso do contrabando de cigarro

Por Pery Francisco Assis Shikida*

A economia do crime é uma das abordagens no campo das ciências sociais aplicadas que procura entender as motivações para o crime a partir da análise econômica. Um dos maiores expoentes dessa área é Gary Stanley Becker, saudoso professor da Universidade de Chicago e autor do artigo “Crime and punishment: an economic approach” (1968). Utilizando-se de modelagem matemática, Becker ressaltou que uma pessoa propensa ao crime pondera, racionalmente, os custos e benefícios esperados de sua prática ilícita, para a partir daí escolher atuar (ou não) no mercado econômico ilegal. Mas, conceitualmente o que é um mercado econômico ilegal? É o ambiente no qual ocorrem os crimes considerados de natureza lucrativa, ou seja, delitos que visam, per se, benefícios financeiros como roubo, furto, tráfico de drogas, receptação, estelionato, contrabando etc. Crimes como estupro, tortura, homicídios passionais etc. não têm como escopo final o lucro.

Complementando, para Fragoso (1982, p. 1) crime de natureza lucrativa é todo aquele “[…] cuja objetividade jurídica reside na ordem econômica, ou seja, em bem-interesse supra-individual, que se expressa no funcionamento regular do processo econômico de produção, circulação e consumo de riqueza”. Vale destacar que crime é todo “ato de transgressão de uma lei vigente na sociedade” (BRENNER, 2001, p. 32).

Para Becker (1968), postulando que os indivíduos são racionais, o tratamento matemático de uma atividade econômica ilícita pode ser sumarizado pela utilidade esperada (Ui), de um lado da equação, que é igual à realização de uma atividade ilícita (Ri) vezes a probabilidade de não ser preso [1 – p(r)], menos o custo de planejamento e execução do crime (Ci), o custo de oportunidade (Oi), o valor esperado da punição caso esse indivíduo seja preso [p(r) . Ji], subtraindo também a perda moral originária da execução do crime (Wi), tudo isto do outro lado dessa equação. De tal forma, tem-se:

Ui = [1 – p(r)] . RiCiOi – [p(r) . Ji] – Wi      (1)

Nesse sentido, se o benefício líquido dessa utilidade esperada Ui for positivo, o crime tende a ser efetuado, pois os benefícios são maiores vis-à-vis os custos. Convém ressaltar que nessa teorização Becker (1968) remontou à ideia do cálculo utilitarista e dissuasivo de Beccaria (1764) e Bentham (1843). Mutatis mutandis, no mercado ilegal, da mesma forma que em outro mercado econômico qualquer, o indivíduo age de maneira racional, sendo motivado por medidas dissuasórias ou incentivos, agindo de acordo com a lógica de obter o maior proveito possível de sua função utilidade.

Em sendo o foco da economia do crime explicar os comportamentos de pessoas que quebraram regras, com base na suposição de uma racional análise custo e benefício implícita nessa atividade ilícita, esta abordagem pode ser útil para elucidar o contrabando, mais especificamente, do cigarro. Sendo este o objetivo do presente artigo, metodologicamente usar-se-ão algumas referências como Schlemper (2018), Nickel (2019), Amaral (2019), Nicola et al. (2020) e Shikida (2018, 2020) nesta análise de cunho explicativo.

Dois pontos, imbricados entre si, precisam ser ressaltados preliminarmente. Primeiro, o cigarro figura como um produto que traz prejuízos à saúde do consumidor, devido ao vício que provoca. Portanto, algumas formas de desestimular seu consumo são via propaganda, políticas restritivas ao local de fumantes e/ou uso de alta tributação que elevem os preços. Como o cigarro apresenta demanda pouco flexível em relação ao aumento do preço, o aumento de tributos para desestimular seu consumo pode, por outro lado, incentivar o uso de produtos substitutos, leia-se contrabandeados (NICOLA et al., 2020). Em paralelo se discute o segundo ponto, qual seja, o contrabando de cigarros é um ato ilegal, consequentemente, seu combate é atributo da polícia e sua punição função do judiciário.

Sobre estes dois pontos apresentados cabe menção. A ideia de se preocupar com a saúde do consumidor é correta. Não obstante, a tributação atualmente empregada com o objetivo de elevar os preços finais do cigarro, visando desestimular seu consumo, no caso da existência de produtos substitutos para o cigarro legal, acaba favorecendo o cigarro contrabandeado. Outrossim, sabidamente a repressão nas fronteiras é importante e indispensável, mas não é suficiente, pois o mercado do cigarro contrabandeado vem crescendo assustadoramente (FSBCOMUNICAÇÃO, 2020). Ademais, em Nickel (2019) se verifica que grande parte do tempo do judiciário fronteiriço em Foz do Iguaçu (Paraná) se destina aos esforços de apuração, julgamento e punição dos casos de contrabando. É muito tempo despendido com um problema que já é crônico e que precisa ser eficazmente resolvido.

A carga tributária sobre cigarros lícitos, com tributos pagos, subiu 52% acima da inflação desde o aumento da alíquota de Imposto sobre os Produtos Industrializados sobre cigarros ocorrida em 2011. O preço médio dos cigarros lícitos aumentou 40% em termos reais no período 2009-2014. As estimativas apontam para o preço médio dos cigarros lícitos em torno de R$7,51/maço, já dos cigarros ilícitos é de R$3,44/maço. Como concorrer com cigarros contrabandeados diante desse cenário? A arrecadação tributária caiu, apesar da elevação das alíquotas, devido à queda das vendas de cigarros lícitos. Como corolário, o market-share atual do mercado ilícito é de 57%, com tendências para se elevar. O prejuízo na arrecadação devido ao poder do mercado ilegal (evasão causada pelo mercado ilegal de cigarros), em 2019, foi de R$12,2 bilhões (FSBCOMUNICAÇÃO, 2020).

A partir da compilação de alguns resultados de Schlemper (2018), Nickel (2019), Amaral (2019) e Shikida (2018, 2020), lamentavelmente observa-se que o crime de natureza financeira está, de modo geral, compensando no País. Isto porque os benefícios estão maiores do que os custos dessa atividade ilegal. Destarte, o ganho médio do contrabando de cigarros equivale a 49,3% do ganho médio do tráfico, enquanto o custo e o saldo médio desse contrabando equivalem, respectivamente, 36,1% e 59,4% do custo e saldo médio do tráfico.[1] A lógica implícita no contrabando de cigarro é ganhar menos relativamente ao tráfico, porém, o risco de morte e de punição mais severa (o tráfico é considerado crime hediondo) é diametralmente oposta.

De modo inovador, e com base na equação de Becker (1968), Nickel (2019) perguntou qual o maior receio diante da efetividade de uma prática econômica criminosa (Ri) para amostra considerável de apenados de determinada Vara Federal de Foz do Iguaçu, sendo a maioria dos entrevistados condenados por contrabando. Dito de outra forma, qual o maior receio de um delinquente quando realiza seu crime econômico?

Inusitadamente, a perda da moral foi o maior temor diante de um ato ilegal praticado (41,4% dos pesquisados apontaram a variável Wi como maior receio). Em segundo lugar apareceu a probabilidade de ser preso [p(r)], conquanto 28,8% dos pesquisados apontaram a chance de serem presos como o segundo maior temor na prática de sua ilicitude. Nessa sequência, tem-se ainda o custo de execução e planejamento do crime (Ci), 12,6%; intensidade da pena [p(r) . Ji], 9,9%; e custo de oportunidade (Oi), 6,3%.

Ora, era de se esperar que os dois maiores receios diante de uma prática criminosa econômica fossem, não necessariamente nesta ordem, a probabilidade de ser preso [p(r)] e a intensidade da pena [p(r) . Ji]. Além disso, realça-se que a distância entre a perda da moral (41,4%) para a segunda posição, probabilidade de ser preso (28,8%), foi consideravelmente elevada (12,6 pontos percentuais). Por que isto vem ocorrendo? No caso específico do contrabando, segundo os entrevistados (frisa-se, a maioria por contrabando), em função de a principal motivação para seus crimes estar “relacionada com a ideia de ganho fácil/indução de amigos/cobiça, ambição, ganância/inveja/manter o status […]”, bem como porque “em relação ao custo/benefício da atividade criminosa, 73% dos entrevistados disseram que o benefício foi maior que o custo, contribuindo para que essas pessoas migrem para o ilícito” (NICKEL, 2019, p. 6). Outro fato curioso é ver o custo de execução e planejamento do crime que, em caso de malogro, significa a perda da carga contrabandeada, estar à frente da intensidade da pena, um contrassenso!

Tais apontamentos obtidos de dados primários, ou seja, perguntou-se diretamente aos delinquentes, adicionado à impunidade e/ou baixa punição, como aplicação de penas substitutivas de prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas e de prestação pecuniária, favorecem tão somente a ilegalidade. Vale dizer que a chance de sucesso de um criminoso de natureza financeira é estimada em 95% (SHIKIDA, 2018). Não é por achismo que se diz que o poder de polícia, por mais efetivo e competente que seja, não conseguirá, sozinho, diminuir a criminalidade. Este poder é imprescindível, mas precisa de auxílio contundente.

O que precisa ser feito então? Ora, se o preço médio dos cigarros lícitos é de R$7,51/maço, enquanto dos cigarros ilícitos é de R$3,44/maço (FSBCOMUNICAÇÃO, 2020), o debate sobre a incidência tributária no cigarro nacional precisa ser revisto; e sem gerar externalidades negativas, como estimulando o tabagismo. De que forma? Com base na análise econômica do crime, lançando um cigarro no mercado com precificação especial, apropriado para competir e substituir o cigarro contrabandeado. Para tanto, urge derrubar a política de preço mínimo dos cigarros (hoje de R$5,00, portanto, acima do preço médio do cigarro ilícito) para esta categoria. Nessa lógica, assume-se como válida a hipótese de que os hábitos dos fumantes no Brasil não se alterarão significativamente em termos de aumento de consumo – há estudo que corrobora isto, vide: Nicola et al. (2020). Ao revés, ocorrerá, sim, uma substituição do hábito de consumir o cigarro contrabandeado (atualmente com assaz vantagem no mercado, mas de duvidosa qualidade fitossanitária de produção), para este cigarro de categoria especial que opera dentro das regras estabelecidas pelas instituições constituídas no Brasil. Vale dizer que o cigarro contrabandeado, pela ótica da demanda, devido ao seu baixo preço, atinge mormente as classes menos abastadas, sendo praticamente inexistente nas classes mais abastadas. Os cigarros mais caros continuarão com a tributação existente.

Diante dessas evidências, a eficiência dessa estratégia de criar uma categoria com tributação específica, dando competitividade para este cigarro nacional, conseguirá, junto com o poder de polícia, dar um duro golpe no contrabando de cigarros. Com isto, reduziremos uma externalidade negativa que é muito pouco citada, mas com fortes indícios de que seja uma prática constante, qual seja, as organizações criminosas no Brasil já estão operando também nesse mercado.

Desse modo, quebrando o contrabando de cigarros, atinge-se igualmente o crime organizado. Conforme vivências de um pesquisador no cárcere que entrevistou centenas de bandidos, algumas retratadas em Shikida (2018) e outras em dezenas de palestras proferidas por esse pesquisador, atesta-se que o cigarro ilícito deixou de ser atributo de um “simples atravessador”. Esse mercado está cada vez mais profissionalizado e umbilicalmente vinculado com organizações criminosas, contribuindo para o aumento da violência e criminalidade.

Com efeito, a economia do crime procura entender as motivações para a prática delituosa financeira. Porém, similarmente sinaliza para ideias que podem fazer com que o benefício líquido da utilidade esperada criminosa (Ui) possa ser menor do que os custos. Assim, no presente estudo é preciso ser estratégico não abdicando, primeiramente, do fortalecimento do poder de polícia e da respeitabilidade pelas instituições jurídicas, que devem atuar de forma crível e justa, contribuindo para a dissuasão ao crime pela ótica da oferta. Segundo, enfrentar este problema também pela ótica da demanda (via consumidor), pois a criação de uma categoria de cigarros especial, que possibilite à indústria nacional competir com o congênere contrabandeado, é uma ação estratégica viável e plenamente exequível, não engendrando externalidades negativas.

Finalizando, como estudioso da mente criminosa há 22 anos, buscando aprender sempre mais, percebi, dialogando com centenas de presos pelo Brasil afora, que “anjos” e demônios” são frutos de nossas mentes, originários da confluência de bases familiares, religiosas e educacionais de cada cidadão. Todavia, estes “anjos” e demônios” podem ser potencializados pelos incentivos e dissuasões que as nossas instituições reproduzem. Qual o seu papel ou da sua instituição no combate ao crime, reflita?

 

Referências

AMARAL, J. A. da S. Determinantes da entrada das mulheres no tráfico de drogas: um estudo para o Acre (Brasil). Doutorado em Desenvolvimento Regional e Agronegócio. Unioeste, Toledo/PR. 2019.

BECCARIA, C. Dei delitti e delle pene (1764). English edition: Bellamy R (ed.). On Crimes and Punishments and Other Writings (trans: Richard Davies et al.). Cambridge: Cambridge University Press, 1995.

BECKER, G. S. Crime and punishment: an economic approach. Journal of Political Economy, Chicago, v. 76, n. 2, p. 169-217, 1968.

BENTHAM, J. Principles of Penal Law. Works of Jeremy Bentham, ed. J. Bowring. 1843, vol. 1.

BRENNER, G. A racionalidade econômica do comportamento criminoso perante a ação de incentivos. Tese de Doutorado em Economia. UFRGS, Porto Alegre/RS. 2001.

FRAGOSO, H. C. Direito penal econômico e direito penal dos negócios. Revista de Direito Penal e Criminologia, n. 39, p. 122-129, 2018.

FSBCOMUNICAÇÃO. Media Briefing. Setembro 2020. 6 p.

NICKEL, H. Análise da execução penal envolvendo crimes econômicos no Paraná cuja pena privativa de liberdade foi substituída por prestação de serviços e/ou pecuniária. Mestrado em Desenvolvimento Regional e Agronegócio. Unioeste, Toledo/PR. 2019.

NICOLA, M. L.; SHIKIDA, P. F. A.; MARGARIDO, M. A. Análise da estratégia de redução do consumo de tabaco por meio da elevação dos preços no Brasil sob a ótica da teoria econômica: estimativa e implicações. Revista Planejamento e Políticas Públicas (no prelo).

SCHLEMPER, A. L. Economia do crime: uma análise para jovens criminosos no Paraná e Rio Grande do Sul. Doutorado em Desenvolvimento Regional e Agronegócio. Unioeste, Toledo/PR. 2018.

SHIKIDA, P. F. A. Memórias de um pesquisador no cárcere. Foz do Iguaçu: Editora IDESF, 2018.

SHIKIDA, P. F. A. Uma análise da economia do crime em estabelecimentos penais paranaenses e gaúchos: o crime compensa? Revista Brasileira de Execução Penal, v.1, p. 257-278, 2020.

 

* Pery Francisco Assis Shikida é doutor em Economia Aplicada pela ESALQ/USP. Professor Associado da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. E-mail: peryshikida@hotmail.com.

[1] Conforme estudos supracitados, em relação à avaliação do custo/benefício na prática do crime econômico, foi perguntado para os(as) apenados(as), em uma escala de 0 a 9, a partir de sua própria percepção, os custos e benefícios da prática criminosa de natureza econômica. A ideia é de captar uma relação numérica que dê a possibilidade de cálculo final do resultado líquido da atividade ilícita. O saldo médio se refere à diferença entre o benefício e o custo de todos(as) apenados(as) avaliados(as); assim é possível comparar, por exemplo, quanto o contrabando varia em relação ao tráfico e vice-versa.

 

 

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A Reforma Administrativa deve preceder a Reforma Tributária https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3344&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-reforma-administrativa-deve-preceder-a-reforma-tributaria Tue, 06 Oct 2020 12:50:24 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3344 A capacidade de uma sociedade de sustentar o seu Estado é o elemento básico para o estabelecimento de um adequado sistema tributário. É fundamental, portanto, definir o tamanho do Estado que se deseja, antes de desenvolver um novo arcabouço de tributos.

Qualquer coisa diferente desse princípio que se tente no presente momento tende a tornar-se mais um desgaste no já esgarçado modelo de produção brasileiro.

Objetivamente, como paliativo, é fundamental que se implante imediatamente uma simplificação tributária para poder melhorar o ambiente de negócios e que se comece a construir uma Reforma Administrativa para reduzir a dimensão do Estado brasileiro, comprovadamente maior do que a sociedade pode sustentá-lo.

Redimensionar o Estado é uma tarefa política, árdua e necessária e se baseia no princípio de que o Estado deve atuar nos espaços não ocupados pela iniciativa privada por desinteresse econômico, por medida de segurança e criação de condições para estímulos a atividades privadas, como algumas obras de infraestrutura. Os custos dessas atividades devem ser de responsabilidade da sociedade como um todo.

A título de exemplo, deveríamos ter como monopólio do Estado o exercício da justiça, a segurança pública, o ministério público, a defesa nacional, a política externa, a elaboração de leis reguladoras, algumas obras de infraestrutura para estímulo a atividades, o exercício da política econômica etc.

Atividades onde a atuação do Estado deve ter caráter corretivo por não haver interesse inicial do setor privado em atender à demanda, cabe àquele a função de reduzir as externalidades negativas e/ou estimular as externalidades positivas. Educação, saúde, infraestrutura de comunicações em alguns casos, transporte público, mobilidade urbana, através de parcerias privadas em habitação, portos, cabotagem, aeroportos, estradas, gasodutos, geração de energia etc. E, mesmo assim, nestas atividades como ajuste e participação por tempo limitado.

Em outras atividades tipicamente bem atendidas pela iniciativa privada ou, ainda que não estejam sendo atendidas em todo território nacional, não sejam essenciais para o bem-estar da população (bares, restaurantes, hotéis, comércio em geral, indústria de transformação, produção de bens e serviços em geral), a intervenção do Estado é mais custosa do que benéfica, e ele deve se manter alheio a essas atividades. Nessas atividades, a iniciativa privada tem maior eficiência e aloca melhor os recursos para atendimento adequado da demanda. 

Estes princípios simplificados deixam claro que o Estado brasileiro exacerbou suas atribuições. O uso do dinheiro público se converteu em descontrole e má gestão. O Estado brasileiro está presente de modo significativo em atividades onde sua atuação é pouco eficiente (ou quase completamente ineficiente), ou seja, com participação majoritária em empresas de comunicação, hotéis, empresa de projeto de trens (Trem Bala), refinarias, bancos, milhares de imóveis, geradoras e distribuidoras de energia elétrica, fábricas de remédios, mineradoras, entre outras muitas atividades que seriam melhor administradas pelo setor privado. 

Uma pergunta que cabe, a título de exemplo, é por que o Estado mantém ativos imobiliários sem utilidade e que geram despesas?

Estas questões demonstram ser este o melhor motivo para inibir qualquer mudança tributária sem que se realizem os ajustes pertinentes. A receita tributária significa cerca de 35% do PIB e os gastos, em condições normais, sem os efeitos da pandemia, chegam a 40% do PIB. 

A tarefa de ajuste dessa diferença é grandiosa. Para chegar ao limite de carga tributária em torno de 25%, aceitável para uma economia como a brasileira, seriam necessários 15 anos mantendo-se uma continuidade de políticas que permitissem uma redução de 1% ao ano. Alguém acredita neste ajuste em face das experiências históricas e confia que o atual governo está assumindo essa tarefa?

Essa redução de gastos passa, necessariamente, por rever e retirar privilégios das mais variadas esferas, comumente aquelas de natureza salarial e extra salarial de parte do funcionalismo público, além de rever condições de servidores públicos ativos, de forma negociada, colaborativa, gradual, mas inevitável. É possível acreditar nisso? 

Esses são os pontos de partida para que se discutam os princípios de uma Reforma Administrativa – o primeiro passo e único alicerce capaz de suportar a construção de uma engenharia tributária que não prejudique o contribuinte, aumentando a carga do Estado sobre o cidadão que trabalha, produz e consome e que com seus impostos sustenta a estrutura do Estado. É preciso ter em conta alguns pontos relevantes para entender a dificuldade de avançar numa Reforma Administrativa, senão vejamos.

  1. Teto dos Gastos Federal. Para uma redução de 1/40 avos nos gastos atuais, ou seja, uma redução de R$40 bilhões a cada ano, considerando zero de inflação e zero de crescimento do PIB, começando no primeiro ano com uma queda de R$1,6 trilhão e ir decrescendo anualmente até chegar a R$1 trilhão no 15º ano;
  2. Teto de Gastos Estadual e Municipal. A regra é semelhante, obrigando estados e municípios a acompanharem o orçamento federal. Gastos dos estados e municípios têm que ser reduzidos descontando-se os repasses recebidos e enviados, de forma a que somados, os gastos do setor público não ultrapassem 25% do PIB após 15 anos do ajuste. Esse ajuste não pode ser linear, dado que há repasses da União para estados e municípios e de estados para municípios de acordo com certas disparidades regionais. Mas as reduções de gastos de todos devem ser proporcionais a 1/40 avos da proporção do PIB local que gastam atualmente ao ano durante 15 anos;
  3. Após o ajuste de 15 anos o teto de gastos de cada nível acompanharia o crescimento da economia para manter o nível da carga tributária;
  4. Manutenção da regra de ouro de que o Governo não pode tomar créditos para pagar despesas correntes, só podendo captar para aquisição de capital incorporado ao patrimônio público;
  5. Desvinculação das Receitas dos Tributos. Saúde, segurança e educação terão metas de desempenho e não de gastos. As metas de gastos mínimos têm gerado aumento das despesas sem melhoria nos serviços. Caberia ao gestor público ser o mais eficiente possível e identificar suas prioridades de acordo com o momento e com a região. Onde o desempenho escolar está adequado e a segurança vai mal, o gestor poderia alocar recursos onde realmente precisa;
  6. Definir Meta de Resultado Nominal do PIB: em 15 anos o resultado nominal deverá ser zero, ou seja, o resultado primário deverá melhorar ano a ano a ponto de em 15 anos ser capaz de cobrir todo custo de juros do País, ou seja, servir a dívida. Como em regra geral o PIB cresce, e diante de resultados fiscais anuais neutros, a dívida pública irá sendo reduzida gradativamente;
  7. Definir redução da relação dívida/PIB até que essa proporção seja de 50% ou menos. Não há prazo para que se atinja essa meta, dado que o mais relevante é manter a trajetória da dívida em queda, o que será atingido certamente com o cumprimento das outras metas (teto de gastos, resultado nominal zero e redução de gastos contínua).  

Como fazer com que União, estados e municípios reduzam seus gastos em 15 anos?

A chamada PEC emergencial desenhada em 2019 pela equipe econômica continha várias das medidas necessárias para que, se implementadas de forma adequada e definitiva, a economia brasileira se tornasse mais robusta, crível e melhorariam o ambiente de negócios.  Os pontos principais vão a seguir.

  1. Reforço da Reforma da Previdência com previsão para aumento da idade de aposentadoria e do tempo de contribuição vinculados a mudanças demográficas (aumento da expectativa de vida);
  2. Nova rodada de Reforma Previdenciária para estados e municípios – critérios a definir, mas de forma geral acompanhar os critérios da regra geral de previdência em todos os níveis de governo – exceções de militares por serem carreira de Estado e em tese não se aposentarem no caso do exército e ajustada à expectativa de vida de policiais militares pelo risco (quando as condições de segurança melhoram e a expectativa de vida dos militares de policiais aumentam, as exigências também crescem);
  3. Vedação da criação de novas despesas obrigatórias pela União, estados ou municípios, até que os objetivos da redução dos gastos públicos sejam atendidos;
  4. Apenas 5% dos funcionários públicos poderão ser promovidos a cada ano, com exceção de promoções que impliquem alteração de atribuições e aquelas de carreira militar ou policial;
  5. Vedação da promoção por tempo de serviço;
  6. Vedação da realização de concursos e a criação de cargos públicos, assim como o reajuste de salários já existentes;
  7. Diminuição em até 25% da carga horária de funcionários públicos com consequente redução salarial, no ano subsequente ao não atingimento da meta para o período anterior, permanecendo nesses patamares até o efetivo reequilíbrio;
  8. Em havendo excesso de arrecadação ou superávit financeiro (se o dinheiro arrecadado no ano vigente for maior do que as despesas previstas para o próximo ano), o excedente será reservado para o pagamento das dívidas públicas;
  9. Vedação da ampliação e a concessão de novos benefícios tributários (diminuir impostos sobre um produto, por exemplo);
  10. Em caso de aumento da demanda por mão-de-obra, fomentar a contratação terceirizada para áreas estatais não caracterizadas como aquelas de monopólio do Estado;
  11. Instituir medidas em todas as esferas federadas, de processos de digitalização e atendimento eletrônico, diminuindo sobremaneira a burocracia e a necessidade de atendimento presencial.
  12. Observações e Ajustes Periódicos.
    1. Muitas dessas medidas já existem no art. 109 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).
    2. Revisão de metas e critérios do plano a cada 15 anos, sempre por Emenda Constitucional. Caso não sejam revistas, as metas permanecem;
    3. Revisão de benefícios fiscais a cada 10 anos (quando não forem concedidos por prazo determinado) podendo ser mantidos ou finalizados;

O que fazer após metas finais atingidas?

  1. Meta de Gastos Públicos: não há limite inferior de gastos, até porque o valor proporcional a 25% do PIB pode ser maior ou menor a depender do crescimento do produto ao longo dos anos. É imperioso que o governo garanta seu bom funcionamento na manutenção das despesas que são de seu monopólio como Justiça, Segurança Pública, Defesa Nacional, Política Externa e Controle da Moeda, e cumprir seu papel subsidiário e complementar a contento em saúde, educação e habitação. Certamente, com ganhos de eficiência, 25% do PIB é suficiente para que o setor público garanta a manutenção adequada dessas despesas e ainda seja capaz de induzir os mecanismos de crescimento sendo parceiro na composição de investimentos de infraestrutura e manter um mínimo de planejamento estratégico de desenvolvimento econômico;
  2. Meta de Superávit Nominal: o superávit nominal adicional (que tende a não ser muito grande quando o governo passar a arrecadar 25% do PIB e limitar seus gastos em mesmo percentual) quando ocorrer, deve ser utilizado para um de dois fins: investimento público ou redução da dívida pública;
  3. Meta de Dívida Pública: também não há limite inferior para a Dívida Pública, mas um país de renda média como o Brasil deve garantir que a dívida líquida não ultrapasse os 50% do PIB. Não há problemas em reduzir o patamar da dívida pública para um patamar inferior, garantindo espaço para enfrentamento de eventuais crises como a atual. 

O que fazer com eventuais excedentes fiscais (eventuais superávits nominais)?

Pagamento de dívida pública até que esta atinja seu patamar de 50% do PIB e, posteriormente, criação de um Fundo Soberano cujos recursos devem ser geridos com base em um Conselho de Lideranças políticas, presidente da República, presidente do senado, presidente da Câmara e presidente do STF, contando com um representante do setor privado e um representante laboral. Estatuto do Fundo Soberano deve prever critérios de aplicação segura dos recursos (quando financeiras em moeda nacional ou estrangeira) e limites e critérios para investimento em infraestrutura, educação, saúde e segurança no Brasil, de forma a que o retorno financeiro e/ou social sejam contabilizáveis. 

Por todo o exposto, é essencial que a sociedade civil, através de suas entidades representativas, núcleos de pensamento e seus representantes, siga no diálogo direto e permanente com as mais variadas esferas públicas e privadas, visando a construção de uma Reforma Administrativa que venha trazer significativa redução das despesas estatais, concomitante a um ganho significativo de produtividade e eficiência, para que se possa, com a redução do gigantismo da máquina estatal, desenhar um arcabouço tributário adequado que sustente ao longo dos anos de forma equilibrada as funções do Estado sem inviabilizar a atividade econômica e o desenvolvimento do País.

 

 

Antonio Carlos Borges é economista e superintendente da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomércio-SP).

Fabio Pina é economista e consultor especialista em comércio e serviços.

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A ordem é: Simplificação Tributária, Reforma Administrativa e só depois Reforma Tributária https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3332&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-ordem-e-simplificacao-tributaria-reforma-administrativa-e-so-depois-reforma-tributaria Fri, 25 Sep 2020 19:43:01 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3332 O sistema tributário brasileiro há muito tempo penaliza e onera o contribuinte além de comprometer o desenvolvimento econômico do país e, portanto, a sua modernização é necessária. Entretanto o contraponto ao atendimento dessa necessidade é procurar definir o tamanho do estado que é possível custar para construir o arcabouço tributário (as fontes) que dará sustentação a essa estrutura (usos). 

 

O atual sistema tributário esgotou o seu tempo de existência, pois mais de 98% das empresas do país estão sob regimes tributários especiais ou próprios como o Simples ou Lucro Presumido. Esses regimes foram sendo criados como remendos para atenuar uma carga de tributos que inviabilizaria a maioria das empresas do país. Insistir em mais improvisações ou não levar em conta este problema tentando uma reforma nos moldes do que se está estudando, só nos levará ao aumento da informalidade e do desemprego. Quando a quase totalidade das empresas do país se encontra em regime especial, é porque algo está errado e o diagnóstico do problema deveria ficar mais claro: o estado ficou grande demais e não cabe mais no PIB. Para ser séria, a solução deve começar por trazer o Estado a um tamanho ideal, aquele tamanho útil em função das necessidades sociais para cumprir suas funções sem asfixiar o setor privado. Uma reforma tributária que não leve isso em conta é uma improvisação para atender a uma situação circunstancial ampliando a desorganização do tecido econômico, aumentando o desperdício dos recursos públicos e privilegiando a ineficiência, como se vem fazendo há décadas.

 

Essa é a conclusão mais ampla que se pode tirar das PEC’s 45 e 110 e do PL 3887. Não nos devemos iludir com os poucos pontos positivos que apresentam pois são o “canto da sereia” que ilude e esconde a consequente elevação de carga tributária, pois é ingenuidade imaginar nesta altura, com contas públicas destroçadas, qualquer hipótese de manutenção da atual receita. 

 

Os projetos de reforma tributária que estão sendo discutidos sugerem períodos longos de transição, que acarretariam em maior complexidade ao sistema já burocrático. Para além disso, sua aplicação imediata é inviável e não solucionam os principais problemas, deixando de lado a avaliação de medidas que ensejariam uma simplificação imediata, através de ajustes infraconstitucionais que permitiriam: modernização, aumento de segurança jurídica e desburocratização das obrigações acessórias. As reformas propostas, no entanto, esbarram na impossibilidade política de aprovação além de inviabilizarem atividades econômicas exercidas por empresas de pequeno porte e do setor de serviços (70% da economia). Não é desejável, portanto, que sejam aprovadas as três propostas se comprovadamente impedem a recuperação das empresas, aumentam a burocracia, elevam a carga de impostos (pois não apresentam mecanismos que impeçam isso) e ainda impõem a convivência de dois regimes tributários simultâneos por longo tempo. 

 

No momento em que o país passa por uma crise sem precedentes, decorrente da pandemia que, além de refletir em implicações à saúde pública, se colocou como desafio de sobrevivência para as empresas, qualquer sinal de aumento de arrecadação deve ser imediatamente rechaçado. A taxa de desemprego do País pode ultrapassar os 20% no final de 2020 e ao mesmo tempo as empresas sofrem para se manterem operacionais. Dados do comércio varejista nacional mostram, por exemplo, que o ano pode encerrar com perdas de pelo menos R$ 115 bilhões nas vendas. No setor de Serviços a situação é ainda pior, com muitas empresas dos setores de turismo e outros serviços, totalmente fragilizadas por uma queda de demanda que beira a total paralisia das atividades. É inaceitável que em face das circunstâncias se esteja desperdiçando um precioso tempo que deveria ser utilizado para reconstruir a economia e ajudar as empresas a se recuperarem em lugar de concentrar o debate político em princípios não testados e sem o suficiente estudo de efeitos que essas medidas podem gerar. 

 

A volta do emprego e da renda só ocorrerá se as empresas se recuperarem e, por causa disso, todo o cuidado do governo deveria estar concentrado nesse tema.

 

Isso não quer dizer que não se deva fazer nada. Há boas propostas de simplificação tributária e com um potencial enorme de melhorar o sistema que aí está, sem criar incertezas ou aumento de impostos e, ao mesmo tempo, reduzir a burocracia e os custos de conformidade, aumentando a transparência e criando maior segurança jurídica ao contribuinte. Afinal, as reformas devem ser pensadas para servir ao Estado ou, para reversão dessa lógica, em prol da sociedade? O ideal, nesse momento, seria um trabalho em conjunto entre o Executivo e o Legislativo em torno de uma só proposta de simplificação tributária, que corrija as distorções do sistema, melhore o ambiente de negócios, gere empregos e promova o desenvolvimento econômico, enquanto se vai trabalhando numa reforma do Estado que reduza seu gigantismo, que é a causa original de todos os males. 

 

Nesse sentido, existem projetos disponíveis, como alguns elaborados por expoentes do meio jurídico e econômico, caso do jurista Ives Gandra Martins, presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomércio-SP, e Everardo Maciel, ex-secretário da Receita Federal. A Entidade elaborou e entregou ao Poder Público, no último ano, 11 anteprojetos e uma Proposta de Emenda Constitucional, conforme segue:

 

  1. Compensação universal de tributos

 

No âmbito de cada ente federativo (União, Estados e municípios), será possível a compensação tributária, inclusive a contribuição patronal previdenciária. O anteprojeto altera a Lei n.º 5.172, que instituiu o Código Tributário Nacional (CTN), acrescentando o art. 156-A. A medida é objetiva e de justiça social, pois se o contribuinte deve ao Estado, tem a obrigação de pagar e vice-versa, mas tal pagamento merece ser de forma ágil, breve e eficaz.

 

  1. Equivalência entre os encargos aplicáveis às restituições e aos ressarcimentos

 

A proposta altera o CTN e busca estabelecer a igualdade tributária, prevendo a obrigatoriedade recíproca para a cobrança de tributos e o seu ressarcimento. Segundo a Fecomércio-SP, não há razão do tratamento diferenciado hoje adotado na cobrança de tributos vencidos por contribuintes e de precatórios devidos pelo Fisco. O contribuinte devedor deve arcar com multa, mora, juros e taxa Selic; e o Estado, ao efetuar pagamentos, além da demora na restituição ou ressarcimento, utiliza-se de critérios diferenciados para pagar sem aplicação dos mesmos encargos submetidos ao contribuinte. O anteprojeto não define o cálculo que deve ser utilizado, mas destaca que deve ser o mesmo usado para o Fisco e pelo contribuinte no momento do pagamento.

 

  1. Imputação de responsabilidade tributária

 

A proposta pretende criar regras sobre a imputação de responsabilidade, sem alterar as hipóteses de responsabilidade existentes no CTN. O anteprojeto acrescenta os §§ 3º e 4º ao Art. 144 do CTN para estabelecer que a imputação de responsabilidade se dê no ato do lançamento, exceto por fato desconhecido ou hipótese superveniente, e mediante notificação dé que esta imputação pode se dar posteriormente ao ato de lançamento. A medida quer assegurar os direitos do contribuinte ao contraditório, à ampla defesa e à lealdade processual.

 

  1. Critérios para retenção em malha

 

Pretende a obrigação de o Fisco informar previamente à declaração do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) os critérios para a retenção em malha. É proposto que seja acrescido ao art. 45-A do CTN a obrigatoriedade de a autoridade tributária disponibilizar as regras e instruções para a declaração de ajuste do IRPF, com os critérios que serão utilizados para o exame das declarações que poderão resultar na retenção em malha.

 

  1. Prazo máximo para solução de consultas

 

A legislação tributária confere ao contribuinte a possibilidade de formular consulta a fim de tirar dúvidas ou buscar esclarecimento sobre o pagamento dos impostos. A resposta a essa consulta deve ser em prazo razoável, pois a demora na solução da consulta do contribuinte pode ensejar o pagamento do tributo indevido ou incorreto. A proposta é no sentido de inserir na legislação tributária, no Decreto n.º 70.235/72 expressamente o prazo de 120 dias para a resposta à consulta.

 

  1. Justificação para a ineficácia de consultas e regulamentação do procedimento de consulta no caso de perda de prazo

 

Pretende inserir no arcabouço do Processo Administrativo Fiscal (PAF) (Decreto n.º 70.235/72) dispositivos que estabeleçam como proceder no caso de perda de prazo do Fisco quando da solução de consulta tributária. Inúmeras são as situações em que, em decorrência da demora da resposta a consulta, o contribuinte acabe pagando indevidamente (a maior ou a menor), com evidente prejuízo para a posterior regularização no Fisco.

 

  1. Justa causa e mandado específico nos procedimentos de fiscalização

 

Propõe o acréscimo do artigo 123-A do CTN para que o mandado de fiscalização (documento que instaura a fiscalização) tenha as seguintes informações: o objeto preciso da fiscalização, o período a que ela se refere, a indicação da autoridade tributária que determinou a fiscalização e o modo pelo qual a legitimidade do mandado poderá ser verificada. Ainda, para que o contribuinte tome conhecimento e se certifique da legítima ação fiscal que se inicia, é proposto no texto que a fiscalização tenha início após 48 horas da apresentação do mandado fiscal ao contribuinte, tudo visando à transparência da relação entre as partes.

 

  1. Limita a instituição de obrigações acessórias

 

Pretende assegurar a estabilidade normativa e a previsibilidade da ação estatal. Sendo assim, propõe que seja incluído no CTN que as obrigações acessórias somente sejam instituídas até 30 de junho do ano anterior. A medida permite ao contribuinte estabelecer um planejamento no que tange à sua atuação empresarial, além de ter tempo para se adaptar a novas obrigações acessórias.

 

  1. Vedação da utilização de certidão negativa como sanção política

 

A proposta é acrescentar ao art. 208-A do CTN que a certidão negativa de débitos fiscais não impeça que o contribuinte participe de processo licitatório aberto pelo credor. Entre as restrições que causam uma certidão negativa, a pior é a impossibilidade de participação em processo licitatório, o que, para muitos contribuintes, significa a condenação do seu negócio, pois sendo inadimplente e não podendo atuar, não pode quitar suas dívidas com fornecedores, bem como com as Fazendas públicas.

 

  1. Unificação cadastral

 

A unificação cadastral da União, de Estados, do Distrito Federal e de municípios é antiga e justa reivindicação dos contribuintes. A medida significaria mais agilidade no desempenho das funções fiscalizatórias e, ao mesmo tempo, menos burocracia ao contribuinte. A proposta é inserir essa obrigatoriedade no CTN.

 

  1. Fixar sanções ao ente federado que não consolidar anualmente sua legislação tributária

 

Com a alteração do CTN, é importante que seja fixada sanção aos Poderes Executivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios caso não editem decreto até o dia 31 de janeiro de cada ano com a consolidação da legislação tributária de sua competência. O objetivo é fixar a sanção pelo descumprimento desta obrigação que já existe no ordenamento jurídico (Art. 212 do CTN), mas é ignorada pelos chefes dos Poderes Executivos. Esse anteprojeto estabelece que o descumprimento de tal obrigação seja tipificado como crime de improbidade administrativa, por omissão.

 

  1. Vedação ao uso de medidas provisórias em matéria tributária e instituição do princípio da anterioridade plena

 

Embora a Constituição preveja que alterações na legislação tributária devem constar na Lei de Diretrizes Orçamentárias, eventuais brechas ou imprecisões propiciam a criação de tributos. Quando estabelecido por medida provisória, o novo tributo ou a alteração de um existente passa a ter efeito imediato, dificultando as atividades empresariais. A proposta, única que requer alteração constitucional, ainda prevê que, em caso de qualquer alteração na legislação tributária, seja respeitado o princípio da anterioridade plena, de modo que se propicie tempo suficiente para que os empreendedores equacionem seus negócios para suportar a carga tributária futura.

 

A proposta tem a grande vantagem de ser de aprovação e aplicação consideravelmente mais fácil do que qualquer outra que tenha que atravessar discussões constitucionais. Esse não parece ser o momento político adequado para discussões de emendas constitucionais relevantes, e, ao mesmo tempo uma resposta do Estado pode ser dada no sentido de simplificar (de fato) a vida do contribuinte. Adicione-se a isso que a adoção dos 12 pontos acima não cria períodos de transição nos quais as empresas teriam que conviver com dois regimes de escrituração e duas lógicas tributárias (e todas incertezas derivadas disso) por um longo período, sequer efetivamente sabendo qual a carga tributária que está destinada ao seu negócio. 

 

 

Antonio Carlos Borges é economista e superintendente da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomércio-SP).

Fabio Pina é economista e consultor especialista em comércio e serviços.

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O Federalismo brasileiro e a reforma tributária: Uma janela de oportunidade https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3327&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-federalismo-brasileiro-e-a-reforma-tributaria-uma-janela-de-oportunidade https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3327#comments Mon, 14 Sep 2020 19:20:10 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3327 A estrutura organizacional do federalismo brasileiro não guarda nenhuma semelhança com a de outros países no tocante à arrecadação de tributos e à prestação de serviços à população. Se consultarmos o artigo 18 da Constituição Federal, descobriremos que a nossa República é constituída pela união de 26 estados, um distrito federal e todos os municípios – somos o único país no qual os municípios são membros permanentes da federação e a oferta de bens públicos é colaborativa entre os três níveis de poder.

Outra importante distinção a fazer entre as federações é que algumas unem os subgovernos (estados) no formato “come together” à semelhança dos EUA, ou, alternativamente, estabelecem a configuração “hold together”, que caracteriza a maioria dos Estados que transitaram de um império (Estado Unitário) para uma federação, como o Brasil e a Alemanha.

No caso americano, o sistema opera com dois níveis de decisões, União e estados, estes últimos com autonomia política plena. Isso significa, por exemplo, que a ordem tributária de um estado americano é completamente diferente da de outro, além do que a relação entre pagar impostos e receber os benefícios deste gravame é direta entre cidadão e Estado. Reduzir impostos, ou cobrar mais para aumentar a oferta de um serviço público é, geralmente, um embate local, mobiliza os contribuintes, influencia no ambiente econômico das empresas e replica diretamente na qualidade dos serviços prestados à população. Portanto, há um forte sistema competitivo entre os subgovernos para equilibrar a oferta de bens e serviços públicos, com baixo custo tributário para empresas e cidadãos.

No caso alemão, pelo fato de ter sido um Estado Unitário, os subgovernos têm autonomia subordinada, as finanças públicas são centralizadas na União, e a oferta de bens públicos é regulada por um órgão, o Bundesrat, o qual segue a diretriz constitucional criada no final dos anos 1960, que determina a igualdade dos serviços públicos ofertados nas 16 Länder (estados federados). Desta maneira, como exemplo, a estrutura física e gerencial de uma escola no Norte da Alemanha é exatamente igual à encontrada no Sul. Isso garante a uniformidade e qualidade na oferta de ensino.

Essa igualdade nos equipamentos e na oferta dos serviços públicos dentro das 16 Länder não gera competição, e a qualidade dos serviços vem desta uniformidade.

O federalismo brasileiro, diferentemente dos casos citados acima, se caracteriza por ter uma arrecadação tributária centralizada como a alemã, mas os gastos são descentralizados e com grande autonomia pelos entes federados, como os americanos.

Essa dicotomia gera muitas distorções, entre elas a subordinação fiscal das unidades federativas ao governo central, a dificuldade do cidadão comum em controlar os gastos públicos, e a má qualidade dos serviços públicos oferecidos à população pelos três níveis de poder. Nesse tipo de federalismo, as despesas obrigatórias e as vinculações orçamentárias não são impedimento para que o gestor público brasileiro possa fazer gastos superfaturados ou usar inadequadamente o dinheiro público.

Os efeitos mais visíveis desta disjunção são a contratação de obras, serviços e produtos de baixa qualidade e superfaturados, que oneram o orçamento público, não atendem as demandas da população, mas, na maioria das vezes, beneficiam financeiramente os envolvidos na operação comercial. Outro efeito colateral consiste nas regalias salariais diretas e indiretas acumuladas pela elite do funcionalismo público, nos três níveis de poder, que são, invariavelmente, incompatíveis com a renda da população.

A distorção fiscal brasileira também pode ser compreendida pela inexpressiva participação que os municípios têm na arrecadação tributária total (algo como 6,5%), que contrasta com sua grande capacidade de despesa, consumindo alguma coisa próxima de 24% da capacidade fiscal do Estado. O mesmo acontece, em menor escala, com os estados. Assim, podemos afirmar que esses dois níveis de poder são dependentes financeiramente do governo central e geradores de desequilíbrio fiscal.

A lógica das despesas descrita acima aponta para um grande estímulo ao contínuo crescimento do déficit público nos três níveis federativos. É também a combinação perfeita entre baixo controle dos gastos governamentais pelo cidadão comum e a grande autonomia para desperdício financeiro do governante de plantão.

Os déficits que ocorrem com regularidade, nos três níveis de poder, produzem um consumo de recursos econômicos da sociedade que, atualmente, gira em torno de 33% do PIB na forma de impostos, e aproximadamente 7% na forma de déficit fiscal. Na prática, isto significa que o Estado brasileiro captura, aproximadamente, 40% do PIB e necessitará no futuro próximo, se nada for feito, de mais recursos do setor produtivo.

Uma reforma tributária para ter sucesso deverá definir, antecipadamente, uma estrutura federalista que propicie eficiência e controle social nos gastos dos governantes e na qualidade dos serviços prestados à população. No entanto, para que a carga tributária seja sustentável, deverá ter regras simples de cobrança e perseguir uma redução do custo total do Estado para aproximadamente 25% do PIB, cifra que tínhamos na promulgação da Constituição de 1988, o que tornaria atrativo o empreendedorismo no Brasil, sendo um forte estímulo para o crescimento do setor produtivo.

No lado da arrecadação, os tributos devem ser de baixo custo para a sociedade e descomplicados. Isso ampliaria a base de arrecadação ou, dito de outra maneira, que os tributos viabilizem o crescimento do setor privado e consigam incorporar a enorme parcela de pequenos empreendedores que hoje estão à margem do sistema tributário. A apropriação dos excluídos propiciaria um ambiente favorável ao empreendedorismo, o que pode significar um enorme espaço para o crescimento sustentável do PIB. Essa condição tornaria a dívida pública interna administrável.

A atual relação dívida interna/PIB, que deverá chegar em torno de 85% no final de 2020, prosseguirá crescendo e ameaçará a estabilidade econômica. No entanto, ela poderá ser controlada se houver prosperidade. O crescimento da economia, por si só, é capaz de reverter a trajetória de crescimento da dívida, e para isso o Estado deve garantir uma carga tributária compatível com a renda do brasileiro, taxas de juros baixas e um ambiente de negócios propício para o empreendedorismo.

A perspectiva dos gastos públicos com maior eficiência deve estar presente no legislador da atual reforma tributária, que deve perseguir despesas com maior impacto social, ou seja, que universalizem a oferta dos serviços públicos com qualidade à população e que o controle dos gastos dos governantes possa ser feito pelo cidadão comum.

Das três propostas que tramitam, as duas do Congresso são semelhantes, sendo que a do governo federal está focada exclusivamente na sua base tributária, ou seja, unifica e simplifica o PIS e o Cofins e, posteriormente, o IPI, criando um imposto sobre valor agregado que na primeira fase é de 12%. Na Câmara, a sugestão é unificar alguns dos impostos com perfil de valor agregado (IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS), com uma alíquota única de 25%. No Senado, a ordenação tributária se baseia na junção dos impostos IPI, PIS, Cofins, ISS, CSLL, IOF ICMS, Salário Educação e Cide dos Combustíveis, que se chamará Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e poderá chegar à taxa de 30%. No entanto, como complemento, todas propõem criar um imposto seletivo centrado no consumo de cigarros e bebidas.

Caso a simplificação tributária apresentada pelo governo central ganhe força, o impacto será pequeno para o contribuinte e não produzirá modificações profundas no pacto federativo. No entanto, se as propostas do Congresso avançarem, elas terão forte impacto na reorganização da federação.

Se a proposta do IBS do Senado avançar, que é radical na simplificação, mas ainda não tem definida a sua forma de arrecadação, e se o tributo ficar na esfera dos estados, este deslocamento produzirá um reordenamento federativo. Uma possibilidade é que poderia ser na forma de duplo estágio, como é feito no Canadá, ou seja, onde os subgovernos arrecadam o imposto e transferem posteriormente para a União a sua alíquota. O Good and Service Taxes (GST que é o IVA canadense) transfere 5% do arrecadado para o governo central e as províncias decidem o valor das suas alíquotas, que no total não pode passar da cifra de 15%.

Caso ocorra esse deslocamento tributário para os estados, ele reduzirá o poder financeiro e político do presidente na mesma proporção que aumentará a força e a influência política dos governadores, e para dar aderência a essa nova organização federativa seria prudente casar as eleições estaduais com as municipais, e deixar solteira a eleição de presidente. Isso produziria um novo espaço político de “checks and balances” na relação entre poderes. Outro fator de convergência para a descentralização política e o aumento do empoderamento do eleitor seria a adoção do voto distrital puro.

Assim, um novo desdobramento desejável desse processo de descentralização tributária seria uma nova definição de papéis desempenhados pelos entes federados. Ou seja, se o novo Imposto sobre Bens e Serviços ficar na esfera dos estados, este ente se responsabilizaria com exclusividade por alguns serviços como saúde, por exemplo, que deixariam de ser oferecidos na forma colaborativa entre os três níveis de poder, como está na Constituição (artigo 30, inciso VII), e seriam de responsabilidade exclusiva, ou seja, haveria uma conexão direta e única entre a população e governador.

O formato de responsabilidade exclusiva é um movimento de descentralização política que nos aproximaria do federalismo americano, pois aumentaria o controle do contribuinte sobre os gastos e a qualidade destes serviços prestados. Assim, não teríamos a “cooperação técnica” prevista na Constituição, que torna difusa a responsabilidade no atendimento às demandas do cidadão e, portanto, não estaríamos submetidos a situações de truculência federativa como a do atual presidente, que se ausenta da gestão da saúde e sugere o uso da cloroquina como solução única para o enfrentamento da pandemia. Evitaríamos, também, o uso dos recursos federais para cooptar politicamente as bancadas estaduais e municipais através de programas centralizadores, como fez a presidente anterior, com objetivo de ampliar a influência política do governo central.

No entanto, ao contrário da possível janela de descentralização com a reforma tributária, a aprovação do FUNDEB, cujo novo texto amplia a participação financeira da União, passando de 10% para 23% em seis anos, aponta na direção da centralização da gestão dos recursos da educação.

Na perspectiva da sua organização, o FUNDEB é um fundo de natureza contábil, com a arrecadação de recursos dos três níveis de poder, sendo a distribuição de recursos realizadas pela União e estados, com a participação de agentes financeiros do Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal. Os créditos são automaticamente realizados em favor dos estados e municípios de forma igualitária com base nos alunos atendidos, equalizando a distribuição dos recursos. Possivelmente, o novo FUNDEB elevará o gasto mínimo por aluno de R$ 3,4 mil para R$ 5,5 mil em 2026.

Este formato de disponibilização de recursos permite aos municípios e estados planejar as suas ações educacionais e o desafio é atrelar o financiamento a uma efetiva melhora da qualidade. Temos na vocação deste fundo a combinação da centralização financeira com descentralização de gestão. No entanto, os municípios têm autonomia vinculada no gasto destes recursos, o que significa a obrigatoriedade de gastar em educação, mas não impede de fazer políticas educacionais equivocadas.

Se com este fundo adotássemos uma organização parecida com o Bundsrat alemão, seria possível uniformizar as ações educacionais no tocante a salários, ambientes escolares e um núcleo de disciplinas estratégicas para elevar os resultados obtidos no processo educacional de aproximadamente 17 milhões de crianças. Isso seria um bônus de investimento educacional para esta e as próximas gerações de estudantes.

No entanto, temos no atual espaço político duas janelas de oportunidades contraditórias, a reforma tributária com o IBS do Senado com possibilidade de ser descentralizadora e o FUNDEB.

A definição de uma nova ordem federativa – totalmente centralizada ou descentralizada – precede qualquer reforma estrutural. Devemos responder com clareza qual ordem federativa queremos, pois o cidadão tem o direito de saber, com transparência, qual governo recolhe seu tributo e que ente federativo responde suas demandas.

Caso a escolha seja pela descentralização, a União, os estados e os municípios deverão definir o seu novo leque tributário e as suas responsabilidades explícitas na oferta de serviços públicos. Caso contrário, se a opção for aumentar a centralização, devemos criar um órgão gestor semelhante ao Bundesrat, a fim de reduzir a influência política e aumentar a qualidade técnica dos gastos públicos.

 

Renaldo Gonsalves é professor doutor do Departamento de Ciências Atuariais na PUC-SP. E-mail: gonsalves.renaldo@gmail.com.

 

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Não é você, sou eu https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3256&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=nao-e-voce-sou-eu Tue, 26 May 2020 14:09:06 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3256

Radicalismo fundamentalista uniu o presidente Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes; o populismo pode separá-los

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