Finanças públicas e gestão pública – Brasil, economia e governo https://www.brasil-economia-governo.com.br Fri, 07 Oct 2022 20:48:02 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.3 Poupança cai e também estimula o PIB https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3680&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=poupanca-cai-e-tambem-estimula-o-pib Fri, 07 Oct 2022 20:48:02 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3680 Poupança cai e também estimula o PIB

Maiores saques das cadernetas tiveram efeito expansivo sobre o Produto Interno Bruto, principalmente em 2022.

 

Por Roberto Macedo*

 

No ano mais crítico da pandemia de Covid-19, 2020, a captação líquida (depósitos menos retiradas) das cadernetas de poupança, conforme dados do Banco Central, foi recorde, atingindo R$ 166 bilhões no ano, e pela primeira vez o saldo final das contas superou R$ 1 trilhão. Isso resultou de três fatores principais. A pandemia levou muitos consumidores à reclusão doméstica, indo menos às compras de bens e serviços e recorrendo também ao comércio eletrônico, mesmo que em menor escala. Atuou, ainda, o efeito precaução, que expande a poupança em face de incertezas quanto ao que virá à frente. E veio o auxílio que o governo passou a pagar, parte do qual foi poupado nas cadernetas.

Nesse contexto, em 2020 o Produto Interno Bruto (PIB) caiu 3,9%. Em 2021, passou à recuperação, crescendo 4,6%, os consumidores começaram a voltar às compras e a captação líquida da poupança foi negativa em R$ 35,5 bilhões. Em 2022 esse movimento se acentuou, e até agosto a captação líquida negativa foi de R$ 85,2 bilhões, em razão do que no mesmo mês o saldo final caiu abaixo de R$ 1 trilhão – e só não caiu mais em razão do crédito de rendimentos, que o Banco Central não inclui na avaliação da captação líquida. Em agosto, esse crédito alcançou um total de R$ 6,6 bilhões.

Com isso, o crescimento do PIB se ampliou e as previsões de sua taxa de crescimento anual, segundo o boletim Focus, do Banco Central, divulgado semanalmente com estimativas de analistas do mercado financeiro, passaram de 0,28%, na primeira edição de janeiro, para 2,75%, na última de setembro.

O governo Bolsonaro vem apregoando que esse resultado decorre de suas políticas econômica e social, mas parece-me que o maior efeito veio do retorno da população às compras de bens e serviços.

A mais recente ampliação dos benefícios sociais veio em setembro, mas os citados dados da poupança correspondem ao período até agosto, quando a recuperação já se evidenciava. Lembro, também, que o citado movimento de queda da poupança começou em 2021, quando a captação líquida negativa alcançou o citado valor de R$ 35,5 bilhões, e acrescento que isso ocorreu principalmente no segundo semestre, já trazendo um estímulo ao PIB que se consolidou em 2022, com o referido valor de R$ 85,2 bilhões.

Para fins de comparação, segundo o site economania.com.br, em 13 de julho passado, a partir de fontes governamentais, o valor total dos novos benefícios – aumento de R$ 200 no Auxílio Brasil, aumento do vale-gás, do auxílio-caminhoneiro, transporte gratuito para idosos com mais de 65 anos, subsídio para a produção do etanol e auxílio para taxistas – foi estimado em R$ 40,8 bilhões, sendo que o primeiro benefício citado é o maior deles (R$ 26 bilhões).

Contudo, a questão sob análise não pode parar aqui, porque a dúvida que emerge é se a despoupança que vem acontecendo nas cadernetas tem sido toda dirigida ao consumo, uma vez que pode ser também destinada a outras aplicações em renda fixa e em renda variável. Quanto a isso, meu amigo e ex-professor o economista Carlos Antonio Rocca vem realizando uma análise ímpar do chamado fluxo de fundos da economia, ou seja, de onde o dinheiro vem e para onde ele vai.

Rocca lidera o Centro de Estudos de Mercado de Capitais (Cemec), ligado à Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (www.cemecfipe.org.br). A nota Cemec 05/2022, publicada em maio, trata da poupança financeira da economia no primeiro trimestre deste ano. Mostra que houve queda dos depósitos de poupança, conforme já assinalado, dos fundos de investimento, das ações e dos depósitos à vista, que se destinaram à compra de títulos da dívida pública, de títulos corporativos, mais depósitos a prazo e maior captação bancária, como via Letras de Crédito Imobiliário (LCIs) e Letras de Crédito do Agronegócio (LCAs).

O resultado final foi negativo, totalizando R$ 32,4 bilhões, com destaque para os depósitos de poupança, que, como já dito, devem ter contribuído para a expansão do PIB.

O relatório do segundo trimestre ainda não foi publicado, mas Rocca teve a gentileza de adiantar dados de meu interesse, abrangendo o primeiro semestre como um todo. Desta vez, nos fluxos citados, do lado das saídas o maior destaque foi para os fundos de investimentos, com queda de R$ 109 bilhões, seguida pela da poupança, no valor de R$ 62 bilhões; e, do lado das entradas, o maior aumento foi na captação bancária, que cresceu R$ 91 bilhões. Soube que a alta de juros foi determinante do lado da captação, acrescida do fato de que papéis como LCIs e LCAs são isentos do Imposto de Renda.

Com os dados semestrais, o efeito da queda da poupança parece menor, porque foi de R$ 10,2 bilhões no segundo trimestre, o que contrasta com outros valores apresentados. Em retrospecto, creio ser claro o efeito do total das quedas ampliando o consumo, mas tenho mais a aprender com o professor Rocca, em particular como entra o aumento da renda em cálculos como os apresentados.

 

* Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 6 de outubro de 2022.

 

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Limitações ao Ajuste Fiscal pelo Lado da Receita https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3674&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=limitacoes-ao-ajuste-fiscal-pelo-lado-da-receita Wed, 31 Aug 2022 13:16:37 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3674 Limitações ao Ajuste Fiscal
pelo Lado da Receita
[1]

Por Carlos Alexandre A. Rocha*

O teto de gastos integra o Novo Regime Fiscal (NRF), introduzido pela Emenda Constitucional 95/2016. Com duração prevista até 2036, o NRF prevê limites máximos para as despesas primárias de cada um dos Poderes e órgãos autônomos da União (a Defensoria Pública, o Executivo e as subdivisões do Judiciário, do Ministério Público e do Legislativo). Os tetos individualizados têm como base os montantes pagos em 2017 corrigidos, anualmente, pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

O NRF tem caráter anticíclico. Acumulam-se recursos (ou diminui-se a pressão por novos passivos) durante a fase favorável do ciclo econômico e preservam-se os gastos, em termos reais, durante a fase desfavorável.O seu pleno funcionamento permitiria que o atual déficit primário estrutural fosse substituído, futuramente, por um superávit capaz de estabilizar ou mesmo reduzir a razão entre a dívida pública e o produto interno bruto (PIB).

Trata-se, portanto, de uma estratégia de ajuste fiscal diferida ao longo do tempo centrada na contenção dos gastos primários. Ou seja, o teto de gastos precisa desempenhar, para que seja efetivo, o papel de uma poupança precaucional. Na ausência da poupança, porém, o teto perde a sua razão de ser. É o que apontam as sucessivas flexibilizações das suas regras aprovadas no último triênio (Emendas Constitucionais 102/2019, 109, 113 e 114/2021 e 123/2022), além de medidas similares implementadas ou tentadas pelo Governo Federal no mesmo período, como apontado pela Instituição Fiscal Independente (IFI) em seu relatório “Considerações sobre o Teto de Gastos da União”.[2]

Em face de tantas alterações, vários especialistas argumentam que o novo regime perdeu a capacidade de balizar as expectativas dos agentes econômicos sobre o comportamento do resultado primário e da dívida do Governo Federal nos próximos exercícios. O ex-ministro Delfim Netto, p. ex., sustentou, ainda em outubro de 2021, que o teto de gastos é um artefato de comprometimento com uma trajetória futura das finanças públicas federais. O seu esvaziamento implicava perder a baliza para avaliar a (in)sustentabilidade da dívida pública.[3]

Mais recentemente, Cecília Machado, professora da FGV-RJ, argumentou que o ativismo fiscal via emendas à Constituição representava o fim da possibilidade de suavizar e diferir temporalmente novos ajustes fiscais que se façam necessários.[4]

Samuel Pessôa, pesquisador da FGV-RJ, por sua vez, alerta que a flexibilização do teto dos gastos precisa ser precedida da construção de uma situação fiscal estruturalmente solvente. O caminho para isso, na falta de um ajuste pelo lado da despesa, seria convencer a sociedade a entregar mais imposto ao Estado.[5]

Com efeito,em termos de ajuste fiscal, observou-se, no passado recente, uma clara preferência por cortes nas despesas futuras, como demonstrado pela reforma da previdência,[6]e por uma corrosão inflacionária do valor nominal das obrigações do setor público. A contenção estrutural dos gastos públicos correntes foi evitada de forma reiterada. Tomando-se isso como um dado da realidade brasileira, é cabível o entendimento de que a reversão do alto nível de endividamento do Governo Federal passa por uma nova elevação da carga tributária, como antecipado por Pessôa.

No entanto, mesmo essa opção está longe de ser trivial, para além do desafio político inerente à construção de um consenso a esse respeito. Um aspecto que não tem recebido, s.m.j., a devida atenção é que eventual aumento na arrecadação precisaria proporcionar recursos líquidos de transferências e vinculações. De outra forma, o Governo Federal continuaria sem contar com os meios necessários para o gerenciamento da sua dívida.O quadro a seguir resume os usos predefinidos de um aumento de R$1.000,00 nos principais tributos ou cestas de receitas (contribuições sociais, impostos em geral e receita corrente líquida – RCL):

 Usos Predefinidos para uma Arrecadação de R$ 1.000,00,
por Tributo ou Cesta de Receitas

 

Vinculação Valor
Compartilhamento com os entes subnacionais1
Imposto sobre produtos industrializados (IPI) 600,00
Imposto sobre a renda (IR) 500,00
Contribuição de intervenção no domínio econômico (CIDE) 290,00
Com a revogação do NRF
Vinculação da receita de impostos à educação 180,00
Vinculação da RCL à saúde 150,00
Vinculação da RCL às emendas parlamentares individuais e de bancada 22,00
Na vigência da Desvinculação de Receitas da União (DRU)2
Vinculação à seguridade social das contribuições sociais 700,00
Vinculação ao objeto da CIDE (após o rateio federativo)
497,00
Fonte: elaboração própria.

Notas:

(1)inclui os programas de financiamento ao setor produtivo das regiões CO, N e NE;

(2)duração até 31/12/2023, conforme a Emenda Constitucional 93/2016.

O acréscimo de R$ 1.000,00, para que represente um ganho para as políticas setoriais favorecidas em relação à regra de correção pelo IPCA, contida no NRF, deve ser entendido como uma elevação da receita em termos reais (ou seja, descontada a variação do nível de preços). No quadro, cada linha representa um uso predefinido para o incremento ora tratado, por tributo ou cesta de receitas– de modo mais simples, dado um aumento real de R$ 1.000,00 na receita x, cada linha aponta quanto caberia ao uso y. Exceto no que tange à CIDE, cada vinculação é tratada isoladamente, sem efeitos cumulativos.

Ressalte-se, todavia, que as superposições entre as vinculações, como na CIDE, são recorrentes. No IR, p. ex., metade do montante arrecadado é repassado inicialmente para os entes subnacionais e os respectivos setores produtivos por meio dos Fundos de Participação dos Estados e do Distrito (FPE) e dos Municípios (FPM) e dos Fundos Constitucionais de Financiamento do Centro-Oeste (FCO), do Norte (FNO) e do Nordeste (FNE). O restante compõe a cesta geral de impostos e a RCL. Caso o NRF seja extinto, as vinculações em prol da educação, da saúde e das emendas parlamentares individuais e de bancada serão restabelecidas. Com isso, R$ 90,00 irão para a primeira, R$ 75,00 para a segunda e R$ 11,00 para as últimas. Sobrariam R$ 324,00 para usos diversos.

Um novo imposto, a seu tempo, repassaria 20% para os governos estaduais. Com o fim do NRF, o restante sofreria a incidência das três vinculações recém-discriminadas. Do total de R$ 1.000,00 arrecadados, sobrariam R$ 518,40 – eficiência de 51,8% na geração de receita desimpedida.

Eventual recriação da contribuição provisória sobre a movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira (CPMF) teria desempenho semelhante ao do IR, mas dependeria da contínua renovação da DRU. Trata-se de tributo vinculado à seguridade social, mas, com a DRU, 30% da arrecadação poderia ser usada livremente. Ou seja, cada R$ 1.000,00 arrecadado proporcionaria apenas R$ 300,00 para, p. ex., a gestão da dívida.

No entanto, na presença de déficit primário no orçamento da seguridade social, a recriação da CPMF também permitiria o uso do artifício conhecido como “substituição de fontes”. Atualmente, as receitas específicas da seguridade social são insuficientes para custear as despesas correspondentes. Com isso, o Tesouro Nacional emprega recursos ordinários na cobertura do déficit. No exercício em curso, p. ex., estima-se que a diferença entre despesas e receitas da seguridade alcançará R$ 170 bilhões[7](contra um déficit de R$ 292 bilhões, em 2017)[8]. São recursos que poderiam ser liberados para outros usos se a CPMF retornasse.[9]Isso, porém, requereria a persistência do quadro deficitário na ausência da nova contribuição, o que é incerto e até mesmo indesejável em face da recém-aprovada reforma da previdência.Não constitui, por essa razão, uma solução estrutural para a demanda por recursos livres.

Essa miríade de vinculações dificulta não só o gerenciamento do Orçamento Geral da União (OGU), mas também a formatação de qualquer programa de ajuste fiscal. Descartando-se o artifício da substituição de fontes e assumindo-se, à luz das competências e obrigações tributárias do Governo Federal, que a razão entre os seus potenciais de arrecadação livre e de arrecadação total seja igual a 50% (percentual similar ao obtido por um novo imposto),um programa que exigisse uma elevação da receita livre da ordem de R$ 226 bilhões (ou 2,6% do PIB de 2021)[10]requereria que a receita total aumentasse cerca de R$ 452 bilhões (ou 5,2% do PIB de 2021) – uma meta desafiadora mesmo diferida por um prazo longo.

O Brasil é um país complexo e carente, no qual os pleitos da sociedade se multiplicam quase ao infinito. Conciliar meios e fins é o desafio deste, do próximo e de qualquer governo. Este texto assinala que escolhas precisam ser feitas. Se a estratégia de conter os gastos públicos não foi bem-sucedida, será preciso rediscutir a contribuição da sociedade para o funcionamento do Estado. Mesmo isso, contudo, não está isento de problemas – políticos, naturalmente, mas também operacionais, o que é menos evidente. A presente análise permite entender por que um tributo como a CPMF é sempre lembrado quando se buscam alternativas para um ajuste fiscal rápido. A perspectiva de uma “troca de fontes” instantânea é por bastante sedutora. Trocam-se benefícios presentes por custos futuros, mantendo a economia em um nível de baixa eficiência. Resistiremos?

 

[1] Adaptado do documento “Teto de Gastos: Problemas e Alternativas”, disponível em:https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td311.

[2] Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/575583.

[3] Videhttps://www1.folha.uol.com.br/colunas/antoniodelfim/2021/10/sem-teto-a-casa-cai.shtml.

[4] Videhttps://www1.folha.uol.com.br/colunas/cecilia-machado/2022/07/sem-mais-promessas.shtml.

[5] Videhttps://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2022/06/a-esquerda-e-o-teto-de-gastos.shtml.

[6]Emenda Constitucional 103/2019.

[7] Videhttps://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/raio-x-do-orcamento/2022/raio-x-do-orcamento-2022-ploa.

[8] Videhttps://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/planejamento-e-orcamento/orcamento/publicaoes-sobre-orcamento/informacoes-orcamentarias/arquivos/estatisticas-fiscais/2-resultado-primario-da-seguridade-social/2-resultado-da-seguridade-anual.xlsx/view.

[9] A análise dos problemas econômicos introduzidos pela CPMF extrapola os limites do presente trabalho. Discussão sobre esse tema consta do documento “Os Impactos Econômicos da CPMF: Teoria e Evidência”, disponível em: https://www.bcb.gov.br/pec/wps/port/wps21.pdf.

[10] Conforme simulação contida no documento “Evolução das Contas da União: Ajuste, Desajuste, Pandemia e Desafios”, disponível em: https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td304/view.

 

* Carlos Alexandre A. Rocha é consultor legislativo do Senado Federal e especialista em finanças públicas. As opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade do autor.

 

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Uma leitura a respeito da gestão imobiliária da União: O caso dos Fundos de Investimentos Imobiliário com o patrimônio da União https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3673&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=uma-leitura-a-respeito-da-gestao-imobiliaria-da-uniao-o-caso-dos-fundos-de-investimentos-imobiliario-com-o-patrimonio-da-uniao Tue, 30 Aug 2022 17:41:41 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3673 Uma leitura a respeito da gestão imobiliária da União: O caso dos Fundos de Investimentos Imobiliário com o patrimônio da União

Por Felipe Tavares*

O caso brasileiro dos ativos imobiliários da União é repleto de peculiaridades para um microeconomista se debruçar e aplicar os seus conceitos teóricos sobre eficiência alocativa de recursos escassos. Segundo o Balanço Geral da União (BGU)[1], a União possui, aproximadamente 800 mil imóveis, com valor de R$ 1,34 trilhão, sendo este patrimônio dividido entre: “Bens de Uso Especial” (R$ 724 bilhões); “Bens de Uso Comum do Povo” (R$ 335 bilhões); “Bens Dominicais” (R$ 216 bilhões); “Bens Imóveis em Andamento” (R$ 56 bilhões); “Ativos de Concessão de Serviços” (R$ 12 bilhões); “Instalações” (R$ 5 bilhões); e “Outros” (R$ 3 bilhões).

Para se ter ideia do tamanho expressivo do patrimônio imobiliário da União, o valor do estoque imobiliário representa aproximadamente 18% do PIB do Brasil de 2020 (R$ 7,5 trilhões), ou 50% do PIB argentino, 660% do PIB paraguaio, 450% do PIB Uruguaio ou 620% do boliviano, considerando-se o mesmo ano. Os dados do BGU e a comparação com o PIB de diversos países da América do Sul evidencia que a União é o maior concentrador de terras do país.

O estoque expressivo de ativos imobilizados não é afrontoso somente pelo seu valor em si, mas também por demanda relevados esforços em termos orçamentários e de capital humano para ser administrado. A União gasta anualmente em torno de R$ 1,6 bilhão com a manutenção desses imóveis e aluguéis e a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) possui um quadro de aproximadamente 1.200 funcionários mobilizados para a prestação desse serviço.Mesmo com elevados gastos e equipe numerosa, mais de 10 mil imóveis da União estão desocupados, situação que acentua a depreciação dos ativos, que hoje situa-se em torno de R$ 18 bilhões[2] por ano. Isto é, há um custo de oportunidade em manter os ativos imobiliários da União próximos de R$ 20 bilhões/ano, que representa 25% do orçamento executado da educação no Brasil em 2020.

Além dos elevados custos de manutenção, aluguéis e mão de obra, os imóveis desocupados da União normalmente encontram-se em situações de abandono, abrindo espaço, inclusive, para invasões e eventuais tragédias. Um exemplo foi o ocorrido em 2018, quando o antigo prédio da Polícia Federal no centro de São Paulo, que estava irregularmente invadido, incendiou e desabou, gerando um estado de alerta sobre a existência de imóveis de propriedade da União em situações críticas.[3]

É diante deste dilema que Políticas Públicas de desinvestimento se tornam tão importantes e urgentes para o bem-estar da sociedade. Dessa maneira, a alienação do patrimônio da União não representa desmonte do estado, mas sim uma reordenação das prioridades da Nação, contribuindo para a saúde financeira do Estado brasileiro que viabiliza o emprego em gastos prioritários como Saúde, Educação e Segurança.

Mas esse processo de desinvestimento não é tão simples quanto parece. No serviço público, tanto para comprar quanto para vender, é necessário que se utilizem procedimentos regulamentados e transparentes. Afinal, preservar o erário é fundamental para o bem-estar da sociedade.

A Lei nº 13.240 de 30 de dezembro de 2015 dispõe sobre a administração, a alienação, a transferência de gestão de imóveis da União e seu uso para a constituição de fundos de investimento imobiliário (FII). Os FIIs são instrumentos financeiros interessantes para o enfrentamento do problema do excesso de patrimônio imobiliário da União, pois possibilita uma alienação em escala e confere segurança de que o patrimônio da União terá o seu máximo valor de mercado obtido através da precificação das cotas do fundo. Deste modo, uma vez que a União integraliza os seus imóveis em troca de cotas do FII, o imóvel deixa de ser público, portanto, a União aliena o ativo em questão e se torna apenas cotista do fundo com um patrimônio equivalente aos valores de integralização dos imóveis.

Uma das grandes vantagens em utilizar o mecanismo de FIIs para destinar o seu patrimônio é contar com profissionais especializados na gestão dos seus ativos, pois o FII nada mais é do que um condomínio fechado onde os seus integrantes compartilham do interesse comum em investir no mercado imobiliário.O administrador do fundo é o proprietário fiduciário e responsável pelo fundo, mas além do administrador, o FII pode contratar prestadores de serviços especializados como gestores, consultores imobiliários etc. Assim, o FII funciona de forma que gestores especializados criam estratégias para a valorização dos ativos, incorporando capital e destinando os ativos para os seus melhores usos.

Além da gestão especializada, a União transfere ativos ilíquidos subutilizados que geram elevados custos de manutenção e gerenciamento, e potenciais tragédias, por ativos líquidos, de fácil gerenciamento e com baixo custo de carrego. É importante destacar que a integralização não ameaça o patrimônio público, pois, em termos comuns, a União está apenas trocando um ativo por outro e a decisão sobre a venda dessas cotas está a cargo, única e exclusivamente, da própria União.

A estratégia de utilizar FIIs para a alienação do patrimônio público não é novidade.No Brasil, o Estado de São Paulo foi o pioneiro nesta iniciativa, tendo criado o seu FII em 2018 com capital potencial estimado de R$ 1 bilhão e expectativa de monetização de R$ 360 milhões. Em 2021 foi a vez de Angra dos Reis aderir à política, sendo o primeiro município a criar um FII. Os casos de São Paulo e Angra mostram que os FIIs vêm ganhando bastante espaço nas administrações públicas brasileira, sendo um grande passo em direção ao aumento da eficiência da máquina pública, reordenando o senso de prioridade dos governos.

As iniciativas citadas tiveram um longo caminho legislativo para virarem realidade. No entanto, no caso da União, a Lei nº 13.240/15 expressa que não é necessária autorização legislativa específica para a alienação dos seus imóveis, ou seja, a autorização legislativa já foi concedida pela própria lei. Assim, a União não possui barreiras legais para iniciar uma Política Pública que é urgente para o aumento da eficiência do Estado brasileiro.

O projeto “Incorpora Brasil” foi iniciado com a missão de dar vida a essa política pública. O modelo de negócios do projeto passa pela seleção e um gestor profissional em formato competitivo, sendo esta contratação feita no ambiente da bolsa de valores. A seleção do gestor segue critérios específicos técnicos, onde somente os gestores que confirmarem tais requisitos estarão habilitados para concorrer.

Após a seleção do gestor, ele ainda possui um compromisso de integralizar recursos financeiros no fundo, de forma a dar a liquidez inicial necessária a ele. Então, com os imóveis e recursos financeiros integralizados, o capital social do fundo é dividido entre o gestor e a União, sendo as cotas partes dadas pelos valores monetários dos ativos. Em outras palavras, o instrumento constitui o compartilhamento do risco com o gestor, pois este possui seu capital alocado no fundo, o que chamamos de skin in the game.

Deste modo, a União passa a ter um ativo líquido, precificado a mercado, com capacidade de geração de benefício econômico e com elevado grau de governança. O instrumento foi desenhado prevendo uma meta de rentabilidade, ou benchmark, sendo esta a taxa mínima de rentabilidade que o gestor deve entregar à União. Caso o gestor supere a meta, então este passa a ser remunerado pela taxa de performance. Este desenho garante que a União terá um ativo bem gerido, caso contrário o próprio gestor não se remunera.

Diante do exposto, o Projeto Incorpora Brasil traz uma nova perspectiva para a gestão patrimonial da União, trazendo um modelo com elevado padrão de governança e maximização do valor gerado para a sociedade.[4]

 

[1]Publicado em 25/11/2020 (tesourotransparente.gov.br).

[2]A SRF n° 162/1998 da Receita Federal do Brasil determina que a taxa anual de depreciação de instalações e edificações são iguais a 10% e 4%, respectivamente. Para o patrimônio imobiliário da União foi utilizado 4% como referência na estimação. http://sijut2.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?&visao=original&idAto=15004.

[3]https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/05/01/desabamento-do-predio-no-largo-do-paissandu-completa-dois-anos.ghtml.

[4] O projeto incorpora Brasil não necessita de nenhuma autorização legal ou infra legal para o seu lançamento, estando integralmente autorizado pela Lei nº 13.240/15. Deste modo, para o seu lançamento basta a publicação de uma portaria específica pela SPU com os imóveis específicos e que o edital de contratação do gestor seja publicado.

 

* Felipe Tavares é ex-diretor de Projetos da Secretaria Especial de Desestatização do Ministério da Economia

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Emenda Constitucional nº 123, de 14.7.2022: Aspectos Fiscais e Orçamentários¹ https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3659&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=emenda-constitucional-no-123-de-14-7-2022-aspectos-fiscais-e-orcamentarios%25c2%25b9 Tue, 26 Jul 2022 14:50:29 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3659 Emenda Constitucional nº 123, de 14.7.2022: Aspectos Fiscais e Orçamentários [1]

 

Por Eugênio Greggianin*, José Fernando Cosentino Tavares** e Marcia Rodrigues Moura***

 

1   Considerações Iniciais: Descrição do Conteúdo das PEC

1.1 A Emenda Constitucional  nº 123/2022

A EC nº 123/2022 é oriunda da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 15/2022, à qual foi apensada a PEC nº 1/2022. O trabalho, além de descrever o conteúdo das proposições, teve o propósito de verificar os pressupostos fáticos do estado de emergência reconhecido em 2022, bem como o impacto decorrente da fragilização dos princípios fiscais ao se prever, para o fim almejado (concessão de benefícios), o afastamento de praticamente todas as regras, limites e mecanismos de compensação fiscal atinentes à preservação do equilíbrio das contas públicas.

1.2 PEC nº 1/2022

A PEC nº 1/2022, de autoria do Senado Federal, tem por objetivo “reconhecer o estado de emergência, decorrente da elevação extraordinária e imprevisível dos preços do petróleo, combustíveis e seus derivados e dos impactos sociais deles decorrentes”. Para enfrentamento ou mitigação dos impactos decorrentes do estado de emergência, a PEC autoriza o pagamento, até 31.12.2022, de uma série de benefícios.

A tabela a seguir apresenta os benefícios previstos na PEC, acompanhados dos limites de gastos nela também previstos.

Dentre os benefícios, apenas três já existem: o Programa Auxílio Brasil, o Programa Alimenta Brasil – ambos criados pela Medida Provisória (MPV) nº 1.061, de 09.08.2021, convertida na Lei 14.284, de 29.12.2021 – e o Auxílio Gás dos Brasileiros – criado pela Lei nº 14.237, de 19.11.2021.

O Programa Auxílio Brasil é o que possui maior representatividade nos dispêndios totais previstos na PEC, de 63% (R$ 26 bilhões). A PEC assegura a extensão dos benefícios às famílias que ainda não fazem parte do Programa, mas que são elegíveis. Estima-se que o quantitativo de novas famílias seja em torno de 2,6 milhões. Considerando que atualmente o programa já atende 18,2 milhões de famílias[2], o quantitativo mensal de famílias atendidas poderá atingir 21 milhões.

Além disso, a PEC assegura um acréscimo extraordinário do benefício para todas as famílias, no valor de R$ 200,00, durante 5 meses. Atualmente o Programa Auxílio Brasil é composto pelos benefícios ordinários previstos nos incisos I a IV do art. 4º da Lei nº 14.284/2021, e pelo benefício extraordinário previsto na Lei nº 14.342, de 18.05.2022, originária da MPV 1.076, de 07.12.2021. Somados os benefícios, estes alcançam um valor médio mensal por família em torno de R$ 400,00[3]. Com a PEC, esse valor alcançará pouco mais de R$ 600,00.

Como previsto na PEC, o impacto da entrada de novas famílias no programa e o pagamento do acréscimo extraordinário de R$ 200,00 para todas as famílias implicará em um gasto adicional de R$ 26 bilhões, que, somados aos valores já previstos no orçamento para 2022, de R$ 89,1 bilhões, farão com que o dispêndio total com o Programa alcance a cifra de R$ 115,1 bilhões.

Apesar de a PEC limitar o pagamento dos benefícios nela previstos até 31.12.2022, a entrada das novas famílias no programa será sentida também nos próximos exercícios. Excluído o pagamento do acréscimo extraordinário de R$ 200,00, cujo pagamento está limitado a 31.12.2022, estima-se que o impacto da entrada das 2,6 milhões de famílias no programa pode atingir o montante de R$ 12,5 bilhões em 2023.

O Alimenta Brasil é um programa de aquisição de alimentos de pequenos produtores rurais e posterior distribuição a famílias carentes. O valor previsto na PEC é de R$ 500 milhões.

O Auxilio Gás dos Brasileiros é um programa de auxílio à compra do gás de cozinha, pago bimestralmente às famílias de baixa renda. O valor do benefício corresponde a 50% da média, verificada nos últimos 6 meses, do preço nacional de referência do botijão de 13 Kg[4]. No mês de junho do corrente ano, 5,7 milhões de famílias[5] receberam o benefício, no valor de R$ 53,00. A PEC prevê um dispêndio de R$ 1,05 bilhão, pago em 3 meses. O valor previsto na PEC e aquele já previsto no orçamento para 2022, de R$ 1,8 bilhão, farão com que o dispêndio total com o Programa alcance a cifra de R$ 2,85 bilhões.

Além do incremento financeiro de benefícios já existentes, a PEC prevê o pagamento de quatro outros benefícios que ainda não fazem parte do rol de despesas da União. São eles: auxílio aos Transportadores Autônomos de Cargas; auxílio financeiro a Estados e DF que outorgarem créditos tributários de ICMS aos produtores ou distribuidores de etanol hidratado; assistência financeira à União, Estados, DF e Municípios para concessão de transporte gratuito a idosos e auxílio a motoristas de táxis.

O auxílio aos Transportadores Autônomos de Cargas será pago durante 6 meses, com valor mensal por beneficiário de R$ 1.000,00 e dispêndio total de R$ 5,4 bilhões. Estima-se um atendimento mensal em torno de 900 mil transportadores autônomos de carga.

O auxílio financeiro a Estados e DF que outorgarem créditos tributários de ICMS aos produtores ou distribuidores de etanol hidratado será pago durante 5 meses, com um dispêndio total de R$ 3,8 bilhões. O benefício será proporcional à participação dos Estados e do DF em relação ao consumo total do etanol hidratado em todos os Estados e no DF no ano de 2021 sendo que o valor máximo mensal é de R$ 760 milhões por ente.

A assistência financeira à União, Estados, DF e Municípios para concessão de transporte gratuito a idosos tem um dispêndio total previsto na PEC de R$ 2,5 bilhões. A PEC não dispôs sobre a periodicidade de pagamento. O valor pago por ente dependerá de uma série de requisitos previstos no § 4º do art. 3º da PEC.

O auxílio a motoristas de táxi será pago a todos aqueles registrados até 31.05.2022, em 6 parcelas, com um dispêndio total de R$ 2 bilhões. O quantitativo de beneficiários dependerá da formação do cadastro para operacionalização do benefício (§ 7º do art. 3º da PEC). O valor por beneficiário também está sujeito a regulamentação posterior.

Destaca-se que o Substitutivo aprovado pela Comissão Especial não promoveu alterações de mérito na PEC, mantendo assim todos os benefícios e valores originalmente previstos.

1.3 PEC nº 15/2022

A PEC nº 15/2022, de autoria do Senado Federal, tem por objetivo assegurar ao setor de biocombustíveis destinados ao consumo final, na forma de lei complementar, tributação inferior à incidente sobre os combustíveis fósseis – com relação, especialmente, ao PIS/PASEP, Cofins e ICMS – capaz de garantir diferencial competitivo para os biocombustíveis. No Brasil, atualmente, o biocombustível destinado ao consumo final é o etanol hidratado.

A PEC não apresenta implicação sobre a receita, tendo em vista que a regra transitória nele prevista dispõe que deverá ser mantida a estrutura tributária vigente em 15.05.2022, em patamar igual ou superior. Alternativamente, quando o diferencial competitivo não for determinado pelas alíquotas, este será garantido pela manutenção do diferencial da carga tributária efetiva entre os combustíveis.

2       Aspectos Fiscais

2.1. Fragilização das regras fiscais

Do ponto de vista econômico, a fragilização continuada dos princípios fiscais talvez seja o aspecto mais preocupante decorrente da aprovação da PEC nº 1/2022 em análise. Regras fiscais servem para nortear o comportamento dos agentes políticos e refrear o desequilíbrio orçamentário. O ciclo político, na ausência de restrições, seria profundamente marcado pela concessão de mais e mais benefícios quanto mais próxima a data das eleições.

A meta de resultado primário foi a principal regra fiscal ao longo de quase 20 anos. Na medida em que passou a ser fixada com ampla folga, revista com frequência, e também a comportar número crescente de exceções, perdeu a credibilidade como instrumento de controle das finanças públicas. Para 2022 é previsto déficit primário de R$ 65,5 bilhões, enquanto a LDO do exercício admite saldo negativo de até R$ 170 bilhões.

Destaque-se, principalmente, a regra que se considerava a última e mais eficaz âncora fiscal no arsenal brasileiro, o teto de gastos. O teto foi criado em 2016, mediante Emenda Constitucional (EC nº 95/2016), para reverter o ritmo descontrolado das finanças públicas que levou à crise de 2015/2016. A regra deu alguma previsibilidade à política fiscal, permitiu a redução sustentável da taxa de juros, até a pandemia, e induziu reformas, como a previdenciária. Principalmente, tinha subjacente a obrigação de o governante escolher entre usos alternativos do dinheiro público.

Limites quantitativos, por poder e órgão, para a despesa primária tiveram o intuito de impor regras mais fortes, além de mais estáveis, visto que só poderiam ser alteradas com quórum qualificado. No entanto, desde então já houve seis alterações constitucionais e caminha-se para a sétima revisão[6].

2.2. Estado de Emergência

Com relação à decretação de estado de emergência como pressuposto para descumprimento de regras fiscais, há significativas objeções. Em primeiro lugar, regras fiscais costumam ter cláusulas de escape que permitem sua flexibilização em casos excepcionais. A regra do teto de gastos, por exemplo, prevê que créditos extraordinários abertos em razão de urgência e imprevisibilidade não precisam se submeter ao limite. A meta de resultado primário pode ser alterada durante o exercício com a modificação da Lei de Diretrizes Orçamentárias. A chamada regra de ouro, que impede o endividamento para atender despesas correntes, também pode ser excetuada mediante aprovação de crédito específico pelo Congresso Nacional, por maioria absoluta.

Ainda há que se considerar quais condições estariam dadas para a decretação de um estado de emergência ou de calamidade pública. Eventos climáticos extremos ou uma pandemia que inviabilizasse o funcionamento dos processos produtivos por um período considerável de tempo seriam os exemplos típicos. Crises econômicas por si só seriam um argumento bem mais frágil, visto que recorrentes e muitas vezes reforçadas por ações inadequadas ou intempestivas dos próprios agentes públicos.

Flutuação de preços de commodities e em especial do barril de petróleo não é novidade, como mostra gráfico a seguir. Tais variações não podem ser consideradas necessariamente imprevisíveis. Nem mesmo quando decorrem de guerra em outros países.

Processos inflacionários também não representam fator atípico na história recente do País. Para 2022, o prognóstico para o IPCA é de 7,67%, não muito distante da inflação apurada em 1996, 1999, 2001, 2002, 2003, 2004, 2015 e 2021.

Crises econômicas podem exigir medidas excepcionais de gastos, mas devem vir acompanhadas de estratégia robusta e crível de retorno à normalidade e de ajustes necessários para evitar ou mitigar eventos posteriores. A falta de um planejamento sobre a saída da situação de emergência e a fragilização do teto fiscal deixam o País sem uma âncora fiscal capaz de sinalizar retomada econômica consistente adiante.

2.3. Custo da renúncia fiscal

O custo da PEC nº 1/2022, já descrito no item 2, não pode ser analisado isoladamente. Outras tantas medidas vêm sendo tomadas nos últimos meses com impacto considerável e que não se restringe ao exercício de 2022.

O teto de gastos trouxe restrições à elevação de despesas. A redução de receitas, por outro lado, passou a apresentar-se como caminho mais curto para conceder benefícios. Assim reduções de alíquotas de impostos e desonerações tendem a alcançar R$ 130 bilhões em 2023, conforme Tabela 2.

Outros R$ 34,6 bilhões em impostos federais sobre combustíveis foram perdidos com a redução a zero das alíquotas até dezembro de 2022. Caso os preços de combustíveis sigam elevados, haverá pressão por prorrogação da renúncia em 2023, com impacto em doze meses de cerca de R$ 70 bilhões, o que elevaria a perda de arrecadação de quase R$ 200 bilhões, ou 2% do PIB. Antes das concessões mencionadas, os gastos tributários da União para 2023 estão estimados na LDO em R$ 368,9 bilhões ou 3,97% do PIB.

2.4. Propensão ao gasto

Às despesas criadas pela PEC acrescentem-se as postergadas pela Emenda Constitucional nº 114, de dezembro de 2021. Os precatórios devidos e não pagos em 2022 aproximam-se de R$ 30 bilhões, montante similar ao que não deve ser pago também em 2023. As sentenças devidas e não pagas entre 2022 e 2026, com correção monetária, possivelmente na casa de centenas de bilhões de reais, representam esqueleto a ser desembolsado em 2027 e salto significativo na dívida pública federal.

No auge da pandemia, as medidas de maior impacto, tais como o Auxílio Emergencial, deram-se por iniciativa do Congresso. Nos anos subsequentes, outros benefícios concedidos ou em análise, tais como pisos salariais e auxílios para categorias profissionais, pelo seu impacto nas contas públicas também elevam o risco fiscal a curto e médio prazo.

2.5. Indicadores econômicos

Os indicadores econômicos se deterioram, refletindo em particular a percepção de um maior risco fiscal no horizonte. Veio se elevando em torno da emergência do preço dos combustíveis um risco fiscal com consequências previsíveis para 2023. A administração subsequente enfrentará quedas de receitas, já contratadas ou decorrentes do arrefecimento da atividade econômica, e aumentos variados de despesas, além de um grau mais elevado de engessamento orçamentário, e terá que decidir entre retirar benefícios ou continuar a se endividar. Diante da necessidade do corte de despesas, o investimento público em obras e equipamentos será o primeiro a perder, afetando as perspectivas de crescimento.

O novo governo terá dificuldade de retirar ou reduzir benefícios, mesmo aqueles com vigência apenas até dezembro deste ano, em particular o Auxílio Brasil. Os Estados, desfalcados recentemente de R$ 90 bilhões de suas receitas sobre derivados de petróleo, por sua vez, poderão precisar do auxílio do governo federal.

Isso se dá, é bom lembrar, dentro de um cenário mundial que ruma agora em direção ao aperto monetário e talvez à recessão. Câmbio em alta, volatilidade dos preços de commodities, bolsas em queda, aumento do risco Brasil, todos esses indicadores se movem em desfavor do crescimento.

A contrario sensu do que se apresenta nas motivações que afastaram a incidência das regras fiscais durante o “estado de emergência”, a percepção do mercado quanto ao aumento do risco fiscal poderá levar o dólar para patamares de oscilação ainda mais elevados, o que influencia a precificação interna do petróleo. Adotam-se na PEC a compensação de gastos, sobretudo em relação ao Auxílio Brasil, a pressão sobre o câmbio e os prêmios de juros da dívida pública cobrados pelo mercado seriam menores. Ademais, as pressões inflacionárias, não apenas em relação ao petróleo, mas de todos os bens e serviços sensíveis ao câmbio tenderiam a apresentar melhor comportamento. Paralelamente, a menor pressão sobre a trajetória da dívida pública permitiria maiores espaços fiscais em um futuro próximo.

2.6. Juros

Juros aqui e no exterior aumentaram significativamente, e no Brasil a inflação persistente começa a indicar que a Selic poderá elevar-se acima dos 13,25% ao ano por conta do aumento do prêmio de risco. Os juros vão ficar por mais tempo em patamar de dois dígitos no Brasil.

O mercado financeiro está exigindo juros mais altos para adquirir títulos de longo prazo do governo. O Tesouro Nacional já aceita pagar juros reais de 6,17% para vender seus papéis atrelados ao IPCA, as NTN-B, com vencimento em 40 anos, o mais longo da dívida pública doméstica. Em janeiro de 2019, as taxas eram de 4,76%.  As NTN-F, com vencimento em 10 anos, alcançaram 13,21%.

2.7. Inflação

O Banco Central alerta, em seu último Relatório de Inflação (30 de junho), “que as medidas tributárias em tramitação e discussão podem reduzir sensivelmente a inflação no ano corrente, embora elevem, em menor magnitude, a inflação no horizonte relevante de política monetária. Contudo, políticas fiscais que impliquem sustentação da demanda agregada no curto prazo, mas que piorem a trajetória fiscal do país – assim como a incerteza sobre o futuro do arcabouço fiscal – podem pressionar os prêmios de risco e a confiança dos agentes, com impactos negativos, possivelmente defasados, sobre a atividade econômica e os investimentos em particular.”

O IPCA previsto no relatório Focus para 2023 já está em 5,1% e tem subido. As empresas, que estão trabalhando com alta de insumos e margem apertada, vão buscar reajustar os preços, sustentados pelo aumento da demanda.

2.8. Crescimento

A expectativa de um crescimento baixo da economia tem sido apenas adiada. Os analistas têm melhorado suas previsões para o terceiro trimestre e para o PIB em 2022 graças às reduções de impostos e aos aumentos de despesas públicas, com novas transferências como o aumento do Auxílio Brasil e de outros benefícios previstos na PEC. A reversão dessas medidas, no todo ou em parte, poderá fazer o PIB encolher adiante.

3          Aspectos Normativos e Orçamentários

3.1. A caracterização do Estado de Emergência da PEC nº 1/2022

A PEC 1/2022 cria e amplia benefícios sociais aproveitando-se da dispensa de várias regras fiscais voltadas ao equilíbrio fiscal – teto para as despesas primárias, resultados fiscais, regra de ouro e necessidade de compensação do aumento de gastos obrigatórios. Como fundamento, é reconhecida no País a existência de um “estado de emergência” decorrente de elevação extraordinária e imprevisível dos preços do petróleo, combustíveis e seus derivados e dos impactos sociais deles decorrentes.

A distinção entre estado de emergência e estado de calamidade pública pode ser encontrada no âmbito da política de defesa civil. Depende da intensidade da situação e do alcance dos danos provocados. No estado de emergência a capacidade de resposta do Poder Público é parcialmente comprometida, sendo que os danos são suportáveis e superáveis. No estado de calamidade pública o comprometimento é substancial (desastres).

De acordo com o Decreto nº 10.593/2020:

Art. 2º Para fins do disposto neste Decreto, considera-se:

(…)

VIII – estado de calamidade pública – situação anormal provocada por desastre que causa danos e prejuízos que impliquem o comprometimento substancial da capacidade de resposta do Poder Público do ente federativo atingido ou que demande a adoção de medidas administrativas excepcionais para resposta e recuperação;

(…)

XIV – situação de emergência – situação anormal provocada por desastre que causa danos e prejuízos que impliquem o comprometimento parcial da capacidade de resposta do Poder Público do ente federativo atingido ou que demande a adoção de medidas administrativas excepcionais para resposta e recuperação.

A autorização para que governos deixem de cumprir, de forma temporária, o conjunto de normas legais ou fiscais, sempre foi tratada como procedimento de exceção que exige fundamento fático e cautelas especiais.

O atendimento de situações excepcionais que exigem proteção especial já conta, no caso da calamidade pública, com um arsenal de medidas de enfrentamento. O art. 65 da LRF, além de suspender prazos de retorno aos limites de pessoal e dívida, dispensa o atingimento de metas fiscais e a adoção de medidas de compensação. Aplica-se, no entanto, exclusivamente aos atos de gestão orçamentária e financeira necessários ao atendimento das respectivas despesas.

De acordo com a Constituição, a abertura de crédito extraordinário pode ser feita por medida provisória quando se tratar de despesas imprevisíveis e urgentes, tais como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública. Sobre o tema, o STF esclarece que as despesas devem ser apenas aquelas necessárias para o atendimento de “realidades ou situações fáticas de extrema gravidade e de consequências imprevisíveis para a ordem pública e a paz social, e que dessa forma requerem, com a devida urgência, adoção de medidas singulares e extraordinárias”[7]. Assim, não deve haver dúvidas em relação às situações que ensejam a excepcionalidade.

Exemplo disso foi a situação vivenciada em função da pandemia da COVID-19 no exercício de 2020. Naquele ano foram editadas regras fiscais extraordinárias (EC nº 106/20, LC nº 173/2020 e LDO 2020) que dispensaram ou afastaram exigências do regime fiscal ordinário. De outra parte, as dispensas foram acompanhadas de várias ressalvas e cautelas, o que já refletia a preocupação do próprio Legislativo quanto ao impacto futuro no endividamento público e à necessidade de recuperação fiscal no período pós-pandemia.

Delimitou-se o regime extraordinário somente para 2020 e apenas naquilo em que a urgência viesse a se mostrar incompatível com o regime regular, e desde que não viesse implicar despesa permanente, prevenindo-se assim abusos e desvios na utilização das normas excepcionais. Ao mesmo tempo, a lei complementar estabeleceu proibições específicas para aumentos, criação de cargos, benefícios, concursos, reajustes, progressões etc., com algumas exceções, como forma de compensar, ao menos em parte, o aumento imprevisto de despesas.

Nem mesmo a continuidade dos efeitos da pandemia em 2021 foi motivo para a prorrogação do estado de calamidade pública, visto que já se contava então com a expectativa de recuperação a partir dos efeitos da vacinação.

Como visto, encontra-se implícito no regime de exceção, além da existência de um fundamento fático, a dispensa de requisitos sempre de forma restrita às medidas necessárias e suficientes[8].

De acordo com a redação da PEC nº 1/2022, o estado de emergência, reconhecido no ano de 2022, decorre da “elevação extraordinária e imprevisível dos preços do petróleo, combustíveis e seus derivados e dos impactos sociais deles decorrentes”.

Durante o estado de emergência assim definido, permitir-se-á atender as despesas criadas por crédito extraordinário, independentemente do atendimento do requisito de imprevisibilidade previsto no art. 167, § 3º da CF. Ademais, os novos gastos não serão considerados para fins de cumprimento da meta fiscal prevista na LDO, no limite de despesas primárias (teto), no limite estabelecido pela regra de ouro e serão dispensadas da necessidade de compensação.

Ou seja, ainda que a situação de “emergência” seja menos grave, adota-se na PEC praticamente as mesmas dispensas e privilégios concedidos para situações mais críticas que caracterizam o estado de calamidade pública, o que não parece razoável. Abre-se mão de praticamente todo mecanismo de defesa fiscal de forma desproporcional à situação que se vislumbra.

Segue-se ao caput do art. 2º da PEC o parágrafo único, o qual determina que os limites dos montantes devem constar de uma “única e exclusiva norma constitucional”. O texto, aparentemente, procura mitigar a falta de pressupostos fáticos dessa iniciativa pelo fato de não poder haver outra norma constitucional que amplie os limites, o que parece ser inócuo, porque nada impede que outra emenda constitucional altere o próprio parágrafo único.

 3.2. A compensação das despesas continuadas como princípio fiscal

Como comentado, o impacto da entrada de novas famílias no programa e o pagamento do acréscimo extraordinário de R$ 200,00 para todas as famílias implicará um gasto adicional de R$ 26 bilhões, que, somados aos valores já previstos no orçamento para 2022, de R$ 89,1 bilhões, farão com que o dispêndio total com o Programa alcance a cifra de R$ 115,1 bilhões.

Apesar de a PEC limitar o pagamento dos benefícios nela previstos até 31.12.2022, a entrada das novas famílias no programa será sentida também nos próximos exercícios. Excluído o pagamento do acréscimo extraordinário de R$ 200,00, cujo pagamento está limitado a 31.12.2022, estima-se que o impacto da entrada das 2,6 milhões de famílias no programa pode atingir o montante de R$ 12,5 bilhões em 2023.

Considerada a atual situação de déficit fiscal, a PEC, da forma como se encontra, em especial quanto ao fato de não prever compensação de despesas com caráter nitidamente continuado (Auxílio Brasil), atinge princípios basilares de equilíbrio das contas públicas e aumenta o risco fiscal, precedente que aparenta ser excessivo.

É sabido que crescentes demandas sociais tendem sempre a superar a capacidade tributária e as disponibilidades do Estado, razão pela qual princípios e regras[9] estabilizadores são formulados para conter a tendência de endividamento público crescente. De fato, a percepção quanto à falta de capacidade de solvência das contas públicas induz a elevação das taxas de juros e provoca o aumento dessas despesas, um círculo vicioso bastante conhecido.

No âmbito das finanças públicas existem diversas normas diretamente relacionadas à necessidade de se impor limites financeiros ao governo e aos agentes políticos, em especial no final de mandato.

A existência de um conjunto funcional e harmonizado de preceitos reduz a discricionariedade e o excesso de poder dos governantes, aumenta a transparência e, em especial, a segurança e a credibilidade da política fiscal. Neste desiderato, hipóteses de afastamento e dispensas podem até existir no sistema normativo, mas sempre como exceção amparada por elementos fáticos e jurídicos bem determinados e que devem ser interpretados de forma restritiva.

A relevância e o alcance dos princípios no conjunto normativo justificam o cuidado pela sua preservação, razão pela qual costumam ser inseridos de forma permanente dentro da própria Constituição, o que não impede normas de elevada densidade valorativa enunciadas em textos infraconstitucionais, como é o caso do equilíbrio orçamentário.

Um dos princípios fiscais mais conhecidos é o da busca do equilíbrio temporal das finanças públicas, que, em última análise, visa à justiça intergeracional na divisão dos benefícios e ônus do endividamento público. Nesse sentido, estabelece o art. 1º da LRF que ação fiscal responsável “pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas”. (grifo nosso).

Novas despesas que tendem a ser perpetuar somente podem ser aprovadas se indicada a fonte de financiamento, uma forma de mitigar o aumento da rigidez orçamentária e do déficit. De acordo com a legislação complementar (art. 16 e 17 da LRF), alterações que impliquem aumento de despesas obrigatórias de duração continuada devem ser compensadas[10], mantendo-se o equilíbrio implícito na lei orçamentária.

Essa regra de neutralidade orçamentária permite o controle difuso e prévio de proposições e demais atos que criam despesas obrigatórias. A restrição se justifica pelo fato de que, aprovada a legislação, cria-se um fato consumado, de difícil reversão.

Despesas obrigatórias, uma vez aprovadas, não se submetem aos limites do orçamento, como ocorre com as discricionárias. Ao contrário, é o orçamento que fica submetido às despesas obrigatórias. A necessidade de maior cuidado com a aprovação de despesas obrigatórias encontra-se expressa na Constituição que, ao tempo que cria tetos para as despesas primárias (ADCT, art. 107), estabelece mecanismo de controle dessas despesas quando seu montante ultrapassa 95% da despesa primária total (ADCT, art. 109). Adicionalmente, o art. 113 do ADCT exige a estimativa do impacto orçamentário e financeiro de toda proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória (ou renúncia de receita).

Não há dúvida acerca da importância do objetivo de atenuar o impacto do aumento dos preços dos combustíveis e dos preços em geral sobre a renda dos cidadãos.

Ainda que se admita tratar-se de despesa extraordinária – o que implicaria a dispensa automática do cumprimento da regra do teto (ADCT, art. 107, § 6º, III) – não se vislumbra, por outro lado, razão ou necessidade para afastamento da regra de compensação, em detrimento da preservação do princípio do equilíbrio temporal.

A compensação, ao atuar como freio e contrapeso político ao desejo dos governos de expansão orçamentária, em especial no final de mandato, preserva o nível atual de equilíbrio (já deficitário[11]) para, pelo menos, não agravar ainda mais a situação fiscal.

Não se justifica, portanto, a falta de indicação de fontes permanentes para o atendimento das despesas correntes continuadas criadas pela PEC (art. 2º, parágrafo único, III), em especial quanto ao Programa Auxílio Brasil, implantada aos moldes do Bolsa Família[12]. Tratando-se de benefícios sociais com natureza de despesa corrente continuada, é grande a dificuldade de sua posterior redução, seja do ponto de vista político ou mesmo jurídico (princípio do não retrocesso dos direitos sociais).

Por esse motivo, a extensão de tais benefícios deveria ter sido compensada, para que possa ser mantida, garantindo-se a neutralidade fiscal da medida e a preservação do princípio do equilíbrio temporal do orçamento.

3.3. Limitação das despesas em final de mandato

As regras que limitam despesas de final de mandato, ainda que em legislação infraconstitucional (LRF, arts. 21, 31, 42 e lei eleitoral), dão concretude, em seu conjunto, ao princípio que impõe aos agentes políticos, nos períodos de transição, disciplina fiscal ainda mais rigorosa do que aquela comumente adotada. O bem jurídico protegido é a igualdade da disputa eleitoral, reduzindo-se assimetria no exercício de direitos políticos em benefício de candidatura própria ou de terceiros.

Dentre outras condutas proibidas pela lei eleitoral, veda-se nos três meses que antecedem o pleito, “realizar transferência voluntária de recursos da União aos Estados e Municípios, sob pena de nulidade de pleno direito, ressalvados os recursos destinados a cumprir obrigação formal preexistente para execução de obra ou serviço em andamento e com cronograma prefixado, e os destinados a atender situações de emergência e de calamidade pública” (CF. art. 73, inciso VI, alínea “a”, da Lei nº 9.504, de 1997, grifo nosso). O § 10[13] do mesmo artigo proíbe, no ano de eleição, a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária.

Entretanto, entende-se que o estado de emergência reconhecido pela PEC em análise é peculiar, com aplicação restrita tão somente aos benefícios nela elencados. Desta forma, não deve ter o condão de afastar, de forma genérica, as vedações referidas na lei eleitoral.

 

____________________________________________________

[1] Este texto se baseia em Nota Técnica da Consultoria da Câmara dos Deputados elaborada pelos mesmos Autores (Subsídios à apreciação das PECs nº 1 e 15, de 2022).

[2] Disponível em https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/ri/relatorios/cidadania/index.php; Último acesso em 11/07/2022.

[3] Idem.

[4] Decreto nº 10.881, de 02.12.2021.

[5] Disponível em https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/vis/data3/data-explorer.php.

Último acesso em 11.07.2022.

[6] EC 102/2019, EC 108/2020, EC 109/2021, EC 113/2021, EC 114/2021 e EC 119/2022.

[7] https://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigo.asp?item=1634&tipo=CJ&termo=3#:~:text=Al%C3%A9m%20dos%20requisitos%20de%20relev%C3%A2ncia,de%20relev%C3%A2ncia%20e%20urg%C3%AAncia%20(art.

[8] É exemplo, no caso das despesas com pessoal durante o estado de calamidade pública de 2020, a viabilização da contratação de pessoal apenas nas áreas voltadas ao enfrentamento à pandemia, sendo que, de outra parte, houve restrições à contratação nas demais áreas.

[9] Consideram-se aqui como “regras”, fiscais ou orçamentárias, aquelas normas ou preceitos com maior grau de determinação, vinculantes e objetivas. E, como “princípios”, aqueles enunciados que fundamentam um conjunto de regras e o próprio regime jurídico. Apesar de mais genéricos, têm importância vital, pois estruturam valores que derivam da razão e do conhecimento normalmente aceito e consolidado, estabelecendo substrato que justifica, no caso, o conjunto específico de regras orçamentárias e fiscais criadas para desestimular déficits e atenuar ou reduzir o endividamento público.

[10]  De acordo com o art. 17 da LRF, o aumento de despesa obrigatória continuada exige a redução de outra despesa, ou o aumento de receita.

[11] A meta de resultado primário para 2022, conforme LDO, é de déficit.

[12] De acordo com a PEC, a extensão do programa é assegurada a todas as famílias elegíveis na data de promulgação da Emenda Constitucional.

[13] Em relação à legislação eleitoral, a lei nº 14.352 de 2022, alterou a LDO 2022, inserindo novo dispositivo no seu texto: Art. 81-A. A doação de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública a entidades privadas, desde que com encargo para o donatário, anterior a três meses que antecedem o pleito eleitoral, não se configura em descumprimento do § 10 do art. 73 da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997.

 

* Eugênio Greggianin é consultor de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados

 

** José Fernando Cosentino Tavares é consultor de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados

 

*** Marcia Rodrigues Moura é consultora de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados

 

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A queda da poupança em 2022 https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3648&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=a-queda-da-poupanca-em-2022 Tue, 12 Jul 2022 23:22:46 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3648 A queda da poupança em 2022

 

Por Roberto Macedo* 

 

O Banco Central acabou de publicar seu relatório mensal sobre a caderneta de poupança, com dados mensais até junho de 2022. Na publicação, esses dados aparecem junto com os dados mensais de 2019, 2020 e 2021, cobrindo assim os três últimos anos e o primeiro semestre de 2022.

Este último semestre mostrou um comportamento atípico, pois se comparado com os primeiros semestres do período 2019-2021, foi o que mostrou mais meses (cinco) de capitalização líquida (depósitos menos retiradas) negativa, mesmo com o aumento dos rendimentos creditados que subiram. Estes voltaram a ser 0,5% ao mês mais o valor da taxa referencial, que voltou a ser positivo, depois de muito tempo com o valor zero. Especificamente, a última remuneração mensal total, divulgada pelo Banco Central em 7 de julho, foi de 0,7008.

O comportamento da poupança no primeiro semestre de 2022 contrastou mais fortemente com o que aconteceu com ela em 2020, que teve apenas dois meses de captação líquida durante todo o ano, e o saldo final de todas as contas passou de R$ 845 bilhões em dezembro de 2019 para R$ 1,035 trilhão no mesmo mês de 2020, resultado do auxílio emergencial de R$ 600 que o governo federal pagou em 2020, que muitos depositantes preferiram poupar.

Olhando à frente, a perspectiva é de um auxílio adicional de R$ 200, mas em cima dos R$ 400 do Auxílio Brasil. Talvez muita gente optará por poupá-lo no todo ou em parte, mas sem o maior impacto do auxílio emergencial de 2020.

Outro dado interessante é que o saldo final de todas as contas no mês de junho de 2022 foi de R$ 1,013 trilhão, abaixo do valor de R$ 1,030 trilhão em 2021. Ou seja, uma queda de R$ 17 bilhões. Isso apesar de as contas de poupança terem recebido rendimentos de R$ 30,5 bilhões durante do ano 2021 e R$ 33,5 bilhões no primeiro trimestre de 2022. Ou seja, sem esses R$ 64 bilhões o saldo final de todas as contas teria caído muito mais.

Noutra visão, no seu todo e de um modo geral, os depositantes da caderneta de poupança passaram a usá-la para suprir suas carências de renda em 2021 e 2022, na sua média mantendo os seus saldos finais, mas consumindo o que veio de rendimentos mensais. Mas essa é uma das finalidades da poupança, enfrentar tempos de dificuldades. E esses movimentos da poupança sinalizam que elas existem e estão sendo enfrentadas.

 

* Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no site da Fundação Espaço Democrático, em 12 de julho de 2022.

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Mais e graves pecados fiscais e eleitorais https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3646&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=mais-e-graves-pecados-fiscais-e-eleitorais Thu, 07 Jul 2022 15:36:57 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3646 Mais e graves pecados fiscais e eleitorais

 

PEC do ‘estado de emergência’ descumpre mandamentos de uma adequada política fiscal e de regras eleitorais sem privilégio.

 

Por Roberto Macedo*

 

Tendo como pretexto o forte aumento do preço dos combustíveis, o desgoverno Bolsonaro se excedeu imaginando um “estado de emergência” com sua Proposta de Emenda Constitucional (PEC) recém-aprovada no Senado, com apenas um voto em contrário, do senador José Serra, que honrou o seu mandato.

Entre outros gastos, ela contempla ampliação do Auxílio Brasil, aumento do vale-gás e bolsa-caminhoneiro e para motoristas de taxi. Quando eu escrevia este texto, essa PEC estava na Câmara dos Deputados e a previsão é de que ali será também aprovada por larga margem, pois a dita oposição não quer ir contra um pacote de benesses na proximidade de eleições, ainda que muito defeituoso, populista, oportunista e favorável ao seu adversário. Segundo o jornal O Globo de 1/7/2022, “parlamentares fizeram duras críticas, mas não tiveram coragem de figurar em lista contra a proposta que aumenta verbas públicas para programas sociais, mesmo dando vantagem eleitoral ao presidente”.

Esta “emergência” da referida PEC só existe, mesmo, é nas hostes governistas, pois seu candidato presidencial à reeleição corre alto risco de perdê-la, conforme as pesquisas de intenção de voto. E, assim, ele partiu para a violência fiscal e eleitoral. Só não digo que partiu para a ignorância porque sabe muito bem o que está fazendo.

As instituições fiscais e eleitorais são como mandamentos que regem um Estado Democrático de Direito, e a PEC atua contra um desses mandamentos ao promover a gastança num momento em que o governo não dispõe de recursos, o que aumenta a desconfiança de agentes econômicos na gestão fiscal do governo. Isso traz consequências que não foram ponderadas pelos senadores, como o fato de que as incertezas desses agentes pressionam a taxa de câmbio, um dos ingredientes da alta dos preços dos combustíveis.

Manchete deste jornal ontem mostrou, também, outro efeito: Risco fiscal eleva juro pago pela União. A inflação, que já é alta, será pressionada para cima por essa expansão de gastos, o que vai contra a política anti-inflacionária do Banco Central, que será pressionada por juros altos, prejudiciais aos gastos dos consumidores e aos investimentos em geral.

No plano eleitoral, um mandamento moral e ético é o de que as leis não podem favorecer este ou aquele candidato, e a PEC em questão viola esse mandamento ao beneficiar claramente o presidente e candidato Jair Bolsonaro num período eleitoral. É como uma compra de votos. Espero que os eleitores brasileiros não caiam nessa.

Diante do quadro social, alguém poderia perguntar: mas você não está se mostrando insensível ao sofrimento dos mais pobres? Ora, sempre defendi uma política social em favor deles e desde que nasceu o Bolsa Família sempre o elogiei, mas o desgoverno atual andou mexendo no programa. Entre outras coisas, passou a oferecer um valor mínimo por família, o que estimula a separação delas para receber benefícios em dobro.

Soube que o número de famílias “de um só integrante” beneficiárias do Auxílio Brasil saltou de 2,2 milhões para 3,7 milhões entre novembro de 2021 e abril de 2022. Segundo o economista Marcelo Neri, reconhecido especialista em políticas sociais, o “valor de R$ 600 é bom de divulgação, mas não de desenho” (Folha de S.Paulo, 3/7/2022). É esse valor que virá com a citada PEC.

Sigo vários especialistas em políticas sociais que apontam que o conjunto de políticas sociais do governo, alegadamente em benefício dos mais pobres, precisa de uma revisão quanto ao cumprimento de seus objetivos e ao desenho de seus cadastros. Também sou favorável a uma expansão seletiva dessas políticas, financiada a partir de impostos diretos mais altos e mais progressivos. Mas isso não se faz às pressas e caberia fixar um prazo suficiente para que um projeto a respeito fosse subsidiado por estudos de especialistas quanto ao seu desenho e impacto distributivo de renda.

Acrescento que esta PEC também pode prejudicar o crescimento econômico. Embora aumente os gastos no período de sua duração, isso, como já dito, poderá ter impactos desfavoráveis nas finanças públicas, ampliando incertezas quanto à obediência do mandamento de uma gestão fiscal equilibrada, com efeito desfavorável nas taxas de câmbio e de juros.

Outro problema é que os R$ 200 a mais do Auxílio Brasil cessariam em dezembro deste ano, ou seja, é um “estado de emergência” com duração definida. Haverá pressão para a manutenção deste e de outros benefícios em 2023, ano para o qual as previsões de crescimento são desanimadoras, em particular porque o governo vindouro se verá diante de um cenário econômico altamente complicado para a sua gestão.

Cabe destacar o voto isolado do senador José Serra. Entre outras justificativas, ele disse que “esta PEC viola a Lei de Responsabilidade Fiscal e fura o teto de gastos”. Estes são, também, mandamentos da boa gestão fiscal, que eticamente deveria ser em prol do bem comum. Mas a maioria dos congressistas não se revela preocupada com isso nem com o crescimento econômico do País.

 

* Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), consultor econômico e de ensino superior e membro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 7 de julho de 2022.

 

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Dívidas judiciais: pagamento, parcelamento e exceções ao teto de gastos https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3619&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=dividas-judiciais-pagamento-parcelamento-e-excecoes-ao-teto-de-gastos Wed, 08 Jun 2022 19:20:21 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3619 Dívidas judiciais: pagamento, parcelamento e exceções ao teto de gastos

As emendas constitucionais 113 e 114, ambas de 2021, criaram um conjunto complexo de regras para pagamento de dívidas judiciais da União, definindo limites para pagamento ou postergação, e inclusão ou não no teto de gastos. Além da complexidade, vários analistas e técnicos do Congresso apontaram como problema básico dessas regras a tendência ao acúmulo acelerado de precatórios não pagos. Como a regra vale até 2026, tenderia a haver um grande estoque de dívidas judiciais a ser pago em 2027. Isso aponta para provável alteração da regra antes de 2027, que introduza novo parcelamento e postergação.

A presente nota tem dois objetivos. O primeiro é apresentar um esquema que busque simplificar o entendimento das regras em vigor, com o intuito de ser um guia rápido para consultas.

O segundo é utilizar os poucos dados já apresentados pela Secretaria do Tesouro Nacional e pela Secretaria de Orçamentos Federais (SOF) quanto ao pagamento e adiamento de precatórios para checar se a tendência de acúmulo acelerado está, de fato, ocorrendo na prática.

I – Descrição esquemática das regras relativas a precatórios: inclusão ou não no teto de gastos e inclusão ou não no limite de pagamento

A nova redação constitucional trazida pelas ECs 113 e 114 criou nada menos que sete situações distintas para o pagamento de débitos oriundos de sentenças transitadas em julgado (precatórios e requisições de pequeno valor – RPV) quanto a: 

  1. Parcelamento ou pagamento integral no exercício em que a justiça determina que sejam pagos;
  2. Serem ou não computados no teto de gastos.

A figura abaixo apresenta essas sete situações:

 

  1. Vejamos cada uma dessas situações. Notas de rodapé são inseridas para indicar o dispositivo constitucional que estipula cada regra.As RPVs já tinham prioridade de pagamento sobre as demais dívidas judiciais antes das ECs 113 e 114. A edição destas duas emendas estabeleceu um limite máximo para pagamento de dívidas judiciais em cada exercício (a ser comentado adiante), mas colocou as RPVs em primeiro lugar na fila. Logo, se o montante de RPV for grande, menor será o espaço para pagamento de precatórios. Por isso, o pagamento das RPVs:1) Requisições de pequeno valor (RPV) devidas no exercício
    1. DIMINUEM o espaço disponível para o pagamento das demais despesas judiciais incluídas no limite de pagamento;
    2. SÃO computadas no teto de gastos.

 

 

2) Precatórios devidos no exercício ATÉ o limite imposto para o pagamento de despesas judiciais

A EC 114 criou um limite máximo para pagamento de dívidas judiciais em cada exercício financeiro. Os precatórios pagos dentro desse limite:

  1. Por definição, SÃO afetadas pelo limite de pagamento de despesas judiciais;
  2. SÃO computados no teto de gastos.

 

 

3) Precatórios devidos no exercício e não pagos por estarem ACIMA do limite imposto ao pagamento de despesas judiciais. 

 

Esses precatórios se dividem em dois subgrupos:

3.1) Podem ser pagos à vista se o credor aceitar desconto de 40%. Nesse caso:

  1. a) Estão FORA do limite imposto ao pagamento de despesas judiciais;
  2. b) NÃO são computados no teto de gastos.

3.2) Não havendo o pagamento com desconto, o valor devido fica postergado para os exercícios seguintes. Nesse caso: 

  1. a) Serão afetados pelo limite imposto ao pagamento de despesas judiciais nos exercícios futuros em que vierem a ser pagos;
  2. b) São computados no teto de gastos nos exercícios futuros em que vierem a ser pagos.

 

4) Parcelamentos de precatórios de alto valor:

Antes da edição das ECs 113 e 114 já havia a possibilidade de parcelamento de pagamento de precatórios de alto valor, que continua válida. Os pagamentos desses valores parcelados: 

a) Estão FORA do limite imposto ao pagamento de despesas judiciais;

B) NÃO são computados no teto de gastos.

 

 

5) Correção monetária de precatórios inscritos no exercício:

É usual que a Justiça determine o pagamento de complementação de precatórios, por conta de correção monetária dos valores devidos. Esses pagamentos:

a) Estão FORA do limite imposto ao pagamento de despesas judiciais;

b) São computados no teto de gastos.

 

 

6) Precatórios devidos aos estados e municípios relacionados ao Fundef, que serão pagos em 3 parcelas anuais:

Há precatórios de alto valor devidos aos estados e municípios, por pagamentos a menor da União ao Fundef. Esses valores foram parcelados em 3 anos e:

  1. Estão FORA do limite imposto ao pagamento de despesas judiciais;
  2. NÃO são computados no teto de gastos.

 

7) Precatórios a serem quitados mediante acerto de contas (quitação de dívidas e obrigações diversas com a União):

Para outros precatórios da União devidos a estados e municípios, que não os relacionados ao Fundef, ou precatórios detidos por pessoas físicas ou jurídicas no setor privado, foi prevista a possibilidade de encontro de contas, cancelando-se valores devidos à União ou utilizando-se para transações futuras com a União. Os registros das despesas referentes a essas transações:

c) Estão FORA do limite imposto ao pagamento de despesas judiciais;

d) NÃO são computados no teto de gastos.

 

 

II – A tendência ao acúmulo acelerado de precatórios não pagos

As sete possibilidades acima apontam o risco de haver, a cada ano, o aumento do estoque de precatórios não pagos. Esse estoque será tão maior quanto:

a) maior for o crescimento de RPV, que têm precedência sobre os precatórios no uso do limite de pagamentos (seção 1, acima)

b) maior o descasamento entre a taxa de correção do limite de pagamentos de dívidas judiciais (que é dada pelo IPCA do ano anterior) e a taxa de crescimento dos pagamentos de precatórios determinados pela justiça;

c) menor for o uso da opção de pagamento à vista com desconto (seção 3.1, acima) ou da opção de fazer transações com a União usando precatórios (seção 7, acima).

A presente seção faz uma avaliação quantitativa do crescimento do estoque de precatórios não pagos, a partir dos poucos números que a STN e a SOF já divulgaram a respeito. Para tanto, não se faz aqui qualquer consideração sobre o teto de gastos. O único objetivo é avaliar a tendência de acúmulo de precatórios não pagos. 

A Tabela 1 apresenta esse exercício e mostra que, mesmo com hipóteses bastante otimistas em relação aos fatores (a), (b) e (c) que influenciam a trajetória de acúmulo dos precatórios, haveria um crescimento de 54% no estoque devido e não pago em apenas um ano. Isso claramente prenuncia um acúmulo insustentável de obrigações.

Tabela 1 – Grandes números dos limites e pagamentos de precatórios em 2022 e simulações para 2023 (R$ bilhões)

Fonte: 2º Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias e simulações do autor.

 

Começando a descrição pelos dados referentes a 2022 temos, na linha (A), que o limite total para pagamento de dívidas judiciais no exercício é de R$ 40,5 bilhões. A linha (B) mostra que há R$ 19,9 bilhões em RPV a pagar, que têm precedência na fila de pagamento (seção 1, acima). Logo, restaria como limite para pagar os demais precatórios apenas R$ 20,6 bilhões (linha C).

O estoque de precatórios sujeitos ao limite é de R$ 42,8 bilhões (linha D). Esse montante já exclui todos aqueles que, conforme descritos na seção I, não se submetem ao limite (seções 4,5 e 6, acima).

A linha (E) contém os precatórios que, em decorrência do limite de pagamento constitucional, não foram pagos em anos anteriores (seção 3.2, acima). Como 2022 é o primeiro ano de vigência do limite, o valor é zero.

A linha (F) registra os precatórios devidos que foram usados pelos credores para acertos de dívidas ou pagamentos à União (seções 3.1 e 7, acima). Como 2022 é o primeiro ano, supõe-se que não tenha havido tempo para essas negociações e, portanto, nada se abateu com esses instrumentos.

A linha (G) registra o saldo líquido de precatórios a pagar e que estão sujeitos ao limite. Seu valor é dado pela soma dos precatórios inscritos, menos os que foram abatidos por transações com a União, mais os que não foram pagos em anos anteriores. 

A linha (H) mostra a diferença entre o limite de pagamentos e o valor de precatórios a pagar, registrando, assim, o saldo que fica para ser pago em exercícios anteriores. A estimativa do Tesouro e da SOF para 2022 está em torno de R$ 22 bilhões.

Passemos, agora, a fazer projeções para o que ocorreria em 2023. Em primeiro lugar é preciso estimar qual será o limite para pagamento de precatórios em 2023. Foi feita aqui uma hipótese de que o IPCA de 2022 será de 9,5% e, portanto, essa será a correção do limite. Com isso, a linha (A) registra um limite de pagamento para 2023 de R$ 44,3 bilhões.

De forma otimista, supõe-se que tanto as RPVs (linha B) quanto os precatórios inscritos no ano (linha D) cresçam apenas 6%: abaixo, portanto, do limite, o que abre espaço para mais pagamentos e trabalha contra a tese de acúmulo excessivo de precatórios não pagos.

Supõe-se que 15% do total de precatórios devidos em 2023 seja objeto de acordo para pagamento com desconto ou usado em transações com a União (linha F). Esse valor, de R$ 10,1 bilhões passa a ser pago fora do limite. Tal hipótese também é otimista, pois as simulações de Tesouro e SOF costumam usar o percentual de 10%. 

Porém, mesmo com esse abatimento, ainda restarão R$ 57,5 bilhões a pagar (linha G), valor que extrapola o limite de pagamentos em R$ 34,3 bilhões.

Ou seja, ao final do segundo ano de vigência dos limites de pagamento de precatórios, o saldo de débitos a pagar terá crescido 54% em relação ao saldo deixado em 2022 (linha I). Isso ocorre a despeito das hipóteses otimistas aqui assumidas. Além disso, a EC 103 estabeleceu como fator de correção das dívidas judiciais a taxa Selic. Tendo em vista o forte aumento dessa taxa ao longo de 2022, e a perspectiva de sua permanência em nível elevado em 2023, temos outro fator de crescimento acelerado do estoque de precatórios não pagos.

Logo, parece caracterizada uma trajetória de crescimento acelerado do saldo de precatórios não pagos. Em 2027, quando acabar a regra atual, possivelmente haverá nova prorrogação, pois não será possível quitar todo o estoque de uma só vez. Isso será similar ao que ocorre com estados e municípios, cujos precatórios são seguidas vezes parcelados ou prorrogados.

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Fragmentação política e políticas públicas https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3617&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=fragmentacao-politica-e-politicas-publicas Thu, 02 Jun 2022 15:44:22 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3617 Fragmentação política e políticas públicas

Para Marcos Mendes, o atual sistema político-eleitoral é o principal fator por trás do fracasso dessas políticas.

 Por Roberto Macedo*

Marcos Mendes é um economista de destaque entre seus pares e tem recebido merecida atenção da mídia, como neste jornal e na Folha de sábado passado, ao lançar outro livro. Tem graduação e mestrado em Economia pela Universidade de Brasília e doutorado na mesma área pela Universidade de São Paulo (USP). É consultor legislativo do Senado Federal – cargo obtido por concurso público –, e tem se afastado para exercer outras atividades da sua área de interesse, finanças públicas. Em 2016, no governo Temer, tornou-se assessor especial do ministro da Fazenda.

Seu livro mais conhecido é Por que é difícil fazer reformas econômicas no Brasil? (Elsevier, 2019). Adotei-o como livro-texto do curso de Economia Brasileira que atualmente leciono na USP. Fui atraído pela pergunta que intitula o livro, pois sei dessa dificuldade, procurando entendê-la e buscar soluções, conforme se depreende de artigos meus neste espaço.

O livro começa examinando a dificuldade de que trata seu título, inclusive internacionalmente, ao abordar exemplos de vários países, como Índia e México. Dedica um capítulo à coesão social, cuja ausência dificulta o processo de reforma, no que examina o caso da Austrália.

Ensina que “(…) a maior propensão a fazer reformas liberalizantes, voltada à estabilidade fiscal e aumento da produtividade, ocorre em países que: são pequenos; fizeram reformas antes da abertura política; estão num dos extremos da escala de democracia – plenamente democráticos ou autoritários –; têm sistemas político-eleitorais que facilitam a formação de maiorias no Parlamento; têm clara delimitação e separação dos Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo; são países com governos unitários; têm Constituições pouco detalhistas ou facilmente alteráveis; são vizinhos de outros países que foram bem-sucedidos na promoção de reformas; têm oportunidade de aderir a blocos econômicos com países vizinhos que tenham economias maiores e mais desenvolvidas; e têm elevado nível de coesão social, representado por baixa desigualdade de renda e baixos índices de violência, que levam a alto nível de confiança mútua. O Brasil não possui essas características”.

Contudo, Mendes não desiste e busca o enfrentamento dos difíceis problemas. Ressalta que “(…) precisamos estar preparados para mais de duas décadas de debates e resistência ao novo (…), não sendo uma corrida de 100 metros, e mais uma maratona”. Dedica um capítulo à dificuldade para fazer reformas no Brasil e o capítulo final, com o título O que fazer, tem 20 seções temáticas que se desdobram num grande número de propostas específicas.

No novo livro, Para não esquecer: políticas públicas que empobrecem o Brasil, que ainda não li, Mendes organizou uma coletânea em que especialistas discutem políticas que fracassaram. Na entrevista a este jornal, citada no início deste meu artigo, indagado sobre o principal fator por trás da baixa qualidade das políticas públicas, apontou o sistema político-eleitoral que gera representação muito fragmentada, com muitos partidos que, de sua parte, também têm interesses muito pulverizados. E, muitas vezes, os parlamentares respondem mais ao interesse de grupos específicos – quando não ao próprio interesse, acrescento – do que ao de uma programação político-partidária.

No momento, por exemplo, estão focados na sua reeleição ou na eleição de outros, recorrendo, inclusive, a mecanismos espúrios, como as emendas de relator, que cevam clientelas políticas municipais em troca de votos. Essas emendas constituem um financiamento indireto de campanhas eleitorais, beneficiando desigualmente os incumbentes, e estes sendo também beneficiados relativamente a candidatos sem mandato, embora a Constituição, no seu artigo 5.º, estabeleça que todos são iguais perante a lei. Mas o que ocorre é um show de desigualdades mediante essas emendas.

Em que pese a fragmentação política, Mendes argumentou, no primeiro livro citado, que uma reforma política não seria a “mãe de todas as reformas”. Após examinar as dificuldades de uma reforma rápida desse tipo, propôs uma gradual e citou a dos regimentos internos da Câmara e do Senado Federal, elaborados à época do regime militar, com seu sistema bipartidário. E argumentou que: “Sua extensão para o contexto multipartidário (…) torna a tramitação dos projetos morosa e muito sujeita a chicanas e obstruções excessivas”. Em conversa recente, contudo, ele disse que os regimentos foram revistos, infelizmente com maus resultados, pois o Centrão os tornou mais expeditos para passar suas boiadas, também impulsionadas pelas sessões remotas trazidas pela pandemia de Covid.

Mas ao menos uma obstrução ainda ocorre pela prerrogativa que o presidente da Câmara tem de decidir isoladamente sobre o andamento de pedidos de impeachment do presidente da República. Soube que há muitos pedidos desse tipo, mas ele não coloca o assunto em discussão. É um presente do Centrão ao presidente da República. E que custa muito caro para o País.

 

* Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 2 de junho de 2022.

 

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Agilidade organizacional no setor público https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3615&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=agilidade-organizacional-no-setor-publico Fri, 20 May 2022 22:21:22 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3615 Agilidade organizacional no setor público

Essa característica requer muito esforço e exige líderes visionários, muito escassos no País atualmente.

 Por Roberto Macedo

Nossos governantes em geral não têm pressa, e muitos problemas de interesse público têm sua solução procrastinada. Alguns exemplos vieram às manchetes nos últimos dias, como o de que tomou décadas a negociação entre o governo paulistano e o federal quanto ao que fazer com o Campo de Marte; e na cidade a cracolândia continua de pé. Há anos ouço falar da privatização da Eletrobras, mas o assunto continua empacado e foi, também, desvirtuado com emendas do Congresso. E as reformas administrativa e tributária não escaparam à lentidão do setor público.

Alguns problemas, se fossem objeto de melhor e mais rápida agilidade organizacional do setor público, teriam impacto positivo na produção e na produtividade da economia, colaborando para o seu maior crescimento. Vejo esse crescimento como prioritário em termos de políticas públicas, em face da estagnação da economia desde a década de 1980, no sentido de um crescimento econômico abaixo do seu potencial.

Mas nossos políticos, salvo exceções cada vez mais excepcionais, têm suas prioridades aéticas, pois não visam ao bem comum e são rápidos só no encaminhamento de assuntos de interesse pessoal ou de grupos. No momento, a prioridade é a reeleição dos incumbentes de mandatos, no Congresso recorrendo, inclusive, às indecentes emendas parlamentares do relator do Orçamento, assunto que ganhou enormes proporções, mas felizmente vem recebendo grande atenção da imprensa, que desvendou o chamado “orçamento secreto”, o que levou a uma decisão do Supremo Tribunal Federal pró-transparência.

Neste contexto, foi com satisfação que vi o assunto de que trata o título deste artigo sendo objeto de texto da consultoria internacional McKinsey, que costuma abordar assuntos de interesse público nos seus estudos. Não tenho espaço para uma visão completa do texto, mas a quem quiser acessá-lo sugiro procurá-lo no Google pelo seu título: Better and faster: Organizational agility for the public sector.

O texto, que também faz referência a outros estudos da McKinsey, destaca os seguintes aspectos (tradução livre): 1) metodologias ágeis podem transformar a maneira como um governo planeja, opera e entrega seus produtos e serviços; 2) como cada nível de uma organização governamental tem diferentes papéis e prioridades, os mais eficazes princípios básicos da agilidade serão também diferentes; 3) os resultados poderão ser maior produtividade e melhores serviços para os cidadãos; 4) metodologias do setor privado podem ajudar no desempenho e na saúde organizacional; 5) pesquisa da McKinsey mostrou que 70% de organizações ágeis ficam no quartil superior de saúde organizacional; 6) características podem tornar entidades governamentais dificilmente adaptáveis a um modelo ágil, como o mais longo horizonte dos seus orçamentos, usualmente anuais, e a competição interna por volume fixo de recursos, que pode desencorajar a colaboração dentro do governo – como os retornos dos investimentos são frequentemente dispersos dentro dele e publicamente, pode ser difícil de motivar funcionários a trabalharem para melhoria que não necessariamente veem ou experimentam; 7) esses aspectos recomendam a adoção de princípios ágeis, como o de trabalhar com objetivos e resultados com avaliações trimestrais; 8) a estrutura hierárquica – com sua cultura e seus modos de trabalhar – também pode tornar difícil a implementação de metodologias ágeis, como organizações menos hierarquizadas e interações rápidas.

Prosseguindo: 9) uma abrangente implementação ágil é uma enorme tarefa, que requer sólidos compromissos de poder, recursos e um foco de ponta a ponta no interesse de quem terá os benefícios; 10) a perspectiva de esforço tão significante poderá desencorajar muitos líderes governamentais de assumirem compromissos, com o que essas transformações requerem líderes visionários.

Concluindo o resumo: 11) o texto volta a enfatizar dois princípios de agilidade, o de trabalhar na direção de objetivos e resultados com avaliações trimestrais; 12) também propõe a colaboração entre diferentes setores do governo, pois vários trabalham de forma isolada, e não em ações comuns entre eles, e dá como exemplo uma colaboração entre líderes em áreas como saúde, educação e trânsito em apoio a cidadãs grávidas. Noutro exemplo, uma agência de transporte público interessada em aumentar a clientela criou um time envolvendo especialistas em planejamento de transportes, engenharia de dados, operações, serviço ao consumidor e marketing.

Como dito anteriormente, a agilidade organizacional do setor público requer muito esforço e líderes visionários. Ora, tais líderes são muito escassos no Brasil, com a maioria dos políticos mais voltada para seus próprios interesses e de grupos. Por isso venho insistindo, neste espaço, em que a sociedade brasileira precisa se organizar para cobrar dos políticos medidas voltadas para o bem comum. Incluirei essa agilidade entre os pilares de plano que já apresentei neste espaço enfatizando essa cobrança.

 

Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 19 de maio de 2022.

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Contas públicas: um trabalho a recuperar e aplicar https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3599&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=contas-publicas-um-trabalho-a-recuperar-e-aplicar Thu, 07 Apr 2022 22:11:53 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3599 Contas públicas: um trabalho a recuperar e aplicar

 

Estudo feito pelo Banco Mundial em 2017, a pedido do governo Temer, seria um bom começo para presidente que assumir em 2023.

 

Por Roberto Macedo

 

É sabido que a situação das contas públicas brasileiras é lastimável. Cronicamente desequilibradas nos seus aspectos econômico-financeiros, levam a endividamento exagerado, que paga juros altos, prejudica o crescimento econômico e alimenta incertezas quanto à solvência da dívida pública, o que inibe investimentos privados e repercute negativamente sobre mercados como o de câmbio. Os impostos carecem de reformas – projetos nessa linha existem, mas a coisa não anda ou anda mal. E, do lado das despesas, elas só tendem a aumentar, e sem os cuidados necessários quanto à sua eficácia e eficiência.

Essa questão fiscal é o grande nó que emperra a gestão governamental e prejudica o avanço econômico-social do Brasil, que tem ficado para trás na corrida internacional deste avanço. Carece de estudos aprofundados, que levassem a propostas concretas de solução dos muitos e complexos problemas existentes. Da atual administração não se pode esperar nada, pois é pautada pelo desgoverno. O presidente que assumir ou reassumir em 2023 terá de se debruçar sobre o problema logo após o resultado da eleição, empenhar-se em buscar um profundo e efetivo diagnóstico do assunto e avançar na execução das mudanças propostas.

Um bom começo seria um documento do Banco Mundial intitulado Um ajuste justo – análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil, que pode ser encontrado buscando esse título no Google. Concluído em 2017, teve a colaboração de dezenas de especialistas, e sugiro que seja consultado por estudiosos do assunto, cidadãos em geral e, particularmente, pelos candidatos a presidente da República e seus assessores.

Creio que esse estudo tenha se perdido por desconhecimento, desinteresse ou falta de empenho do governo que se seguiu, que efetivamente não se pauta por um plano de reestruturação fiscal e tem até contribuído para agravar ainda mais os problemas das contas públicas. O texto tem 160 páginas, lista os membros da equipe do Banco Mundial que o elaboraram, a pedido do governo Temer, num trabalho que também contou com especialistas brasileiros e internacionais, e recebeu comentários de vários integrantes da equipe econômica de então, de outros funcionários do governo federal, de colaboradores do Banco Mundial e de Teresa Ter-Minassian, ex-diretora do Departamento de Assuntos Fiscais do Fundo Monetário Internacional (FMI), em cuja condição participou de várias missões ao Brasil desde a década de 1990 e tratava de questões ligadas ao País.

Para quem não quiser encarar as 160 páginas do texto, uma boa visão vem das 16 páginas iniciais, que abrangem um prefácio, um sumário na forma de índice e um resumo executivo, este com dez páginas.

Alguns trechos destacam a importância do conteúdo: “O principal achado de nossa análise é que alguns programas governamentais beneficiam os ricos mais que os pobres, além de não atingir de forma eficaz os seus objetivos. (…) A análise é baseada nas melhores práticas internacionais e na revisão da eficiência dos gastos entre as diferentes entidades e programas governamentais. Com ela, queremos estimular que os debates considerem não apenas a alocação dos recursos públicos, mas também as premissas que devem nortear os gastos de forma a promover a eficácia nos serviços prestados e igualdade social. (…) é um grande desafio. Abrangerá mais de um mandato presidencial e exigirá um diálogo extenso, incluindo governos subnacionais, movimentos sociais, sindicatos, associações empresariais e muitos outros grupos. Acreditamos que, quanto antes o País iniciar esse debate e enfrentar seus problemas, mais cedo será possível transformar sua realidade e retomar o caminho da prosperidade compartilhada com todos”.

O resumo executivo termina com tabela de uma página que sintetiza as opções de políticas públicas para os setores analisados e seu impacto na eficiência, na equidade e no potencial de economia fiscal – este num período que, na data do relatório, se estenderia até 2026. Esse potencial alcançaria 8,36% do PIB, um valor expressivo, que dá substância ao termo ajuste que marca o título do documento. Seria um ajuste mesmo.

Para administrar projeto como este, entendo necessária a recriação do Ministério do Planejamento, cujas atividades passaram ao Ministério da Economia, onde ficam em posição secundária, pois este é muito voltado para o dia a dia das finanças do governo, sem que seu ministro dê a devida atenção a um projeto voltado para um horizonte mais longo, como este que o documento elaborado pelo Banco Mundial propõe.

É indispensável que o novo ou reeleito presidente assuma a liderança do projeto de levar adiante um ajuste como este, num contexto de articulação política em que também cobraria medidas para serem implementadas já no seu mandato. O objetivo, em última análise, seria o de retirar o Brasil da armadilha da renda média em que caiu a partir dos anos 1980 – da qual até agora não saiu –, em larga medida armada por governos incompetentes que o País teve na maior parte desse período.

 

 

Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 7 de abril  de 2022.

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Planejamento de Médio Prazo do Processo Orçamentário https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3596&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=planejamento-de-medio-prazo-do-processo-orcamentario Fri, 18 Mar 2022 19:56:10 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3596 Planejamento de Médio Prazo do Processo Orçamentário

 

Por Helio Tollini e Paulo Bijos[1]

 

Uma parte significativa das decisões relativas a receitas e despesas tem implicações que se prolongam bem além do habitual ciclo de uma lei orçamentária anual (LOA). O horizonte temporal curto da LOA, portanto, não estimula que o planejamento fiscal e o planejamento estratégico das despesas sejam consistentes, pois tende a desconsiderar o impacto plurianual das decisões tomadas no momento presente.

Quando o foco do processo orçamentário é apenas o exercício de referência, o interesse em propor modificações nas legislações que provocam rigidez orçamentária é menor, visto que os ganhos de flexibilidade tendem a ocorrer nos exercícios seguintes. Se o foco orçamentário for o médio prazo, haverá estímulos para que boa parte dos ganhos de flexibilidade seja incorporada ao novo processo alocativo.

Um instrumento adotado por diversos países, chamado Quadro da Despesa de Médio-Prazo – QDMP (em inglês, Medium-Term Expenditure Framework – MTEF)[2], permite ao governo ampliar o horizonte da alocação dos recursos públicos para além do calendário orçamentário anual. O QDMP compatibiliza as prioridades estratégicas de cada setor com limites alocativos plurianuais definidos conforme a capacidade fiscal do Estado. Para tal, estabelece com antecedência, para o médio prazo, tetos gerais anuais em consonância com os objetivos de longo prazo da política fiscal, e subtetos de gastos específicos por área temática conforme as prioridades definidas setorialmente.

O QDMP costuma ser construído com amparo em um Cenário Fiscal de Médio Prazo (CFMP), que dilata o horizonte da política fiscal ao apresentar a estimativa de evolução plurianual dos grandes agregados de receitas e despesas. Nesse modelo de planejamento de médio prazo, a limitação “de cima para baixo” (top-down) oriunda do CFMP interage com a programação setorial de gastos “de baixo para cima” (bottom-up), decorrente do cenário-base (baseline) e das novas iniciativas. Os objetivos da adoção conjunta de um CFMP/QDMP seriam impor, com antecedência, metas fiscais estabelecidas para o médio prazo, em consonância com os objetivos de longo prazo da política fiscal, e alocar recursos públicos em linha com essa restrição fiscal e com prioridades estratégicas definidas de antemão.

  • Há diferenças acentuadas entre modelos de QDMP adotados atualmente nos diversos países. Caso venha a ser utilizado no Brasil, tanto no governo federal quanto eventualmente em entes subnacionais, escolhas precisarão ser feitas no que diz respeito:
  • À abrangência (inclui ou não a seguridade social; considera ou não somente as despesas primárias; contempla ou não apenas as despesas correntes);
  • Ao horizonte temporal (dois, três, quatro ou até cinco exercícios financeiros);
  • Ao caráter dos limites impostos aos exercícios futuros (apenas indicativos ou impositivos; irreversíveis ou não);
  • À forma de se desdobrar limites (por função, por programa, por ministério, por setor ou por área);
  • Ao grau de detalhamento da programação objeto do teto (agregadas por grupo de despesa, desdobradas por programas ou por ações);
  • À atualização dos limites (se ajustados pela inflação ou outro critério);
  • Às reservas de programação (para atender mudanças na conjuntura econômica; para atender novas políticas públicas);
  • À previsão de “gatilhos” (para disciplinar o excepcional descumprimento de limites e suas respectivas consequências); e
  • Ao papel do Parlamento (exigência de aprovação; apenas requerimento de ser informado; ou nenhum papel).

Se adaptado com base na exitosa experiência sueca, o teto global de gastos seria de caráter impositivo e irretratável[3], fixado anualmente na LDO para o médio prazo (até o exercício “t+2”), em base móvel, por proposta do Poder Executivo. Os subtetos seriam definidos por área temática, e impositivos apenas entre a LDO recém-aprovada e o projeto de LOA a ser submetido ao Congresso dois meses depois (e de caráter indicativo para os exercícios futuros). As atribuições do Congresso Nacional na aplicação dos recursos públicos seriam reforçadas, pois passaria a definir antecipadamente o montante máximo de gastos e como se daria a divisão desse montante entre as áreas temáticas.

Dentre outras, destacam-se as seguintes vantagens de se elaborar um QDMP em relação à orçamentação anual tradicional:

  • Impor maior disciplina fiscal ao limitar a elaboração e a execução dos orçamentos nos anos seguintes a níveis consistentes com os objetivos fiscais e setoriais de médio e longo prazos;
  • Melhorar a priorização estratégica dos gastos ao discutir antecipadamente a programação setorial dos exercícios futuros, expondo de forma clara a evolução das despesas associadas às diversas políticas públicas vis-à-vis as limitações do espaço fiscal disponível;
  • Permitir a identificação antecipada de medidas corretivas a serem adotadas para contornar rigidezes, obstáculos e eventual degradação das contas públicas no médio prazo, de forma a viabilizar os subtetos indicativos pretendidos para os exercícios seguintes;
  • Fomentar maior eficiência no planejamento intertemporal dos gastos, ao proporcionar maior previsibilidade e transparência aos gestores setoriais quanto aos recursos de que disporão nos orçamentos futuros; e
  • Reforçar aspectos antes relegados a segundo plano num ambiente cujo foco é o curto prazo, fomentando melhorias para o planejamento setorial, a avaliação de desempenho, a responsabilização e a transparência do processo alocativo.

Ademais, o arcabouço CFMP/QDMP seria uma alternativa mais interessante do que o atual Novo Regime Fiscal (NRF) para nortear a política fiscal, pois manteria a rigidez fiscal no médio prazo, com a vantagem de ser flexível no longo prazo. Por ter horizonte temporal mais curto e base móvel, admitiria a correção de curso da política fiscal no médio prazo, em sintonia com a alteração dos indicadores econômicos.

Adicionalmente, informaria melhor o Congresso Nacional a respeito da evolução das contas públicas nos anos subsequentes, dotando-o de melhores condições para calibrar o impacto financeiro de suas decisões de acordo com a trajetória desejada de evolução da dívida pública. A participação de uma Instituição Fiscal Independente robusteceria esse modelo com apoio técnico na elaboração e no monitoramento de cenários fiscais.

A mudança fundamental é o deslocamento do foco do processo de elaboração orçamentária do curto para o médio prazo, com afetação direta da forma como os recursos públicos são alocados.

Quanto ao Plano Plurianual (PPA), dentro desse novo arcabouço ele se torna dispensável enquanto instrumento legal de planejamento orçamentário no médio prazo. O PPA possui limitações estruturais que o tornaram ineficaz. Apesar dos diversos formatos tentados desde o início da década de 1990, nunca conseguiu determinar a alocação plurianual dos recursos públicos. No novo modelo de planejamento orçamentário, a tríade de “leis orçamentárias” (PPA, LDO e LOA) cederia lugar a apenas duas – LDO e LOA. A LDO incorporaria as funções de CFMP/QDMP e a LOA continuaria aprovando despesas anuais à luz de uma estrutura fiscal de médio prazo. O planejamento plurianual, em suma, não mais assumiria a forma de “lei de PPA”, mas a atividade de planejamento, evidentemente, não deixaria de existir, sobretudo em nível setorial. O planejamento central, por sua vez, poderia materializar-se por meio do ainda pouco explorado “plano de governo” a que se refere o art. 84, inciso XI, da Constituição. Para esse instrumento já existente poderia ser canalizado todo aprendizado obtido a partir da experiência histórica com o PPA.

Adicionalmente, o modelo trazido à baila deveria ser idealmente complementado por um processo de Revisão do Gasto Público (em inglês, Spending Review), a fim de evitar o comportamento inercial da “base orçamentária” existente. É preciso institucionalizar um processo de reavaliação periódica de programas, ações, vinculações orçamentárias, gastos tributários e subsídios (financeiros e creditícios). A Revisão do Gasto Público teria o objetivo de aprimorar a alocação de recursos escassos em favor de programações que propiciem maiores benefícios à sociedade. Isso permite que a redução de gastos ineficientes abra espaço fiscal para incorporação de outros mais eficientes (evitando-se também os malfadados “cortes lineares”, que muitas vezes atingem despesas correntes essenciais e investimentos). Para tal, propõem-se revisões específicas (de um ou alguns poucos setores escolhidos) no âmbito de cada projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), e uma revisão mais abrangente apresentada juntamente com o projeto de LDO do último ano do mandato presidencial (para que suas conclusões eventualmente sirvam de base para discussões políticas dos candidatos à Presidência nas eleições do mesmo ano).

Por fim, a LOA precisa dialogar melhor com a abordagem da orçamentação por desempenho (em inglês, performance budgeting). Em sua estruturação moderna, por programas, a LOA deve ser encarada como leis de fins. Isso significa que as ações orçamentárias não são “peças soltas” no ambiente de planejamento governamental. As ações finalísticas do orçamento têm compromisso com entregas na forma de bens e serviços, que por sua vez visam contribuir para a melhoria das condições socioeconômicas do País. Por isso as ações finalísticas da LOA são expressamente dotadas de produtos e respectivas “metas físicas”, que quantificam as entregas associadas a cada dotação orçamentária. Essa informação deve ser levada mais a sério. A fixação e a execução das metas físicas precisam ser consistentes e transparentes, de forma a permitir o acompanhamento da eficácia das ações orçamentárias. A LOA já divulga metas físicas, desde 1987, mas não há qualquer justificativa para os valores fixados para as metas das despesas discricionárias, nem controle social sobre a execução delas. O ideal é que haja divulgação de justificativa específica para o valor de cada meta física fixada, assim como a publicização de sua execução ao longo do ano, de forma a permitir o controle social da eficácia da ação governamental. O argumento de que tal informação eventualmente “burocratizaria” o processo orçamentário não procede. No mundo contemporâneo, altamente digitalizado, não deveria haver óbices para a disponibilização dessas informações à sociedade.

 

Referências

ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE). Budgeting and public expenditures in OECD countries. Paris: OECD – Publishing, 2019.

Obs.: aos leitores interessados nos temas tratados neste artigo, sugerimos adiante algumas referências pertinentes, em caráter não exaustivo:

AFONSO, José Roberto; RIBEIRO, Leonardo. Revisão dos gastos públicos no Brasil. Revista Conjuntura Econômica, set. 2020.

ALMEIDA, Dayson P.B.; BIJOS, Paulo R.S. Planejamento e orçamento no Brasil: propostas de inovação. In: SALTO, Felipe S.; PELLEGRINI, Josué A. (org.). Contas públicas no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2020.

BIJOS, Paulo R.S. Spending Review e MTEF – caminhos para maior estabilidade? [Publicação preliminar]. In: Governança Orçamentária no Brasil. COUTO, Leandro F.; RODRIGUES, Júlia M. (org.). Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 2021.

COURI, Daniel V.; BIJOS, Paulo R.S. Subsídios para uma reforma orçamentária no Brasil. In: Reconstrução: o Brasil nos anos 20. SALTO, Felipe; VILLAVERDE, João; KARPUSKA, Laura (org.). Brasília: Série IDP/Saraiva, 2022.

FORTIS, Martin; GASPARINI, Carlos E. Plurianualidade: marcos de gasto de médio prazo. In: GIMENE, Márcio. (org.). Planejamento, orçamento e sustentabilidade fiscal. Brasília, DF: Assecor, 2020.

MACIEL, Pedro J.; ARAÚJO, Rafael C. Regras fiscais no Brasil: proposta de harmonização do arcabouço fiscal de médio prazo. In: GIAMBIAGI, Fábio. (org.). O futuro do Brasil. São Paulo: Atlas, 2021.

SALTO, Felipe S. O tripé orçamentário Couri-Bijos. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 15 mar. 2022.

TOLLINI, Hélio. Deslocando o foco orçamentário do curto para o médio prazo. In: GIAMBIAGI, F.; FERREIRA, S.G.; AMBRÓZIO, A.M.H. (org). Reforma do Estado brasileiro: transformando a atuação do governo. São Paulo: Atlas, 2020.

 

[1] Consultores de Orçamento da Câmara dos Deputados.

[2] Estudo da OCDE realizado em 2019 examinou 34 países membros e concluiu que 31 deles adotam o QDMP. Desses, 25 praticam um modelo de base móvel, em que anualmente o exercício financeiro transcorrido é retirado e outro futuro acrescido. Os demais seis países utilizam periodicidade fixa, normalmente coincidente com o ciclo político (OCDE, 2019).

[3] O que não se confunde com ausência de válvulas de escape no modelo.

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O papel das Instituições Fiscais Independentes (IFIs) e o caso da IFI do Brasil https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3589&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-papel-das-instituicoes-fiscais-independentes-ifis-e-o-caso-da-ifi-do-brasil Mon, 07 Mar 2022 20:33:15 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3589 O papel das Instituições Fiscais Independentes (IFIs) e o caso da IFI do Brasil*

 

Por Felipe Scudeler Salto[1] e Rafael da Rocha Mendonça Bacciotti[2]

 

  1. O que esperar de uma IFI?

As Instituições Fiscais Independentes (IFIs), ou Conselhos Fiscais, são organismos públicos com mandato para realizar análises técnicas e apartidárias sobre política fiscal e orçamentária. O objetivo é melhorar a disciplina fiscal, promover maior transparência das contas públicas e elevar a qualidade do debate público nas temáticas de finanças públicas e economia em geral.

A ampliação do número de conselhos fiscais ao redor do mundo representa uma inovação institucional importante no campo da política fiscal (Mulas-Granados, 2018). Em resposta aos efeitos negativos da crise econômica e financeira de 2008, diversos países, particularmente, os que compõem a Organização para a Cooperação do Desenvolvimento Econômico (OCDE), criaram instituições fiscais independentes para fortalecer a credibilidade da política fiscal (Kopits, 2016).

Essa tendência de aumento é observada, principalmente, entre os países membros da União Europeia, tendo ganhado mais força com a aprovação, no Parlamento, do Regulamento nº 4733[3], de 2013. Como parte da resposta da região à crise da dívida pública, o Regulamento atribuiu mandato a um “órgão independente”, em nível nacional, para monitorar o cumprimento das regras da política fiscal e fornecer ou endossar previsões macroeconômicas e fiscais realistas para a elaboração do orçamento (FMI, 2013 e Ribeiro, 2020).

A dinâmica desfavorável do nível de endividamento foi amplificada pelas políticas de estímulo e pelas perdas acumuladas de receitas. Somou-se a isso o fato de o conjunto de regras numéricas utilizadas para controlar a discricionariedade da política fiscal, no processo orçamentário, não garantir, isoladamente, a condução prudente das contas públicas. Esses fatores favoreceram o surgimento de fiscal watchdogs (vigilantes ou cães de guarda), no pós-crise, com apoio crescente obtido junto aos organismos multilaterais.

A OCDE, por exemplo, divulgou, em 2014, os princípios orientadores para o design e operacionalização das IFIs. Trata-se de codificação de valores mínimos de governança que resultou de discussões e sistematização de boas práticas –, reconhecendo o potencial papel positivo dessas instituições[4].

O Fundo Monetário Internacional, por sua vez, mapeia a existência de 39 IFIs operando em 2016 (último levantamento disponível)[5], 25 das quais apareceram depois da crise econômica e financeira de 2008, como se observa no Gráfico 1.  As IFIs veteranas, existentes antes da crise, como o “Congressional Budget Office” (CBO) dos Estados Unidos e o caso pioneiro na Holanda – “Central Planning Bureau” (CPB) –, diferem da nova geração de IFIs, por terem aparecido em resposta a eventos históricos locais e  singulares (Bjios, 2014).

 

 

  1. Revisão de literatura: viés deficitário da política fiscal

Do ponto de vista teórico, as IFIs aparecem, na literatura, ao lado das regras fiscais (mecanismos que introduzem, por certo período, restrições ou limites quantitativos para alguma das variáveis fiscais como: dívida, resultado, resultado estrutural, despesa ou receita). São tidas como soluções institucionais mais comuns para atenuar o viés deficitário (tendência crescente do déficit e do nível de endividamento público ao longo do tempo) e a pró-ciclicidade do gasto público (tendência a gastar receitas extraordinárias sobretudo nos momentos de alta do ciclo econômico ao invés de poupá-las para que possam ser utilizadas para estimular o retorno da atividade econômico para o equilíbrio nos momentos de baixa), que acentua a volatilidade do ciclo econômico.

A literatura documenta diversas fontes que estariam por trás da geração de déficits persistentes e da tendência à pró-ciclicidade, que impactam a discricionariedade da política fiscal em muitas economias emergentes e avançadas, afetam a dinâmica da dívida pública (favorecendo a recorrência de crises fiscais) e reduzem o bem-estar social.  As implicações negativas sobre a estabilidade macroeconômica fundamentam a ênfase colocada na restauração e manutenção de posições fiscais sólidas. (Hemming e Joyce, 2013)

Calmfors e Wren-Lewis (2011) lista diversas classes teóricas de explicações:

(i) assimetrias de informação entre o público e o governo: os eleitores podem não conhecer a posição fiscal do seu país ou as projeções macrofiscais podem ser pouco realistas, por exemplo;

(ii) a impaciência, principalmente dos governos, em razão de objetivos eleitorais, pode levá-los a desejar aumentar o produto interno acima de seu nível natural, por meio de ações fiscais expansionistas;

(iii) conflito intergeracional: geração de eleitores pode não levar em conta que a carga futura aumentará, por exemplo, no caso em que a política fiscal atribua peso pequeno à pressão de gastos associada com o envelhecimento da população (Carlin e Soskice, 2015);

(iv) a competição entre os partidos políticos pode fazer com que os governos não internalizem totalmente o custo da dívida;

(v) o problema dos recursos comuns leva atores do processo orçamentário a pressionar por mais gastos ou incentivos tributários; e

(vi) a inconsistência temporal de compromissos de interesse nacional firmados ex ante, que podem deixar de ser desejáveis por questões eleitorais, por exemplo.

Na sequência, os autores exploram as potencias contribuições que os conselhos fiscais poderiam dar no sentido de reduzir o viés deficitário e fortalecer a disciplina fiscal:

(i) avaliação ex-post para averiguar o comportamento passado da política fiscal, se houve cumprimento das metas ou não;

(ii) avaliação ex-ante sobre a probabilidade de cumprimento das metas fiscais;

(iii) análise de sustentabilidade ou equilíbrio de longo prazo das finanças públicas;

(iv) análise de transparência das contas públicas;

(v) mensuração do custo e do impacto fiscal de proposições de políticas públicas;

(vi) projeções macroeconômicas; e

(vii) formulação de recomendações normativas sobre a política fiscal.

A Tabela 1, extraída de FMI (2013), sintetiza diversas explicações potenciais do viés deficitário, posicionando-as ao lado das funções que as IFIs poderiam exercer no decorrer de seus mandatos para atenuar as imperfeições e distorções existentes na condução da política fiscal, de modo a reduzir a assimetria de informação entre os formuladores de política e os eleitores.

 


  1. Critérios para avaliação de efetividade das IFIs no desempenho fiscal

Apesar da experiência relativamente recente com conselhos fiscais na maior parte dos países, a literatura, a partir de análises econométricas complementadas por nuances narrativas de estudos de casos, tem avançado no sentido de avaliar se eles têm obtido sucesso (se têm sido efetivos) na tarefa de influenciar os formuladores de políticas na direção de políticas fiscais sólidas. (Lledó, 2018)

Além do fato de serem, em sua maioria, instituições novas e heterogêneas entre si, existem muitos desafios metodológicos associados à avaliação empírica do impacto dos conselhos no desempenho fiscal, que derivam, entre outros fatores: i) da existência de causalidade reversa, uma vez que governos mais comprometidos com a disciplina fiscal tendem a ser mais sensíveis à promoção de reformas institucionais e ii) do fato de não serem os únicos elementos no arcabouço institucional encarregadas de encorajar políticas fiscais sustentáveis (Lledó, 2018).

Hagemann (2011) indica que a existência de conselhos fiscais bem desenhados é uma condição necessária para melhorar a performance fiscal, embora a falta de comprometimento político com um objetivo de médio prazo e, em alguns casos, com o próprio mandato dos conselhos, limitaria melhorias duradouras.

Debrun e Kinda (2014), utilizando dados em painel de uma amostra de 58 economias avançadas e emergentes, de 1990 a 2011, e cientes dos desafios de endogeneidade associados à estimação econométrica, relacionam a presença de IFIs com o desempenho fiscal (medido pelo nível do resultado primário), controlados por outros efeitos que influenciam o desempenho fiscal, como o hiato do produto e o nível de endividamento. A conclusão do estudo sugere que a existência de conselhos em si não é suficiente para promover disciplina fiscal (a correlação é positiva, mas não significante em termos estatísticos), o que ocorre apenas quando o conselho apresenta certas características e atribuições:

  1. i) grau de independência com relação às disputas políticas;
  2. ii) papel no monitoramento de regras fiscais;
  3. ii) produção ou avaliação de projeções macrofiscais;
  4. iv) impacto na mídia: como os conselhos fiscais não exercem influência direta sobre a condução da política fiscal, esse canal é importante para ampliar a presença no debate público.

Beetsma et al (2018), utilizando a base de dados sobre conselhos do FMI atualizada até 2016, também traz evidencias empíricas no sentido de que a presença de conselhos fiscais bem desenhados parece reduzir o viés otimista nas projeções orçamentárias e favorecer o cumprimento das regras fiscais.

Lledó (2018) constata, a partir da revisão de diversos estudos empíricos e casos narrativos, que conselhos bem desenhados, dotados de certas características (independência com relação a disputas políticas e impacto na mídia) e funções (produzir ou avaliar projeções macroeconômicas e monitorar o cumprimento de regras fiscais), parecem ter maior capacidade em promover políticas fiscais sólidas.

 

  1. A situação da IFI brasileira em relação às demais

Como se observou na seção 3 deste capítulo, parece haver um consenso na literatura de que o desenho de um conselho efetivo, capaz de melhorar o desempenho da política fiscal, passa, principalmente, pela presença constante no debate público, pelo grau de independência e pelo papel na produção ou avaliação de projeções macroeconômicas e no monitoramento do cumprimento de regras fiscais.

A base de dados da OCDE sobre as IFIs (OCDE, 2019)[6] possibilita mapear algumas dessas características chave e situar o Brasil – que é o único país, além dos membros da organização, monitorado nessa base – em relação aos países membros da Organização.

A base é bastante ampla e permite acessar informações sobre o contexto para estabelecimento, base legal, modelo institucional, relacionamento com o legislativo, independência, liderança, recursos, mandato e funções, publicações, acesso à informação, transparência, apoio consultivo e acordos de avaliação.

Segundo o monitoramento, 28 dos 36 países membros têm IFIs em operação. O Brasil, único país não pertencente à OCDE, também é acompanhado pelo órgão multilateral em sua base de dados que mapeia as principais características dessas instituições.

Na prática, como se observa na Tabela 2, 73% desses organismos se envolvem com projeções macrofiscais (sendo que, algumas delas, como o CBO, dos Estados Unidos, produzem projeções alternativas que servem de base de comparação para as projeções do governo; outras preparam as projeções utilizadas pelo governo, como o OBR do Reino Unido e o CPB da Holanda; enquanto outras endossam ou opinam sobre as previsões oficiais); 70,3% são incumbidas de monitorar o cumprimento das regras fiscais, ao passo que 64,9% têm um papel na análise de sustentabilidade fiscal de longo prazo. Por outro lado, 40,5%, 29,7% e 10,8% apuravam o custo fiscal de iniciativas do governo, realizavam suporte a parlamentares com análises sobre o orçamento e avaliação do custo de plataformas eleitorais, respectivamente.

 

Tabela 2. Funções de uma IFI de acordo com a OCDE

  IFI / Brasil IFIs que compõem a base de dados
  Sim
Projeções macroeconômicas e fiscais  

x

73,0%
Monitoramento de regras fiscais  

x

70,3%
Análise de sustentabilidade fiscal de longo prazo  

x

64,9%
Apuração do custo de iniciativas do governo  

x[7]

40,5%
Suporte direto a parlamentares com análises sobre orçamento  

29,7%
Avaliação do custo de plataformas eleitorais  

10,8%
Fonte: OECD Independent Fiscal Institutions Database (2019). Elaboração dos autores.

 

Mesmo que as IFIs ao redor do mundo tenham papéis e estruturas distintas (“there is no one size fits all model”), refletindo diferentes arcabouços fiscais e circunstâncias que estão por trás da origem de seu estabelecimento, elas apresentam funções convergentes, sendo que a maioria delas exerce as funções principais mapeadas por Debrun e Kinda (2014) para a mensuração de sua efetividade.

Segundo Von Trapp e Nicol (2018) e OCDE (2019), o grau de independência de um conselho fiscal pode ser avaliado por meio de quatro pilares, delineados nos princípios de boas práticas contidos em OCDE (2014).

  1. i) independência técnica: avaliada de acordo com o processo de seleção de pessoas para as IFIs, isto é, se ocorre com base no mérito e na competência técnica, se a duração do mandato é estabelecida de forma independente do ciclo eleitoral e se os critérios para a demissão das lideranças são especificados em legislação;
  2. ii) independência legal/financeira: refere-se ao marco jurídico da instituição e à proteção dos recursos financeiros contra contingenciamentos e interferências políticas. As variáveis desse pilar buscam analisar se a instituição foi estabelecida por legislação primária, se possui uma dotação orçamentária própria para assegurar os recursos para o desempenho de suas atividades e se há um compromisso plurianual de financiamento;

iii) independência operacional: trata-se da autonomia das IFIs em relação às suas operações, considerando-se, ainda, se fazem ou não recomendações normativas de políticas (o que pode colocar em risco a reputação por meio do viés partidário). As variáveis para mensurar a independência operacional incluem os seguintes tipos de critérios: se a instituição tem liberdade para definir o programa de trabalho e para produzir análises por iniciativa própria, se faz recomendação de política e se possui equipe qualificada própria para a execução do mandato.

  1. iv) acesso à informação e transparência: refere-se aos mecanismos de garantia legal para eventuais pedidos de informações requeridas ou viabilizadas por memorandos de entendimento, ao plano de trabalho e demais documentos operacionais publicados e se relatórios e metodologias subjacentes às análises também ficam disponíveis ao público interessado.

A Tabela 3, construída a partir das informações obtidas na base de IFIs da OCDE, coloca em perspectiva a IFI brasileira em relação às instituições dos países membros no quesito da independência. Do ponto de vista formal, observa-se a presença de muitas das medidas delineadas nos quatro pilares, indicando que a IFI brasileira segue as recomendações internacionais. Na seção 5, passaremos a tratar especificamente do caso brasileiro.

Há, de toda forma, certa distância em relação às demais nos itens “dotação orçamentária própria” (presente em 47% das IFIs que compõe a base de dados) e no número de funcionários (apesar de possuir equipe qualificada própria, a quantidade de colaboradores permanentes encontra-se bem abaixo da média dos pares: 9 x 27). O orçamento da IFI brasileira é vinculado ao do Senado Federal, ainda que exista garantia de espaço orçamentário para contratação de pessoal, em ato específico da Comissão Diretora do Senado Federal, como discutiremos à frente. Essas são questões importantes para os próximos passos no processo de “institutional building” da IFI brasileira.

 

Tabela 3. Aspectos relativos à independência

Pilares de independência IFI/ Brasil IFIs que compõem a base de dados
Sim
Independência técnica

Seleção de pessoas baseada no mérito e na competência técnica?

x

 

100%

Termo do mandato estabelecido de forma independente ao ciclo eleitoral?

 

x

 

97%

Critérios para a demissão das lideranças especificados em legislação?

 

x

 

72%

 

Independência legal/financeira

 

 

Instituição estabelecida por legislação primária?

 

x

 

83%

Dotação orçamentária própria?

 

 

47%

Compromisso plurianual de financiamento?

 

 

14%
 

Independência operacional

Liberdade para definir o programa de trabalho?

 

x

 

94%

Liberdade para produzir análises por iniciativa própria?

 

x

 

94%

Faz recomendação de política?

 

 

14%

Número de funcionários que compõem a equipe?

 

9[8]

27[9]

 

Acesso à informação e transparência

Acesso à informação requerida é assegurado pela legislação?

 

x

 

25%

Acesso à informação apenas por memorando de entendimento?

 

 

11%

Acesso à informação por ambos?

 

 

42%

Plano de trabalho e demais documentos operacionais são publicados?

 

x

 

89%

Relatórios e metodologias subjacentes também ficam disponíveis ao público?

 

[10]

 

69%

Fonte: OECD Independent Fiscal Institutions Database (2019). Elaboração dos autores.

Pontes (2018), a partir dos dispositivos da resolução que criou a IFI brasileira, mostra que a instituição apresenta elevado grau de aderência da base normativa e procedimental nas dimensões relativas à independência no desempenho de atribuições e no que se refere à abrangência de atribuições previstas para uma IFI frequentemente apontadas pela literatura e identificadas na experiência internacional – reforçando a impressão inicial que fica da simples análise comparativa a partir dos dados extraídos da base da OCDE.

Uma avaliação mais robusta da aderência em relação às boas práticas internacionais viria da própria OCDE, que produz com frequência relatórios técnicos sobre as IFIs que compõem sua rede[11] com avaliações detalhadas (realizadas pelos pares, membros da própria OCDE e acadêmicos) sobre o desempenho de uma instituição em relação aos princípios de boas práticas, identificando aspectos que podem ser aprimorados como forma de preservar a viabilidade no longo prazo. As análises abrangem tipicamente os elementos de inputs (recursos humanos e financeiros, acesso à informação e independência), outputs (qualidade das publicações e metodologias empregadas) e de impacto do trabalho da IFI em termos da influência no debate público e da ampliação da transparência.

Importante mencionar, de toda forma, que já há um reconhecimento internacional da IFI brasileira com relação à credibilidade de seus trabalhos. No documento “OECD Economics Surveys – Brazil”[12], publicado em 2018, a organização expressou que o Brasil progrediu em sua estrutura fiscal com o estabelecimento de um conselho fiscal que publica relatórios mensais de alta qualidade.

Finalmente, vale destacar que o Fundo Monetário Internacional (FMI) também tem acompanhado o trabalho da IFI do Senado Federal, por meio de reuniões e visitas da chamada Missão do Artigo IV. Em 2017, o FMI reconheceu em texto público a importância da criação da IFI no Brasil[13].

 

  1. Histórico da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal

A Instituição Fiscal Independente (IFI) foi criada pela Resolução do Senado Federal nº 42, de 2016[14], com o objetivo de melhorar a transparência e a disciplina das contas públicas. A IFI é um órgão do Senado, mas com independência para realizar suas funções legais, seguindo as boas práticas internacionais, conforme discutidas nas seções anteriores. Ela é dirigida por um Conselho Diretor e conta com um Conselho de Assessoramento Técnico (CAT), de caráter consultivo, indicado pelo Diretor-Executivo do Conselho Diretor. A independência é garantida pelo mandato fixo dos Diretores e do Diretor-Executivo.

Antes de discutir a experiência da IFI brasileira, destaca-se que as funções da IFI não invadem atribuições do Tribunal de Contas da União (TCU) ou mesmo das Consultorias do Senado e da Câmara. O TCU é um órgão de controle, uma corte de contas com poder judicante. As Consultorias prestam assessoria direta aos parlamentares. A IFI, por sua vez, produz informações – este é o seu poder – na área de contas públicas, por meio de publicações que auxiliem na tarefa de ampliar a transparência e a disciplina fiscal, sem poder judicante e não tendo a missão de prestar consultoria direta[15].

A instalação da IFI se deu no dia 30 de novembro de 2016[16], com a posse do primeiro Diretor-Executivo, o economista Felipe Salto[17], para exercer um mandato de seis anos, sem recondução. Os próximos Diretores-Executivos terão sempre mandatos de quatro anos.

Cabe esclarecer que a indicação do Diretor-Executivo se dá pela Presidência do Senado Federal, conforme o inciso I do parágrafo 2º do artigo 1º da Resolução nº 42. O indicado deve passar por duas etapas para assumir o mandato fixo: arguição pública e aprovação pelo Senado Federal, conforme o parágrafo 3º da mesma Resolução. Segundo o dispositivo, os indicados devem ter notório saber nos temas de competência da IFI e reputação ilibada. Esses requisitos são checados pelo parlamentar relator do processo de indicação e, também, na sabatina realizada pela Comissão Diretora do Senado Federal. A aprovação do indicado deve se dar tanto pela Comissão Diretora quanto pelo Plenário do Senado.

O primeiro Diretor-Executivo indicado foi aprovado pela Comissão Diretora do Senado Federal, em 29 de novembro de 2016[18], após arguição pública realizada pelo colegiado. No mesmo dia, foi aprovado por 50 votos favoráveis no plenário[19]. Houve um voto contrário e duas abstenções. No dia 30 de novembro, como mencionado, ocorreu a cerimônia de posse e o início dos trabalhos da IFI.

Os objetivos da IFI estão bem definidos na Resolução nº 42 e envolvem o trabalho técnico de projeção e análise econômica e fiscal. Isso se dá por meio do cumprimento dos quatro dispositivos legais, fixados no artigo 1º da Resolução:

“I – divulgar suas estimativas de parâmetros e variáveis relevantes para a construção de cenários fiscais e orçamentários;

II – analisar a aderência do desempenho de indicadores fiscais e orçamentários às metas definidas na legislação pertinente;

III – mensurar o impacto de eventos fiscais relevantes, especialmente os decorrentes de decisões dos Poderes da República, incluindo os custos das políticas monetária, creditícia e cambial; e

IV – projetar a evolução de variáveis fiscais determinantes para o equilíbrio de longo prazo do setor público.”

O objetivo fixado no inciso I consiste em elaborar projeções macroeconômicas, a exemplo da trajetória do PIB, da inflação, dos juros reais e nominais, da taxa de câmbio, dentre outras variáveis relevantes para os cenários fiscais. O inciso II determina que a IFI acompanhe as metas fiscais vigentes, comparando-as aos indicadores fiscais, a exemplo do teto de gastos (fixado pela Emenda Constitucional nº 95, de 2016) e da meta de resultado primário (prevista na Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei Complementar nº 101, de 2000).

No inciso III, a instituição recebe a incumbência de definir eventos que tenham impacto relevante nas contas públicas e elaborar suas avaliações sobre tais assuntos, a exemplo das reformas previdenciária, tributária e administrativa. Por fim, o quarto inciso manda que a IFI projete a evolução das variáveis fiscais relevantes ao equilíbrio de longo prazo, a exemplo da dívida pública, do déficit primário e nominal, das receitas e despesas do governo federal.

Após a instalação da IFI, o Diretor-Executivo Felipe Salto montou uma equipe, a partir da regulamentação da Resolução nº 42, de 2016, feita pelo Ato nº 10 da Comissão Diretora do Senado Federal, de 2016[20]. O referido ato forneceu os subsídios para recrutar servidores e realocou cargos para contratação de pessoal de fora do Senado. Ainda sem o Conselho Diretor completo, portanto, a IFI passou a funcionar, no âmbito do Senado, mas com total independência para realizar seus estudos e análises.

Isso está em linha com a revisão de literatura apresentada na seção 4. Ainda que a IFI não possua um orçamento autônomo, o espaço fiscal fixo para contratação de pessoal está garantido por lei. Como mencionado, esta é uma área em que a IFI poderá avançar, ganhando mais estrutura e recursos para poder realizar suas atribuições legais. Entende-se que este é um processo de “institutional building”, que está diretamente associado aos resultados produzidos pela instituição.

Vale dizer, no período de quatro anos de funcionamento completados em novembro de 2020, a IFI já havia conquistado um amplo reconhecimento da imprensa, critério importante destacado por Debrun e Kinda, supracitados. Mais à frente, mencionaremos alguns números a fundamentar essa análise. Este reconhecimento foi fundamental para solidificar a posição da instituição diante do parlamento e mesmo para obter melhorias e avanços operacionais e de estrutura, como a própria conquista de um espaço físico adequado para a realização das atividades da IFI.

Logo no início do funcionamento do novo órgão, após recrutar dois servidores do Ministério do Planejamento – um da Secretaria de Orçamento Federal (SOF) e um do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) – e dois servidores efetivos do Senado Federal – um da Consultoria de Orçamentos (Conorf) e outro da Consultoria Legislativa (Conleg) –, a IFI elaborou um modelo de relatório mensal e publicou sua primeira versão em fevereiro de 2017[21]. Logo em seguida, recrutou um economista com experiência em contas públicas para reforçar a equipe, além da secretária, que também exerce funções de auxiliar administrativa.

Ainda sobre a questão da equipe, é importante destacar que, conforme o artigo 2º da Resolução 42, a equipe deve ter sempre 60%, no mínimo, de mestres ou doutores nas áreas de atuação da IFI, requisito sempre cumprido, incluindo todos os servidores efetivos e comissionados que compõem ou compuseram a equipe e a Diretoria.

Esse primeiro trabalho mencionado foi denominado “Relatório de Acompanhamento Fiscal” (RAF), que viria a ser o principal produto da IFI, com periodicidade mensal[22]. Ele já está na 48ª edição, publicada em janeiro de 2021[23]. Sua aceitação por parlamentares, imprensa, especialistas do mercado e academia tem sido muito positiva. Para divulgar o primeiro trabalho da IFI, em fevereiro de 2017, realizou-se coletiva à imprensa[24], da qual participaram jornalistas especializados dos principais veículos de comunicação e economistas e servidores públicos do Executivo e do Legislativo. Apenas no mês de fevereiro de 2017, houve onze menções à IFI na imprensa nacional. Também o Poder Executivo comentou projeções e cálculos publicados no primeiro RAF, cumprindo-se, assim, desde o início, uma função precípua de toda IFI, que é a de estabelecer um contraponto saudável com a área econômica do governo, a partir do acompanhamento macrofiscal.

Em janeiro de 2017, foi publicado um artigo do Diretor-Executivo da IFI, na página A2 do jornal O Estado de S. Paulo, que é útil para entender o contexto, a lógica e os objetivos do novo órgão do Senado: “O papel da Instituição Fiscal Independente”[25]. Nele, o economista explicou as razões da criação do novo órgão em um quadro de crise econômica e fiscal. É importante mencionar que a IFI foi uma resposta do Senado àquela situação conjuntural bastante grave das contas públicas e da atividade econômica. Vale dizer, a economia passava por um biênio, de 2015 a 2016, que viria a ser o pior da série histórico do PIB. As contas públicas também já seguiam por alguns anos apresentando déficit e crescimento da dívida/PIB. Nesse sentido, há um claro paralelo com as experiências de criação e consolidação de instituições ou conselhos fiscais, conforme relatadas pelos autores citados nas seções anteriores deste capítulo.

Para completar a primeira formação do Conselho Diretor, conforme determinado pela Resolução nº 42, a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) e a Comissão de Transparência (CTFC)[26] do Senado Federal precisavam fazer suas indicações, proceder à sabatina e aprovação, para em seguida haver a deliberação em plenário. Foram indicados os economistas Gabriel Barros[27], para a vaga da CAE, e Rodrigo Orair[28], para a vaga da CTFC, completando, ainda em meados de 2017, a primeira formação do Conselho Diretor da IFI, ao lado de Felipe Salto.

Cabe ainda explicar a lógica dos mandatos não coincidentes prevista na Resolução 42. O mandato do primeiro Diretor indicado pela CAE, conforme a resolução, seria de quatro anos. Já o mandato do Diretor indicado pela CTFC, de dois anos. Assim, o primeiro Diretor-Executivo teria seis anos, o primeiro Diretor indicado pela CAE, quatro anos, e o primeiro Diretor indicado pela CTFC, dois anos. Os segundos indicados para todas as três vagas teriam sempre mandatos fixos de quatro anos, preservando-se a descontinuidade inicial. A recondução é proibida. Em caso de vacância, substitui-se o Diretor por meio do mesmo processo descrito acima, para que se complete o período remanescente do mandato original, seja para o Diretor-Executivo seja para os demais Diretores.

Essa descontinuidade inicial serve para que as trocas de Diretoria nunca ocorram de maneira concomitante. Esta é uma forma de preservar a blindagem político-partidária da IFI, isto é, a sua independência técnica em relação a essas questões. O mecanismo está em linha com as boas práticas e um dos critérios utilizados pela OCDE, por exemplo, para avaliação da independência das IFIs.

Transcorridos quase quatro anos desde a instalação da IFI, já houve duas trocas na Diretoria. O primeiro Diretor indicado pela CAE renunciou após dois anos de mandato, o que ensejou a indicação de um novo nome para completar o período faltante para os quatro anos. Já o Diretor indicado pela CTFC cumpriu o seu mandato completo e, ao término dos dois anos, a referida comissão indicou um novo nome para exercer, então, conforme a regra da Resolução nº 42, um mandato de quatro anos.

A substituição do Diretor indicado pela CAE transcorreu sem maiores percalços. Foi indicado o economista Josué Pellegrini, que já participava da equipe da IFI, como analista, além de ser Consultor Legislativo do Senado Federal. Pellegrini é Doutor em Economia pela USP, tem livros publicados na área de economia e contas públicas e foi diversas vezes premiado pelo Tesouro Nacional com artigos relevantes. Além disso, tem vasta experiência em docência, tendo sido um dos professores que ajudou a montar a Faculdade de Economia da USP de Ribeirão Preto. O Presidente da CAE fez a indicação, seguida do mesmo processo: sabatina, aprovação na comissão e no plenário. Pellegrini completará o mandato de quatro anos, portanto, conforme prevê a Resolução 42, contando os dois anos iniciais cumpridos pelo primeiro Diretor indicado pela CAE.

Quanto à substituição do Diretor indicado pela CTFC, com o término do mandato, seguiram-se os trâmites já explicados. O indicado foi o economista Daniel Couri, que fazia parte da equipe da IFI desde a sua instalação, sendo Consultor de Orçamento do Senado. Seu mandato será de quatro anos. Couri tem Mestrado em Economia pela UnB e experiência como servidor do Tribunal de Contas da União (TCU) e da Secretaria de Orçamento Federal (SOF) do Ministério do Planejamento.

Portanto, a atual formação do Conselho Diretor conta com os economistas: Felipe Salto, Josué Pellegrini e Daniel Couri. Todas as decisões sobre a definição dos assuntos a serem tratados pela IFI, dentro do plano de trabalho definido na própria Resolução nº 42, são colegiadas. Ouvem-se os membros da equipe, discutem-se os temas relevantes e fixam-se prazos para as publicações. O Relatório de Acompanhamento Fiscal (RAF) é a publicação fixa da IFI e mais importante, no sentido de que cumpre pelo menos três dos quatro objetivos fixados na Resolução nº 42. Além dos doze trabalhos anuais, a IFI ainda publica Estudos Especiais, Notas Técnicas e Comentários da IFI, de acordo com temas discutidos nas reuniões de Equipe e Conselho Diretor, levadas também em consideração as sugestões colhidas nas reuniões do CAT. Sempre no mês de dezembro, realiza-se reunião de planejamento para definir algumas diretrizes a esse respeito.

A equipe técnica da IFI também foi sofrendo alterações em relação ao seu quadro inicial. Como explicado, dois servidores do Senado tornaram-se Diretores, ao longo dos últimos quatro anos. Além disso, os dois servidores cedidos pelo Ministério do Planejamento saíram da equipe, tendo sido substituídos por outros economistas contratados com o espaço orçamentário contido no Ato nº 10 de 2016. Hoje, a IFI conta com um economista com doutorado, dois economistas com mestrado e dois economistas com nível de graduação, além de uma secretária e assistente administrativa. Além disso, há dois estagiários[29] a auxiliar a equipe e os Diretores. Os três diretores funcionam também como analistas, isto é, participam ativamente da elaboração dos produtos da IFI, além de exercerem suas funções administrativas no Conselho Diretor. É importante notar, para que se tenha a dimensão do orçamento de pessoal destinado à IFI, que a formação acima descrita já preenche praticamente 100% do orçamento disponível[30].

Destaca-se que, dentro do processo de “institutional building”, a IFI conseguiu que o Conselho de Assessoramento Técnico (CAT) fosse instalado, em 2019, pelo Presidente do Senado Davi Alcolumbre, conforme prevê o parágrafo 9º do artigo 1º da Resolução 42. Os cinco nomes apontados pelo Diretor-Executivo Felipe Salto foram: Yoshiaki Nakano, Diretor da Escola de Economia de São Paulo da FGV e ex-Secretário da Fazenda de São Paulo; José Roberto Afonso, pesquisador e professor do IDP e Doutor em Economia pela Unicamp; Monica de Bolle, professora da Johns Hopkins University; Gustavo Loyola, ex-Presidente do Banco Central; e Bernard Appy, Diretor do Centro de Cidadania Fiscal.

O CAT foi regulamentado pelo Ato nº 8 do Presidente do Senado, de 25 de março de 2019[31]. Nele, o instala-se o Conselho com os membros indicados pelo Diretor-Executivo da IFI. Os membros não são remunerados e exercem a função de ampla assessoria consultiva, em reuniões organizadas semestralmente. A primeira reunião do Conselho de Assessoramento Técnico foi pública e transmitida pela TV Senado. O evento contou com a presença de autoridades do Executivo e do Legislativo, economistas do mercado e jornalistas[32].

A instalação formal do CAT, ainda que a IFI já contasse com o apoio informal de economistas que vieram a compor o Conselho, foi um passo que completou, por assim dizer, as etapas principais de construção da instituição previstas na Resolução nº 42.

 

  1. Balanço de quatro anos

A IFI é inspirada em experiências internacionais importantes, a exemplo do “Congressional Budget Office” (CBO), nos Estados Unidos, e do “Office for Budget Responsibility” (OBR), no Reino Unido, já mencionados anteriormente. A OCDE congrega essas experiências e acompanha suas atividades por meio de uma rede, da qual a IFI brasileira passou a fazer parte, na categoria de “key partner country”, em base de dados publicada pelo organismo multilateral citada na seção 4.

O Conselho de Finanças Públicas (CFP) de Portugal é uma terceira referência fundamental, não apenas pela proximidade cultura e linguística, mas pela forma de atuação e modelo de governança. A IFI já participou de dois encontros anuais da rede de IFIs da OCDE, na Coreia do Sul e em Portugal. No encontro de Seul, em 2018, o Diretor-Executivo da IFI firmou um memorando de entendimentos para troca de experiências no campo técnico entre a IFI sul-coreana – “National Assembly Budget Office” (NABO) – e a IFI do Senado Federal do Brasil[33]. Na ocasião, o Diretor-Executivo da IFI também fez uma apresentação sobre a IFI brasileira[34].

A rede da OCDE é muito rica, do ponto de vista da troca de experiências, sobretudo para a instituições mais recentemente criadas, como é o caso da IFI brasileira. Como resultado dos diálogos e contatos, a IFI tem conseguido estabelecer trocas constantes de informações, mesmo à distância, coletar informações de outras instituições ao redor do mundo, além de reportar à OCDE os avanços obtidos. Em 2020, o Estudo Especial sobre o modelo macroeconômico da IFI foi enviado à equipe da OCDE, traduzido para o inglês, e a receptividade foi positiva. O avanço no uso de instrumentos e modelagem adequada, nas tarefas das IFIs, é algo fundamental para se buscar um resultado satisfatório em termos de análises e projeções econômicas e fiscais, incluindo simulações de impacto, a exemplo dos estudos publicados pela IFI em 2019, ao longo da tramitação da reforma da previdência no Congresso Nacional.

Por ocasião do aniversário de quatro anos da IFI, no fim de novembro, o jornal O Estado de S. Paulo publicou duas reportagens relatando as atividades e resultados obtidos pela instituição, inclusive trazendo a opinião de economistas da OCDE a respeito da IFI brasileira[35]. A atuação junto à imprensa é fundamental para o desempenho da IFI, como mostramos na revisão de literatura deste capítulo. A esse respeito, a IFI consolida, diariamente, em seu site[36], as citações de seus trabalhos pela imprensa. A partir disso, é possível observar que, em quatro anos de funcionamento, a IFI teve 2.692 aparições na imprensa nacional, o que corresponde a uma média de 1,8 ao dia. A evolução, entre o fim de 2016 e 2020, pode ser vista na Tabela 4 a seguir[37].

 Tabela 4. Aparições da IFI do Senado Federal na imprensa

Do ponto de vista do número de publicações, a IFI já produziu 48 Relatórios de Acompanhamento Fiscal (RAFs), 14 Estudos Especiais (EEs), 45 Notas Técnicas (NTs) e 9 Comentários da IFI (CIs), totalizando 2.911 páginas publicadas. O RAF contém, na sua versão atual, três seções básicas: Contexto Macroeconômico, Conjuntura Fiscal e Orçamento[38]. O objetivo do produto é analisar os principais indicadores econômicos e fiscais, acompanhar as publicações do governo cotejando suas projeções e análises às realizadas pela IFI, acompanhar o cumprimento das metas fiscais e apresentar os cenários projetados pela instituição.

Duas vezes ao ano, em maio e em novembro, são revisados os três cenários de estimativas da IFI: base, otimista e pessimista, e reapresentados no RAF, que então assume formato um pouco distinto. Em anos atípicos, com foi 2020, em razão da crise pandêmica da Covid-19, a IFI acaba apresentando maior número de revisões. Em 2020, foram quatro RAFs contendo revisões dos cenários prospectivos para dívida e déficit público, receitas e despesas do governo central, PIB, inflação, taxa de juros, taxa de juros real, taxa de câmbio, mercado de trabalho, dentre outras variáveis. Além dos textos, também veiculamos arquivo em planilha eletrônica com todos os dados, tabelas e gráficos contidos na publicação[39].

Os EEs servem ao propósito de analisar um tema com maior profundidade e pode ser metodológico ou temático. Têm como característica trazer revisão de literatura, comparação internacional e uso de instrumentos metodológicos para avançar sobre determinado assunto. A IFI já realizou EEs sobre: estimativa do hiato do produto; projeções de dívida bruta; situação fiscal dos estados; previdência; metodologia de projeção do PIB; reservas internacionais; operações compromissadas; despesas de pessoal; previdência estadual; balanço patrimonial da União; Regra de Ouro; dentre outros[40].

As NTs são estudos de menor alcance, mas também seguem rigor técnico e analítico, servindo, normalmente, para explorar assuntos que subsidiarão as projeções, cálculos de impacto e elaboração de cenários pela IFI. Dentre os temas tratados em NTs, estão: gastos em Defesa Nacional; cálculos de efeito fiscal do Benefício Emergencial do Emprego (BEm); análises das finanças dos estados; cálculo de impacto do Auxílio Emergencial a Vulneráveis (AE); impacto do Programa de Contrato Verde e Amarelo; custo de carregamento das reservas internacionais; impacto dos juros na dívida pública; análise das propostas de reforma tributária; diversos trabalhos sobre a reforma da previdência; Orçamento Impositivo; Desvinculação das Receitas da União (DRU); FAT e BNDES; Abono Salarial; Benefício de Prestação Continuada (BPC); relação Tesouro-Banco Central; riscos fiscais da União; FGTS; impacto de decisão do STJ sobre aposentadorias; teto de gastos; elasticidade receita-PIB; deflator do PIB; gastos tributários; capacidade de pagamento dos estados (capag); cálculos sobre o resultado primário mensal; atividade econômica e PIB; análise da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO); dentre outros.

Por fim, os Comentários da IFI (CIs), criados mais recentemente, em 2019, servem para manifestações que precisem ser mais rápidas a respeito de algum evento da conjuntura ou, ainda, posicionamentos institucionais do Conselho Diretor. Um exemplo recente foi a análise do teto de gastos assinada pelos três membros do Conselho Diretor da IFI[41].

Vale registrar que eventos da conjuntura política, fiscal e econômica influenciam a escolha dos temas. Em 2019, por exemplo, a IFI publicou diversos trabalhos sobre a reforma da previdência, acompanhando sua tramitação e elaborando cálculos de impacto de cada medida e alteração proposta no parlamento. Os cálculos foram utilizados para cotejamento com os números do governo federal, cumprindo-se, assim, a função de qualificar o debate público e colaborar para a transparência e a disciplina fiscal. Já em 2020, a crise da covid-19 requereu revisões mais frequentes dos cenários e cálculos de impacto fiscal das diversas medidas anunciadas, incluindo análises com microdados sobre o Auxílio Emergencial a Vulneráveis, as transferências a estados e municípios, o apoio às empresas e os gastos em saúde.

A respeito deste último tópico, em 2020, a IFI desenvolveu um painel de dados para acompanhamento da execução do chamado Orçamento de Guerra, instituído por Emenda Constitucional, para facilitar o acesso da sociedade a informações sobre os gastos relacionados à covid-19[42]. Além desta base especial, a IFI mantém, em seu site, um repositório de dados com séries calculadas pela instituição ou dados por ela trabalhados[43].

Além dos produtos publicados, a IFI realiza outras atividades: organização de seminários técnicos (ou webinários, como em 2020[44]); participação em Comissões do Senado Federal e da Câmara dos Deputados; participação específica na CAE para apresentar revisões de cenários e acompanhamento fiscal (prevista na Resolução nº 42); reuniões com organismos multilaterais, membros dos órgãos da área econômica do Executivo, órgãos de assessoramento do Legislativo, Tribunal de Contas da União, economistas do mercado, parlamentares e jornalistas; realização de palestras ou conversas com instituições privadas e públicas para apresentação dos trabalhos da IFI; participação em seminários acadêmicos; publicação de artigos e concessão de entrevistas à imprensa; e reuniões com acadêmicos da área de economia e contas públicas.

Por fim, ainda sobre as atividades da IFI, nestes quatro primeiros anos, vale destacar o recebimento de dois Prêmios do Tesouro Nacional. Um deles, na 1ª colocação, foi concedido ao trabalho sobre reservas internacionais (custo, nível ótimo e relação com a dívida pública) publicado pelo Diretor Josué Pellegrini, na forma de Estudo Especial[45], e submetido à referida premiação, ocorrida em 2017. O segundo prêmio, uma menção honrosa, também no âmbito do Prêmio de Monografias em Finanças Públicas do Tesouro Nacional, foi concedido em razão do Estudo Especial desenvolvido pelo analista da IFI Alessandro Casalecchi, pelo então Diretor Rodrigo Orair, com apoio do estagiário Pedro Henrique Oliveira. O trabalho versa sobre as despesas dos regimes próprios dos servidores civis da União[46].

Além disso, o reconhecimento dos parlamentares tem sido crescente. A IFI recebe demandas que são, sempre que possível, adequadas aos trabalhos desenvolvidos pela instituição, preservando, assim, sua independência. Realiza, com frequência, reuniões com parlamentares para discutir questões fiscais, cenários e conjuntura econômica. O uso dos relatórios da IFI pelos gabinetes parlamentares é também um indicativo relevante.

Os desafios, para os próximos anos, concentram-se no maior fortalecimento institucional, incluindo questões de estrutura e orçamento, na manutenção do ritmo de publicações e da repercussão na imprensa especializada e geral, na ampliação da equipe e no desenvolvimento de mais trabalhos envolvendo o cálculo de medidas que tenham efeito fiscal relevante. Na parte de elaboração de projeções e no acompanhamento das metas fiscais, entende-se que a IFI já avançou de maneira significativa, mas pode dar novos passos para consolidar metodologias de projeção, por meio de publicações técnicas, tempestivamente. Uma questão adicional, que deve ser debatida, é a eventual vinculação constitucional da IFI, a partir da experiência acumulada até aqui e do modelo vigente, fundamentado na Resolução do Senado, que tem força de lei.

 

  1. Conclusões

Neste capítulo, discutimos o contexto geral de criação e consolidação das Instituições Fiscais Independentes (IFIs) ou Conselhos Fiscais, à luz da literatura relevante e da experiência internacional. Em seguida, discute-se o caso da IFI do Senado Federal, o conselho fiscal brasileiro, criado em novembro de 2016 como resposta à crise econômica e fiscal vivenciada pelo Brasil. Uma preocupação central dos países europeus, principalmente, que criaram boa parte de suas instituições no pós-crise de 2008, é o chamado “viés deficitário” da política fiscal e a necessidade de se ter maior acompanhamento e transparência nas contas públicas. As regras fiscais, isoladamente, não se mostraram suficientes para levar a condutas fiscais mais responsáveis, o que está na gênese das IFIs.

Os estudos disponíveis sobre a efetividade da atuação das IFIs indicam que elas exercem seu papel em contextos em que está garantida a independência de seu corpo diretivo, sobretudo na definição dos estudos, análises e trabalhos que escolhe desenvolver. Também a imprensa é fundamental para a atuação dos “watchdogs”, pelo fato de que essas instituições têm o único poder de produzir informações. Assim, para que sua atuação seja efetiva para ajudar a qualificar o debate e melhorar a disciplina fiscal, o uso dos dados produzidos pela imprensa torna-se uma dimensão central.

No caso da IFI brasileira, os quatro anos de atuação revelam que são bastante positivos os resultados colhidos, com ampla presença na mídia e crescente consolidação interna, no Senado Federal, ao qual a IFI está vinculada. O desafio, daqui em diante, é avançar na estrutura de pessoal, orçamentária, mantendo e ampliando o escopo dos produtos entregues pela instituição.

 

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Referências bibliográficas

KOPITS, G. The case for an independent fiscal institution in Japan. International Monetary Fund, 2016.

International Monetary Fund. 2013. “The Functions and Impacts of Fiscal Councils”, IMF Policy Paper, Washington, DC.

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______________________________________________________

[1] Felipe Scudeler Salto é diretor-executivo da IFI e membro do Instituto Fernand Braudel.

[2] Rafael da Rocha Mendonça Bacciotti é analista da IFI.

[3] Pode ser consultado em: https://eur-lex.europa.eu/legalcontent/EN/TXT/PDF/?uri=CELEX:32013R0473&from=EN

[4] Disponível em: http://www.oecd.org/gov/budgeting/recommendation-on-principles-for-independent-fiscal-institutions.htm

[5] Disponível em: https://www.imf.org/external/np/fad/council/

[6] OECD Independent Fiscal Institutions Database (2019), http://www.oecd.org/gov/budgeting/OECD-Independent-Fiscal-Institutions-Database.xlsx  

[7] A IFI brasileira estima o custo de eventos fiscalmente relevantes, por exemplo, a reforma previdenciária que teve aprovação definitiva em 2019 e as medidas de combate à crise do coronavírus ao longo de 2020.

[8] No Brasil, a equipe é composta por 8 analistas (já incluídos os 3 diretores) e 1 secretária e assistente administrativa. Note-se que os 3 diretores também produzem estudos técnicos, junto com os analistas.

[9] Média simples do número de funcionários (tempo integral) das 36 IFIs em operação.

[10] No Brasil, a IFI explica e mostra suas hipóteses e tem como objetivo publicar todas as metodologias e questões técnicas no futuro. Em setembro de 2020, por exemplo, foi publicado o Estudo Especial n. 13 sobre a metodologia de previsões das variáveis macroeconômicas, que pode ser acessado aqui – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-1/estudos-especiais/2020/setembro/estudo-especial-no-13-metodologia-de-previsao-das-variaveis-macroeconomicas-set-2020-1

[11] Disponíveis na página da OCDE sobre o “Network of Parliamentary Budget Officials and Independent Fiscal Institutions”: http://www.oecd.org/gov/budgeting/parliamentary-budget-officials/

[12] Disponível em: http://www.oecd.org/economy/surveys/Brazil-2018-OECD-economic-survey-overview.pdf

[13] Veja aqui a matéria da Agência Senado sobre o assunto, com o link para acesso ao relatório do FMI – https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/08/07/fmi-destaca-criacao-da-instituicao-fiscal-independente

[14] A Resolução 42 foi um projeto inserido na chamada “Agenda Brasil”, do Senado Federal, tendo sido desenvolvida pelo então Presidente Renan Calheiros e pelo Senador José Serra, com apoio do corpo técnico do Senado, destacando-se o papel do servidor do Senado Federal Leonardo Ribeiro neste processo. Acesse aqui a íntegra da Resolução – https://legis.senado.leg.br/norma/582564/publicacao/17707278

[15] Ainda que, como resultado do trabalho, os parlamentares se beneficiem do trabalho, acessando os relatórios, dialogando com a equipe e o corpo diretivo da IFI sobre conjuntura, cenários etc.

[16] Matéria jornalística sobre a posse do 1º Diretor-Executivo e início das atividades da IFI – https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/11/30/diretor-executivo-da-instituicao-fiscal-independente-toma-posse

[17] Salto tem experiência em análise das contas públicas, tendo trabalhado em consultoria, academia e no Legislativo. Possui Mestrado em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e experiência em docência na mesma instituição. Foi também Assessor Legislativo no Senado e, à época, havia publicado o livro “Finanças públicas: da contabilidade criativa ao resgate da credibilidade” (Editora Record, 2016. Prêmio Jabuti – 2017), junto com o economista Mansueto Almeida, ex-Secretário do Tesouro Nacional. Foi um dos primeiros economistas do mercado a falar sobre a chamada “contabilidade criativa”, ainda em novembro de 2009, em parceria com o ex-Ministro da Fazenda Mailson da Nóbrega. https://www.estadao.com.br/noticias/geral,contabilidade-criativa-turva-meta-fiscal,474130

[18] Matéria jornalística sobre a criação da IFI – https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/11/29/felipe-salto-e-aprovado-para-direcao-executiva-da-instituicao-fiscal-independente

[19] Vídeo da aprovação em plenário da primeira indicação à Diretoria-Executiva da IFI – https://www12.senado.leg.br/noticias/videos/2016/11/senado-aprova-indicacao-de-felipe-salto-para-diretor-da-instituicao-fiscal-independente

[20] Acesse aqui o Ato nº 10 e modificações feitas no mesmo ano, pelo Ato nº 18 – https://www12.senado.leg.br/ifi/sobre-1/copy_of_sobre

[21] O Relatório de Acompanhamento Fiscal (RAF) nº 1 pode ser acessado aqui – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-1/relatorio/2017/fevereiro-de-2017/raf-relatorio-de-acompanhamento-fiscal-fev-2017

[22] Reportagem da Agência Senado sobre o primeiro relatório da IFI – https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/02/02/instituicao-fiscal-aponta-que-emenda-do-teto-de-gastos-nao-conseguira-tirar-pais-do-vermelho

[23] Acesse aqui o RAF nº 48 – https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/583296/RAF48_JAN2021.pdf

[24] Vídeo sobre a 1ª coletiva à imprensa realizada pela IFI –  https://www12.senado.leg.br/noticias/videos/2017/02/instituicao-fiscal-independente-retomada-economica-depende-de-novas-medidas

[25] Leia aqui a íntegra do artigo – https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,o-papel-da-instituicao-fiscal-independente,10000097557

[26] Esta Comissão foi alterada, desde a publicação da Resolução 42, mas a sua designação atual é esta: CTFC. A alteração implicou mudança no texto da Resolução 42, que pode ser vista no link indicado anteriormente, no texto compilado da norma.

[27] Gabriel Barros já era membro da equipe de analistas da IFI, com experiência em análise das contas públicas, no setor privado, em banco e no Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da FGV

[28] Rodrigo Orair é pesquisador do Ipea, com experiência na análise das contas públicas e da economia nacional, sobretudo no assunto sistema tributário nacional.

[29] Para fins da comparação apresentada na seção 4, não consideramos os estagiários, pois ainda em processo de formação.

[30] Veja os currículos dos Diretores e Equipe da IFI aqui – https://www12.senado.leg.br/ifi/sobre-1/copy_of_equipe

[31] Acesse aqui o Ato do Presidente do Senado Federal que criou o CAT – https://legis.senado.leg.br/diarios/ver/100325?sequencia=145#diario

[32] Os anais do evento inaugural podem ser encontrados aqui – https://www12.senado.leg.br/ifi/conselho/sobre-1

[33] Veja aqui o Memorando de Entendimentos – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-1/apresentacoes-e-outros-documentos/2018/julho/memorando-de-entendimento-entre-o-national-assembly-budget-office-da-republica-da-coreia-e-a-instituicao-fiscal-independente-do-senado-federal-do-brasil

[34] Acesse aqui o documento apresentado em Seul – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-1/apresentacoes-e-outros-documentos/2018/julho/the-creationand-operationof-theindependentfiscal-institutionof-thebrazilianfederal-senate-oecd

[35] Matérias sobre os quatro anos de atividades da IFI – 1. https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,ifi-faz-parte-de-rede-global-de-monitoramento,70003533490 e 2. https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,como-funciona-o-cao-de-guarda-das-contas-publicas,70003533476

[36] Veja o “IFI na Mídia”, em nosso site –  https://www12.senado.leg.br/ifi/

[37] Além disso, os membros da IFI publicaram, no período, 39 artigos de opinião em diferentes veículos.

[38] Durante algum tempo, a IFI publicava algumas análises tópicas dentro do próprio RAF, mas passou a criar produtos específicos para atender a esse objetivo.

[39] Os arquivos completos dos Relatórios de Acompanhamento Fiscal (RAF) podem ser acessados aqui – https://www12.senado.leg.br/ifi/relatorio-de-acompanhamento-fiscal

[40] Todos os Estudos Especiais (EEs) da IFI podem ser acessados aqui – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-estudos-especiais.

[41] Comentários da IFI (CI) nº 9 – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-1/comentarios-da-ifi/ci-comentario-da-ifi-no-9-consideracoes-sobre-o-teto-de-gastos-da-uniao

[42] O painel covid pode ser acessado aqui – https://www12.senado.leg.br/ifi/covid-19/painel-de-creditos-covid-19

[43] Acesse aqui para consultar o repositório da IFI – https://www12.senado.leg.br/ifi/dados/dados

[44] No canal da IFI, no YouTube, podem ser encontrados os vídeos das gravações dos webinários realizados em 2020 e outros vídeos elaborados pela instituição ou decorrentes de entrevistas – www.youtube.com.br/instituicaofiscalindependente.

[45] Veja aqui a íntegra do Estudo Especial nº 1 – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-1/estudos-especiais/2017/marco-de-2017/estudo-especial-no-01-o-custo-fiscal-das-reservas-mar-2017

[46] Veja aqui a íntegra do Estudo Especial nº 10 – https://www12.senado.leg.br/ifi/publicacoes-1/estudos-especiais/2019-1/julho/estudo-especial-no-09-despesas-do-rpps-dos-servidores-civis-uniao-jul-2019

 

* Capítulo do livro Governança Orçamentária no Brasil, organizado por Leandro Freitas Couto e Júlia Marinho Rodrigues (Brasília: IPEA, 2021), disponibilizado em early view no site do IPEA.

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O Fundo de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais – Fiagro https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3562&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=o-fundo-de-investimento-nas-cadeias-produtivas-agroindustriais-fiagro Tue, 25 Jan 2022 16:07:46 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3562 O Fundo de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais – Fiagro

 

Por Rogério Boueri[1], Rodrigo Pereira[2], Iran Veiga[3], Sergio Ferrão[4] e Francisco Erismá[5]

 

  1. Introdução

A agropecuária brasileira é uma das que mais cresce no mundo. A abundância de terras relativamente baratas e de irradiação solar durante a maior parte do ano permite o plantio de três safras anuais. Esse crescimento e o aumento da eficiência do setor deverão contribuir com segurança alimentar em escala mundial. Conforme projeções da USDA, órgão de inteligência agropecuária dos Estados Unidas, o Brasil terá que elevar sua produção agropecuária em 41% até a safra 2026/2027 para que os preços dos alimentos se mantenham em patamares compatíveis com a segurança alimentar no mundo.

O crédito rural configura-se como ferramenta indispensável à consecução desse objetivo. O Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR) teve papel fundamental na evolução da agropecuária brasileira, ajudando a levar o País da condição de importador líquido de cereais à de potência exportadora mundial. No entanto, as restrições fiscais enfrentadas pelo Governo Federal e a evolução da agropecuária brasileira requerem modificações nesse sistema.

A evolução necessária do SNCR é fruto de seu próprio sucesso, pois o que é necessário agora é um sistema apto a lidar não com a possibilidade de escassez interna de alimentos, mas sim com uma agropecuária altamente produtiva e integrada nos circuitos comerciais nacionais e internacionais. Junte-se a isso a necessidade de ajuste fiscal, que se fará mais premente e necessário na retomada da economia pós-pandemia de Covid-19. Essa evolução passa então pela redução da subvenção, em especial aquela voltada aos grandes produtores, que já acessam o crédito bancário com facilidade, principalmente em vista da tendência de queda nas taxas de juros no longo prazo.

No entanto, para que se possa realizar essa redução dos subsídios governamentais ao crédito rural, o sistema de financiamento privado voltado ao agronegócio deve evoluir. Novos mecanismos e ferramentas devem ser regulamentados e criadas novas formas de garantias que atendam à evolução do mercado financeiro privado. É nesse contexto que surge o Fundo de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais – Fiagro.

Os Fiagro representam novos potenciais gestores com recursos e expertise na área através da gestão profissional dos fundos e que podem criar valor pelo investimento na melhoria da terra e sua posterior revenda/arrendamento.

Eles também dão acesso a um conjunto de investidores pulverizados que antes não tinham possibilidade de investir nos ativos. A entrada desses novos players no mercado pode aumentar a liquidez e a transparência do mercado de terras rurais.

Já a possibilidade de integralização de quotas com diferimento do imposto sobre o ganho de capital, mas com a promessa de dividendos regulares, estimula o lado da oferta. Potenciais vendedores terão mais possibilidades de venda, e estímulo à regularização do registro dos muitos imóveis irregulares.

Essa nota informativa busca descrever o Fiagro e como o trabalho conjunto da Secretaria de Política Econômica e do Congresso Nacional permitiu que essa modalidade de fundo de investimento se tornasse uma realidade com a promulgação da Lei nº 14.130/2021, e subsequente regulação pela CVM via resolução CVM nº 39 de 2021.

  1. Má alocação de terras e baixo investimento estrangeiro

Com a migração da população do campo para a cidade que ocorreu nas últimas décadas[6] muitas propriedades rurais ficaram subutilizadas ou utilizadas de forma pouco eficiente, e existe uma proporção expressiva das lavouras de soja, milho, arroz e cana-de-açúcar que são exploradas sob forma de arrendamento ou parceria[7].

Esses arrendamentos e parcerias são, em boa parte das vezes, realizados de forma tácita ou informal e não proporcionam arrecadação ao fisco, bem como não permitem investimentos mais estruturantes por parte do arrendador nem do arrendatário. Em suma, cria-se uma situação de insegurança jurídica e tributária.

Existe também grande número de propriedades não regularizadas, oriundas de heranças e inventários. Isso decorre principalmente do descasamento dos custos de regularização (custos advocatícios, custos cartoriais, tributos etc.), da desorganização e pouca transparência das informações fundiárias rurais, e da falta de liquidez para venda das propriedades que proporcionaria os recursos financeiros capazes de fazer face a essas despesas.

Em decorrência dessa situação, muitas propriedades permanecem alocadas de maneira ineficiente, pois, na ausência da regularização patrimonial, torna-se muito difícil o seu emprego em atividades produtivas modernas e de maior rentabilidade. Nesse contexto de informações fundiárias rurais fragmentadas e desorganizadas, torna-se também difícil estabelecer as bases de uma tributação justa.

Além desses problemas, e em boa parte fruto deles, há grande dificuldade para investidores estrangeiros ingressarem no mercado imobiliário rural brasileiro. Tal empecilho decorre não somente de restrições legais, mas também da própria desorganização da situação patrimonial e tributária de boa parte dos imóveis rurais brasileiros.

Muitas vezes é difícil, inclusive, estabelecer claramente se determinado imóvel está plenamente regularizado. Neste cenário de incerteza não é de se estranhar que, apesar da pujança atual e potencial do setor agropecuário brasileiro, os investimentos estrangeiros ainda sejam escassos.

  1. Crédito e crescimento econômico

A disponibilidade de crédito é um elemento crucial para o crescimento econômico. Cada real gasto por alguém que recebe um crédito equivale a um real extra de renda de outro indivíduo. Um indivíduo que tenha mais crédito vai gastar mais, elevando a renda de diversos outros indivíduos. Com rendas mais altas, esses outros indivíduos terão seu acesso ao crédito ampliado, portanto elevando as rendas de outros tantos indivíduos, e assim sucessivamente. Esse padrão de expansão do crédito e subsequentes expansões de renda levam ao crescimento econômico. Durante o boom de commodities dos anos 2000 houve um forte crescimento do crédito no Brasil. Não coincidentemente, esse foi também um período de maior crescimento econômico.

A correlação entre a disponibilidade de crédito e a prosperidade material é inegável. O crédito doméstico ao setor privado como proporção do PIB é de 149% em países de alta renda, 124,3% em países de renda média-alta, 109,2% em países de renda média, 44,4% em países de renda média baixa, e 13,7% em países de renda baixa, segundo dados de 2019 do Banco Mundial[8]. No Brasil, o crédito doméstico disponível ao setor privado é ainda baixo: 63,7% do PIB.

Uma questão importante é se isso é apenas uma correlação, ou se há uma relação de causalidade entre crédito e crescimento econômico. Um número de estudos se propôs a investigar os efeitos do desenvolvimento financeiro (medido em grande parte pela disponibilidade de crédito como proporção do produto) sobre o crescimento econômico. De um modo geral, essa literatura mostra que o desenvolvimento financeiro tem fortes efeitos positivos sobre o crescimento econômico (King e Levine 1993a, King e Levine 1993b, e Rioja e Valev 2004).

Numa economia sem crédito algum, um indivíduo somente pode aumentar seus gastos quando aumenta sua renda, e isso só pode ocorrer quando há um aumento de sua produtividade. Nesse caso, há crescimento econômico toda vez que alguém se torna mais produtivo. Um indivíduo só consegue gastar mais se produzir mais. Por outro lado, numa economia com crédito pode-se ter o gasto maior do que a renda tomando-se empréstimos. Como o gasto de um indivíduo é a renda de outros, é possível então fazer as rendas numa economia crescerem mais rapidamente do que a produtividade no curto prazo.

Esse crescimento “artificial” de curto prazo no poder de compra dos indivíduos proporcionado pelo crédito pode ter dois destinos distintos. Por um lado, pode virar consumo. Um indivíduo compra bens que não teria condições de comprar sem o crédito, gastando além do que sua renda permite, para no futuro pagar o empréstimo, e passar então a consumir aquém do que sua renda permite. Portanto, o mecanismo de transmissão de mais gastos virando mais rendas de outros indivíduos se reverte no futuro, quando as dívidas contraídas no presente para financiar consumo são quitadas. A inexorável redução dos gastos futuros devido ao endividamento se transforma em rendas mais baixas de outros indivíduos. Essa destinação do crédito apenas amplifica os ciclos, sem gerar efeito de longo prazo no crescimento econômico. Porque mais rendas no presente são criadas ao custo de menos rendas no futuro.

Boa parte da expansão do crédito na economia brasileira dos anos 2000 foi direcionada para o consumo. Nesse caso a economia cresce rapidamente no curto prazo, mas o efeito no crescimento de longo prazo é limitado, e o crédito tende a amplificar o ciclo econômico. O crescimento tem o famoso padrão de “voo de galinha”. O efeito do consumo dos anos de crescimento econômico cobra seu preço nos anos seguintes na forma de um grande endividamento das famílias e uma contração excessiva do consumo privado. Em recente entrevista, um candidato à presidência sumarizou a expansão do crédito no Brasil nos anos 2000: “… o crédito saiu de 15 para 55% do PIB, no dia seguinte 63,7 milhões de brasileiros estão com o nome no SPC, 6 milhões de empresas estão com o nome no Serasa, quebradas, humilhadas …”[9].

Quando a expansão de crédito financia aumento da capacidade de criação de renda e riqueza na economia há um efeito maior sobre o crescimento de longo prazo porque ele permite a ampliação permanente da renda. No momento de pagamento da dívida contraída o indivíduo terá uma renda maior, o que arrefece a redução em seu consumo, e também a volatilidade do ciclo econômico. O voo deixa de ser “de galinha”. É aqui que se insere boa parte do crédito rural no Brasil, e em particular, as oportunidades de crédito criadas com o Fiagro, que financiam o aumento da capacidade produtiva do agronegócio. Os Fiagro são uma inovação que contribui para o desenvolvimento financeiro do Brasil, com um potencial de melhorar o mercado de terras rurais, e de aumentar a disponibilidade de crédito ao agronegócio.

  1. O surgimento do Fiagro

A criação de um fundo de investimento rural nos moldes dos fundos de investimento imobiliário (FII) já vinha sendo objeto de discussões no Congresso Nacional e também no Ministério da Economia há algum tempo. Em 2020, elementos desses dois esforços paralelos foram agregados no Projeto de Lei nº 5.191/2020 de autoria do deputado Arnaldo Jardim (Cidadania/SP). A proposta permitia, por um lado, a captação de recursos para financiamento de empreendimentos do setor, atendendo à contínua e crescente necessidade de recursos, e por outro, facilitava o acesso do pequeno investidor aos empreendimentos do agronegócio.

O debate que se seguiu ao Projeto de Lei envolveu os setores produtivos, representantes dos mercados de capitais e dos poderes legislativo e executivo. O resultado foi a Lei nº 14.130, de 29 de março de 2021, que criou o Fiagro, alterando a Lei nº 8.663/1993 (que criou os FII e definiu seu regime tributário) e a Lei nº 11.033/2004 (que versa sobre a tributação do mercado financeiro e de capitais).

A Lei nº 14.130/2021 define que os Fiagro podem ser constituídos por 6 tipos de ativos: (i) imóveis rurais; (ii) participação em sociedades que explorem atividades integrantes da cadeia produtiva agroindustrial; (iii) ativos financeiros, títulos de créditos ou valores mobiliários emitidos por pessoas físicas e jurídicas que integrem a cadeia produtiva agroindustrial, na forma de regulamento; (iv) direitos creditórios do agronegócio e títulos de securitização emitidos com lastro em direitos creditórios do agronegócio, inclusive certificados de recebíveis do agronegócio e cotas de fundos de investimento em direitos creditórios e de fundos de investimento em direitos creditórios não padronizados que apliquem mais de 50% de seu patrimônio nos referidos direitos creditórios; (v) direitos creditórios imobiliários relativos a imóveis rurais e títulos de securitização emitidos com lastro nesses direitos creditórios, inclusive certificados de recebíveis do agronegócio e cotas de fundos de investimento em direitos creditórios e de fundos de investimento em direitos creditórios não padronizados que apliquem mais de 50% de seu patrimônio nos referidos direitos creditórios; (vi) cotas de fundos de investimento que apliquem mais de 50% de seu patrimônio nos ativos listados de (i) a (v). Os ativos financeiros referidos em (iii) são basicamente os seguintes: CPR (Cédula de Produto Rural), CDA (Certificado de Depósito Agropecuário), WA (Warrant Agropecuário), CDCA (Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio), LCA (Letra de Crédito do Agronegócio), CRA (Certificado de Recebíveis do Agronegócio) e CIR (Cédula Imobiliária Rural).

Em julho de 2021 a CVM disciplinou a lei do Fiagro por meio da Resolução CVM nº 39. Essa resolução dividiu o Fiagro em três modalidades em função dos ativos que o compõe, quais sejam:

  • Fiagro – FIDC (Fundo de Investimento em Direitos Creditórios): títulos de crédito ou valores mobiliários emitidos por integrantes da cadeia agroindustrial; direitos creditórios imobiliários de imóveis rurais ou do agronegócio e títulos de securitização com lastro nesses direitos;
  • Fiagro – FII (Fundo de Investimento Imobiliário): imóveis rurais, CRA e LCA.
  • Fiagro – FIP (Fundo de Investimento em Participações): participações em sociedades que explorem atividades integrantes da cadeia agroindustrial.

Os Fiagro-FII, lastreados em imóveis rurais, CRAs e LCAs, têm prevalecido até agora. Dos 31 fundos registrados na CVM até a data de 26 de novembro de 2021, 24 deles são Fiagro-FII, 7 são FiagroFIDC, lastreados em recebíveis do agronegócio, e nenhum é da modalidade Fiagro-FIP. Os valores de emissão comunicados totalizam aproximadamente 7,5 bilhões de reais, dos quais aproximadamente 6 bilhões referem-se a Fiagro-FII.

Tabela 1: Fiagro registrados na CVM até 26/nov/2021

 

5. Características do Fiagro

Os Fiagros são semelhantes aos FII em diversos aspectos. Em ambos os casos um grupo de investidores se juntam em sociedade para adquirir ativos e repartir os ganhos econômicos gerados por eles. Em ambos os casos os imóveis podem ser ativos que lastreiam os fundos, imóveis urbanos no caso dos FII, e rurais no caso dos Fiagro. Em ambos os casos, os rendimentos resultantes de vendas ou locações dos imóveis são distribuídos aos cotistas. A diferença é que enquanto nos FII o gestor tem que distribuir 95% dos rendimentos no semestre, nos Fiagro essa restrição não existe. O gestor tem liberdade para definir no regulamento do fundo o esquema de distribuição dos rendimentos.

Há semelhança também na tributação dos Fiagro e dos FII. Em ambos os casos pessoas jurídicas pagam 20% de imposto de renda, e pessoas físicas são isentas desde que o fundo tenha ao menos 50 cotistas, e cotista pessoa física não detenha mais de 10% das cotas do fundo. Essa isenção está condicionada a que as cotas do Fiagro sejam negociadas em bolsa de valores ou no mercado de balcão organizado. Embora existam outros ativos do agronegócio que usufruam de isenção da tributação de renda além do Fiagro (por exemplo, LCA, CRA etc.), o Fiagro é o único sob a forma de fundo de investimento. Portanto o Fiagro agrega qualidades importantes como a isenção tributária para pessoas físicas sob certas condições, a diversificação de portfólio (inexistente no caso de um pequeno investidor que compre um imóvel rural), a possibilidade de o pequeno investidor ter seu capital administrado por profissionais, e a facilidade de entrada do pequeno investidor.

Além disso, não há incidência de imposto de renda sobre os rendimentos líquidos auferidos pelas carteiras do Fiagro caso esses ganhos sejam provenientes de aplicações em Certificados de Depósito Agropecuário – CDA, Warrants Agropecuário – WA, Certificados de Direitos Creditórios do Agronegócio – CDCA, Letras de Crédito do Agronegócio – LCA e Certificados de Recebíveis do Agronegócio – CRA, e Cédulas de Produto Rural – CPR, com liquidação financeira.

Os ganhos de capital são taxados a uma alíquota de 20%, tanto para pessoas físicas quanto para jurídicas. Uma diferença crucial entre o Fiagro e o FII é a possibilidade de diferimento do pagamento da tributação sobre ganhos de capital no caso de integralização de uma propriedade em troca de cotas do Fiagro. O pagamento do imposto é feito somente quando as cotas são vendidas no mercado, ou em que o fundo é liquidado. Essa possibilidade não existe nos FII.

O diferimento do pagamento da tributação sobre ganhos de capital foi estabelecido para evitar o descasamento entre o recebimento de recursos financeiros pelo vendedor/investidor e a necessidade de pagamento desses tributos, pois se a transferência da propriedade for paga com quotas e não em dinheiro, o vendedor/investidor não receberá numerário, mas teria que arcar com as despesas tributárias. Isso poderia desincentivar a integralização de propriedades rurais ao fundo. Para agravar a situação, muitas propriedades que potencialmente poderiam ser incorporadas a algum Fiagro mediante pagamento em quotas têm seus valores contábeis defasados, o que acarretaria pagamentos substanciais de tributos quando da permuta para integralização das quotas.

O pequeno investidor tem uma participação ainda reduzida no financiamento do agronegócio. Os recursos que financiam o setor vêm em geral do crédito rural canalizado por instituições financeiras (bancos e cooperativas de crédito), de títulos de dívida emitidos por produtores rurais (em parte negociados através do mercado de capitais) e de recursos próprios dos produtores. O Fiagro abre uma oportunidade para que pequenos investidores aportem seus investimentos e possam usufruir de um dos setores de maior crescimento da economia brasileira. Espera-se que a criação desse instrumento financeiro traga um maior dinamismo e transparência ao mercado de terras rurais, um mercado mais competitivo na formação de preços de terras, e maior liquidez ao estoque de terras como ativo do produtor rural.

Se bem sucedido, o Fiagro tem potencial para atenuar os problemas levantados na seção 2. A segurança jurídica proporcionada pelos Fiagro pode aumentar a participação de estrangeiros no financiamento do agronegócio no Brasil. A necessidade de regularização patrimonial dos imóveis rurais para que possam ser integralizados nos fundos pode incentivar proprietários rurais a buscar essa regularização, o que permitiria uma maior eficiência no uso das terras.

 

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[1] Rogerio Boueri é subsecretário de Política Agrícola e Negócios Agroambientais do Ministério da Economia.

[2] Rodrigo Pereira é assessor especial na Secretaria de Política Econômica no Ministério da Economia.

[3] Iran Veiga é analista de planejamento e orçamento e trabalha na Secretaria de Política Econômica do Ministério da Economia.

[4] Sergio Ferrão é assessor da Secretaria de Política Econômica do/Ministério da Economia.

[5] Francisco Erismá é coordenador geral de Crédito e Seguro Agrícola da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Economia.

[6] Conforme o IBGE, entre 1960 e 2010 a taxa de urbanização da população brasileira cresceu de 44,67% para 84,36%.

[7] Conforme o Censo Agropecuário 2017, na média dessas culturas a proporção de arrendamentos e parcerias é de 26%.

[8] World Bank Open Data.

[9] Entrevista no Programa Cara a Tapa, em 16/set/2021.

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Emendas parlamentares, aqui e nos EUA https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3557&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=emendas-parlamentares-aqui-e-nos-eua Mon, 24 Jan 2022 05:45:56 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3557 Emendas parlamentares, aqui e nos EUA

 

No Brasil, o dinheiro das emendas é pulverizado em pequenos projetos nas bases eleitorais dos congressistas

 

 Por Roberto Macedo

 

Minha indisposição quanto a essas emendas é antiga. Meu primeiro artigo aqui sobre o assunto foi em 7/7/2011(!), intitulado Porcas emendas parlamentares, inspirado pela forma com que o assunto é encarado nos EUA, onde permanece como problema, ainda que não tão sério como no Brasil. Hoje vou comparar com mais detalhes as emendas nos dois países.

Lá, verbas desse tipo têm via metáfora uma conotação pejorativa, e é comum chamá-las de pork barrel. Consultando dicionário de inglês, vi que se trata da “apropriação legislativa destinada a prestigiar legisladores diante de seus constituintes”. Mas pork é carne de porco, e barrel é barril, lembrando tempos antigos quando a carne cozida era guardada em barricas com banha de porco. Eram mesmo uma porcaria, com seu conteúdo gorduroso, pegajoso e sanitariamente vulnerável.

Nos EUA há a organização CAGW (Citizens Against Government Waste, ou Cidadãos Contra o Desperdício Governamentalwww.cagw.org), que procura identificar emendas desse tipo no orçamento federal, considerando como pork as que satisfazem ao menos um destes critérios: são solicitadas só por uma das Casas do Congresso; não são especificamente autorizadas; não são competitivamente concedidas; não foram solicitadas pelo Executivo; não passaram por audiências no Congresso; servem apenas a interesse local ou especial.

Listando porks, a CAGW faz todo ano um balanço do assunto, que em 2021 completou a sua 29.ª(!) edição, com o título (tradução parcial): Livro de Pork Congressional – Resumo, tendo na capa o desenho de um porco gordo com faixa de autoridade, e o subtítulo O livro que Washington não quer que você leia. Mensalmente, um congressista é apontado como porcalhão do mês, por ter apresentado a emenda mais descabida. O Congresso dos EUA havia colocado uma moratória nas emendas. Contudo, mais recentemente elas cresceram de 163 em 2017 para 285 em 2021, e o valor em bilhões de dólares passou de 6,8 para 16,8 no mesmo período.

Aqui o número de emendas é bem superior a 285, e creio que com participação maior no Orçamento, em termos relativos. O valor orçado em 2021 foi de R$ 35,4 bilhões, sendo que chamadas emendas de relator ficaram em R$ 18,5 bilhões, conforme informação da CNN. Elas não têm seus objetivos explicitados no Orçamento, e parece-me que podem ser definidas no próprio ano de execução. O Supremo já se manifestou contra essa falta de transparência, mas o assunto ainda não teve solução.

Nos EUA há uma restrição importantíssima: os congressistas que apresentam essas emendas devem certificar que eles, seus cônjuges e sua família não têm interesse nos seus projetos, uma regra não seguida no Brasil, onde em geral os congressistas fazem as emendas com o objetivo de favorecer municípios para ter apoio numa campanha de reeleição. Mas, segundo o referido balanço, “…não há restrição a que seja feita uma contribuição para a campanha de reeleição do congressista em troca de uma emenda”. Aqui também não há essa restrição.

Outra diferença é que lá, quando examinei o assunto em 2011, soube que dezenas de congressistas declararam sua oposição às emendas. O último relatório da CAGW mencionou o caso do famoso e já falecido senador do Partido Republicano John McCain, ex-candidato à presidência do país, que assim enfrentou os adeptos delas: “O problema com todos os argumentos deles é: quanto mais poderoso você seja, maior é a probabilidade de emplacar emendas. Assim, é um sistema corrupto”. Isto ocorre também no Brasil.

Em retrospecto, as grandes diferenças do Brasil relativamente aos EUA são que aqui as emendas vêm em maior número e custam relativamente mais; a regra de não beneficiar o próprio congressista e seus parentes não existe; é imensa a falta de transparência das emendas de relator, que lá inexistem. São usadas no troca-troca com o Congresso, de apoio em geral ao governo e em votações específicas. Com o domínio do Parlamento e do presidente pelo Centrão, este passou a controlar a maior parte do orçamento discricionário em seus objetivos, ao contrário das despesas obrigatórias de pessoal e Previdência. Como resultado, o ampliado dinheiro das emendas é pulverizado em pequenos projetos nas bases eleitorais dos congressistas, prejudicando investimentos tipicamente federais de alcance regional e nacional, como na proteção à Amazônia, e também em saúde, educação e inclusão social.

Ou seja, aqui a situação é muito mais grave. Sem o trabalho da imprensa, muito menos saberíamos sobre as emendas, com o destaque recente deste jornal e suas matérias sobre as emendas de relator, que consagraram o uso da expressão “orçamento secreto” para descrevê-las.

Falta disseminar o conhecimento sobre todas, realizar pesquisas junto aos congressistas para saber quem é contra ou a favor, em particular separando as do relator, e que surgissem entidades como a CAGW para acompanhar de perto o assunto e o chiqueiro político em torno dele.

 

Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 20 de janeiro de 2022.

 

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Por um novo modelo de emendas ao orçamento https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3538&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=por-um-novo-modelo-de-emendas-ao-orcamento https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3538#comments Fri, 10 Dec 2021 13:41:20 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3538 Por um novo modelo de emendas ao orçamento

 

Por Hélio Tollini* e Paulo Bijos**

 

Introdução

 

Em ambiente democrático, é prerrogativa do Poder Legislativo participar da elaboração do orçamento público. Sobretudo em sistema presidencialista[1], de fato, nada há de intrinsecamente problemático em relação às emendas parlamentares ao orçamento proposto pelo Executivo. O que se deve discutir, sempre que necessário, é como esse processo pode ser aprimorado.

Essa discussão é pertinente para o Brasil atual, que atravessa uma crise de legitimidade em relação às emendas ao orçamento, especialmente quanto a novas modalidades criadas nos últimos anos. Tais modalidades, porém, são apenas parte de um problema maior, pois as emendas individuais e de bancada estadual também apresentam fragilidades. Sendo assim, não basta que se discutam propostas de ajustes pontuais, como as que visam ao aumento da transparência das emendas de relator-geral. Mudanças incrementais, no cenário atual, são insuficientes. É necessário que o debate público avance para discussões estruturantes, orientadas à definição de uma estratégia capaz de promover uma ampla reformulação das emendas ao orçamento.

Ofertamos neste artigo duas diretrizes principais para subsidiar a formulação de uma estratégia dessa natureza. Tais diretrizes, por sua vez, associam-se a duas indagações recorrentes no debate sobre o tema: (1) Quem deveria propor emendas? (2) Qual deveria ser o limite para emendas? Tratamos a seguir dessas duas questões. 

Quem deveria propor emendas?

O modelo atual, definido na Resolução nº 1/2006 do Congresso Nacional, permite que as emendas ao orçamento sejam de autoria: (i) dos parlamentares individualmente; (ii) das bancadas estaduais; (iii) das comissões permanentes; ou (iv) do relator-geral do projeto de lei orçamentária anual.

No modelo que propomos, a autoria das emendas seria restrita às comissões permanentes, sem prejuízo da participação individual dos parlamentares nesse processo, como explicaremos neste tópico. Ao relator-geral seriam reservadas apenas as emendas formais para correção de erros e omissões. Esse modelo se justifica pelas deficiências associadas às emendas individuais, de bancada e de relator-geral, tal como explicado a seguir.

As emendas individuais apresentam problemas, no mínimo, por dois[2] motivos. Em primeiro lugar, porque agravam a fragmentação do processo alocativo. Pelas regras em vigor, cada um dos 594 parlamentares (513 deputados e 81 senadores) pode propor até 25 emendas ao orçamento, o que possibilita que sejam apresentadas, no limite, até 14.850[3] emendas por ano. Não temos notícia de outro país cujas regras estimulem tamanha fragmentação. Em segundo lugar, as emendas individuais potencializam o paroquialismo orçamentário, por concentrarem a autoria de cada emenda em um só ator, em detrimento de formulações colegiadas e de caráter estruturante.

Registre-se, ainda, que as emendas individuais foram fragilizadas pelo advento da chamada “emenda PIX” (criada pela Emenda Constitucional nº 105/2019), que transfere recursos da União diretamente para os entes subnacionais, sem qualquer vinculação quanto às áreas temáticas abrangidas ou aos objetivos programáticos pretendidos. Se isso já não bastasse, de forma inusitada, essa modalidade de emenda afasta a fiscalização da execução dos recursos assim transferidos por parte do Tribunal de Contas da União.

As emendas de bancada estadual, ao contrário das emendas individuais, são de natureza coletiva, mas não por isso estão isentas de problemas. Afinal, as bancadas estaduais são um colegiado geográfico[4], e não uma instância especializada em políticas públicas setoriais. Por isso é preocupante que possam propor emendas em qualquer área de despesa, atribuição esta que não se harmoniza com a ideia de especialização temática. Além disso, há indícios históricos de que essas emendas podem ser divididas entre os parlamentares da bancada, gerando emendas que na prática são individuais, mas trasvestidas de coletivas (PRAÇA, 2010).

O mesmo ocorre com as emendas de relator-geral, que abrangem múltiplas áreas de despesa. Não seria plausível supor que uma só pessoa reunisse conhecimento especializado sobre áreas tão diversas como saúde, educação, saneamento, infraestrutura, defesa etc. Acresce a isso o novo uso dado a essas emendas a partir do orçamento de 2020, que passaram a se constituir no que a imprensa vem chamando de “orçamento secreto”. Tal alcunha se deve ao fato de que essas emendas, também conhecidas como “RP9”[5], não identificam publicamente o seu proponente de fato, ou seja, o deputado ou senador que será politicamente atendido pelos recursos aprovados pelo relator-geral. Na prática, com efeito, o relator-geral atua durante a execução do orçamento no exercício seguinte, fazendo indicações ao ministro competente para executar os recursos recebidos a pedido de outro parlamentar. Mais consistente, a nosso ver, seria que o relator-geral se limitasse, via emendas, a atuar apenas na correção de erros ou omissões de natureza formal[6] durante o processo de apreciação do projeto de lei orçamentária anual.

Ao encontro da introdução deste artigo, portanto, nota-se que o atual do modelo de emendas merece ser amplamente reformulado, e não apenas pontualmente ajustado. A sistemática vigente não estimula a coordenação programática entre as políticas públicas desenvolvidas pelo Poder Executivo federal e as ações locais financiadas por intermédio das emendas. As lógicas por detrás dessas duas formas de se alocar os recursos públicos são bem distintas: apesar de conter falhas, o Executivo, em tese, busca seguir um planejamento mais abrangente de suas ações, com lastro em políticas setoriais, ao passo que as emendas – ao menos no modelo atual – incentivam a atuação fragmentada baseada no paroquialismo.

Mundo afora, existem modelos alternativos de intervenção legislativa que permitiriam um processo mais robusto de apreciação orçamentária por parte do Congresso Nacional. É o que ocorre em modelos mais descentralizados[7], nos quais a comissão que possui funções orçamentárias (equivalente à nossa Comissão Mista de Orçamento) cuida da sistematização do processo, do texto do projeto de lei, das questões macrofiscais e da alocação dos recursos entre áreas temáticas, delegando às demais comissões permanentes[8] as decisões sobre emendas à programação de suas respectivas áreas de atuação.

A principal vantagem desse modelo é que decisões sobre áreas temáticas específicas ocorrem dentro de comissões especializadas nos respectivos assuntos. Por exemplo, as apropriações propostas por emendas que envolvem a área de Educação seriam decididas pelas comissões de Educação[9]; emendas na área de Defesa seriam decididas pelas comissões de Relações Exteriores e de Defesa Nacional; e assim por diante com todas as demais áreas. Em princípio, tal arranjo permitiria uma análise aprofundada, no âmbito da comissão responsável pela área temática, da totalidade da programação proposta pelo Poder Executivo vis-à-vis as modificações propostas pelos parlamentares.

Nesse novo modelo, as comissões temáticas permanentes seriam as autoras das emendas ao projeto de lei orçamentária. Decorrentes de sugestões apresentadas na comissão pelos parlamentares, essas emendas seriam postuladas pela comissão temática à Comissão Mista de Orçamento, tal como ocorre hoje. De modo exemplificativo, cada parlamentar poderia ter o direito de apresentar uma sugestão em cada comissão temática permanente. E como incentivo à especialização, também poderia propor outra emenda adicional na comissão em que fosse titular.

Entre as virtudes desse novo modelo, podemos citar: (i) maior teor estratégico das emendas, propiciado por eventuais diretrizes emanadas pelas comissões temáticas quanto aos programas ou ações que devem ser priorizados pelos parlamentares; (ii) aproximação do orçamento das políticas públicas, por conta da discussão, debate e votação das sugestões recebidas no âmbito de uma comissão que lida especificamente com a temática sob análise; e (iii) estímulo à especialização da atuação parlamentar, reforçada pela possibilidade de apresentarem maior número de emendas nas comissões em que são titulares. Com maior qualificação das emendas, tende-se a melhorar a qualidade do gasto público. 

Qual deveria ser o limite para emendas?

Uma vez definido que cabe às comissões temáticas propor emendas ao orçamento, deve-se estipular um limite para essas intervenções legislativas. No modelo aqui proposto, não se repetiria a fórmula atual aplicada a emendas individuais e de bancada estadual, ancorada em percentuais da Receita Corrente Líquida (RCL) da União. Atualmente, com efeito, os limites constitucionalmente fixados para as emendas impositivas[10] são: (i) de 1,2% da RCL para as emendas individuais; (ii) e de 1% da RCL para as emendas de bancada estadual.

Essa regra não é boa, pois é pró-cíclica, enquanto o tecnicamente recomendável é que o gasto público seja anticíclico[11]. É verdade que a Emenda Constitucional nº 95, de 2016, ao instituir o “teto de gastos”, suspendeu a vinculação das emendas à receita, atualizando-as anualmente pela inflação[12]. Mas esse efeito é apenas temporário, já que só se aplica durante a vigência do teto. Além disso, ambas as regras em nada contribuem para a superação da rigidez orçamentária, pois não geram incentivos para que se evite o comportamento irresponsável na geração de despesas obrigatórias. Afinal, independentemente do nível de despesas obrigatórias, o limite de emendas não seria comprometido pelas regras vigentes, já que seria definido com base no desempenho da receita ou no valor do ano anterior, preservado em termos reais.

Verifica-se, portanto, que as regras vigentes (relativamente à definição de limites para emendas) dedicam pouca atenção à máxima da teoria institucionalista de que “instituições importam”, ou seja, de que condicionam o comportamento humano. Na definição de Douglas North[13], instituições são regras do jogo que “estruturam incentivos no intercâmbio humano, sejam eles políticos, sociais ou econômicos”.

É por esse enfoque que, antes de se ocupar com a quantificação de um limite financeiro para emendas, deve-se ter clareza sobre qual comportamento se quer influenciar. A partir disso é que se deriva uma regra capaz de produzir o incentivo favorável a determinado comportamento. Nessa esteira, a fórmula aqui proposta fundamenta-se na seguinte lógica. Ao contrário de outros países, em que as decisões que envolvem receitas e despesas públicas se dão no âmbito da discussão orçamentária, no Brasil há um descompasso entre o processo orçamentário e o processo legislativo ordinário, que tende a estrangular as despesas discricionárias. A dinâmica é simples. Na produção de leis, criam-se despesas obrigatórias que, posteriormente, durante a elaboração do orçamento, diminuem a margem para despesas de livre alocação. No PLOA para 2022, por exemplo, as despesas discricionárias corresponderam a apenas 8% das despesas primárias da União[14].

Para mitigar esse problema, propõe-se que o limite para emendas passe a ser definido não com base na receita, nem no valor do ano anterior atualizado pela inflação, mas com base no tamanho das despesas discricionárias. Desse modo, caso o Legislativo se comporte de forma imprudente no processo legislativo ordinário, com descontrole na geração das despesas obrigatórias, ou com inércia na sua revisão, menor se torna a margem discricionária e, por consequência, o espaço para emendas.

A estratégia aqui proposta parte desse princípio, mas vai além ao considerar que parte da despesa discricionária é constituída por gastos rígidos, como os de custeio da máquina pública (água, luz, limpeza etc.). Por esse motivo, propomos que o limite para emendas seja fixado como percentual dos investimentos constantes dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social (OFSS)[15] nos projetos de lei orçamentária anual, observadas as restrições fiscais pertinentes[16]. Desse modo a regra incidiria sobre despesas discricionárias do tipo “puro-sangue”, com estímulo específico ao aumento dos investimentos públicos, que se situam em níveis históricos bastante deprimidos, inferiores a 1% do PIB, com trajetória de queda desde 2013; no PLOA 2022, constam apenas R$ 25,7 bilhões para esses investimentos[17].

A definição sobre qual deve ser o percentual dos investimentos que serviria de limite para emendas, todavia, é uma decisão de arbitragem política que compete ao próprio Legislativo para autolimitar seu poder de interferir na definição do gasto público. 

Conclusão

Buscamos demonstrar, neste artigo, que o atual modelo de emendas ao orçamento contém problemas conceituais e estruturais que tendem a afastá-lo de discussões qualificadas sobre políticas públicas. As emendas são formuladas de forma fragmentada e paroquialista, ou então de modo colegiado, porém não especializado, com fraca conexão ao planejamento governamental. Além disso, modalidades específicas, como as emendas “PIX” e as “RP9”, agravam ainda mais o problema apontado.

Para superar esse quadro, propomos a adoção de um novo modelo, que não seria alcançado por meio de ajustes finos, mas mediante uma reforma estrutural capaz de conferir maior protagonismo às comissões permanentes do Legislativo, reservando-lhes o papel de instância formuladora de emendas ao orçamento. Ao homenagear a especialização temática legislativa, vislumbra-se que o novo modelo possa contribuir para uma melhor qualificação das emendas, ampliando sua legitimidade, em benefício da qualidade do gasto público.

Ao mesmo tempo, propõe-se que as emendas sejam articuladas com um sistema de incentivos mais estratégico para a gestão do gasto público, a fim de que as despesas discricionárias não sejam constantemente reduzidas. Para isso, sugere-se limitar o valor agregado das emendas ao orçamento a um percentual dos investimentos contidos nos orçamentos fiscal e da seguridade social. Sob essa sistemática, os legisladores teriam melhores incentivos para evitar que as despesas obrigatórias aumentassem de forma descontrolada a ponto de estrangular as discricionárias, em especial os investimentos públicos. 

 

Referências

BIJOS, Paulo R.S. Governança legislativa orçamentária: da fragmentação paroquialista à priorização estratégica. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2021. 77 p. (Estudo Técnico n. 8. mai. 2021).

BRASIL. Câmara dos Deputados. Raio-X Orçamento 2022 – PLOA. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2021a. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/raio-x-do-orcamento/raio-x-2021/raio-x-do-orcamento. Acesso em: 6 dez. 2021.

BRASIL. Congresso Nacional. Nota Técnica Conjunta nº 5, de 2021 – CONORF/SF – CONOF/CD – Subsídios à Apreciação do Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) para 2022 – PLN 19/2021-CN. Brasília, DF: Congresso Nacional, 2021b. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/leis-orcamentarias/loa/2022/tramitacao/notas-tecnicas-e-informativos-conjuntos. Acesso em: 6 dez. 2021.

NORTH, Douglas C. Instituições, mudança institucional e desempenho econômico. São Paulo: Três Estrelas, 2018.

PRAÇA, Sérgio. A evolução das instituições orçamentárias no Brasil, 1987-2008. 2010. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

RAILE, Eric D.; PEREIRA, Carlos; POWER, Timothy J. The Executive Toolbox: Building Legislative Support in a Multiparty Presidential Regime. Political Research Quarterly, v. 64, n. 2, p. 323-334, 2011.

TOLLINI, Hélio M. Em busca de uma participação mais efetiva do Congresso no processo de elaboração orçamentária. Brasília, DF: Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados, 2008.

TOLLINI, Hélio M. Deslocando o foco orçamentário do curto para o médio prazo. In: GIAMBIAGI, F.; FERREIRA, S.G.; AMBRÓZIO, A.M.H. (orgs). Reforma do Estado brasileiro: transformando a atuação do governo. São Paulo: Atlas, 2020.

WEHNER, Joachim. Legislatures and the budget process: the mith of fiscal control. New York: Palgrave Macmillan, 2010.

 

[1] No sistema parlamentarista de governo, a aprovação de emendas orçamentárias pode significar um voto de desconfiança no governo e ensejar a sua queda (WEHNER, 2010). Já no sistema presidencialista, em que a separação de poderes é mais pronunciada, as emendas são instrumentos naturais de intervenção legislativa no orçamento. Além disso, em presidencialismos multipartidários, também são instrumentos utilizados pelo Chefe do Executivo na gestão de coalizões (RAILE; PEREIRA; POWER, 2011).

[2] Também se poderia discutir se as emendas individuais prejudicam o processo competitivo eleitoral, favorecendo parlamentares que podem destinar recursos para suas bases “em nome próprio”.

[3] Os valores efetivamente realizados constam em Bijos (2021).

[4] As bancadas estaduais são constituídas pelo conjunto de deputados e senadores eleitos em cada Estado ou Distrito Federal.

[5] O “RP9” é a sigla utilizada para identificar as emendas “de mérito” de autoria do relator-geral do projeto de lei orçamentária anual (PLOA). Ao contrário das emendas que se restringem a corrigir erros ou omissões de ordem técnica, as emendas de mérito promovem alterações em programações constantes do PLOA ou inclusão de programações novas, conforme disposto no art. 7º, § 4º, II, “c”, “4”, da Lei nº 14.116, de 2020.

[6] Historicamente, as emendas de relator-geral sempre foram utilizadas para promover os necessários ajustes técnicos no projeto de lei orçamentária. Ao longo dos anos, passam também contemplar finalidades/ações específicas definidas ex-ante anualmente no parecer preliminar. As emendas de mérito, porém, só se tornaram claramente identificáveis a partir da LOA 2020.

[7] Conforme originalmente proposto por Tollini (2008).

[8] No modelo proposto, todavia, preserva-se a atribuição constitucional da CMO como instância responsável pelo recebimento e apreciação das emendas.

[9] No Senado, pela Comissão de Educação, Cultura e Esporte.

[10] São as de execução obrigatória, mas sujeitas a contingenciamento proporcional ao do Executivo.

[11] A ideia subjacente, associável à fábula “A Cigarra e a Formiga”, é de que o governo crie poupança em períodos de prosperidade para utilizá-la em momentos de crise.

[12] Conforme disciplinado pelo art. 111 do ADCT e pelo art. 3º da EC 100/2019.

[13] Em “Instituições, mudança institucional e desempenho econômico” (NORTH, 2018, p. 13).

[14] Segundo metodologia constante do informativo “Raio-X Orçamento 2022 – PLOA”, elaborado pela Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira (CONOF) da Câmara dos Deputados (BRASIL, 2021a).

[15] Não seriam considerados os investimentos constantes das empresas estatais não dependentes, que compõem o Orçamento de Investimento (OI).

[16] Idealmente, sob a abordagem de um Quadro de Despesas de Médio Prazo (TOLLINI, 2020).

[17] O cenário indicado consta da Nota Técnica Conjunta nº 5/2021, elaborada pela Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados e pela Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle do Senado Federal, como subsídio para a apreciação do PLOA 2022 (BRASIL, 2021b).

 

* Hélio Tollini é consultor de orçamento da Câmara dos Deputados e ex-secretário da Secretaria de Orçamento Federal.

** Paulo Bijos é consultor de orçamento da Câmara dos Deputados

 

 

 

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Uma questão absorvente https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3534&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=uma-questao-absorvente Mon, 06 Dec 2021 19:25:43 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3534 Uma questão absorvente[1]

 

 Por Marcos Mendes*, Henrique Moreira Rizzolli, Herly Xiao, Laura Guarnier, Leonardo Baran, Lucas Dalto Pizarro, Octávio Ferro Indio da Costa, Roberto Felize e Thiago Souza de Oliveira[2]

 

 Introdução

O presente texto utiliza a proposta de distribuição gratuita de absorventes íntimos a mulheres de baixa renda como estudo de caso de política pública. O intuito é mostrar a importância de se ter um diagnóstico adequado, definindo-se exatamente qual é o problema que se deseja resolver, as diferentes restrições, os impactos colaterais e as diferentes possíveis soluções.

Houve intenso debate na sociedade brasileira sobre a aprovação e veto parcial do Projeto de Lei 4.968/19, transformado na Lei 14.214/21. Seu objetivo principal era instituir o Programa de Proteção e Promoção de Saúde Menstrual (PPSM), que consistiria na entrega gratuita de absorventes ao seguinte público:

a) estudantes de baixa renda matriculadas em escolas da rede pública de ensino;

b) mulheres em situação de rua ou em situação de vulnerabilidade social extrema;

c) mulheres apreendidas e presidiárias, recolhidas em unidades do sistema penal; e

d) mulheres internadas em unidades para cumprimento de medida socioeducativa.

Também propunha a inclusão de absorventes como itens da cesta básica entregues no âmbito do já existente Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.

O Programa seria implementado de forma integrada pela União, estados e municípios, mediante atuação, em especial, das áreas de saúde, de assistência social, de educação e de segurança pública.

Os recursos viriam do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN) e do Sistema Único de Saúde (SUS). No primeiro caso, seriam recursos inteiramente do Governo Federal, que é o responsável pelo financiamento do FUNPEN. No segundo caso, o financiamento seria realizado pelos três níveis de governo, que custeiam solidariamente o SUS.

De forma adicional, propunha-se que os absorventes higiênicos femininos feitos com materiais sustentáveis teriam preferência de aquisição, em igualdade de condições, como critério de desempate, pelos órgãos e pelas entidades responsáveis pelo certame licitatório.

Os vetos por parte da Presidência da República atingiram os artigos 1º (que assegurava a distribuição gratuita), 3 º (que definia o público alvo), 5º (tratamento preferencial aos absorventes produzidos com material sustentável), 6º (financiamento pelo SUS) e 7º (inclusão dos preservativos na cesta básica). Somente os artigos 2º (que institui o PPSM) e 4º (implementação pelos 3 níveis de governo) foram mantidos, os quais declaram apenas intenções.

Após os vetos instaurou-se choque de opiniões na imprensa e nas redes sociais que reproduz a polarização política vigente no país. Quem é contra o Governo Bolsonaro passou a criticar os vetos e propor sua derrubada. Os defensores do Presidente passaram a desqualificar o mérito da proposta.

Políticas públicas decididas por embates ideológicos ou eleitorais correm sérios riscos de levarem a maus resultados. Elas devem ser desenhadas a partir de uma identificação clara do problema a ser resolvido, da análise da experiência nacional e internacional em lidar com o problema, explorando-se diferentes possibilidades que possam ser adotadas conjuntamente. Custos e benefícios precisam ser adequadamente mensurados.

Por que intervir?

O ponto de partida para a discussão de uma política pública deve ser sempre a pergunta: por que o governo tem que intervir? O setor privado e os mecanismos de mercado não são capazes de resolver o problema sozinhos? No jargão econômico a pergunta é: qual a falha de mercado que se quer solucionar?

Isso porque toda intervenção estatal tem custos para a sociedade, pelo aumento de tributos e pelos custos administrativos e regulatórios que a ação estatal gera.

A principal falha de mercado, no caso, parece ser a existência de pessoas sem renda suficiente para adquirir um bem de primeira necessidade. Não há igualdade de oportunidade às mulheres pobres no acesso à saúde, educação e mercado de trabalho. Em sendo uma questão de política redistributiva há, a princípio, espaço para a entrada do governo visando facilitar o acesso da população em situação desfavorecida ao bem essencial.

Seria essa falha de mercado relevante? A julgar pela mobilização das agências internacionais voltadas a questões de equidade, o tema parece ser, de fato, relevante. A UNICEF desenvolve em uma das vertentes de sua campanha mundial “Water, Sanitation and Hygiene” (WASH), a conscientização e a distribuição de itens de higiene menstrual para regiões de baixa e média renda, além de localidades em estado de emergência. O tema também é abordado nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, com o recorte de reivindicação para o acesso de serviços de saúde.

Há diversas políticas públicas voltadas ao acesso a absorventes ao redor do mundo. O exemplo mais significativo é o da Escócia, a qual após um período praticando parcerias locais para o fornecimento de absorventes em instituições de ensino, começou em novembro de 2020 distribuir esse item gratuitamente para “quem precisar deles”, além de 500 mil libras (valores de 2020) destinados à instituição de caridade FareShare para a distribuição de produtos de higiene menstrual para famílias de baixa renda. Essa é uma experiência relevante porque se baseou em cuidadosa avaliação ex-ante das diferentes opções para a provisão do serviço público, de custos e de benefícios.[3]

Outra falha de mercado pode estar na estrutura de produção e oferta de absorventes. Havendo concentração da oferta em poucas empresas, não haveria concorrência perfeita e, com isso, surgiria a possibilidade de lucros extraordinários e oferta do bem inferior ao ótimo social. De fato, mais de 50% do mercado é atendido por três grandes empresas: Johnson & Johnson, Kimberly-Clark e Procter & Gamble[4]. Trata-se, portanto, de um mercado oligopolizado.

Nesse caso, haveria espaço para medidas diferentes e não cobertas pelo projeto de lei em análise: ações regulatórias tais como a redução de imposto de importação ou a verificação de eventuais práticas anticompetitivas das empresas do setor, visando melhorar a eficiência de mercado para que houvesse maior oferta e menor preço.

Os absorventes estão classificados na Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM) no código “96.19.00.00 – Absorventes e tampões higiênicos, cueiros e fraldas para bebês e artigos higiênicos semelhantes, de qualquer matéria”.

A alíquota da Tarifa Externa Comum do Mercosul é de 16%, mas a classificação está na lista de exceções com alíquota de 12%. Em decorrência de todo o debate sobre a questão dos custos dos absorventes, a Câmara de Comércio Exterior decidiu, em 19/11/21, reduzir a alíquota de importação de 12% para 10%. Também foi reduzida de 8% para 7% a alíquota incidente sobre produtos químicos essenciais à produção de absorventes[5]. Pode-se dizer que, embora tenha vetado o projeto de lei, o Governo Federal está se movendo em outra frente, visando o objetivo de tornar os absorventes mais acessíveis.

Uma consulta à base de dados da Organização Mundial do Comércio permite verificar as tarifas de importação impostas pelo Brasil em comparação com o restante do mundo. A figura abaixo mostra que o movimento recente colocou nossa tarifa de importação abaixo da média mundial e da América Latina. Mas ainda é alta em relação à dos países desenvolvidos e dos emergentes asiáticos.

Haveria, portanto, mais espaço para avançar nessa liberalização. O Brasil, contudo, tem limitações decorrentes do acordo do Mercosul. Em geral, nossa política externa está atada a princípios protecionistas que impedem que as importações elevem a concorrência e permitam que bens de consumo cheguem à população mais pobre a preços mais acessíveis. Pode-se dizer que, em parte, a necessidade de subsidiar produtos aos mais pobres vem de outra política pública, voltada a preservar a margem de lucro das empresas que atuam no País.

Absorventes e similares: tarifa preferencial média para grupos de países: 2020 ou 2021 (%)

 

Fonte: OMC (http://tariffdata.wto.org/ReportersAndProducts.aspx)

Nota: classificação de produtos = “Sanitary towels (pads) and tampons, napkins
 and napkin liners for babies, and similar articles, of any material”)

Fenômeno similar se dá no caso da chamada “margem de preferência” em compras públicas. Reproduzindo regra existente na antiga Lei de Licitações (Lei 8.666/93), a nova Lei de Licitações (Lei 14.133/21), em seu art. 26, prevê que bens manufaturados nacionais possam ser adquiridos por preços mais altos que seus concorrentes estrangeiros. Ou seja, o intuito de proteger a produção no país – como no caso das alíquotas de importação – pode levar ao aumento de custos na aquisição dos absorventes, caso venha a ser ativada, na licitação pública, a cláusula de “margem de preferência”.

Quais as possíveis falhas de governo?

Toda política pública está sujeita a “falhas de governo”. A compra e distribuição de absorventes em grande escala, pelo Governo Federal, teria grandes desafios de logística de armazenamento e distribuição, o que poderia elevar os custos totais. Licitações públicas também são frequentemente assoladas por atrasos e casos de corrupção.

Uma forma de evitar esses custos é buscar canais alternativos de provisão e distribuição. O Brasil já dispõe do Programa Farmácia Popular, que utiliza a rede privada de farmácias para ofertar medicamentos e produtos de higiene a preços subsidiados. Nesse sentido, parece mais eficiente e lógico atender parte do público alvo por meio de programa já existente, em vez de criar uma nova estrutura de distribuição pela aprovação de uma nova lei. Note-se que o Farmácia Popular já oferta bens similares a absorventes, como fraldas geriátricas.

O Programa já foi objeto de avaliações[6] e, já tendo um histórico de execução, pode ser objeto de melhorias marginais, o que parece mais eficiente que a instituição de um programa totalmente novo. Uma possibilidade seria o novo programa se restringir a públicos específicos que não têm acesso às farmácias, como as presidiárias, ou ter distribuição suplementar nas escolas públicas (como, por exemplo, absorventes disponíveis para casos de emergência, em vez de distribuição ampla para todas as alunas).

A questão federativa

O art. 4º do Projeto de Lei, que não foi vetado, estabelece que o programa “será implementado de forma integrada entre todos os entes federados”. Trata-se, portanto, de uma legislação federal criando obrigação para todos os estados e municípios.

Do ponto de vista da organização federativa do País, não parece uma medida adequada. Uma das grandes vantagens de se ter uma federação é que cada governo local pode dar atenção às prioridades locais. Uma vez que o legislador federal toma uma decisão unificada para todo o país, perde-se essa flexibilidade.

É certo que em todos os lugares do país há mulheres de baixa renda necessitando de absorventes. Mas não necessariamente essa é a primeira ou uma das primeiras prioridades locais. Por exemplo, em um estado estudantes que recebam absorventes podem continuar faltando aulas por não terem transporte adequado ou porque não há professores na escola. Em um estado o foco da política pode estar mais na população carcerária, em outro, na população escolar e, em outro, nas mulheres que têm dificuldade de buscar emprego ou comparecer ao trabalho por falta de absorventes. Ao gestor local, que conhece melhor a realidade da sua comunidade, deve ser dada flexibilidade de escolha e ação.

Nesse sentido, em vez de uma lei unificadora nacional, medidas infralegais de inclusão de fornecimento de absorventes e outros produtos de higiene via SUS, poderiam ser oferecidos de forma voluntária aos estados e municípios. Uma forma de fazê-lo seria, por exemplo, mediante o compartilhamento de custos, por meio de transferência vinculada com contrapartida: a cada R$ 1 destinado pelo estado ou município para a provisão de absorventes, dentro de programa desenhado no âmbito do SUS, a União custearia, digamos, R$ 0,50. Isso equivaleria a um subsídio ou redução do custo da política para o governo local, induzindo, porém não obrigando, a participação no programa.

Um aspecto interessante da autonomia local é que os diferentes programas e diferentes abordagens poderiam ser submetidos a avaliações, de modo a se verificar qual das políticas locais se mostrou mais efetiva, constituindo caso de sucesso a ser copiado e adaptado por outros estados e municípios. Isso ampliaria a eficácia da política pública ao longo dos anos.

As formas alternativas ou adicionais de atingir o mesmo objetivo

O projeto de lei em análise escolheu o caminho da distribuição direta de absorventes. Quais seriam os caminhos alternativos para se atingir o objetivo final de tornar o produto acessível a mulheres de baixa renda? Obviamente as diferentes opções não são mutuamente excludentes. Juntas podem levar a efeito mais intenso que a simples distribuição. Mas, ao mesmo tempo, é preciso avaliar benefícios e custos.

Já se mencionou, acima, os mecanismos regulatórios de averiguação e prevenção de eventuais práticas anticompetitivas de mercado e de redução do custo de importação do produto acabado e de seus insumos. Também já foi apresentada a opção de venda na rede privada de farmácias, a custos subsidiados, no âmbito do Programa Farmácia Popular. A seguir, avaliam-se outras opções. 

Transferência de dinheiro

Outra possibilidade é simplesmente dar o dinheiro à família. De fato, um questionamento muito frequente à distribuição de absorventes foi o de que já existe o Programa Bolsa Família (PBF). E que esse Programa é elogiado justamente por deixar a opção de consumo nas mãos das famílias, não impondo um padrão único de consumo a partir de uma decisão do legislador ou da burocracia.

Um contra-argumento seria o de que as adolescentes não controlam o orçamento da família. São os pais e responsáveis que decidem por elas. E estes podem ter outro conjunto de preferências e prioridades. Esse argumento, usualmente utilizado para justificar a obrigação de matricular crianças na escola, também pode ser usado para justificar a distribuição direta dos absorventes.

Mas há os que apontam que o Bolsa Família tem entre as suas condicionalidades a presença na escola. Se uma adolescente está faltando por não dispor de absorvente, a família pode ser punida com a perda do benefício, o que faria os pais privilegiarem o atendimento da necessidade da adolescente. Somente o reconhecimento da ineficácia dos condicionantes do Bolsa Família ou a percepção de que as faltas em período menstrual não seriam suficientes para decretar a perda do benefício poderiam desmontar esse argumento.

Nesse caso, o esforço poderia ser o de prover as escolas com estoques de absorventes para atender a demanda eventual pelas adolescentes (em vez de provisão obrigatória a todas) e de melhorar o monitoramento das condicionalidades do PBF. 

Redução de impostos

Outra possibilidade seria a redução da tributação sobre o consumo de absorventes (não confundir com o imposto de importação, acima tratado). A experiência internacional mostra que vários países optaram por esse caminho.  Há registro de tratamento tributário preferencial na Alemanha, Austrália, Canadá, Colômbia, Jamaica, Líbano, Índia, Malásia, Nigéria, Uganda e Quênia[7].

Em 2004, o primeiro país a eliminar a tributação sobre produtos de higiene menstrual foi o Quênia. Em 2018, a Índia também eliminou a sua taxa de 12%. Em 2016 os países membros da União Europeia entraram em um acordo acerca da flexibilização sobre a taxação de produtos sanitários, mas não incluem uma regulamentação formal para a tributação como realiza com diversos outros produtos, estipulando alíquotas mínimas e máximas. Com isso, por exemplo, em 2019, a Alemanha conseguiu retirar a taxação de 19%, dado que os absorventes eram considerados um item de luxo pelo parlamento[8].

No Brasil, os absorventes (e tampões) são isentos do Imposto de Produto Industrializado, porém continuam com a incidência de outros impostos, como o Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e possuem uma alíquota de tributação média de 34,48%.

O problema de se utilizar a redução de impostos é a falta de focalização nos mais pobres. A redução da arrecadação, que fará falta para financiar outras políticas públicas, subsidiará os absorventes comprados pelos pobres e pelos ricos. Esse é o problema típico de se tentar fazer política de atenção aos mais pobres através de benefícios tributários[9]. Um estudo sobre os benefícios fiscais do ICMS no Rio Grande do Sul mostrou que os 30% mais pobres receberam menos de 14% do benefício, enquanto os 30% mais ricos se apropriaram de 50%32.

De modo similar, o Ministério da Fazenda, em 2017, estimou que destinar R$ 1 bilhão ao Bolsa Família produz um impacto 12 vezes maior para a queda da desigualdade do que desonerar em R$ 1 bilhão a cesta básica[10] . Isso porque, por um lado, acabam entrando no conceito de “cesta básica” produtos não consumidos pelos mais pobres, como carne de primeira. Por outro lado, os produtos têm variações de qualidade que não podem ser discriminadas na tributação: no caso dos absorventes, por exemplo, acabariam sendo desonerados tanto os mais baratos quanto os mais sofisticados. E a variação de preços e qualidade nesse mercado é ampla. Pesquisar o valor de uma unidade de absorventes nos seguintes sites: Amazon, Droga Raia, Drogaria São Paulo e Pague Menos. Notou-se que a variação de preço pode chegar a 10 vezes: a marca Tena-Maxi Night era vendida a R$ 2,42 a unidade, enquanto a marca Cottonbaby saia a R$ 0,26.

Deve-se notar a diferença entre reduzir impostos de importação e reduzir impostos sobre consumo. O imposto sobre importação não tem por finalidade principal arrecadar recursos para financiar políticas públicas. Sua função é regular o fluxo de entrada de produtos no país e o grau de proteção às empresas que atuam dentro do país. Embora a redução de ambos os impostos leve à diminuição do preço ao consumidor, os canais são diferentes. A redução do imposto sobre consumo resulta em perda de receita relevante para o governo, limitando sua capacidade de financiar outras políticas públicas. Já a redução do imposto de importação, não causa perda relevante de receita e atua sobre os preços ao aumentar a concorrência e diminuir margens de lucro e custos de produção.

Outra observação relevante é que o Programa Farmácia Popular, acima apontado como uma alternativa interessante de veiculação da política, também carece de focalização na população mais pobre. A princípio, qualquer indivíduo pode se beneficiar da aquisição de medicamentos subsidiados pelo Programa. No entanto, a forma segmentada de oferta e as exigências burocráticas para a aquisição subsidiada tendem a afunilar a busca pelo programa pelas pessoas que obtêm maior benefício marginal dos descontos. Não é, contudo, objeto desse texto uma avaliação pormenorizada da focalização efetiva do Programa Farmácia Popular.

Por fim, é importante chamar atenção para a importância de se fazer uma reforma tributária. A elevada tributação dos absorventes pelo ICMS decorre de distorções no nosso sistema tributário, que tributa muito os bens e pouco os serviços. Sendo os serviços mais consumidos por pessoas de alta renda, o sistema se torna regressivo. A introdução de um imposto sobre valor agregado (IVA), com alíquota única para todos os bens e serviços, corrigiria esse viés e reduziria o custo dos absorventes.

Adicionalmente, a reforma tributária reduziria a guerra fiscal e, com isso, o subsídio que os estados dão às empresas. Esses subsídios acabam sendo compensados por altas alíquotas nos bens tributados. Se extintos, viabilizariam alívio para todos os bens que hoje têm alíquotas elevadas.  Por fim, um IVA permite que se identifique claramente o montante total de impostos embutidos em um bem ou serviço comprado pelo consumidor final. Pessoas de baixa renda poderiam receber restituição total ou parcial de seu consumo via identificação pelo CPF, o que reduziria a necessidade de alíquotas diferenciadas para produtos específicos.

Produção comunitária de absorventes

Chamou atenção internacional uma bem-sucedida iniciativa do empreendedor indiano Arunachalam Muruganantham, que conseguiu criar um método simples de manufatura de absorventes[11]. Frente ao alto custo dos absorventes, em um mercado dominado por grandes empresas oligopolistas, ele identificou a necessidade de ofertar absorventes a baixo custo para a população indiana de baixa renda. Seu método padronizado, com maquinário simples e de baixo custo, permitiu criar nas comunidades rurais pequenas fábricas, que ocupam a mão de obra local, em especial feminina, produzindo itens que acabam sendo comercializados e consumidos localmente.

Esse tipo de experiência pode ser válido para o Brasil, seja para comunidades rurais, seja para favelas em áreas urbanas, e pode ser implantada de forma descentralizada e baseada em doações privadas, com pouca ou nenhuma participação do setor público. Não se está afirmando que funcionaria automaticamente. Como qualquer outra iniciativa de política pública, o sucesso desta estaria sujeito aos detalhes de desenho e implementação. Mas a experiência indiana é internacionalmente reconhecida como bem-sucedida. Logo, uma avaliação de possível adaptação ao Brasil mereceria ser avaliada.

Esse é mais um argumento que aponta para a relevância de soluções descentralizadas, tornando pouco eficiente a aprovação de uma lei uniformizadora e de aplicação obrigatória em todo o território nacional.

Os vetos presidenciais fazem sentido?

No ambiente de polarização em que estão sendo debatidas todas as políticas públicas, o Presidente da República foi fortemente criticado por vetar o projeto em análise. Os defensores da iniciativa legislativa tendem a afirmar que as justificativas dos vetos seriam “desculpa” para não implementar o projeto. Cabe analisar cada um dos argumentos usados nos vetos e verificar a sua consistência.

O primeiro argumento é de que o projeto de lei seria incompatível com a “autonomia das redes e estabelecimentos de ensino”. De fato, trata-se de ponto já assinalado acima: ao obrigar todos os governos e suas redes de ensino a implementarem um programa uniforme, definido pelo legislador federal, teríamos não só a anulação da autonomia das redes de ensino como dos próprios governos subnacionais. Não basta que se tenha uma causa nobre para desconsiderar essa autonomia, pois tal desconsideração também pode ser usada para finalidades menos elogiáveis. É preciso preservar as regras do jogo democrático e de funcionamento das instituições, e não se justifica quebra-las em função de um objetivo meritório.

Outro argumento é o de que se trata da criação de uma despesa obrigatória de caráter continuado. A Lei de Responsabilidade Fiscal exige, nesses casos, que se aponte uma nova e perene fonte de recursos ou o corte permanente de despesas para garantir o financiamento do programa. O projeto não foi claro a esse respeito, apenas atribuindo o custeio ao SUS e ao Fundo Penitenciário Nacional.

Mais uma vez, há que se preservar as regras fiscais, não cabendo flexibilizá-las em função do mérito da proposta em análise. Afinal, o mérito é sempre relativo a depender das preferências e interesse de quem o avalia. E a estabilidade fiscal é, em si, um bem público importante para proteger os mais pobres de fenômenos como a inflação, que corrói sua renda.

Há um veto específico à inclusão de absorventes na cesta básica que também é consistente. Argumenta o Poder Executivo que “o Projeto de Lei introduziria uma questão de saúde pública em uma lei que dispõe sobre segurança alimentar e nutricional”.

Por outro lado, há argumentos menos defensáveis ou que poderiam ser contornados. Alegou-se que não se pode fazer no âmbito do SUS um programa que seja voltado para clientelas específicas, pois o SUS tem caráter universal. Haveria espaço para, no âmbito do SUS, desenhar programas de subsídios ou fornecimentos nos postos de saúde e outras dependências públicas que não frustrassem o caráter universal. Mas isso teria que ser feito por instrumento infralegal. A proposição do programa na forma de lei, de fato, cria rigidez e maior dificuldade para uma adoção de caráter universal.

Outro argumento é o de que “absorventes higiênicos não se enquadram nos insumos padronizados pelo Sistema Único de Saúde – SUS, portanto não se encontram na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais – RENAME”. Esse parece um argumento formalista e passível de ser superado, uma vez que se pode considerar a importância de medidas preventivas para a saúde, e o risco de uso de instrumentos inadequados e nocivos à saúde em substituição aos absorventes.

Conclusões

Esse texto procurou apontar diversas alternativas existentes para lidar com o problema do baixo acesso a absorventes por mulheres de baixa renda. Seu intuito foi mostrar que não há uma única maneira de solucionar a questão. Portanto, o ambiente de confronto entre os que são favoráveis e contrários ao PL 14.214/21 empobrece o debate público, pois não permite explorar as melhores soluções possíveis.

O projeto tem como ponto negativo o fato de não estar ancorado em estudos de avaliação ex-ante que tenham buscado identificar as melhores formas de atingir seus objetivos (formas de provisão, financiamento, parcerias, amplitude do programa, instrumentos de mercado para redução de custos dos produtos, etc.) como ocorreu, por exemplo, no caso escocês, citado no texto. Ademais, o PL propôs um modelo único, obrigatório, possivelmente de alto custo. Ao fazê-lo, feriu pontos importantes de instituições relevantes, como a autonomia dos entes subnacionais e das instituições de ensino ou as regras de responsabilidade fiscal.

Esse padrão único nacional desestimularia o surgimento de diferentes alternativas, subsidiadas ou não pelo Governo Federal, de governos subnacionais ou do terceiro setor, gerando diferentes soluções, passíveis de serem replicadas e adaptadas em diferentes partes do país. Avaliações ex-post indicariam os modelos mais efetivos e permitiriam a melhoria dos diferentes programas.

Por outro lado, o PL teve o mérito de abrir a discussão de um problema relevante e que tem sido objeto de políticas públicas em vários países. Ao fazê-lo, já induziu o Governo Federal a se mexer para, por exemplo, reduzir tarifas de importação de absorventes e de insumos necessários à sua produção.

O episódio também foi importante para mostrar como políticas protecionistas prejudicam os mais pobres. Altas tarifas de importação diminuem o grau de competição e elevam custos de produção, encarecendo os bens de consumo final, que se tornam menos acessíveis aos mais pobres. Já a margem de preferência para empresas nacionais nas licitações públicas encarece as políticas públicas de distribuição de bens aos mais pobres, como no caso dos absorventes.

Outro ponto relevante é a importância de uma reforma tributária para a redução do custo da cesta de bens consumida pelos mais pobres, com a possibilidade de mecanismos de devolução dos impostos pagos de forma focalizada na população carente.

Como em qualquer política pública, existem diferentes formas de atingir um mesmo objetivo. Explorar todas as possibilidades, avaliando-as cuidadosamente, além de agir de forma cooperativa (entre governos e com o setor privado) parece ser uma opção superior a simplesmente aprovar um projeto top-down, sem prévia avaliação de custos, benefícios e detalhes de implementação.

 

[1] Esse texto reflete esforço coletivo de análise da disciplina “Política Fiscal” dos cursos de graduação em Economia, Administração e de Engenharia do Insper. Marcos Mendes é o professor da disciplina e os demais autores são alunos.

[2] Os autores agradecem a Sandra Rios e Lucas Ferraz por informações que auxiliaram na elaboração do texto, sem implicá-los em eventuais erros ou associá-los às opiniões aqui emitidas.

[3] Ver: Access to free sanitary products: BRIA – gov.scot (www.gov.scot).

[4] Fonte: http://novo.febrafar.com.br/fabricantes-disputam-o-setor-de-higiene-pessoal/

[5] O Estado de S. Paulo 20/11/21: “Após veto de Bolsonaro, tributo para importação de absorvente é reduzido”.

[6] Ver, por exemplo, Luiza, V.L et al. (2018) Applying a health system perspective to the evolving Farmácia Popular medicines access programme in Brazil. BMJ Global Health. Disponível em: Applying a health system perspective to the evolving Farmácia Popular medicines access programme in Brazil (bmj.com)

[7] Fonte: BBC Brasil 26/11/2020  Escócia se torna primeiro país do mundo a oferecer absorventes e tampões de graça – BBC News Brasil

[8] Fonte: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2019/11/13/alemanha-acaba-com-taxa-do-absorvente-e-item-deixa-de-ter-19-de-imposto.htm

[9] Ver, por exemplo, Lisboa, M. et al (2020) Uma agenda econômica pós-pandemia:

parte I – qualidade do gasto público e tributação. Insper. Disponível em: https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2020/07/Uma-agenda-econ%C3%B4mica-p%C3%B3s-pandemia-parte-I-1.pdf

[10] Kanczuk, Fábio. https://www.gov.br/fazenda/pt-br/centrais-de-conteudos/apresentacoes/arquivos/2017/apresentacao_equilibrio-geral-e-avaliacao-de-subsidios_fabio-kanczuk.pdf/view. Acesso em 26/9/2020.

[11] Ver sua apresentação em TED Talks em https://www.ted.com/talks/arunachalam_muruganantham_how_i_started_a_sanitary_napkin_revolution?language=pt-BR#t-56788. A Netflix oferece uma versão romanceada do episódio no filme “Pad Man”.

 

* Marcos Mendes é pesquisador associado e professor do Insper, além de ser membro do Instituto Fernand Braudel; os outros autores são alunos de graduação do Insper.

 

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“Eu sou você amanhã”. De novo? https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3526&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=eu-sou-voce-amanha-de-novo Thu, 04 Nov 2021 14:04:34 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3526 Brasil e Argentina: “Eu sou você amanhã”. De novo?

 

Por Luiz Alberto Machado*

 

“Enquanto o Brasil sonha com um futuro que não chega, a Argentina sonha com um passado que não volta”.

Roberto Macedo

 

Houve um período relativamente longo, na década de 1980, em que as economias do Brasil e da Argentina se alternavam em situações críticas, ora com uma em situação mais difícil, ora com outra nessa indesejável posição. Numa analogia com um memorável comercial de uma marca de vodca, costumava-se utilizar a expressão “eu sou você amanhã”, para se referir a essa triste alternância.

Nesse período, as equipes econômicas, tanto no Brasil como na Argentina, fizeram diversas tentativas, lançando mão de planos para conter a inflação que assolava os dois países.

Na Argentina, o Plano Austral, de junho de 1985, optou pelo congelamento de preços, tarifas e salários. O congelamento acabou por distorcer os preços relativos da economia e afetar o abastecimento de produtos básicos, entre os quais a carne, produto essencial na dieta dos argentinos. Alguns ajustes ao plano foram feitos em fevereiro de 1986, mas já em agosto do mesmo ano estava claro que o congelamento de preços não funcionara. Em 1987, houve o agravamento da crise econômica, com a inflação se acelerando rapidamente, o que levou o governo argentino  a enfrentar grandes dificuldades fiscais. Em agosto de 1988, foi lançado o Plano Primavera, última tentativa do governo de Raúl Alfonsín de controlar a inflação, mas também sem sucesso.

Quase ao mesmo tempo, o Brasil seguia uma trajetória muito parecida com a dos hermanos. No final de fevereiro de 1986, foi anunciado o Plano Cruzado, que também congelava preços e salários. Assim como na Argentina, a desordem provocada nos preços relativos gerou graves distorções e desabastecimento. Ajustes ao Plano Cruzado foram feitos em novembro de 1986 (Plano Cruzado 2) e, depois da troca da equipe econômica, um novo plano foi adotado em junho de 1987 (Plano Bresser), repetindo a estratégia do controle de preços, igualmente sem resultado. A crise econômica se agravou em 1987 e o governo brasileiro, com dificuldades para pagar a dívida externa, recorreu a uma moratória. Depois de nova troca da equipe econômica, em janeiro de 1989, foi anunciado o Plano Verão, última tentativa do governo de José Sarney para controlar a inflação pela via do controle de preços, novamente sem sucesso[1].

Como o Brasil demorou mais do que outros países sul-americanos para conseguir reduzir a inflação[2], os planos heterodoxos adentraram a década de 1990 com o Plano Brasil Novo (mais conhecido como Plano Collor), anunciado logo a posse do presidente Fernando Collor em março de 1990, e o Plano Collor 2, de janeiro de 1991.

A sequência de insucessos compartilhados pelos dois países ficou conhecido como efeito Orloff: “Eu sou você amanhã”.  Ou seja, para saber o que iria acontecer no Brasil, bastava ver o que tinha acontecido na Argentina ou vice-versa. Em realidade, no comercial o alerta “eu sou você amanhã” vinha seguido da recomendação “pense em você amanhã, exija Orloff hoje”. A mensagem da propaganda de vodca vinculada na década de 1980 era evitar a ressaca do dia seguinte.

A partir do êxito obtido com o Plano Real, que, ao contrário dos planos heterodoxos anteriormente tentados, conseguiu estabilizar consistentemente a nossa moeda, a diferença com a situação econômica da Argentina foi se tornando cada vez mais nítida. Embora o Brasil também tenha testemunhado oscilações em sua economia nas duas últimas décadas e o crescimento médio esteja muito abaixo do observado entre 1870 e 1986[3], a inflação foi mantida sob controle em níveis considerados baixos para nossos padrões. Enquanto isso, a economia argentina passou a maior parte desse tempo envolvida em grave crise, com a perversa combinação de baixo crescimento, elevada inflação, alto desemprego e forte endividamento, tanto interno quanto externo, fazendo com que o país fosse obrigado a recorrer mais de uma vez ao Fundo Monetário Internacional.

Para favorecer uma comparação mais ampla entre o Brasil e a Argentina, vou me estender no exame da longa deterioração do país vizinho.

Nasci em 1955 e, graças ao basquete, a partir dos 13 anos de idade tive oportunidade de realizar uma série de viagens ao exterior, numa época em que tal prática não era tão comum como é nos dias de hoje. Mesmo tendo conhecido diversos outros países antes de conhecer a Argentina, o que aconteceu apenas em 1977, ouvi diversas referências ao elevado nível de desenvolvimento do país que, em meados do século passado, ostentava indicadores socioeconômicos superiores inclusive aos de diversos países da Europa.

Quando estive na Argentina pela primeira vez, o quadro já não era o mesmo e o processo de deterioração já se encontrava em curso. De lá para cá, tive a chance de retornar ao país mais de uma dezena de vezes e, a cada nova visita, constatava o agravamento da situação.

Embora, a exemplo do que ocorreu também no Brasil, tenham se observado algumas oscilações, a tendência declinante foi uma característica marcante da economia argentina nos últimos 60 anos. Marcos Aguinis, brilhante sociólogo argentino, descreve de forma contundente essa trajetória declinante num livro intitulado ¡Pobre patria mía!:

Fomos ricos, cultos, educados e decentes. Em poucas décadas nos convertemos em pobres, mal educados e corruptos. Geniais! A indignação me tritura o cérebro, a ansiedade me arde nas entranhas e enrijece todo o sistema nervoso. Adoto hoje [neste livro] o subgênero do panfleto – elétrico, insolente, visceral – para dizer o que sinto sem ter que por notas de rodapé ou assinalar as citações. O que quero transmitir é tão forte e claro que devo esculpir. Ao leitor que já me conhece só peço, como sucedia com os panfletos do século XIX, que considere minha voz como a voz dos que não têm voz. Ou que, se a tem, não sabem como nem onde transmiti-la. Não se trata de arrogância, mas sim de pedir permissão.[4]

Mais adiante, numa clara manifestação de inconformismo pela pouca importância que a comunidade internacional atribui atualmente a um país que já foi considerado o mais desenvolvido da América do Sul, Aguinis assinala:

Cada vez que regresso de uma viagem ao estrangeiro, alguém me pergunta: “Que opinam a nosso respeito?” Existe ansiedade por obter a aprovação alheia, como se fôssemos conscientes da culpa que carregamos por haver corrompido o presente argentino. Minha resposta, por muitos anos, tratava de refletir os conceitos que haviam chegado a meus ouvidos. Agora já não preciso me esforçar. Respondo sem anestesia: “Crês que opinam mal? Não te iludas! Nem sequer mal: já não falam de nós”.

O casal Kirchner ocupa posição de destaque no rol dos responsáveis pela situação ter chegado até o ponto em que se encontra. O trecho que se segue, extraído já da parte final do livro deixa isso claro:

Nunca o casal K entendeu que o mundo é uma imensa oportunidade, onde nossos produtos seriam avidamente devorados. Que teríamos tudo para abastecer o mercado. Nunca entendeu que se devem respeitar os direitos da propriedade privada porque, ao contrário do que supunha o desinformado Proudhon, constituem a raiz da riqueza e um estímulo ao respeito pelo outro e por si mesmo. Aristóteles demonstrou que “o que é de todos, não é de ninguém”. A carência de hierarquia da propriedade privada permite o avanço da depredação. O famoso “modelo K”, apesar de obscuro, pelo menos deixa entrever que ama a depredação.

A conclusão de Aguinis não deixa margem a qualquer dúvida. É dentro, e não fora do país, que se encontram as razões dessa prolongada decadência.

A firme defesa dos princípios defendidos pelo socialismo bolivariano e o fortalecimento das relações com a Venezuela, a Bolívia e o Equador que se verificaram nos últimos anos serviram apenas para agravar uma situação que já era difícil.

Considerando um horizonte temporal mais reduzido, é possível afirmar que a economia argentina encontra-se em recessão desde 2011. Conseguiu, graças a alguns resultados iniciais obtidos pelo governo do presidente Mauricio Macri, levar a situação com altos e baixos por algum tempo. Porém, quando ficou claro que as metas prometidas por Macri não seriam atingidas, a situação se deteriorou, obrigando o país a contrair um empréstimo de US$ 56,3 bilhões junto ao FMI em 2018. A vitória do peronista Alberto Fernandez no primeiro turno das eleições de outubro de 2019 trouxe alguma esperança a uma parcela da população argentina.  A falta de resultados imediatos e a chegada da pandemia, em março do ano passado, tornaram as coisas ainda mais difíceis.

Não é fácil enumerar todos os problemas que afligem a nação vizinha. Alguns deles, porém, chamam a atenção: (i) a economia argentina permanece dependente da exportação de produtos agrícolas, de baixo valor agregado, enquanto seu parque industrial apresenta sinais alarmantes de obsolescência; (ii) a inflação segue num patamar elevado para os padrões internacionais, apesar de sucessivas tentativas de mantê-la controlada por meio de congelamento e/ou tabelamento dos preços de determinados produtos; (iii) continua existindo na Argentina uma perigosa convivência da moeda local com o dólar, com um ativo mercado paralelo que reflete enorme desconfiança na moeda local; (iv) o país apresenta forte vulnerabilidade por não dispor de reservas internacionais suficientes para lhe permitir condições favoráveis no enfrentamento das pressões ou mesmo na negociação com os credores.

Em conversa recente com Norberto Vidal, ex-cônsul da Argentina em São Paulo,  sobre problemas vividos por nossos países, ele revelou que em consequência da derrota nas primárias realizadas em 12 de setembro, o governo argentino passou a adotar ações desesperadas, com farta distribuição de recursos públicos, com o objetivo de tentar evitar uma derrota ainda maior nas eleições legislativas que serão realizadas no próximo dia 14 de novembro.

Considerando a gravidade da situação vivida pela Argentina e esse comportamento descontrolado do governo, imaginei que a diferença com a situação da economia brasileira se ampliaria ainda mais.

Ledo engano. Num prazo muito mais curto do que eu poderia supor, deparei-me com uma série de ações que, também por motivos eleitoreiros, comprometeram rapidamente nossos indicadores econômicos, com elevação da inflação, deterioração do câmbio e violação do teto de gastos. O argumento, falacioso em minha opinião, foi a necessidade de priorizar aspectos sociais, como se houvesse incompatibilidade entre responsabilidade social e responsabilidade fiscal.

As medidas adotadas provocaram, entre outras coisas, a demissão de dois dos mais importantes assessores do ministro Paulo Guedes, num raro exemplo, nos dias de hoje, de obediência aos padrões de decência por parte de integrantes do Executivo[5].

Com isso, além de nos aproximarmos da situação da Argentina, estamos caminhando celeremente para um passado em que, diante do descontrole na área fiscal, toda a responsabilidade pela contenção da inflação fica com a política monetária. Em outras palavras, com o Banco Central e sucessivas elevações da taxa de juros.

Como bem observa Affonso Celso Pastore, ex-presidente do Banco Central:

Quando um governo irresponsável eleva os gastos sem ter os recursos, impõe ao Banco Central uma dura escolha. Ou este exerce sua independência, elevando a taxa de juros o que for necessário para cumprir seu mandato, ou se submete aos objetivos políticos do governo, tornando-se prisioneiro da dominância fiscal.

Sua conclusão é bem objetiva: “O que resta, diante da irresponsabilidade fiscal do governo e de sua base de apoio no Congresso, é a esperança de que o Banco Central exerça sua independência e cumpra seu mandato”.

 

 

Referências e indicações bibliográficas e webgráficas 

AGUINIS, Marcos. O atroz encanto de ser argentino. São Paulo: Editora Bei, 2002. 

_______________ ¡Pobre patria mía!: Panfleto. 9ª ed. Buenos Aires: Sudameris, 2009.

CHAGUE, Fernando. Eu (não) sou você amanhã. Folha de S. Paulo, 26 de dezembro de 2019. Disponível em https://porque.com.br/eu-nao-sou-voce-amanha. 

DEPOIS das pedaladas, a obscenidade fiscal. O Estado de S. Paulo, 23 de outubro de 2021, p. A3.

FRANCO, Gustavo. O teto e o precipício. O Estado de S. Paulo, 31 de outubro de 2021, p. B6.

GOLFAJN, Ilan. ‘Responsabilidade social não significa irresponsabilidade fiscal’. Entrevista a José Fucs. O Estado de S. Paulo, 31 de outubro de 2021, p. B4.

KUNTZ, Rolf. Bolsonaro e a privatização do Orçamento. O Estado de S. Paulo, 24 de outubro de 2021, p. A8.

MEIRELLES, Henrique. ‘Estou vendo uma volta para trás. Um retrocesso’. Entrevista a Adriana Fernandes. O Estado de S. Paulo, 24 de outubro de 2021, p. B4.

MENDONÇA DE BARROS, José Roberto. Descendo a ladeira. O Estado de S. Paulo, 31 de outubro de 2021, p. B3.

MING, Celso. O Brasil. Mais parecido com a Argentina. O Estado de S. Paulo, 24 de outubro de 2021, p. B3. 

PASTORE, Affonso Celso. Só restou o Banco Central. O Estado de S. Paulo, 24 de outubro de 2021, p. B2. 

RICUPERO, Rubens. O Brasil e o dilema da globalização. São Paulo: Editora SENAC. Série Livre Pensar, 2001. 

SCHUETTINGER, Robert Lindsay; BUTLER, Eamonn. Quarenta séculos de controles de preços e salários: o que não se deve fazer no combate à inflação. Tradução de Anna Maria Capovilla. São Paulo: Visão, 1988.

 

 

[1] Lamentavelmente, os responsáveis pela condução da política econômica do Brasil e da Argentina jamais leram o livro Quarenta séculos de controles de preços e salários, que tem o sugestivo subtítulo o que não se deve fazer no combate à inflação.

[2] Em 1992, a inflação anual na Argentina foi de 17%, enquanto no Brasil atingiu 1.178%. Em 1993, ano anterior ao da adoção do Plano Real, a inflação brasileira foi de 2.567%, ao passo que a inflação média no continente foi de 22%.

[3] No consagrado trabalho World Economic Performance Since 1870, Angus Maddison, um dos mais respeitados analistas de ciclos longos de desenvolvimento, identificou o Brasil como o país que apresentou melhor desempenho de 1870 a 1986, numa amostra que reunia os cinco maiores países da OCDE (EUA, Alemanha, Reino Unido, França e Japão) e os cinco maiores de fora da OCDE (Rússia, China, Índia, México e Brasil). Nesse estudo, publicado em 1987 e apontado pelo embaixador Rubens Ricupero (2001, p. 103) como “o mais impressionante de todos, por comparar grandes economias, portanto entidades pertencentes mais ou menos à mesma ordem de grandeza, e por cobrir duração de tempo tão extensa”, Maddison concluiu que “o melhor desempenho tinha sido o brasileiro, com a média anual de 4,4% de crescimento; em termos per capita, o Japão ostentava o resultado mais alto, com 2,7%, mas o Brasil, não obstante a explosão demográfica daquela fase, vinha logo em segundo lugar, com 2,1% de expansão por ano”.

[4] Todas as citações do livro ¡Pobre patria mía! foram traduzidas para o português pelo autor.

[5] Os dois assessores que pediram exoneração de seus cargos no dia 21 de outubro foram Bruno Funchal, secretário especial do Tesouro e Orçamento, e Jeferson Bittencourt, secretário do Tesouro Nacional.

 

* Luiz Alberto Machado é economista pela Universidade Mackenzie (1977), mestre em Criatividade e Inovação pela Universidade Fernando Pessoa (Portugal, 2012), assessor da Fundação Espaço Democrático e conselheiro do Instituto Fernand Braudel.

 

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Da Prefeitura de São Paulo, uma notícia boa e outra má https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3508&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=da-prefeitura-de-sao-paulo-uma-noticia-boa-e-outra-ma Fri, 08 Oct 2021 16:01:54 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3508 Da Prefeitura de São Paulo, uma notícia boa e outra má

O R$ 1,1 bilhão de aumentos salariais deveria ir para a população mais carente

 

Por Roberto Macedo

 

A má veio neste jornal no último dia 29. O título e o subtítulo da matéria já dizem bastante sobre o conteúdo: Prefeito de SP quer dobrar salários de indicados políticos. Reforma enviada à Câmara também prevê aumento para cargos de chefia, como subprefeitos: impacto será de R$1,1 bilhão em 2022. A proposta também alcança servidores de níveis básico e médio, entre outras extensões.

Para justificá-la, os argumentos apresentados estão longe de convincentes. Um alegado benefício diz que ela eliminará mais de 38 mil cargos hoje vagos. Ou seja, nada custam, não havendo, assim, uma redução de custo na proposta. O benefício estaria em que a Prefeitura, se quiser admitir mais servidores, teria de comprovar a fonte de recursos e ter autorização da Câmara Municipal.

Em cargos comissionados a Prefeitura tem hoje cerca de 5 mil funcionários, sendo a metade deles servidores efetivos que recebem adicionais em função do cargo ocupado. Concluí que pelo menos 2.500 são indicações políticas. Para os comissionados o aumento seria de 96%. No nível básico, a alta prevista é de 23% e no nível médio, de 30%. Ou seja, quem ganha mais receberá aumento maior. A razão, segundo um secretário municipal, seria corrigir “… defasagens e equilibrar valores pagos a comissionados”. Nesses termos, o argumento não convence. Precisaria ser detalhado e comprovado com mais e esclarecedoras informações.

O mesmo vale para aumentos propostos para o vale-alimentação e as bonificações, bem como para a gratificação atribuída aos profissionais de saúde e de educação que atuam nos 35 distritos da cidade com os menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDHs).

Parece que foi o então prefeito Bruno Covas que inspirou os aumentos agora propostos. No final do ano passado ele sancionou lei que aumentou o seu próprio salário de R$ 24,1 mil para R$ 35,4 mil, ou 47% a mais. O salário do governador João Doria é de R$ 23 mil. Este é baixo e o do prefeito, muito alto.

Falando à reportagem sobre o assunto, o prefeito Ricardo Nunes disse que parte dos salários está muito defasada e se os funcionários não forem valorizados há o risco de “… perdê-los para a iniciativa privada”.

Essa perda para outros empregadores é uma questão importante que os gestores de recursos humanos avaliam ao examinar a estrutura salarial de sua organização. Mas não se pode ficar só na conversa. O que foi dito precisaria ser sustentado por pesquisas sobre os salários na Prefeitura e no mercado de trabalho, realizada por instituição especializada e de prestígio.

A proposta deveria ser examinada com rigor pela Câmara Municipal, numa discussão transparente para a sociedade em geral. Temo, entretanto, que essas ponderações venham a ser desprezadas por motivos de cunho político, pois muitos vereadores indicam ocupantes de cargos comissionados.

Destaco duas outras restrições adicionais. O custo é alto, R$ $1,1 bilhão em 2022, e presumo que seja assim anualmente daí em diante. E o momento é inoportuno.

Há perto de 14 milhões de desempregados no País, muitos até desistiram de procurar emprego e não são contados como desempregados. A população carente aumentou muito, e com dificuldades que levam mesmo à falta de alimentos, recorrendo até a ossos e outros resíduos de carne. Na situação atual, esse dinheiro deveria ser destinado aos cidadãos mais necessitados e suas famílias.

A outra notícia, no dia 1.º deste mês, também no Estadão, começa boa pelo título: SP vai priorizar áreas mais pobres em divisão de verba. O programa, de natureza plurianual, prevê uma aplicação de R$ 5 bilhões no período 2022-2025, o que implicaria uma média de R$ 1,25 bilhão por ano. A escolha das áreas teve por critério condições de vulnerabilidade social, infraestrutura urbana e demografia, com pesos de 60%, 30% e 10%, respectivamente. Como resultado, as regiões de Capela do Socorro, M’Boi Mirim e Campo Limpo, todas elas carentes, terão 20% dos recursos. Na outra ponta, Santo Amaro, Vila Mariana e Pinheiros ficarão com apenas 2,45% do total. Mas não é esclarecido se são gastos adicionais ou só redistribuição dos hoje realizados.

Um aspecto muito importante é que essas regras foram definidas em cooperação técnica com a Fundação Tide Setubal e a Rede Nossa São Paulo, o que, a meu ver, minimizou o impacto de influências políticas, fazendo que o programa possa atuar para reduzir desigualdades sociais. Conheço mais a Fundação Tide Setubal, uma organização não governamental de origem familiar. As periferias urbanas são o foco do seu trabalho.

Ao projeto de aumento de salários faltou essa cooperação técnica, conforme sugerida acima, que lhe desse melhor fundamentação para justificá-lo, mas sempre com a questão econômico-social do momento postergando sua adoção até que essa questão seja aliviada, pois, neste momento, o dinheiro poupado deveria, vale repetir, ter como destino o socorro aos segmentos mais necessitados da população.

 

* Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

 

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 7 de outubro de 2021.

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Distorções das emendas parlamentares continuam se agravando https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3477&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=distorcoes-das-emendas-parlamentares-continuam-se-agravando Fri, 09 Jul 2021 15:49:56 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3477 Distorções das emendas parlamentares continuam se agravando

 

E o noticiário sobre esse assunto continua a revelar aberrações

 

Por Roberto Macedo

Volto e voltarei a escrever sobre essas emendas, pois constituem uma das grandes distorções do sistema político brasileiro. Refiro-me às verbas que parlamentares federais colocam no Orçamento, particularmente em benefício de prefeituras de cidades onde cultivam suas bases eleitorais, de olho em assegurar votos em futuras campanhas de reeleição.

O valor total dessas emendas cresceu ao longo do tempo, e elas foram objeto de emenda constitucional. Mas é possível argumentar que mesmo assim seriam inconstitucionais, assunto ao qual voltarei mais à frente.

Há quatro tipos de emendas: a individual, do próprio parlamentar, as apresentadas pelo relator-geral do orçamento, as oriundas de comissões e as de bancadas estaduais. O total das dotações alcançou as expressivas cifras de R$ 36,2 bilhões em 2020 e R$ 33,8 bilhões em 2021. É interessante verificar que são valores comparáveis às dotações do programa Bolsa Família, de R$ 29,5 bilhões em 2020 e R$ 34,9 bilhões em 2021. Mas esse programa tem reconhecidos méritos, chegando a perto de 15 milhões de famílias e a muito mais pessoas se contados os dependentes familiares.

As emendas atendem a interesses dos parlamentares e de seus beneficiários, e destinam-se principalmente a projetos municipais. São penduricalhos do Orçamento federal, já que não se destinam a finalidades típicas desse orçamento como, por exemplo, uma rodovia ou um porto marítimo que servisse a vários estados.

Volto novamente à avaliação dessas emendas por Cecília Machado, professora da Fundação Getúlio Vargas, em artigo na Folha em 13/4/21: “Na prática, a execução descentralizada e atomizada das emendas … pode encontrar … desafios na sua implementação … Primeiro, a discricionariedade individual dos parlamentares na escolha de projetos vem ao custo de uma avaliação mais ampla de alternativas para a aplicação dos recursos, e … é falha na identificação de ações prioritárias. … muitos municípios, especialmente os menores, não têm levantamento prévio de suas necessidades … com critérios técnicos … Inexistem critérios de necessidade ou custo-efetividade dos projetos, que passam a seguir lógica populista ou eleitoral … ainda que os maiores gargalos possam estar em outras regiões ou municípios”.

A autora apontou também outros defeitos das emendas. Uma implicação muito relevante de sua análise é que a pulverização, e a falta de critérios na distribuição das emendas, faz com que não atentem para o bem comum dos brasileiros, o que é indicativo de um comportamento aético dos parlamentares.

E o noticiário sobre o assunto continua a revelar aberrações. Uma tem sido objeto de reportagens deste jornal centradas no chamado orçamento secreto. Segundo a última matéria, que vi no site do jornal em 25/6, dos repórteres Breno Pires e André Shalders, recorrendo às emendas do relator “parlamentares aliados indicaram transferências em valores muito superiores àqueles aos quais têm direito pelas tradicionais emendas ao orçamento – que são as individuais e as de bancada. As indicações, definidas nos bastidores, são oficializadas por meio de ofícios ocultos ao público”. Assim, o destino final dos recursos não consta da lei orçamentária, mas só posteriormente pelo meio mencionado, o que é um absurdo.

Segundo a mesma matéria, o Tribunal de Contas da União considerou o procedimento inconstitucional. Uma das transferências realizadas dessa forma chama a atenção. A prefeitura de Tauá, sob comando de Patrícia Aguiar, mãe do relator-geral do Orçamento de 2019, Domingos Neto (PSD-CE), foi beneficiada com R$ 146 milhões em 2020, o que dá uma média de R$ 2.476,77 por habitante, enquanto a capital cearense, Fortaleza, teve valor per capita de R$ 77,85. E por aí vai o dinheiro do contribuinte…

Volto agora à minha visão da inconstitucionalidade das emendas em geral, apontada em artigo neste espaço em 21/4. A Constituição, no seu artigo 4.º, diz que todos são iguais perante a lei, uma de suas cláusulas pétreas, ou seja, que não podem ser alteradas por reformas constitucionais.

Há tempos tinha a curiosidade de saber se não haveria uma hierarquia de princípios constitucionais. Pesquisando o assunto na internet, encontrei um texto do jurista Douglas Cunha[1]  onde é dito o seguinte: “Embora não exista hierarquia entre normas constitucionais originárias (acrescento: como o artigo 4.º citado) … as emendas constitucionais (normas constitucionais derivadas) poderão, sim, ser objeto de controle de constitucionalidade”.

Está aí, portanto, um caminho para argumentar pela inconstitucionalidade das emendas, pois infringem o referido artigo 4.º, ao criarem duas categorias de candidatos: os incumbentes, que buscam a reeleição e usam as emendas como um instrumento de suas campanhas, e os candidatos sem mandato e sem acesso a elas.

 

Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 1° de julho de 2021.

[1] (https://douglascr.jusbrasil.com.br/artigos/616260325/a-piramide-de-kelsen-hierarquia-das-normas)

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Uma boa reforma tributária ficou mais distante https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3452&utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=uma-boa-reforma-tributaria-ficou-mais-distante https://www.brasil-economia-governo.com.br/?p=3452#comments Mon, 31 May 2021 15:07:41 +0000 http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=3452 Uma boa reforma tributária ficou mais distante

 

Presidente da Câmara atuou como o juiz que apita o fim do jogo no meio da partida…

 

Por Maílson da Nóbrega*

O término da Comissão Especial da PEC 45 na Câmara dos Deputados, decidida por seu presidente, Arthur Lira, foi um duro golpe nas esperanças de dotar o País de um moderno sistema de tributação do consumo. Havia fundadas expectativas de aprovação daquela proposta de emenda à Constituição, que previa a criação de um Imposto sobre o Valor Agregado (IVA), nos moldes do que há de melhor entre os mais de 180 países que adotam o método.

A PEC 45, baseada em estudos do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), poderia superar as dificuldades enfrentadas por iniciativas semelhantes nos últimos 20 anos. De um lado, estribava-se no melhor dos projetos, cujo texto se beneficiou da experiência acadêmica, internacional e de governo de seus autores. De outro, obteve adesão unânime dos Estados, que antes se opunham a ideias de reforma da tributação do consumo para não perderem o comando do ICMS, usado para atrair investimentos via incentivos fiscais.

Houve amplo apoio de formadores de opinião e da imprensa à PEC 45. Ela sofreu, é certo, críticas de tributaristas apegados excessivamente a aspectos formais e à equivocada ideia de prejuízo à autonomia de estados e municípios. Ao mesmo tempo, estudos indicaram que a reforma contribuiria para elevar em 20% a taxa de crescimento do produto interno bruto (PIB). Estimular-se-ia o abandono da guerra fiscal e a adoção de novas formas de atrair investimentos, na linha de práticas bem-sucedidas em outros países.

O presidente da Câmara preferiu aliar-se à estratégia do Ministério da Economia, que nunca demonstrou simpatia pela PEC 45. Inventou-se a ideia de reforma “fatiada”, que supostamente facilitaria a aprovação. O sistema tributário reclama mudanças nas suas demais partes: no Imposto de Renda, para restaurar a progressividade; no Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), para modernizá-lo (seu conceito nasceu há 60 anos); na tributação de heranças e doações, para torná-la progressiva. Pode-se falar em etapas, e não em “fatiamento”.

O caótico sistema tributário é hoje a principal fonte de ineficiências da economia. Inibe ganhos de produtividade. Freia a expansão do PIB e a geração de emprego e renda. A essência do desastre é a tributação do consumo e suas cinco confusas incidências: IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS. A mais irracional de todas é o ICMS, impregnado de incontáveis regimes e inúmeras alíquotas.

Esperava-se que o governo federal se envolvesse na tramitação da PEC 45, que criava o Imposto sobre Bens e Serviços e substituía as cinco incidências, incluído o ICMS. A liderança da União e sua capacidade de coordenação podiam melhorar seu conteúdo, fortalecendo as condições para sua aprovação. Optou-se, todavia, por uma solução tímida e insuficiente – a fusão do PIS e da Cofins – que pode duplicar a tributação das telecomunicações e enfrentar a oposição das áreas de serviços e de venda de livros. Parte dessa resistência também existe na PEC 45, mas, já que haveria consumo de capital político, o razoável seria apoiar a PEC 45, e não buscar solução pouco ambiciosa.

Para piorar, o Ministério da Economia cogita de recriar a CPMF com outro nome, associada à elevação do emprego. A ideia incorre em dois erros. Primeiro, reintroduz incidência tributária em cascata, de efeitos negativos na intermediação financeira e na produtividade. Em segundo lugar, a literatura indica que medidas como essa aumentam a renda para os trabalhadores, e não postos de trabalho. Adicionalmente, a nossa experiência prova que tributos fáceis de arrecadar, como a CPMF, terminam sendo a válvula para momentos de dificuldades fiscais. A correspondente elevação da alíquota tende a ser frequente, elevando os danos à economia e à sociedade.

O presidente da Câmara atuou como o juiz de futebol que apita o fim do jogo no meio da partida e pede a bola para se juntar a outro time, de qualidade inferior. Com a opção pelo adversário, dificilmente ganhará o campeonato. Pior, a decisão ocorreu quando o relatório era lido pelo deputado Aguinaldo Ribeiro, relator da PEC 45. Ele havia sido instado a tanto pelo próprio Arthur Lira. Inacreditável. O deputado, que se dedicara por quase dois anos à missão, produziu um bom documento.

O texto contém saídas para contemplar distintas demandas, incluídas as do setor de serviços. Cria um oportuno imposto seletivo para lidar com externalidades como as decorrentes da poluição e do consumo de fumo e de bebidas alcoólicas. O próprio governo ganharia tempo para discutir a constituição do Fundo de Desenvolvimento Regional, demandado pelos Estados para manter a capacidade de atrair investimentos, sem os defeitos da guerra fiscal.

A extinta comissão, não prevista em regimento, pretende continuar seu trabalho, acolher emendas ao relatório e apresentar a versão final em breve. O exame da matéria pode continuar no Senado, mas com menos força. Além disso, o timing da reforma foi perdido. Agora é torcer para que a PEC 45 renasça no próximo governo. O custo do adiamento será enorme. 

 

*Maílson da Nóbrega é sócio da Tendências Consultoria, foi ministro da Fazenda  e é membro do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial

Artigo publicado em O Estado de S. Paulo dia 30 de maio de 2021.

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